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Estratégia Educacional em Saúde Mental para Médicos da Atenção Básica

Mental Health Educational Program for Primary Health Care Physicians

RESUMO

Introdução:

A Estratégia de Saúde da Família e a Reforma da Assistência Psiquiátrica Brasileira têm trazido contribuições importantes para a melhora da atenção em saúde no País. Ambas defendem os princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS) e propõem uma mudança no modelo de assistência à saúde, privilegiando a descentralização e a abordagem comunitária/familiar em detrimento do modelo tradicional, centralizador e voltado para o hospital

Objetivos:

Este artigo objetiva fornecer elementos práticos que poderão servir de modelo para a implantação de estratégias educacionais em saúde mental, para médicos que atuam na atenção básica, no contexto da realidade brasileira.

Métodos:

Trata-se de um estudo de investigação educacional, de enfoque qualitativo, construído com base na metodologia de triangulação de dados, colhidos em revisão da literatura, aplicação de questionários e grupos focais. O estudo foi conduzido na cidade de Sobral (CE) e contou com a participação de 26 médicos, lotados em 28 Unidades Básicas de Saúde, além de três docentes de escolas médicas brasileiras.

Resultados:

A maioria dos médicos de família se sentiu despreparada para o atendimento das demandas de saúde mental e identificou falhas importantes na formação durante a graduação médica. Segundo eles, os temas de saúde mental foram insuficientes, de cunho eminentemente hospitalar, curativo e fora do contexto da atenção comunitária. Em alguns casos, a formação ocorreu de maneira bastante negativa, reforçando preconceitos e tabus em relação ao atendimento psiquiátrico e criando barreiras que dificultaram o interesse e a disponibilidade desses médicos para atender pacientes portadores de transtornos mentais. A estratégia educacional resultante deste estudo oferece às equipes de saúde e às instituições formadoras de recursos humanos referências conceituais, práticas e metodológicas para a elaboração de programas de qualificação em saúde mental, no contexto da atenção básica à saúde.

Conclusões:

As ferramentas de identificação de necessidades de aprendizado em saúde utilizadas neste estudo mostraram-se úteis na elaboração de programas de educação permanente junto aos profissionais da rede básica. Para maior validação da proposta, recomenda-se sua aplicação e avaliação em outros municípios brasileiros.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde Mental; Atenção Primária à Saúde; Medicina de Família e Comunidade

ABSTRACT

Introduction:

Brazilian primary health care and mental health policies have contributed significantly to improving health care in the country. Both defend the basic principles of the Unified Health System (SUS) and propose a change in the health care model, focusing on a decentralized, community/family-oriented approach, rather than the traditional centralized, hospital-oriented model.

Objective:

This article aims to provide practical elements, which may serve as a model for the implementation of mental health education programs for primary health care physicians who work in Brazil.

Methods:

Learning needs in mental health were identified using data triangulation methodology that drew on literature review, questionnaires and focus groups. The study was conducted in the town of Sobral, Ceará, with the participation of 26 family physicians from 28 Basic Health Units and three psychiatry professors from Brazilian medical schools.

Results:

Most of the family doctors felt unprepared to solve mental health problems and identified major gaps in their medical training. They reported that the focus on mental health issues was insufficient, and centered on the hospital setting and healing, rather than in the context of community care. The educational program developed provides health teams and health education institutions with the conceptual, practical and methodological framework for primary-level mental health education initiatives.

Conclusion:

The tools to identify health learning needs proved useful in the development of continuing education programs together with primary health professionals. For the purposes of validation, it is suggested that this program be tested in different Brazilian cities followed by thorough evaluation.

KEY-WORDS
Mental Health; Primary Health Care; Family Practice

INTRODUÇÃO

A Estratégia de Saúde da Família (ESF) e a Reforma da Assistência Psiquiátrica Brasileira (RAPB) têm trazido contribuições importantes para a reformulação da atenção em saúde no País. Ambas defendem os princípios básicos do Sistema Único de Saúde (SUS) e propõem uma mudança no modelo de assistência à saúde, privilegiando a descentralização e a abordagem comunitária/familiar em detrimento do modelo tradicional, centralizador e voltado para o hospital. Tais políticas trouxeram avanços no processo de municipalização da saúde e têm contribuído para a transformação do modelo assistencial vigente. Tais iniciativas vêm sendo estimuladas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nos últimos anos11. Relatório Mundial de Saúde. Saúde Mental: nova concepção, nova esperança. Lisboa, Portugal; 2001.,22. Integrating mental health into primary care: A global perspective. World Health Organization and World Organization of Family Doctors (Wonca), 2008..

A ESF constitui a principal alternativa para a assistência à atenção básica à saúde no Brasil, o que pode ser confirmado pelos números do Ministério da Saúde (MS). Em 1994, quando do início do programa federal, havia 920 equipes de saúde da família, em 55 municípios brasileiros. Em fevereiro de 2015, o número de equipes saltou para 37.802, abrangendo 5.296 municípios, o que representa uma cobertura populacional de 60,27%33. Departamento de atenção básica [Internet]. Brasília (DF): Portal da Saúde; 2012. [Acesso em 19-04-15]. Disponível em:..

Segundo o MS, o equacionamento de recursos humanos na área da saúde mental é imprescindível para a consolidação da RAPB44. Brasil. Ministério da Saúde. Programa Permanente de Capacitação de Recursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica. Informe do Grupo de Trabalho do MS. Brasília: 2002.. A maioria dos profissionais ligados à área encontra-se nos grandes centros urbanos. Os programas de capacitação formal são raros e concentrados geograficamente. Não há mecanismos de supervisão continuada ou de fixação dos psiquiatras no interior. A disponibilidade de cuidados é insuficiente quando se trata de situações clínicas mais graves. Em razão disso, os usuários ainda são encaminhados para internações nos grandes centros, onde se concentram os hospitais psiquiátricos. Daí a necessidade de melhorar a capacidade resolutiva da atenção primária, garantindo o atendimento dos casos mais comuns nessa área da assistência à saúde.

A demanda de saúde mental no âmbito da atenção geral à saúde tem sido objeto de numerosos estudos, especialmente a partir da década de 1980. Nos EUA, o Epidemiologic Catchment Area Study (ECA) revelou que 40-60% da demanda de saúde mental estavam sendo atendidas na atenção básica, por médicos generalistas55. Shapiro S. Utilization of Health and Mental Health Services. Archives of General Psychiatry 1984; 41:971-78.,66. Simon GE, VonKorff M. Somatization and Psychiatric Disorder in the NIMH Epidemiological Catchment Area Study. American JournalofPsychiatryNov 1991; 148-58..

Uma investigação multicêntrica patrocinada pela OMS no início dos anos 1990, denominada Psychological Problems in General Health Care (PPGHC/OMS), desenvolvida em 15 países, inclusive no Brasil, confirmou a prevalência média de 24% de transtornos mentais entre os pacientes de unidades gerais de saúde. Em sua grande maioria, os pacientes identificados pelo estudo são portadores de quadros depressivos (média de 10,4%) e ansiosos (média de 7,9%). Muitas vezes, são quadros de caráter agudo, com menor gravidade dos sintomas e que desaparecem espontaneamente, os denominados Transtornos Mentais Comuns (TMC). Sua presença está associada a indicadores sociodemográficos e econômicos desfavoráveis, como pobreza, baixa escolaridade e pertencer ao sexo feminino, bem como à ocorrência de eventos de vida desencadeantes. Há predomínio de sintomas somáticos entre as queixas, em contraposição aos sintomas psicológicos, estes mais presentes entre os pacientes atendidos em unidades especializadas77. Lopes C.S. Eventos de Vida Produtores de Estresse e Transtornos Mentais Comuns: Resultados do Estudo Pró – Saúde. Cad SaúdePública 2003; 19 (6).,88. Fortes S, Villano LAB, Lopes CS. Nosological profile and prevalence of common mental disorders of patients seen at the Family Health program (FHP) units in Petrópolis, Rio de Janeiro. Rev Bras Psiquiatr 2008;30(1):32-7.. Em países europeus, observou-se alta prevalência de TMC: 37% na Inglaterra, 32,7% em Portugal, 35% na Holanda99. Kirmayer LJ et al. Somatization and Recognition of Depression and Anxiety in Primary Care. Am J Psychiatry 1993; 150:734-41.,1010. Lloyd G. Psychiatric Syndromes with a Somatic Presentation - Jour Psychosomatic Research 1986; 30(2):113-20.,1111. Goldberg D, Mann A, Tylee A. Psychiatry in primary care. In: Gelder MG, Lópes-Ibor JR JJ, Andreasen NC. New Oxford Textbook of Psychiatry. Oxford: Oxford University Press 2000.. No Brasil, uma pesquisa multicêntrica realizada no contexto da atenção primária identificou prevalências de TMC ainda maiores: 51,9% no Rio de Janeiro, 53,3% em São Paulo, 57,7% em Porto Alegre e 64,3% em Fortaleza1212. Gonçalves DA, Mari JJ, Bower P. Brazilian multicentre study of common mental disorders in primary care: rates and related social and demographic factors. Cad. Saúde pública 2014 mar;30(03):623-632..

Especialmente nos últimos dez anos, observa-se grande expansão do número de escolas médicas. Daí a exigência de maior cuidado quanto à qualidade na formação dos futuros profissionais voltados para a atenção aos portadores de transtornos mentais. Atualmente, o Brasil possui 249 escolas médicas, perdendo apenas para a Índia, que tem 3811313. Conselho Federal de Medicina. Brasília (DF); 2010-2015. [Acesso em 01-05-15]. Disponível em: http://www.portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25479:2015-04-29-14-15-01&catid=46:artigos&Itemid=18
http://www.portal.cfm.org.br/index.php?o...
. A carga horária curricular dos cursos médicos, relacionada à saúde mental/psiquiatria, é geralmente insatisfatória, de cunho predominantemente teórico, sem oferta de estágios práticos com supervisão adequada, com predomínio do modelo biomédico, centrada no atendimento hospitalar, desconsiderando os aspectos psicossociais e comunitários.

Dados da literatura apontam que os médicos que atuam na atenção primária de saúde não estão preparados para atender, com qualidade e de forma resolutiva, os casos de transtorno mental no âmbito da comunidade, o que aponta a necessidade de criar estratégias educacionais em saúde mental para esses profissionais88. Fortes S, Villano LAB, Lopes CS. Nosological profile and prevalence of common mental disorders of patients seen at the Family Health program (FHP) units in Petrópolis, Rio de Janeiro. Rev Bras Psiquiatr 2008;30(1):32-7.,1414. Bower P, Gask L. The changing nature of consultation-liasion in primary care: bridging the gap between research and practice. General Hospital Psychiatry 2002; 2:63-70.,1515. Tyrer P, Ferguson B, Wadsworth J. Liasion psychiatry in general practice: the comprehensive collaborative model. Act PsychatrScand 1990; 81: 359-363.,1616. Kerwick S, Jones R, Mann A, Goldberg D. Mental Health Care Training Priorities in General Practice. British Journal of General Practice 1997; 47:225-227..

Alguns autores têm relatado modelos de integração assistencial/educativa em saúde mental no âmbito da atenção básica, alguns deles voltados para a integração curricular de residentes de Psiquiatria e de medicina comunitária1515. Tyrer P, Ferguson B, Wadsworth J. Liasion psychiatry in general practice: the comprehensive collaborative model. Act PsychatrScand 1990; 81: 359-363.,1717. Kates N. Sharing Mental Health Care: traning psychiatry residents to work with primary care physicians. Psychosomatics 2000; 41 (1): 53-57.. Tais iniciativas têm se mostrado promissoras quanto à aquisição de novos conhecimentos pelos médicos da atenção básica, refletindo-se nos cuidados prestados à população e contribuindo para reduzir os estigmas culturais relacionados aos transtornos mentais.

Uma revisão teórica sobre aspectos pedagógicos relacionados à qualificação em saúde mental, direcionados para médicos da atenção básica, foi publicada pelo autor principal deste trabalho1818. Pereira AA, Costa AN, Megale RF. Saúde Mental para Médicos que atuam na Estratégia Saúde da Família: uma Contribuição sobre o Processo de Formação em Serviço. Revista Brasileira de Educação Médica 2012;36(2):269-279..

Este artigo pretende fornecer elementos práticos que poderão servir de modelo para a implantação de estratégias educacionais em saúde mental, para médicos que atuam na atenção básica no contexto da realidade brasileira.

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo foi conduzido na cidade de Sobral (CE), tendo como referência as 28 Unidades Básicas de Saúde e as 41 equipes de saúde da família, todas integradas à rede local do SUS. A metodologia buscou unir elementos teóricos e empíricos por meio da triangulação de dados, que, segundo Turato1919. Turato ER. Tratado da Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa. Petrópolis: Editora Vozes; 2003. e Minayo2020. Minayo MCS. O Desafio do Conhecimento. São Paulo: Editora Hucitec; 1999., pode ser descrita como a utilização de dois ou mais métodos/técnicas para, simultânea ou sequencialmente, examinar o mesmo fenômeno, com o objetivo de melhor validar os achados investigados.

Foi feita uma revisão narrativa da literatura que incluiu documentos oficiais de órgãos nacionais e internacionais, além das seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Medical Literature Analysis and Retrieval System on-line (Medline), nos últimos dez anos. Obtiveram-se os seguintes termos de busca nos descritores de assuntos em ciências da saúde da Bireme (DeCS) e MeSH: saúde mental, atenção primária, atenção básica, educação e medicina. Utilizaram-se os operadores booleanos “AND”, “OR” e “*” para compor as estratégias de busca. Os critérios de inclusão definidos para a seleção dos artigos foram: aqueles publicados em português, inglês e espanhol; artigos de revisão, reflexão teórica, relato de experiências e pesquisas empíricas relacionados ao tema.

Aplicou-se um questionário semiaberto dirigido a 26 médicos que atuaram na ESF do município de Sobral. O formato e o conteúdo do questionário foram desenvolvidos seguindo as linhas gerais propostas por Turton2121. Turton P, Tylee A, Kerry S. Mental Health Training Needs in General Practice. Primary Care Psychiatry 1995; 1:197-199. e Kerwick1616. Kerwick S, Jones R, Mann A, Goldberg D. Mental Health Care Training Priorities in General Practice. British Journal of General Practice 1997; 47:225-227. em dois estudos semelhantes ao proposto, realizados no Reino Unido. O questionário foi estruturado em quatro partes, buscando as seguintes informações: a) perfil sociodemográfico e de formação pós-graduada em saúde mental; b) opinião sobre o interesse pela formação em saúde mental; c) identificação de necessidades sentidas de aprendizagem; d) definição de formatos educacionais mais adequados à rotina dos profissionais. Os médicos que responderam ao questionário foram escolhidos pelo método aleatório simples, buscando-se incluir profissionais com larga experiência na ESF. Esse número representava 62% dos médicos que atuavam na atenção básica do município.

Foram conduzidos grupos focais com o intuito de: a) identificar os principais problemas percebidos por estes profissionais na abordagem de pacientes com transtornos mentais; b) definir as atribuições dos médicos da atenção básica na abordagem dos transtornos mentais. O interesse despertado pela incorporação da saúde mental na atenção básica foi o principal critério de inclusão. Os dois grupos foram conduzidos pelo mesmo moderador e por um mesmo relator em dois encontros de duas horas cada. O grupo 1 foi composto por quatro médicos, e o grupo 2 por sete, com tempo de experiência na ESF que variou entre dois e dez anos. As informações colhidas pelos grupos focais foram categorizadas por meio da técnica de conteúdos temáticos proposta por Turato1919. Turato ER. Tratado da Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa. Petrópolis: Editora Vozes; 2003..

Um questionário aberto foi aplicado a três docentes de Medicina com experiência no ensino de disciplinas de saúde mental nos níveis de graduação e pós-graduação. Os objetivos deste questionário foram: a) identificar as principais competências em saúde mental de médicos para atuarem na atenção primária; b) identificar os métodos de ensino-aprendizagem adequados a estes profissionais em sua formação em saúde mental. Foram encaminhados questionários a dois cursos de Medicina do Estado do Ceará e a um curso de Medicina do Estado do Rio de Janeiro. A escolha destas instituições deveu-se à reconhecida existência de docentes com larga experiência no tema estudado, além de um dos cursos ser responsável pela formação da maioria dos médicos que atuavam na ESF de Sobral no período em que a pesquisa foi realizada. Os três professores eram doutores com experiência em docência que variava de três a 15 anos. As informações colhidas pelas questões abertas também foram categorizadas pela técnica de conteúdos temáticos, como preconiza Turato1919. Turato ER. Tratado da Metodologia da Pesquisa Clínico-Qualitativa. Petrópolis: Editora Vozes; 2003..

Foram excluídos da pesquisa todos aqueles que não aceitaram participar livremente da investigação. Uma declaração emitida pelo Comitê de Ética do Mestrado em Educação em Ciências para a Saúde, da Escola de Saúde Pública de Cuba, constatou que a pesquisa reunia todos os requisitos éticos exigidos.

Os instrumentos utilizados permitiram uma análise qualitativa e quantitativa dos dados. Os dados do questionário semiaberto foram processados utilizando-se o programa estatístico Epiinfo 7.1.5.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

É importante salientar que foram pesquisados médicos que trabalhavam em áreas urbanas e rurais, já que poderiam apresentar necessidades de aprendizado diferenciadas em virtude do contexto cultural dos pacientes e de maiores dificuldades de acesso aos serviços de saúde mental. A observação de campo em Sobral e dados da literatura internacional normalmente assumem maior número de casos de saúde mental, referenciando apenas casos muito severos2222. Craven MA, Cohen M, Campbell D, Williams J, Kates N. Mental health practices of Ontario family physicians: a study using qualitative methodology. CanPsychiatry 1997; 42: 943-949..

Em relação ao local de graduação no curso médico, observa-se predomínio de escolas médicas do Nordeste do Brasil, já que 4 (15,3%) médicos se graduaram em estados do Sul e Sudeste e 3 (11,5%) em outros países. Apenas 8 (30,8%) dos médicos haviam concluído algum curso de especialização, nenhum deles em saúde mental, e 23 (88%) não haviam atuado previamente em ações voltadas para a saúde mental. Um detalhamento do perfil dos médicos pesquisados está descrito na Tabela 1.

Tabela 1
Perfil dos médicos de Sobral (CE) que responderam ao questionário semiaberto (N = 26)

A Tabela 2 explicita as necessidades de aprendizado em saúde mental sentidas pelos médicos pesquisados. Ansiedade (92,3%), depressão (88,5%) e pacientes poliqueixosos (84,6%) foram os problemas de saúde mental de maior interesse. Preocupações com o diagnóstico e o tratamento farmacológico foram escolhidos por mais de 80% dos profissionais, e as emergências psiquiátricas por quase 70% deles. Trata-se de competências específicas da formação médica, sugerindo que elas não foram suficientemente desenvolvidas no curso de graduação. Os transtornos psicóticos ocuparam, juntamente com o retardo mental, as últimas colocações no interesse de aprendizagem dos médicos. Em relação às psicoses, embora não sejam patologias tão prevalentes, podem ser bastante severas, trazendo repercussões importantes para todo o círculo familiar, foco central da atuação da ESF. Parece ainda haver a concepção de que essa clientela não é de responsabilidade da atenção básica e, portanto, deve ficar vinculada unicamente aos serviços especializados de saúde mental. Em relação ao retardo mental, é sabido que, na grande maioria dos casos, não há complicações psiquiátricas severas envolvidas e que a orientação e a implantação de medidas pedagógicas e educativas são geralmente suficientes.

Tabela 2
Priorização de necessidades percebidas de aprendizagem pelos médicos do município de Sobral (CE)

De forma geral, os médicos se sentiam despreparados para o atendimento das demandas de saúde mental e identificaram falhas importantes na formação durante a graduação médica. Segundo eles, os temas de saúde mental foram insuficientes, de cunho eminentemente hospitalar, curativo e fora do contexto da atenção comunitária. Em alguns casos, a formação ocorreu de maneira bastante negativa, reforçando preconceitos e tabus em relação ao atendimento psiquiátrico, criando barreiras que dificultaram o interesse e a disponibilidade desses médicos para o atendimento de pacientes portadores de transtornos mentais.

Nos grupos focais, afirmaram que se sentiam despreparados para utilizar recursos não farmacológicos de tratamento, como a atitude de escuta ativa ou a elaboração de um plano de cuidados. A ausência dessas habilidades limitou a atuação médica e reforçou a demanda da população pelo recurso medicamentoso. Com base nessas observações, os médicos identificaram a necessidade de “mudança de paradigma assistencial”, provocada pelo desafio das demandas emocionais dos pacientes. Competências não farmacológicas deveriam ser incorporadas à qualificação dos médicos, além de maior utilização de recursos comunitários e de práticas complementares em saúde, como, por exemplo: terapia comunitária, massoterapia, alcoólatras anônimos (AA), grupo de autoajuda para familiares de dependentes químicos (Nar-Anon), grupo de caminhadas, grupo de pacientes poliqueixosos ou somatizadores. Por outro lado, quando apresentados a uma lista de opções de problemas de saúde mental e estratégias de intervenção, por meio do questionário semiaberto, observou-se falta de interesse de parcela importante dos profissionais na aquisição de competências não farmacológicas, como a abordagem dos problemas intrafamiliares, técnicas não farmacológicas individuais e grupais de abordagem de problemas psicossociais, habilidades de comunicação na relação do paciente com o profissional de saúde, abordagem das reações vivenciais estressantes e problemas de relacionamento intrafamiliar, ferramentas clínicas de grande valia para a prática da medicina familiar e comunitária. A discrepância desses achados se deve à provável diferença de perfil profissional e ao número de médicos que opinaram por meio do questionário semiaberto (N = 26) se comparado com os grupos focais (N = 11). Estes achados sugerem que os médicos souberam reconhecer os principais problemas de saúde mental presentes na atenção básica, mas necessitavam de um tutor ou facilitador no processo de aprendizagem que pudesse orientá-los sobre as melhores ferramentas para encaminhar soluções aos problemas de saúde mental identificados nesse contexto de atenção à saúde. Daí a importância da adoção de estratégias de educação permanente junto aos profissionais de saúde, no intuito de eliminar essa lacuna.

Os médicos também apontaram que os sistemas de informação da atenção básica não contemplam adequadamente os atendimentos de saúde mental, o que deixa à margem o registro destes procedimentos nas UBS. Ferramentas que ampliem a capacidade de diagnóstico e manejo de transtornos mentais, que já tenham sido amplamente testadas e cuja aplicação tenha se mostrado viável na prática cotidiana de assistência à saúde, deverão ser objeto de treinamento, como, por exemplo: Classificação Internacional das Doenças Mentais, versão para a Atenção Primária (CID 10 – AP), Miniexame do Estado Mental (MiniMental) e o Cage. Mais recentemente, um instrumento que contém um resumo desses instrumentos – Cartão Babel – foi disponibilizado pelo MS2323. Guia Prático de Matriciamento em Saúde Mental. Dulce Helena Chiaverini (Organizadora) … [et al.]. [Brasília, DF]: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011. 236 p..

Os médicos pesquisados lembraram a importância dos agentes comunitários de saúde na equipe e defenderam a necessidade de um programa de qualificação em saúde mental

para essa categoria profissional. Na verdade, um programa único de formação que inclua todos os profissionais da atenção básica, inclusive aqueles vinculados aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), parece ser a opção mais sensata em todos os aspectos: logístico, de custos e pedagógico. Um estudo semelhante a esse, realizado com enfermeiros da atenção básica, sustenta essa proposta2424. Pereira AA, Reinaldo MAS, Andrade DCL. Formação dos enfermeiros em saúde mental que atuam na atenção primária à saúde: Contribuições teóricas. Sanare 2015;14(1):08-14.,2525. Pereira AA, Reinaldo MAS, Andrade DCL. Proposta educativa em saúde mental para enfermeiros da atenção primária à saúde. Sanare. No prelo 2015..

Sobral apareceu como o primeiro lócus de formação sistematizada em saúde mental para quase todos os médicos que atuam na atenção básica, o que ocorreu com a introdução do matriciamento, organizado pela Rede de Saúde Mental local2626. Tófoli LF, Fortes S. Apoio Matricial de Saúde Mental na atenção primária no município de Sobral, CE: o relato de uma experiência. SANARE. Sobral, 2005/2007 jul-dez; 6(2):34-42.. Os médicos avaliaram essa metodologia de ensino-assistência como muito positiva, em conjunto com a triagem de grupo na UBS, ambas supervisionadas por psiquiatras. No entanto, avaliaram a necessidade de estratégias educacionais complementares como um meio de capacitar e dar suporte em saúde mental para as equipes de saúde da família. Um curso introdutório presencial ou em formato de Educação à Distância (EAD), como já é proposto por instituições de ensino (referencia eletrônica abaixo), poderia disponibilizar as ferramentas básicas de intervenção em saúde mental, além de estabelecer as formas de operacionalização e aproximação do trabalho entre os serviços de saúde mental e a rede básica. Esta experiência é um exemplo de como os municípios podem exercer um papel de grande relevância e vanguarda na formação permanente de seus trabalhadores da saúde. http://ned.unifenas.br/saudemental/

Uma limitação metodológica deste estudo está relacionada à amostra, que ficou restrita a médicos de apenas um município brasileiro. Dessa forma, os resultados encontrados podem traduzir necessidades regionais e não nacionais. Recomenda-se, para maior validação e generalização da proposta, que ela seja aplicada e avaliada em outros municípios brasileiros.

O Quadro 1 apresenta uma síntese dos consensos construídos nos grupos focais de médicos, enquanto o Quadro 2 contém os mesmos resultados relativos ao questionário aberto dirigido a docentes de cursos médicos.

Quadro 1
Opiniões definidas por consenso pelos grupos focais de médicos de Sobral (CE)
Quadro 2
Opiniões de docentes de escolas médicas brasileiras sobre o processo de formação em saúde mental no contexto da atenção básica

CONCLUSÕES

As informações fornecidas pelos médicos em relação às suas necessidades de aprendizagem em saúde mental coincidiram com o perfil de prevalência dos transtornos mentais na atenção básica.

As ferramentas de identificação de necessidades de aprendizado em saúde utilizadas neste estudo (questionário semiaberto e grupos focais) mostraram-se úteis para a elaboração de programas de educação permanente junto aos profissionais da rede básica de saúde. Podem ser usadas isoladamente, mas sua utilização conjunta contribuiu para maior validação interna dos achados.

Nos últimos anos, houve um aumento quantitativo e qualitativo da bibliografia sobre temas de saúde mental que orientam adequadamente os médicos no contexto da atenção básica brasileira2323. Guia Prático de Matriciamento em Saúde Mental. Dulce Helena Chiaverini (Organizadora) … [et al.]. [Brasília, DF]: Ministério da Saúde: Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2011. 236 p.,2727. Pereira AA, Vianna PCM, Machado LA, Silveira MR. Sáude mental. Núcleo de Educação em Saúde Coletiva. NESCON/UFMG. 2 ed. Belo Horizonte; 2013.,2828. Caderno de Atenção Básica 34/Saúde Mental. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, Brasília, Brasil: 2013. 176 p.. Isto deverá contribuir para um melhor acesso a informações técnicas relevantes. Além disso, é essencial que haja uma mudança de atitude dos médicos no sentido de uma visão menos preconceituosa dos transtornos mentais. A literatura tem evidenciado que a convivência mais próxima com portadores de Transtornos Mentais Maiores (TMM), bem como a supervisão regular da prática clínica são ferramentas fundamentais nesse sentido2626. Tófoli LF, Fortes S. Apoio Matricial de Saúde Mental na atenção primária no município de Sobral, CE: o relato de uma experiência. SANARE. Sobral, 2005/2007 jul-dez; 6(2):34-42..

Ficou clara a necessidade de aprimorar a formação em saúde mental na graduação médica e de incluir essa temática nos cursos de especialização em atenção básica e na residência de Medicina de Família e Comunidade. A recomendação recente do Conselho Nacional de Educação (CNE) de introduzir o internato de Saúde Mental na formação médica geral poderá trazer consequências positivas no futuro2929. Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNS n° 116 de 20/06/2014. Aprova as DiretrizesCurriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina.. Espera-se que este estudo contribua para a elaboração de programas de formação em saúde mental em qualquer dessas instâncias da formação médica. Uma qualificação adequada em saúde mental amplia os recursos da intervenção médica em direção a uma medicina da pessoa, já que os aspectos psicossociais do adoecimento humano são elementos fundamentais na integralidade dos cuidados em saúde.

Salientamos que as estratégias educacionais em saúde mental, dirigidas a médicos que já estejam atuando na atenção básica, devem ser implantadas com ativa participação desses profissionais, tanto na concepção dos conteúdos propostos, quanto na organização das estratégias de ensino-aprendizagem. Estas ações garantem acerto na identificação de necessidades de aprendizado em diferentes contextos, maior motivação dos profissionais e melhor adequação de formatos educativos compatíveis com a organização do trabalho. As informações colhidas neste estudo são compatíveis com as diretrizes gerais de formação médica propostas pela SBMFC3030. Demarzo MMP, Almeida RCC, Marins JJN., et al. Diretrizes para o ensino na Atenção Primária à Saúde na graduação em Medicina. Revbrasmedfam comunidade. Florianópolis, 2011 Abr-Jun; 6(19): 145-5.

O Anexo ANEXO Proposta Educativa em Saúde Mental para Médicos da Atenção Básica Objetivos gerais Os médicos deverão saber diagnosticar precocemente e instituir tratamento psicofarmacológico e não farmacológico aos transtornos mentais mais prevalentes na clínica geral; delegar a outros técnicos da sua equipe as tarefas correspondentes às suas capacidades; encaminhar aos serviços especializados os pacientes que necessitarem de investigação diagnóstica mais complexa ou não responderem adequadamente ao tratamento instituído inicialmente pela atenção básica; gerenciar a situação clínica do paciente, coordenando os contatos com outros profissionais de saúde de forma a assegurar a continuidade dos cuidados; organizar a assistência aos portadores de transtorno mental na unidade de saúde; fazer promoção, prevenção e reabilitação psicossocial em situações clínicas compatíveis com estas ações dirigidas aos pacientes, aos cuidadores e à comunidade. Estratégia docente Implantar ações combinadas de qualificação profissional que devem incorporar elementos cognitivos e vivências, teóricos e práticos, desenvolvidos prioritariamente no território de atuação dos profissionais de saúde, com base no enfoque interdisciplinar e com ênfase nos métodos ativos de aprendizagem que estimulem uma postura criativa na tomada de decisões. Os facilitadores devem organizar estratégias educativas com predomínio da problematização, ou seja, com base na apresentação de uma vinheta de caso clínico ou de uma situação concreta de saúde mental. Após a discussão e elaboração do problema com o grupo, outras formas de intervenção educativa complementares podem ser empregadas: aulas teóricas dialogadas, exercícios de habilidades clínicas, role play, video feedback, pesquisa bibliográfica, etc. As habilidades clínicas serão desenvolvidas preferencialmente durante o matriciamanto: entrevistas conjuntas, visitas domiciliares conjuntas e triagens grupais realizadas nas Unidades Básicas de Saúde. A elaboração desta proposta visa: responder às necessidades sociais, ter perfil amplo, ser flexível, equilibrado, cientificamente concebido, centrado no profissional e que tenha aplicabilidade. Neste sentido, foi desenvolvida uma estratégia de qualificação em dois eixos, que devem ocorrer simultaneamente: Eixo I: Curso Introdutório de Saúde Mental (quatro ou cinco dias úteis em regime semanal ou quinzenal) - Conteúdos obrigatórios que devem ser abordados de forma sindrômica: somatizações, quadros ansiosos e depressivos (TMC), esquizofrenia e transtorno afetivo bipolar (TMM), delirium, demência, dependência química (incluindo abuso de benzodiazepínicos), retardo mental, distúrbios de conduta em crianças e adolescentes, transtornos globais do desenvolvimento, déficit de atenção e hiperatividade, prevenção de suicídio e problemas de sono. Conceitos básicos sobre: psicofarmacologia (benzodiazepínicos, antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores do humor); estratégias terapêuticas não farmacológicas (escuta ativa e acolhimento, terapia de resolução de problemas, terapia de reatribuição, princípios de intervenção grupal, utilização de recursos psicossociais do território). A rede de atenção psicossocial, organização das demandas de saúde mental no território da UBS, construção de vínculos com as equipes de saúde mental e do Nasf (matriciamento). Eixo II: Matriciamento em saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde (três horas mensais ou quinzenais) - Os matriciadores deverão atuar como facilitadores do processo de educação permanente de toda a equipe da atenção primária, organizando os momentos de aprendizado nas UBS, de acordo com as necessidades de saúde locais. As atividades desenvolvidas deverão ser prioritariamente direcionadas para a aquisição de habilidades clínico-assistenciais e de intervenção comunitária, além da constante reflexão sobre a postura ética dos profissionais frente aos problemas de saúde mental. Atividades educativas que podem ser desenvolvidas: discussões de casos clínicos e problemas de saúde mental da comunidade, avaliação de pacientes por meio de consultas e visitas domiciliares conjuntas, além da triagem de grupo. Orientação quanto à indicação e administração de psicofármacos e condução de grupos, planejamento e organização das ações assistenciais e de intervenção no território, supervisão da aplicação de instrumentos padronizados de auxílio diagnóstico, avaliação das atividades práticas do curso introdutório e supervisão da utilização dos recursos de aprendizagem independentes. Poderão ser organizados momentos de aprofundamento teórico-prático de temas abordados no curso introdutório ou de novos temas de saúde mental que se mostrarem relevantes. A comunicação entre o facilitador e os profissionais de saúde poderá, eventualmente, ser conduzida por chamada telefônica ou por meios de comunicação rápida por escrito (ex.: WhatsApp). Sistema de avaliação A proposta avaliativa será qualitativa, de caráter formativo. Deverá contemplar a avaliação dos objetivos de aprendizagem mediante: 1. Observação direta dos profissionais de saúde, realizada pelos facilitadores, por meio de uma escala de qualificação de competências com os seguintes critérios de avaliação: satisfatório e insatisfatório. 2. Avaliação da atuação profissional mediante consulta direta aos profissionais de saúde, gerência das unidades de saúde e coordenação da ESF do município sobre a satisfação no trabalho e desempenho profissional. Sugere-se fazer essa consulta seis meses após a realização do curso introdutório de saúde mental. Nota: Com poucas adaptações, os autores defendem que esta proposta pode ser utilizada para a qualificação de qualquer profissional de nível superior que venha a atuar na atenção básica. apresenta uma síntese da estratégia educacional, produto deste estudo.

ANEXO Proposta Educativa em Saúde Mental para Médicos da Atenção Básica

Objetivos gerais

Os médicos deverão saber diagnosticar precocemente e instituir tratamento psicofarmacológico e não farmacológico aos transtornos mentais mais prevalentes na clínica geral; delegar a outros técnicos da sua equipe as tarefas correspondentes às suas capacidades; encaminhar aos serviços especializados os pacientes que necessitarem de investigação diagnóstica mais complexa ou não responderem adequadamente ao tratamento instituído inicialmente pela atenção básica; gerenciar a situação clínica do paciente, coordenando os contatos com outros profissionais de saúde de forma a assegurar a continuidade dos cuidados; organizar a assistência aos portadores de transtorno mental na unidade de saúde; fazer promoção, prevenção e reabilitação psicossocial em situações clínicas compatíveis com estas ações dirigidas aos pacientes, aos cuidadores e à comunidade.

Estratégia docente

Implantar ações combinadas de qualificação profissional que devem incorporar elementos cognitivos e vivências, teóricos e práticos, desenvolvidos prioritariamente no território de atuação dos profissionais de saúde, com base no enfoque interdisciplinar e com ênfase nos métodos ativos de aprendizagem que estimulem uma postura criativa na tomada de decisões. Os facilitadores devem organizar estratégias educativas com predomínio da problematização, ou seja, com base na apresentação de uma vinheta de caso clínico ou de uma situação concreta de saúde mental. Após a discussão e elaboração do problema com o grupo, outras formas de intervenção educativa complementares podem ser empregadas: aulas teóricas dialogadas, exercícios de habilidades clínicas, role play, video feedback, pesquisa bibliográfica, etc. As habilidades clínicas serão desenvolvidas preferencialmente durante o matriciamanto: entrevistas conjuntas, visitas domiciliares conjuntas e triagens grupais realizadas nas Unidades Básicas de Saúde. A elaboração desta proposta visa: responder às necessidades sociais, ter perfil amplo, ser flexível, equilibrado, cientificamente concebido, centrado no profissional e que tenha aplicabilidade. Neste sentido, foi desenvolvida uma estratégia de qualificação em dois eixos, que devem ocorrer simultaneamente:

Eixo I: Curso Introdutório de Saúde Mental (quatro ou cinco dias úteis em regime semanal ou quinzenal) - Conteúdos obrigatórios que devem ser abordados de forma sindrômica: somatizações, quadros ansiosos e depressivos (TMC), esquizofrenia e transtorno afetivo bipolar (TMM), delirium, demência, dependência química (incluindo abuso de benzodiazepínicos), retardo mental, distúrbios de conduta em crianças e adolescentes, transtornos globais do desenvolvimento, déficit de atenção e hiperatividade, prevenção de suicídio e problemas de sono. Conceitos básicos sobre: psicofarmacologia (benzodiazepínicos, antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores do humor); estratégias terapêuticas não farmacológicas (escuta ativa e acolhimento, terapia de resolução de problemas, terapia de reatribuição, princípios de intervenção grupal, utilização de recursos psicossociais do território). A rede de atenção psicossocial, organização das demandas de saúde mental no território da UBS, construção de vínculos com as equipes de saúde mental e do Nasf (matriciamento).

Eixo II: Matriciamento em saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde (três horas mensais ou quinzenais) - Os matriciadores deverão atuar como facilitadores do processo de educação permanente de toda a equipe da atenção primária, organizando os momentos de aprendizado nas UBS, de acordo com as necessidades de saúde locais. As atividades desenvolvidas deverão ser prioritariamente direcionadas para a aquisição de habilidades clínico-assistenciais e de intervenção comunitária, além da constante reflexão sobre a postura ética dos profissionais frente aos problemas de saúde mental. Atividades educativas que podem ser desenvolvidas: discussões de casos clínicos e problemas de saúde mental da comunidade, avaliação de pacientes por meio de consultas e visitas domiciliares conjuntas, além da triagem de grupo. Orientação quanto à indicação e administração de psicofármacos e condução de grupos, planejamento e organização das ações assistenciais e de intervenção no território, supervisão da aplicação de instrumentos padronizados de auxílio diagnóstico, avaliação das atividades práticas do curso introdutório e supervisão da utilização dos recursos de aprendizagem independentes. Poderão ser organizados momentos de aprofundamento teórico-prático de temas abordados no curso introdutório ou de novos temas de saúde mental que se mostrarem relevantes. A comunicação entre o facilitador e os profissionais de saúde poderá, eventualmente, ser conduzida por chamada telefônica ou por meios de comunicação rápida por escrito (ex.: WhatsApp).

Sistema de avaliação

A proposta avaliativa será qualitativa, de caráter formativo. Deverá contemplar a avaliação dos objetivos de aprendizagem mediante: 1. Observação direta dos profissionais de saúde, realizada pelos facilitadores, por meio de uma escala de qualificação de competências com os seguintes critérios de avaliação: satisfatório e insatisfatório. 2. Avaliação da atuação profissional mediante consulta direta aos profissionais de saúde, gerência das unidades de saúde e coordenação da ESF do município sobre a satisfação no trabalho e desempenho profissional. Sugere-se fazer essa consulta seis meses após a realização do curso introdutório de saúde mental.

Nota: Com poucas adaptações, os autores defendem que esta proposta pode ser utilizada para a qualificação de qualquer profissional de nível superior que venha a atuar na atenção básica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2017
  • Aceito
    11 Abr 2017
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