Acessibilidade / Reportar erro

A Religiosidade/Espiritualidade dos Médicos de Família: Avaliação de Alunos da Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS)

The Spirituality/Religiosity of Family Medicine Physicians: Evaluation of SUS Open University (UNA-SUS) Trainees

RESUMO

Introdução

Muitas universidades ao redor do mundo têm incluído o tema religiosidade/espiritualidade (R/E) no currículo médico no período de graduação, especialmente nos Estados Unidos e Reino Unido. Este artigo objetiva apresentar a opinião de médicos, especializandos em Saúde da Família da Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) sobre o ensino do tema R/E na graduação em Medicina, as percepções dos profissionais sobre essa temática na prática clínica e os índices de religiosidade/espiritualidade dos estudantes.

Metodologia

Estudo transversal, em que um instrumento de pesquisa eletrônica foi disponibilizado aos alunos na plataforma virtual da UNA-SUS/UFCSPA, tendo sido convidados a participar voluntariamente todos os médicos de nacionalidade brasileira inscritos no curso de especialização em Saúde da Família entre os meses de junho e agosto de 2016.

Resultados

Foram obtidas 73 respostas (17,2%) de um total de 423 médicos. Foram encontrados 61,4% de católicos, 18,5% de evangélicos e 8,6% de espíritas, sendo 52,1% de não praticantes; 86,3% acreditam em Deus; 89% consideram importante ou muito importante o cuidado espiritual nas práticas em saúde e 94,6% consideram que a espiritualidade contribui para a saúde física. Constatou-se que 60,3% consideram a coleta da história espiritual como a habilidade mais importante a ser aprendida e 72,2% concordam em que o tema R/E deve ser abordado na graduação, enquanto 13,7% relataram contato prévio com o tema na faculdade. A relevância conferida à R/E no cuidado médico não parece ter sido mediada pela religiosidade intrínseca dos estudantes, pois não houve correlação estatisticamente significativa entre essa variável e a atribuição de importância à R/E na prática clínica (p = 0,585). Os médicos avaliados parecem reconhecer a importância da espiritualidade para os pacientes e para a saúde, mas são menos fortemente propensos a considerar o seu papel como cuidadores dessa dimensão.

Conclusões

A aceitação do tema R/E pelos médicos especializandos em Saúde da Família pela UNA-SUS/UFCSPA foi considerada bastante satisfatória. É necessário desenvolver propostas pedagógicas inovadoras, metodologicamente eficazes e apropriadas ao contexto da atuação médica no Sistema Único de Saúde, tanto na graduação, quanto nos programas de pós-graduação.

Espiritualidade; Educação Médica; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

Introduction

Many universities around the world have included religious or spiritual (R/S) issues in the undergraduate medicine curriculum, especially in USA and United Kingdom. The article aims to present the opinion of UNA-SUS/UFCSPA’s family medicine trainees about the teaching of R/S in undergraduate medical training, their perceptions about R/S in clinical practice and their personal religious profile.

Methodology

Cross-sectional design, using the UNA-SUS/UFCSPA online platform. All Brazilian students were invited to participate.

Results

73 answers were obtained (17.2% response rate) among 423 students. 61.4% declared themselves as Catholic, 18.5% as Protestant and 8.6% Spiritist; 52.1% practice no religion, 86.3% believe in God, 89% believe that spiritual care is important or very important in health care and 94.6% consider that spirituality impacts on physical health. 60.3% consider that spiritual history is the most important ability to be learned and 72.2% believe that this issue should be taught in the undergraduate curriculum. The relevance attributed to R/S in medical care is not mediated by the student’s intrinsic religiosity, because there is no statistical correlation between the variables (p = 0.585). Physicians recognize the relevance of spirituality in patients’ lives and health, but they are less aware of their role as spiritual care providers.

Conclusions

The acceptance of the theme of R/S was considered very satisfactory. It is necessary to develop innovative pedagogic proposals, methodologically suited to medical practice in a public health system, both in graduate and undergraduate programs.

Spirituality; Medical Education; Primary Health Care

INTRODUÇÃO

Nas últimas duas décadas, a comunidade científica internacional tem testemunhado um crescente número de pesquisas sobre as relações entre religiosidade/espiritualidade (R/E) e saúde, que apontam um impacto predominantemente positivo em desfechos clínicos em saúde física e mental11. Moreira-Almeida A, Lotufo Neto F, Koenig HG. Religiousness and mental health: a review. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28:242-50.,22. Penna Guimarães H, Avezum A. O impacto da espiritualidade na saúde física.RevPsiq Clín. 2007;34 supl 1:88-94.,33. Lucchetti G, Lucchetti AL, Koenig HG. Impact of spirituality/religiosity on mortality: comparison with other health interventions. Explore (NY). 2011;7:234-8.. Nesse contexto, a atenção do profissional de saúde para as preocupações religiosas e espirituais dos pacientes tem sido considerada parte de um amplo movimento em direção a uma prática clínica centrada no paciente, culturalmente competente, narrativa e integrativa44. Curlin FA, Lantos JD, Roach CJ, Sellergren SA, Chin MH. Religious characteristics of U.S. physicians: a national survey. J Gen Intern Med. 2005;20:629-34.. Assim, muitas universidades ao redor do mundo têm incluído o tema R/E no currículo médico no período de graduação, especialmente nos Estados Unidos55. Koenig HG, Hooten EG, Lindsay-Calkins E, Meador KG. Spirituality in medical school curricula: findings from a national survey. Int J Psychiatry Med. 2010;40:391-8.e Reino Unido66. Neely D, Minford EJ. Current status of teaching on spirituality in UK medical schools. Med Educ. 2008;42:176-82., embora isto ainda não possa ser considerado um fenômeno global77. Dalla Colletta de Aguiar PR, Cazella SC, Costa MRC. What do we know about the teaching of religiosity/spirituality in medical undergraduate curricula? An integrative review, MedEdPublish, 2016;5:20..

No Brasil, levantamentos recentes têm indicado opiniões favoráveis de alunos, professores e diretores de faculdades acerca da relevância do tema e sua importância para a formação médica88. Lucchetti G, Lucchetti AL, Espinha DC, de Oliveira LR, Leite JR, Koenig HG. Spirituality and health in the curricula of medical schools in Brazil. BMC Med Educ. 2012;12:78.,99. Lucchetti G, de Oliveira LR, Koenig HG, Leite JR, Lucchetti AL; SBRAME Collaborators. Medical students, spirituality and religiosity--results from the multicenter study SBRAME. BMC Med Educ. 2013;13:162.. É importante notar que os próprios pacientes desejam, em sua maioria, que o médico esteja aberto ao tema durante a consulta e o inclua na avaliação clínica1010. Lucchetti G, Bassi RM, Lucchetti AL. Taking spiritual history in clinical practice: a systematic review of instruments. Explore (NY). 2013;9:159-70..

No ensino da pós-graduação, algumas iniciativas também são encontradas na literatura, especialmente nas áreas de cuidados paliativos, psiquiatria e medicina de família, mas, assim como na graduação, faltam estudos mais aprofundados sobre metodologias de ensino e conteúdo das disciplinas77. Dalla Colletta de Aguiar PR, Cazella SC, Costa MRC. What do we know about the teaching of religiosity/spirituality in medical undergraduate curricula? An integrative review, MedEdPublish, 2016;5:20.,1111. Fang ML, Sixsmith J, Sinclair S, Horst G. A knowledge synthesis of culturally- and spiritually-sensitive end-of-life care: findings from a scoping review. BMC Geriatr. 2016;16:107.,1212. Lucchetti G, Granero AL. Spirituality and health’s most productive researchers: the role of primary care physicians. Fam Med. 2010;42:656-7.. Estudos que utilizam metodologias de ensino na modalidade a distância não são encontrados na literatura nacional, e raras experiências de ensino em R/E usam essa abordagem1313. Ellman MS, Schulman-Green D, Blatt L, Asher S, Viveiros D, Clark J, Bia M. Using online learning and interactive simulation to teach spiritual and cultural aspects of palliative care to interprofessional students. J Palliat Med. 2012;15:1240-7. http://www.unasus.gov.br/page/una-sus/rede-una-sus. Acessado em 28 de dezembro de 2016.
http://www.unasus.gov.br/page/una-sus/re...
.

O presente estudo integra um projeto de pesquisa que objetiva avaliar uma experiência de ensino de R/E com médicos brasileiros na modalidade de ensino a distância. Assim, um módulo de ensino online em “Espiritualidade na Prática Clínica” foi disponibilizado a médicos atuantes no SUS e que realizavam especialização em Saúde da Família por meio da Universidade Aberta do SUS, na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UNA-SUS/UFCSPA).

O Sistema Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) do Ministério da Saúde cria condições e possibilita o funcionamento de uma rede colaborativa de instituições públicas de educação superior, conveniadas ao Ministério da Saúde e credenciadas pelo Ministério da Educação, para a oferta de educação a distância destinada a somar esforços em educação permanente dos trabalhadores do SUS1414. Bell D, Harbinson M, Toman G, Crawford V, Cunningham H. Wholeness of healing: an innovative Student-Selected Component introducing United Kingdom medical students to the spiritual dimension in healthcare. South Med J. 2010;103:1204-9.. A Rede UNA-SUS, por meio da articulação entre essas instituições, permite maior intercâmbio de experiências e conhecimentos em proveito da melhoria da cooperação para o desenvolvimento de ações educacionais de alcance nacional. Esses profissionais médicos fazem parte de dois programas nacionais: Mais Médicos e Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab).

Este artigo ocupa-se exclusivamente da primeira etapa do projeto de pesquisa e objetiva delinear o perfil do médico especializando em Saúde da Família da UNA-SUS/UFCSPA em termos da opinião sobre o ensino do tema religiosidade/espiritualidade na graduação, suas experiências formativas, as percepções dos profissionais sobre a temática da R/E na prática clínica e os índices de religiosidade desses acadêmicos.

MÉTODOS

Um instrumento de pesquisa eletrônica foi disponibilizado aos alunos na plataforma virtual da UNA-SUS/UFCSPA, e foram convidados a participar voluntariamente todos os médicos de nacionalidade brasileira inscritos no curso de especialização em Saúde da Família. Foram enviados dois e-mails a esses alunos com um link do formulário de pesquisa entre os meses de junho e agosto de 2016. Médicos de outras nacionalidades inscritos no curso foram excluídos da amostra da pesquisa.

O instrumento foi elaborado para analisar as opiniões dos médicos sobre o tema R/E na prática clínica, para verificar experiências prévias de ensino sobre essa temática no período de graduação e para avaliar o perfil de religiosidade dos médicos, informações necessárias à continuidade do projeto em suas etapas subsequentes (elaboração e aplicação do módulo de ensino EAD). Assim, o instrumento de pesquisa foi composto por:

  1. Questionário sociodemográfico, com oito questões;

  2. Questionário de percepções de espiritualidade no cuidado médico, com 13 questões objetivas, sendo sete em escala Likert e uma de múltipla escolha;

  3. Questionário de percepções sobre espiritualidade no ensino médico, com dez questões, sendo duas para respostas abertas, quatro em escala Likert e quatro de múltipla escolha;

  4. Escala da Duke University Religiosity Scale (Durel), com cinco questões objetivas;

  5. Inventário de Religiosidade Intrínseca, com dez questões em escala Likert.

Os questionários de percepções sobre espiritualidade no cuidado médico e no ensino médico foram elaborados para os propósitos desta pesquisa, tendo sido utilizado como referência um questionário do Reino Unido publicado por Bell et al.1515. Robinson KA, Cheng MR, Hansen PD, Gray RJ. Religious and spiritual beliefs of physicians J Relig Health. 2017;56:205., que foi traduzido e adaptado. Antes de sua aplicação, houve uma etapa de validação de conteúdo com cinco juízes, experts em medicina de família, que contribuíram para aperfeiçoar o instrumento. As duas escalas de avaliação de religiosidade (Durel1414. Bell D, Harbinson M, Toman G, Crawford V, Cunningham H. Wholeness of healing: an innovative Student-Selected Component introducing United Kingdom medical students to the spiritual dimension in healthcare. South Med J. 2010;103:1204-9. e Inventário de Religiosidade Intrínseca1515. Robinson KA, Cheng MR, Hansen PD, Gray RJ. Religious and spiritual beliefs of physicians J Relig Health. 2017;56:205.) já foram validadas para utilização na população brasileira e fornecem três variáveis de pesquisa: religiosidade intrínseca, religiosidade organizacional e religiosidade não organizacional.

A análise dos dados é apresentada em estatística descritiva simples. Foi considerado um p < 0,05 como estatisticamente significativo.

Este projeto foi registrado na Plataforma Brasil e aprovado pelo CEP da UFCSPA. A assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi solicitada a todos os respondedores desse levantamento.

RESULTADOS

Foram obtidas 73 respostas (17,2%) de um total de 423 médicos brasileiros que frequentavam o curso de especialização em Saúde da Família da UNA-SUS/UFCSPA durante os meses de coleta de dados. A amostra analisada foi de 43 mulheres (58,9%) e 30 homens (41,1%), com média de idade de 33 anos (DP = 9,1 anos) e mediana de 2 anos de experiência profissional (DP = 8,98 anos). A maioria dos médicos se autodeclarou de cor branca (n = 54, 74%), 17 pardos (23,3%), 1 negro e 1 indígena (1,4%). Em relação ao estado civil, a maioria dos médicos era solteira (n = 31, 42,5%), sendo 26 casados (35,6%), 12 morando juntos (16,4%) e 4 separados (5,5%).

As variáveis relacionadas à R/E do médico foram: filiação religiosa (primeira e segunda), crença em Deus, religiosidade organizacional (frequência a templos), religiosidade não organizacional, religiosidade intrínseca e se é praticante. Os resultados são apresentados na Tabela 1.

TABELA 1
Variáveis de R/E dos médicos pesquisados

No questionário de percepções sobre espiritualidade no cuidado médico, avaliou-se a opinião dos médicos a respeito da importância da R/E na prática clínica em comparação a outras dimensões do cuidado assistencial, quais os procedimentos médicos considerados mais relevantes na abordagem do tema e o papel da espiritualidade como integrante no processo de adoecimento e de tratamento dos pacientes. Os resultados são sumariados na Tabela 2.

TABELA 2
Resultados do questionário sobre percepções do papel da espiritualidade no cuidado médico – resultados expressos como n (%)

O questionário de percepções sobre espiritualidade no ensino médico avaliou as experiências formais de aprendizado dos médicos durante o seu período formativo na graduação, bem como opiniões a respeito de como o tema R/E deve ser ensinado, em termos de conteúdo, metodologias e formas de avaliação. Os resultados são apresentados na Tabela 3.

TABELA 3
Resultados do questionário sobre R/E no ensino médico

A correlação entre o índice de religiosidade intrínseca, medido pelo Inventário de Religiosidade Intrínseca, e a opinião dos médicos sobre a importância da R/E no cuidado médico é apresentada na Tabela 4.

TABELA 4
Correlação entre religiosidade intrínseca (segundo Inventário de Religiosidade Intrínseca) e atribuição de importância à R/E no cuidado médico

DISCUSSÃO

Segundo o conhecimento dos autores, este é o primeiro estudo brasileiro que descreve a R/E de médicos de família, bem como suas experiências e concepções em torno do tema na prática e no ensino médicos. O estudo da R/E dos médicos tem sido reconhecido como um tema importante, tendo em vista seu potencial de influenciar decisões médicas e mesmo a escolha dessa carreira1616. Stewart WC, Adams MP, Stewart JA, Nelson LA. Review of clinical medicine and religious practice. J Relig Health. 2013;52:91-106.. O motivo de se avaliar o perfil da R/E do médico é o reconhecimento da literatura internacional, que considera importante a experiência pessoal do estudante nas estratégias de ensino relacionadas à espiritualidade. Dessa forma, o ensino da R/E é mais efetivo quando se vai além da teoria, permitindo a exposição de visões pessoais, receios, crenças, dificuldades da prática profissional em situações desafiantes, nas quais frequentemente emergem conteúdos de cunho religioso77. Dalla Colletta de Aguiar PR, Cazella SC, Costa MRC. What do we know about the teaching of religiosity/spirituality in medical undergraduate curricula? An integrative review, MedEdPublish, 2016;5:20.. Essa peculiaridade do ensino da R/E na saúde está em sintonia com a proposta didático-pedagógica da UNA-SUS/UFCSPA, que pressupõe uma aprendizagem ativa, fundamentada em saberes que o aluno traz de sua prática cotidiana, de suas experiências no trabalho e na vida1414. Bell D, Harbinson M, Toman G, Crawford V, Cunningham H. Wholeness of healing: an innovative Student-Selected Component introducing United Kingdom medical students to the spiritual dimension in healthcare. South Med J. 2010;103:1204-9..

Os termos religiosidade e espiritualidade, que são constructos complexos e multifacetados e sobre os quais não há definições consensuais, não foram definidos a priori pelos autores. Isto permitiu que os respondedores utilizassem seus próprios conceitos para responder aos questionários, captando um universo mais próximo da realidade do profissional e de sua prática clínica, sem a necessidade, portanto, de um aprendizado prévio de conceitos.

A literatura tem apontado um religiosity gap, ou seja, médicos costumam ter índices de R/E menores do que os de seus pacientes, criando, muitas vezes, dificuldades de empatia e prejuízo na relação médico-paciente1616. Stewart WC, Adams MP, Stewart JA, Nelson LA. Review of clinical medicine and religious practice. J Relig Health. 2013;52:91-106.. Os dados encontrados confirmam em parte a literatura, especialmente nas taxas de filiação religiosa, frequência religiosa e crença em Deus. Num levantamento nacional representativo da população brasileira, dos 2.346 adultos pesquisados, apenas 5% diziam-se sem religião1717. Ellis MR, Campbell JD, Detwiler-Breidenbach A, Hubbard DK. What do family physicians think about spirituality in clinical practice? J FamPract. 2002;51:249-54., ao passo que a taxa verificada nesse estudo foi de 10,1% (incluindo os que se declararam ateus, agnósticos e os que não seguem nenhuma denominação religiosa). Nesse mesmo levantamento, verificou-se que 37,2% da população adulta brasileira frequentam algum templo religioso uma ou mais vezes na semana, ao passo que dos médicos desse estudo apenas 26,4% têm essa prática regular. Em relação à variável crença em Deus, o levantamento do World Values Survey1818. Menegatti-Chequini MC, Gonçalves JP, Leão FC, Peres MF, Vallada H. A preliminary survey on the religious profile of Brazilian psychiatrists and their approach to patients’ religiosity in clinical practice. BJPsych Open. 2016;2:346-352. de 2014 apontou que 98,4% da população adulta brasileira acreditam, enquanto entre os médicos desse levantamento encontrou-se redução dessa taxa para 86,3%, superior, no entanto, aos 68,5% encontrados em levantamento com médicos nos Estados Unidos1616. Stewart WC, Adams MP, Stewart JA, Nelson LA. Review of clinical medicine and religious practice. J Relig Health. 2013;52:91-106..

Outro dado parece confirmar a literatura nacional: a taxa de pessoas que frequenta ou segue mais de uma religião. Na população geral brasileira1717. Ellis MR, Campbell JD, Detwiler-Breidenbach A, Hubbard DK. What do family physicians think about spirituality in clinical practice? J FamPract. 2002;51:249-54., 10,4% dos entrevistados referiram seguir uma segunda religião, ao passo que entre os médicos o índice foi de 12,5%. Considerando-se que os dados foram obtidos tendo por base 17,2% dos médicos matriculados no curso, é possível que haja um viés de seleção nos resultados encontrados e que a realidade seja de diferenças ainda mais significativas no perfil religioso dos médicos quando comparado ao da população adulta nacional.

A inclusão da R/E nos currículos médicos nacionais é incipiente e praticada pela minoria das universidades. Segundo Luccheti et al.88. Lucchetti G, Lucchetti AL, Espinha DC, de Oliveira LR, Leite JR, Koenig HG. Spirituality and health in the curricula of medical schools in Brazil. BMC Med Educ. 2012;12:78., num levantamento com 47,4% das escolas médicas brasileiras, apenas 10,4% dos cursos de graduação dispõem de disciplinas dedicadas ao ensino de espiritualidade e saúde. Dos médicos avaliados nesse estudo, apenas 13,7% referiram ter estudado o tema na graduação, fato condizente, portanto, com os achados de Luccheti. Não foi avaliado, no entanto, como se deu esse processo de ensino-aprendizagem. É interessante ressaltar que 70,2% dos médicos pesquisados consideram importante a inclusão da R/E como temática de estudos na formação médica, dado coerente com a relevância que atribuem ao tema, pois 89% deles consideram importante ou muito importante o cuidado espiritual na prática médica, índice equivalente à relevância que atribuem a outras formas de cuidado clínico, como o biológico, psicológico e social.

Apesar do reconhecimento da relevância para a prática profissional, os médicos tendem a desejar esse tema apenas como um conteúdo eletivo na graduação. Essa também é a opinião da maior parte dos estudantes de Medicina de outros países, tendo em vista a possibilidade de abordagem dos aspectos espirituais dos pacientes em diversos momentos ao longo da formação, como em disciplinas de semiologia médica, cuidados paliativos e psiquiatria77. Dalla Colletta de Aguiar PR, Cazella SC, Costa MRC. What do we know about the teaching of religiosity/spirituality in medical undergraduate curricula? An integrative review, MedEdPublish, 2016;5:20.. Embora uma pequena minoria dos alunos tenha sido exposta a disciplinas que ensinaram a respeito de R/E na graduação médica, a relevância conferida à R/E como um fator importante no cuidado médico não parece ter sido mediada pela religiosidade intrínseca dos estudantes, pois não houve correlação estatisticamente significativa entre essa variável e a atribuição de importância à R/E na prática clínica (p = 0,585), conforme apresentado na Tabela 4.

A importância da fé na vida dos pacientes parece ser uma variável considerada relevante por ambos os gêneros no atendimento médico. Entretanto, o gênero feminino concordou mais fortemente com essa afirmação de forma estatisticamente significativa. A opinião dos médicos estudados está de acordo com os dados da literatura, conforme o estudo de Stewart et al.1717. Ellis MR, Campbell JD, Detwiler-Breidenbach A, Hubbard DK. What do family physicians think about spirituality in clinical practice? J FamPract. 2002;51:249-54., que, numa revisão de 49 artigos sobre o tema, encontrou que a fé é importante para muitos pacientes, em particular aqueles com doenças graves, que utilizam frequentemente a R/E como estratégia de coping positivo1717. Ellis MR, Campbell JD, Detwiler-Breidenbach A, Hubbard DK. What do family physicians think about spirituality in clinical practice? J FamPract. 2002;51:249-54..

Os médicos avaliados parecem reconhecer a importância da espiritualidade para os pacientes e para a saúde, mas são menos fortemente propensos a considerar o seu papel como cuidadores dessa dimensão, pois quase a metade respondeu de forma neutra ou concorda com a afirmação de que os cuidados espirituais devem ser delegados a outros profissionais. Essa aparente dicotomia entre a importância atribuída ao tema R/E e o fraco reconhecimento do seu papel como agentes provedores desse cuidado pode ser, ao menos em parte, explicada pela autopercepção de inabilidade na abordagem do tema, resultado da falta de experiências de ensino e de desenvolvimento de habilidades para lidar com um tema tão sensível como a R/E dos pacientes, conforme vemos na literatura1818. Menegatti-Chequini MC, Gonçalves JP, Leão FC, Peres MF, Vallada H. A preliminary survey on the religious profile of Brazilian psychiatrists and their approach to patients’ religiosity in clinical practice. BJPsych Open. 2016;2:346-352..

A coleta da história espiritual ganhou destaque como a habilidade mais importante a ser desenvolvida pelo médico (60,3%) e a estratégia de ensino do portfólio reflexivo como a mais adequada (22,2%) para a avaliação dos alunos no ensino do tema R/E e saúde, ambos em sintonia com os dados encontrados em revisões anteriores77. Dalla Colletta de Aguiar PR, Cazella SC, Costa MRC. What do we know about the teaching of religiosity/spirituality in medical undergraduate curricula? An integrative review, MedEdPublish, 2016;5:20..

O presente estudo contém algumas limitações metodológicas, como o delineamento transversal, com informações coletadas online. Além disso, generalizações devem ser utilizadas com cautela em outros contextos, devido à relativa baixa taxa de resposta (17,2%). Entretanto, essa taxa está dentro do esperado para levantamentos que utilizam metodologia eletrônica (e-mail). Além disso, as taxas de resposta de estudos realizados via internet são mais baixas do que as obtidas nos estudos realizados presencialmente, por correio ou telefone. A taxa de resposta em estudos que investigam pessoas de negócios, psiquiatras e oncologistas não costuma ultrapassar 20%. Outra possível limitação do estudo é que pode ter selecionado pessoas mais emocionalmente conectadas ao tema, tanto a favor, como contra. Assim, aqueles mais religiosos/espiritualizados e aqueles que não são religiosos/espiritualizados podem ter se sentido mais inclinados a responder ao questionário1919. Ferreira AGC, Oliveira JAC, Jordán APW.Educação em Saúde e Espiritualidade: uma proposta de transversalidade na perspectiva do estudante. Interdisciplinary Journal of Health Education 2016;1:3-12..

CONCLUSÕES

A aceitação do tema R/E pelos médicos especializandos em Saúde da Família pela UNA-SUS/UFCSPA foi considerada bastante satisfatória, conforme evidenciado pela importância atribuída ao tema, por suas concepções acerca do impacto destas dimensões na saúde dos pacientes e pelo interesse demonstrado no assunto como um elemento curricular na formação profissional. Este fato é digno de nota, uma vez que as humanidades são frequentemente negligenciadas na educação médica, apesar do seu papel na construção da integralidade na atenção à saúde20 e também pelas baixas taxas de experiências prévias de ensino em R/E.

Como proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Medicina, o médico deverá formar-se sob uma ótica humanista, crítica e reflexiva e estar apto a corresponder às demandas da saúde da população de forma integral. Desse modo, a atenção para a saúde espiritual surge como fundamento essencial20. A carência de atividades teórico-práticas que ensejem uma qualificação profissional mínima para a abordagem da espiritualidade dos pacientes reitera a importância de buscar alternativas educacionais que proponham a construção de conhecimentos aplicáveis à prática clínica do médico brasileiro.

Dada a relevância do tema R/E e suas demonstradas repercussões no âmbito da saúde física e mental, urge que a comunidade docente e discente nacional desenvolva propostas pedagógicas inovadoras, metodologicamente eficazes e apropriadas ao contexto da atuação médica no Sistema Único de Saúde, tanto na graduação, quanto nos programas de pós-graduação.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Moreira-Almeida A, Lotufo Neto F, Koenig HG. Religiousness and mental health: a review. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28:242-50.
  • 2
    Penna Guimarães H, Avezum A. O impacto da espiritualidade na saúde física.RevPsiq Clín. 2007;34 supl 1:88-94.
  • 3
    Lucchetti G, Lucchetti AL, Koenig HG. Impact of spirituality/religiosity on mortality: comparison with other health interventions. Explore (NY). 2011;7:234-8.
  • 4
    Curlin FA, Lantos JD, Roach CJ, Sellergren SA, Chin MH. Religious characteristics of U.S. physicians: a national survey. J Gen Intern Med. 2005;20:629-34.
  • 5
    Koenig HG, Hooten EG, Lindsay-Calkins E, Meador KG. Spirituality in medical school curricula: findings from a national survey. Int J Psychiatry Med. 2010;40:391-8.
  • 6
    Neely D, Minford EJ. Current status of teaching on spirituality in UK medical schools. Med Educ. 2008;42:176-82.
  • 7
    Dalla Colletta de Aguiar PR, Cazella SC, Costa MRC. What do we know about the teaching of religiosity/spirituality in medical undergraduate curricula? An integrative review, MedEdPublish, 2016;5:20.
  • 8
    Lucchetti G, Lucchetti AL, Espinha DC, de Oliveira LR, Leite JR, Koenig HG. Spirituality and health in the curricula of medical schools in Brazil. BMC Med Educ. 2012;12:78.
  • 9
    Lucchetti G, de Oliveira LR, Koenig HG, Leite JR, Lucchetti AL; SBRAME Collaborators. Medical students, spirituality and religiosity--results from the multicenter study SBRAME. BMC Med Educ. 2013;13:162.
  • 10
    Lucchetti G, Bassi RM, Lucchetti AL. Taking spiritual history in clinical practice: a systematic review of instruments. Explore (NY). 2013;9:159-70.
  • 11
    Fang ML, Sixsmith J, Sinclair S, Horst G. A knowledge synthesis of culturally- and spiritually-sensitive end-of-life care: findings from a scoping review. BMC Geriatr. 2016;16:107.
  • 12
    Lucchetti G, Granero AL. Spirituality and health’s most productive researchers: the role of primary care physicians. Fam Med. 2010;42:656-7.
  • 13
    Ellman MS, Schulman-Green D, Blatt L, Asher S, Viveiros D, Clark J, Bia M. Using online learning and interactive simulation to teach spiritual and cultural aspects of palliative care to interprofessional students. J Palliat Med. 2012;15:1240-7. http://www.unasus.gov.br/page/una-sus/rede-una-sus Acessado em 28 de dezembro de 2016.
    » http://www.unasus.gov.br/page/una-sus/rede-una-sus
  • 14
    Bell D, Harbinson M, Toman G, Crawford V, Cunningham H. Wholeness of healing: an innovative Student-Selected Component introducing United Kingdom medical students to the spiritual dimension in healthcare. South Med J. 2010;103:1204-9.
  • 15
    Robinson KA, Cheng MR, Hansen PD, Gray RJ. Religious and spiritual beliefs of physicians J Relig Health. 2017;56:205.
  • 16
    Stewart WC, Adams MP, Stewart JA, Nelson LA. Review of clinical medicine and religious practice. J Relig Health. 2013;52:91-106.
  • 17
    Ellis MR, Campbell JD, Detwiler-Breidenbach A, Hubbard DK. What do family physicians think about spirituality in clinical practice? J FamPract. 2002;51:249-54.
  • 18
    Menegatti-Chequini MC, Gonçalves JP, Leão FC, Peres MF, Vallada H. A preliminary survey on the religious profile of Brazilian psychiatrists and their approach to patients’ religiosity in clinical practice. BJPsych Open. 2016;2:346-352.
  • 19
    Ferreira AGC, Oliveira JAC, Jordán APW.Educação em Saúde e Espiritualidade: uma proposta de transversalidade na perspectiva do estudante. Interdisciplinary Journal of Health Education 2016;1:3-12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2017
  • Aceito
    27 Abr 2017
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com