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A Jornada do Acadêmico de Medicina - Um Modelo Simbólico da Formação Médica

The Medstudents's Journey - A Symbolic Model of Medical Education

RESUMO

Formar-se médico é reconhecidamente uma tarefa árdua e que envolve grandes desafios, que se iniciam no processo de entrada para a universidade e se estendem durante o longo processo de formação. No presente ensaio, revisita-se o modelo clássico da Jornada do Herói, também conhecido como monomito. Este modelo, proposto pelo antropólogo Joseph Campbell e revisado pelo roteirista cinematográfico Christopher Vogler, foi utilizado para descrever e compreender as diferentes percepções das transformações sofridas pelos acadêmicos de Medicina ao longo do curso. O presente trabalho consiste em um ensaio teórico interpretativo que busca correlacionar a vivência do percurso de formação do estudante de Medicina com a Jornada do Herói. Mesmo considerando que as situações individuais são vivenciadas em sua singularidade, a análise dos aspectos comuns fornece subsídios para identificar aspectos de vivências coletivas. Não se pretende provar nenhum ponto específico, mas justamente discutir como as etapas do monomito se apresentam no cotidiano acadêmico. O que se busca é interpretar a vivência do percurso formativo de um estudante de Medicina na perspectiva do arquétipo do herói, identificando os eventos que definem as etapas ou passos na Jornada, segundo a visão de Campbell. A discussão traz a lume a jornada do acadêmico apresentada segundo os passos propostos inicialmente: quatro atos contendo três passos cada. É importante ressaltar que os estágios não são propostos como etapas fixas ou obrigatórias, mas, sim, como sendo passíveis de embaralhamento, supressão ou acréscimo, sem comprometimento da narrativa. Dessa forma, os principais eventos da trajetória do estudante de Medicina foram confrontados com os eventos previstos do monomito, enfatizando o caráter simbólico da jornada, que é primordial. As similaridades entre a Jornada do Herói e a experiência acadêmica foram analisadas, fornecendo subsídios que fomentem a discussão dos aspectos simbólicos da formação médica, seus impactos nas situações vivenciadas por alunos, professores e profissionais médicos, bem como sua repercussão no relacionamento do médico com a sociedade e consigo mesmo.

PALAVRAS-CHAVE
Estudantes de Medicina; Educação Médica; Simbolismo

ABSTRACT

Graduating as a medical professional is admittedly an arduous task and involves great challenges, which begin in the process of entering university and extend throughout the long training process. In this essay, we revisit the classic model of the Hero's Journey, also known as monomyth. This model, proposed by the anthropologist Joseph Campbell and reviewed by the screenwriter Christopher Vogler, was used to describe and understand the different perceptions of the transformations undergone by medical scholars throughout the course. The present paper consists of an interpretative theoretical essay that seeks to correlate the experience of the training course of the medical student with the Hero's Journey. Even considering that the individual situations are experienced in unique ways, the analysis of the common aspects support the identification of aspects of collective experiences. There is no intention to prove any specific point, but rather to discuss how the stages of the monomyth present themselves in everyday academic life. What is sought is to interpret the experience of the formative course of a medical student from the perspective of the archetype of the hero, identifying the events that define the steps or steps in the Journey, according to Campbell's vision. The discussion brings to light the medical student's journey presented from the steps proposed initially: four acts containing 3 steps each. It is important to emphasize that the stages are not proposed as fixed or obligatory stages, but rather as being subject to scrambling, deletion or addition, without compromising the narrative. Thus, the main events of the trajectory of the medical student were compared to the expected events of the monomyth, emphasizing the symbolic character of the journey, which is primordial. The correspondences between the Hero's Journey and the academic experience were analyzed in terms of several similarities, supporting the discussion of the symbolic aspects of medical training and its impacts on the situations experienced by students, teachers and medical professionals and their repercussions on the doctor's relationship with society and with him or herself.

KEY-WORDS
Medical Students; Medical Education; Symbolism

INTRODUÇÃO

Formar-se médico é reconhecidamente uma tarefa árdua e que envolve grandes desafios. Na opinião de professores e alunos, prevalece a impressão de que se graduar em Medicina envolve a superação de grandes obstáculos, tendo em vista não só os aspectos cognitivos, que envolvem muitas horas de estudo, mas também as questões afetivas e emocionais relacionadas às dificuldades da formação e intrínsecas à profissão médica. Somem-se a isso as expectativas da sociedade, que incluem seriedade, responsabilidade e profissionalismo, entre muitas outras virtudes que não se limitam à esfera profissional, mas se estendem às dimensões pessoal e moral11. Ramos-Cerqueira AT de A, Lima MCP. A formação da identidade do médico: implicações para o ensino de graduação em Medicina. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. 2002 Aug;6(11):107-16..

Uma compreensão mais abrangente da experiência de um acadêmico de Medicina inclui analisar as transformações simbólicas na trajetória do aluno desde o início do curso. Em outras palavras, é preciso conhecer as transformações emocionais sofridas pelo acadêmico de Medicina e compreender a evolução em sua vida simbólica na busca de reconhecimento profissional, o que implica a mudança de um jovem despreparado e imaturo para um médico responsável e admirado22. Barreto MA, Aiello-Vaisberg T. Escolha profissional e dramática do viver adolescente. Psicologia & Sociedade. 2007 Apr;19(1):107-14..

Tal percurso pode ser analisado sob a ótica proposta pelo roteirista cinematográfico Christopher Vogler33. Vogler C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Nova Fronteira; 2006. 446 p. com base na obra do antropólogo americano Joseph Campbell44. Campbell J. Herói de Mil Faces, O. PENSAMENTO; 2004. 418 p.,55. Campbell J. O poder do mito. Palas Athena; 2006. 242 p.. Inspirado pelo modelo junguiano de psicanálise, Campbell empreendeu a análise das estruturas mitológicas de várias populações ao redor do mundo. Com base nestes estudos, Campbell desenvolveu o conceito da Jornada do Herói, ou monomito.

A Jornada do Herói consiste em um conjunto essencial de etapas vividas por todos aqueles que embarcam em grandes aventuras. Nesse percurso, o personagem experimenta duras provas, cuja superação possibilita seu fortalecimento gradual em diversas esferas de personalidade e comportamento. Campbell defende a possibilidade de generalização do seu conceito a narrativas existentes em diferentes povos e culturas. Neste contexto, a noção de herói não se restringe a sujeitos com poderes descomunais capazes de grandes gestos de altruísmo, mas a todos aqueles que alargam sua visão de mundo por meio da entrega aos vários desafios que a vida pode oferecer.

O herói é um arquétipo, uma figura simbólica com a qual todos podem se identificar em algum momento de suas vidas. Na perspectiva junguiana, arquétipos são imagens primordiais existentes no inconsciente coletivo que constituem a base de formação de mitos por meio da simbolização. Evidentemente, há diversos arquétipos, cada qual com suas características66. Jung CG. O homem e seus símbolos. Nova Fronteira; 2008. 419 p.,77. Jung CG. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Edição: 7ᵃ. Petrópolis: Vozes; 2011.. Campbell aplicou essa concepção à Jornada do Herói, descrevendo os tipos com os quais o herói precisa se relacionar durante suas aventuras. Em suma, a Jornada do Herói é o conjunto das etapas básicas que um herói precisa vivenciar na companhia de outros símbolos para progredir como pessoa e tornar-se mais útil a si mesmo e ao mundo; ela é o esqueleto comum a todas as histórias em que as pessoas podem se inspirar para se tornarem melhores44. Campbell J. Herói de Mil Faces, O. PENSAMENTO; 2004. 418 p.,55. Campbell J. O poder do mito. Palas Athena; 2006. 242 p..

Campbell alcançou fama internacional no meio acadêmico com O herói de mil faces, obra em que descreve a Jornada do Herói minuciosamente, detalhando o seu embasamento teórico. É um tratado sobre as mais fundamentais figuras simbólicas do inconsciente humano, um arcabouço de valores universais. O herói de mil faces é uma obra focada em demonstrar (e provar) a existência da Jornada do Herói, e, devido à profundidade de suas argumentações e dos conceitos abordados, sua divulgação limitou-se ao meio acadêmico, especialmente aos cursos de humanidades88. CAMPBELL J, COUSINEAU P. Joseph Campbell Vida E Obra. Editora Agora; 2003. 300 p.,99. Ottoni A, Pazos D. Matrix Repercutions [Internet]. 2009 [cited 2016 Sep 24]. Available from: https://jovemnerd.com.br/nerdcast/nerdcast-156-matrix-repercutions/
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O conteúdo da obra de Campbell foi difundido a partir da iniciativa de Christopher Vogler, um roteirista da indústria cinematográfica norte-americana que redigiu um manual para os roteiristas dos estúdios Walt Disney intitulado Guia prático de O herói de mil faces. Este manual foi ampliado na obra A jornada do escritor, editada em 1992. Em ambos, Vogler sistematizou as etapas da Jornada do Herói, propondo sua interpretação da obra de Campbell como um esquema sobre o qual construir qualquer roteiro, sem que seja uma fórmula que engesse a criatividade, mas como um encadeamento dos acontecimentos dramáticos em qualquer história, facilitando a percepção do sentido que guia o herói em sua jornada33. Vogler C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Nova Fronteira; 2006. 446 p..

Numa perspectiva de encadeamento de eventos de vida, nos parece ser possível propor um paralelo entre a trajetória e as vivências de alunos de um curso de Medicina segundo a sistematização e os passos propostos no monomito ou Jornada do Herói33. Vogler C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Nova Fronteira; 2006. 446 p.,44. Campbell J. Herói de Mil Faces, O. PENSAMENTO; 2004. 418 p..

MÉTODO

O presente trabalho consiste em um ensaio teórico interpretativo que busca correlacionar a vivência do percurso de formação do estudante de Medicina com a Jornada do Herói. A opção por este tipo de produção se deve à própria natureza teórica do tema. Segundo Meneghetti1010. Meneghetti FK. O que é um ensaio-teórico? Revista de Administração Contemporânea. 2011 Apr;15(2):320-32.:

O ensaio é um meio de analise e elucubrações em relação ao objeto, independentemente de sua natureza ou característica. A forma ensaística é a forma como são incubados novos conhecimentos, até mesmo científicos ou pré-científicos. Não é instrumento da identidade entre sujeito e objeto, mas é meio para apreender a realidade, por renúncia ao princípio da identidade. Assim, surge como tentativa permanente de resolver a questão central da filosofia moderna: a separação e tensão permanente entre sujeito e objeto na compreensão da realidade. Sua radicalidade está no seu não-radicalismo dogmático. A radicalidade estabelece-se na forma como o ensaísta vai à raiz do objeto analisado. Assim, a radicalidade é ir à raiz sem dogmatizar em métodos ou sistemas fechados na compreensão dos objetos. Desta maneira, o ensaio não segue a mesma lógica da ciência tradicional ou das teorias sistematizadas. (p. 323)

Embora as situações individuais sejam vivenciadas na sua singularidade, o que se enseja é o estudo dos aspectos comuns das vivências coletivas. Não se pretende provar nenhum ponto específico, mas justamente discutir como as etapas do monomito se apresentam no cotidiano acadêmico. O que se busca é interpretar a vivência do percurso formativo de um estudante de Medicina na perspectiva do arquétipo do herói, identificando os eventos que definem as etapas ou passos na Jornada, segundo a visão de Campbell44. Campbell J. Herói de Mil Faces, O. PENSAMENTO; 2004. 418 p..

A discussão que se pretende ensejar neste ensaio traz a lume a jornada do acadêmico apresentada a partir dos passos propostos inicialmente. A jornada se dá em quatro atos contendo três passos cada. Ressaltamos que os estágios não são fixos ou obrigatórios, sendo possível seu embaralhamento, supressão ou acréscimo sem que haja comprometimento da narrativa. O caráter simbólico da jornada é que é promordial33. Vogler C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Nova Fronteira; 2006. 446 p..

A Jornada do Herói

O primeiro ato, “O Chamado à Aventura”, se inicia no Mundo Comum, onde se encontra o herói antes de empreender sua grande jornada. O sujeito que se tornará um herói está alheio a problemas e vive voltado apenas para seus interesses pessoais. No passo seguinte, é apresentado ao herói um conflito que exige a sua participação – “O Chamado à Aventura”. Neste momento, é estabelecido o objetivo da jornada, como reparar uma injustiça ou conquistar o coração de uma donzela, entre incontáveis possibilidades. É comum surgir nesta etapa algum personagem com a função de Arauto ou Mentor: alguém que conclame o herói a sua aventura ou um anunciador. A otomar ciência dos perigos e desafios terríveis que o aguardam, é comum o herói vacilar. Neste momento, ele ouve falar de um terrível vilão que pretende dominar o mundo para atingir seus objetivos e, por isso, sente-se frágil, sozinho e incapaz. Esta figura malévola, simbólica das dificuldades que aguardam o herói, é o arquétipo do Sombra – forte o bastante para fazer o herói se questionar se deseja ou não atender ao chamado do Arauto. O herói deixa-se tomar pelo receio diante dos desafios da aventura, assumindo, assim, a postura de Recusa ao Chamado.

No segundo ato, a “Iniciação”, o herói precisa ser ajudado por alguém especial, de poderes desconhecidos e misteriosos que o capacitarão a enfrentar o desconhecido, o que possibilitará recuperar a coragem e a valentia diante das dificuldades. O Encontro com o Mentor encoraja o herói em sua jornada, oferecendo-lhe apoio, conselho e, em muitos casos, presentes que o ajudarão no momento de maior perigo. Capacitado pela ajuda do mentor, o herói sente-se fortalecido para assumir as responsabilidades recebidas no “Chamado à Aventura”. Agora ele finalmente pode se lançar em direção aos perigos do sentinela, que pretende evitar a entrada de estranhos no Mundo Especial. Simbolicamente, a função dos guardiões é treinar o herói para o enfrentamento de desafios maiores no futuro. A partir de sua entrada no Mundo Especial, o herói será submetido a Testes de Aliados ou Inimigos, que permitirão o desenvolvimento de suas habilidades. Estabelecidos os aliados e inimigos, e vencidos outros desafios, o herói aproxima-se de seu grande objetivo no Mundo Especial, onde se encontram os principais aliados do Sombra.

No terceiro ato - “Transformação” -, a Aproximação da Caverna Oculta concentra os últimos preparativos antes de o herói se lançar ao objetivo. Finalmente, o herói adentra o mais sinistro local do Mundo Especial, aquele que representa os seus perigos e que concentram as forças do mal. Este local é povoado pelo Sombra e por seus lacaios. Uma Provação na qual a derrota parece iminente, incluindo a possibilidade de morte do herói, confirmará as habilidades adquiridas anteriormente. A partir deste momento, o herói toma posse do tesouro simbólico que buscava. Trata-se de um objeto físico ou imaterial que leva a uma expansão da consciência, que representa a cura para o desequilíbrio que precisava ser corrigido. Após as dificuldades da provação, o herói renova-se pela vitória sobre as forças do mal e pela conquista de sua grande Recompensa.

No quarto e último ato – “O Retorno do Herói” -, para ser útil, o Herói precisa retornar ao Mundo Comum com o elemento sagrado. Porém, este retorno será dificultado pelas forças do mal que ainda existem e que irão persegui-lo em seu retorno. No plano simbólico, o grande movimento interior do herói é a decisão de abandonar o Mundo Especial, no qual ainda se encontra, e tomar o Caminho de Volta para o Mundo Comum. Contudo, ao retornar do Mundo Especial, o herói necessita ser reinserido no Mundo Comum, pois traz consigo os sinais de um lugar estranho, inóspito e violento. O herói não pode adentrar imediatamente em seu Mundo Comum porque está transformado pelas experiências que vivenciou no Mundo Especial. Esta etapa é vivenciada como uma morte para o Mundo Especial e um renascimento no retorno para o Mundo Comum, simbolizada em um ritual de purificação imprescindível. O herói precisa, então, renascer após este último ataque. O renascimento do herói representa, sobretudo, a autoridade conquistada, com a qual pode finalmente se desfazer das forças malignas e, purificado pela própria Ressurreição, retornar plenamente ao Mundo Comum. O retorno do herói ao Mundo Comum só fará sentido se, vencidas as forças do mal, ele puder usar a sua recompensa sagrada para curar os males da terra. O Retorno com o Elixir representa o desfecho de uma história, o término de uma jornada organicamente estruturada, o justo coroamento de uma jornada na qual se provaram a coragem e a determinação de um jovem inexperiente e imaturo que se deixou transformar pelo esforço e pela coragem.

A jornada do acadêmico de Medicina

A formação em Medicina possui algumas características marcantes que a diferenciam de outras formações, principalmente da forma como é vivenciada no Brasil. A medicina, assim como a docência e o sacerdócio, está comumente relacionada à ideia de vocação, como se o profissional possuísse características inatas ou explicadas por forças transcendentes, que o qualificam à tarefa e que o impulsionam para o enfrentamento das dificuldades próprias da formação e da profissão. Não cabe, aqui, discutir a inconsistência desta visão, mas apenas compreender o quanto ela corrobora a visão social do médico e a forma como o percurso do profissional é vivenciado. Além de um percurso de formação maior do que a média de outras profissões, o reconhecimento social, a dificuldade em ingressar na faculdade devido à alta competitividade nos vestibulares, o fato de lidar com a possibilidade iminente da morte e, até mesmo, de evitá-la fazem da medicina uma profissão cheia de especificidades e permeada por conteúdos simbólicos.

Neste contexto, propõe-se a análise da Jornada do Acadêmico de Medicina, buscando descrever um percurso genérico, que contemple características gerais, correlacionando esse percurso com as etapas propostas na Jornada do Herói.

O chamado para a aventura

O futuro acadêmico de Medicina geralmente é um bom aluno na educação básica, possuindo bom desempenho e boas notas, o que não quer dizer que sua inserção na área da saúde tenha se iniciado precocemente, pois o que se observa é que a maioria desconhece os problemas de saúde de seu país ou de sua região. Apesar de o discurso do ingressante salientar a “vontade de ajudar as pessoas” ou o “cuidado” como fator preponderante da escolha profissional, os alunos têm uma visão estereotipada e idealizada do médico, permeada pela perspectiva de prestígio social e de um promissor futuro financeiro. Simpatiza mais com a medicina do que com outros cursos e sente-se capaz de lidar com cadáveres, sangue e hospitais. No geral, como o herói no Mundo Comum de sua jornada, ele é movido por interesses próprios: fazer o curso de que gosta, em instituição de prestígio, como meio de se tornar um profissional reconhecido.

Não raro, os estudantes referenciam um médico de seu meio social, parentes ou amigos próximos, que exercem a função de Arauto, levando-os a se interessar pelo ingresso na carreira e tornando-se um primeiro modelo. O destaque na mídia ou personagens fictícios de livros, filmes ou séries de TV também podem desempenhar esta função. A prática cotidiana deste profissional funciona como anúncio de uma batalha travada contra os males que afligem as pessoas, que desempenham a função do Sombra.

A perspectiva de dificuldades no ingresso e posteriormente um curso em período integral, com alta carga horária e nível de cobranças crescente podem fazer com que o aluno hesite em aceitar imediatamente o Chamado. Por muitas vezes, seu Arauto tem papel fundamental no despertar motivacional para a empreitada.

Iniciação

O primeiro desafio enfrentado consiste em ser aprovado no processo seletivo de alguma instituição. Este evento garante ao candidato a possibilidade de adentrar no Mundo Mágico. O enfrentamento deste processo é o Guardião do Primeiro Limiar, e, não raro, vários alunos permanecem neste estágio por muitos anos, sendo a aprovação vista como uma vitória significativa, comemorada e relembrada como um fato marcante em suas vidas1111. Rodrigues DG, Pelisoli C. Ansiedade em vestibulandos: um estudo exploratório. Revista de Psiquiatria Clínica. 2008 Jan;35(5):171-7.,1212. Soares AB, Martins JSR. Ansiedade dos estudantes diante da expectativa do exame vestibular. Paidéia (Ribeirão Preto). 2010 Apr;20(45):57-62..

No contexto acadêmico, um professor experiente, dedicado e profissionalmente reconhecido é importante para encorajar os estudantes. Esse professor é que será o facilitador para o desenvolvimento das habilidades do jovem aprendiz, tornando-se um modelo que o estudante seguirá. Vários professores poderão desempenhar este papel, mas geralmente o estudante elege um mentor com o qual tem maior proximidade11. Ramos-Cerqueira AT de A, Lima MCP. A formação da identidade do médico: implicações para o ensino de graduação em Medicina. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. 2002 Aug;6(11):107-16.,1313. Akerman M, Conchão S, Boaretto RC, Fonseca FLA, Pinhal MA. Revelando fatos, sentidos, afetos e providências sobre o trote em uma faculdade de medicina: narrativa de uma experiência. Revista Brasileira de Educação Médica. 2012 Jun;36(2):249-54.1515. Sobral DT. Valor e significado da vivência no primeiro ano do curso de medicina: apreciação de aprendizado pessoal e contexto em uma série histórica. Revista Brasileira de Educação Médica. 2008 Mar;32(1):23-31..

Durante o curso, o estudante será frequentemente submetido a avaliações e testes de suas habilidades. Aprender a fazer a correta abordagem de um paciente, uma nova técnica de exame físico, interpretar um exame corretamente, entre tantos outros, são desafios cotidianos do aluno de Medicina. Durante o curso, amizades e grupos de estudo vão sendo formados, e essas alianças geralmente fortalecem a cooperação no sentido de atingir os objetivos comuns. Da mesma forma, é frequente haver antagonismo entre alunos da mesma turma ou de turmas diferentes. Além disso, professores e funcionários poderão desempenhar também o papel de aliados ou inimigos, conforme a ocasião1414. Leite SA da S, Tagliaferro AR. A afetividade na sala de aula: um professor inesquecível. Psicologia Escolar e Educacional. 2005 Dec;9(2):247-60.,1616. Lima MCP. Sobre trote, vampiros e relacionamento humano nas escolas médicas. Revista Brasileira de Educação Médica. 2012 Sep;36(3):407-13.,1717. Rios IC, Schraiber LB. Uma relação delicada: estudo do encontro professor-aluno. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. 2011 Mar;15(36):39-52..

Naturalmente, há uma progressão contínua das habilidades do aprendiz durante o curso. A cada período acadêmico, novas alianças são formadas, mentores se revelam e novos desafios e adversários se impõem no caminho trilhado pelo estudante. Assim como no mito de Hércules, a sucessão de trabalhos o fortalece e prepara para os desafios seguintes1818. KORMANN E, MANOCHIO MCS, LUCHTENBERG S, BEHLING HP. Hércules em A Saga do Herói. In: XIV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Su [Internet]. Santa Cruz do Sul: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação; 2013 [cited 2016 Oct 1]. Available from: http://www.portalintercom.org.br/anais/sul2013/resumos/R35-1281-1.pdf
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Transformação

As práticas cada vez mais cotidianas e de carga horária continuamente crescente estabelecem a permanência no hospital como um momento de angústia e provação para o acadêmico. O hospital é o espaço simbólico fundamental do médico, o que o caracteriza como a Caverna Oculta, domínio do Sombra, onde os perigos são constantes e as consequências são reais. As visitas serão cada vez mais frequentes, culminando com o período do internato, encarado como o teste supremo de suas habilidades1919. Garcia MAA, Ferreira FP, Ferronato FA. Experiências de humanização por estudantes de medicina. Trabalho, Educação e Saúde. 2012 Jun;10(1):87-106..

O internato representa o ápice do curso de Medicina; o momento determinante em que o acadêmico exerce a medicina sob a supervisão de preceptores, que corrigem seus erros e ensinam-lhe o exercício da profissão na prática. No fundo, é o grande momento pelo qual o acadêmico anseia e teme desde o início da jornada. Embora o acadêmico já tenha vivencia- do práticas anteriores, nesta etapa o interno será avaliado de forma contínua e extenuante. O ambiente seguro da simulação ou das visitas guiadas por professores é substituído pela experimentação do cotidiano médico por meio de plantões, cirurgias, visitas ao leito, acompanhamento de casos graves e cuidado diário dos pacientes. No plano simbólico da Jornada do Herói, a Provação concentra os poderes do Sombra, representado pelos males que podem afligir a saúde das pessoas e, na sua quintessência, pela morte. É hora de nosso herói entregar-se à responsabilidade que assumiu quando atendeu ao Chamado. As competências adquiridas durante o curso nas provas anteriores até este ponto deixaram-no preparado para enfrentar este momento2020. Oliveira RZ de, Gonçalves MB, Bellini LM. Acadêmicos de medicina e suas concepções sobre “ser Médico.” Revista Brasileira de Educação Médica. 2011 Sep;35(3):311-8.,2121. Taquette SR, Rego S, Schramm FR, Soares LL, Carvalho SV. Situações eticamente conflituosas vivenciadas por estudantes de medicina. Revista da Associação Médica Brasileira. 2005 Feb;51(1):23-8..

Após o desafio do internato, a recompensa do estudante em sua jornada é, sem dúvida, a graduação. As cerimónias de colação de grau e as comemorações de formatura estabelecem-se como espetáculos apoteóticos, muitos perdurando quase uma semana. A colação se reveste de um ritual que em muito se assemelha a uma ordenação religiosa ou cavalheiresca, e o baile de formatura traz o clímax bacântico da passarela social2222. Bittencourt RN. Apoteose bacharelesca e distinção social no ritual de formatura. Revista Espaço Acadêmico. 2013 Feb 25;13(145):81-3.2424. Marta GN, Marta SN, Andrea Filho A de, Job JRPP. O estudante de Medicina e o médico recém-formado frente à morte e ao morrer. Revista Brasileira de Educação Médica. 2009 Sep;33(3):405-16..

Caminho de volta na jornada do acadêmico

Recém-formado, o ex-acadêmico, agora médico, já está habilitado a exercer a medicina. Como o herói arquetípico, ele se dirige ao Mundo Comum, portando a grande recompensa que veio buscar no Mundo Especial: o direito de exercer a medicina entre os seus. Essa transição do mundo especial para o mundo comum somente acontece após a morte simbólica do estudante, que possibilita o nascimento do médico. Embora reafirmado pelo seu êxito na Caverna, o jovem médico ainda se sente inseguro e compreende que o enfrentamento do Sombra é uma constante na vida do Herói. O ciclo de sua jornada é fechado porque agora ele se encontra plenamente capaz de exercer seu ofício, se tornando finalmente um mestre do mundo especial e do mundo comum2323. Macedo DH de, Batista NA. O Mundo do Trabalho durante a graduação médica: a visão dos recém-egressos. Revista Brasileira de Educação Médica. 2011 Mar;35(1):44-51.2525. Menezes RA. Difíceis Decisões: uma abordagem antropológica da Prática Médica em CTI. Physis: Revista de Saúde Coletiva. 2000 Dec;10(2):27-49..

CONCLUSÃO

A Jornada do Acadêmico, como qualquer história de transformação pessoal, encontra evidentes paralelos na Jornada do Herói. Deste modo, o conhecimento deste processo pelos atores envolvidos na educação médica contribui para a compreensão dos aspectos simbólicos vivenciados por um acadêmico de Medicina ao longo do curso. Logicamente, nem todos os alunos vivenciarão com a mesma intensidade todas as etapas aqui descritas, e muitos talvez nem mesmo as vivenciem.

Uma das críticas mais óbvias a nossa abordagem no presente ensaio é que nossas reflexões podem servir para romantizar excessivamente a profissão médica (ou qualquer outra profissão). Pelo contrário, a base de nossa argumentação é a interpretação da forma como esta experiência é vivenciada e percebida pelos alunos, professores e pela sociedade. Não nos interessa imputar aos eventos quaisquer juízos de valor, mas, sim, trazer a lume o debate sobre o imaginário acadêmico a respeito da formação médica e suas vicissitudes.

A mistificação excessiva do profissional médico, como herói mítico e por vezes infalível, leva a um alto nível de expectativa no profissional, gerando inseguranças e frustrações às quais o médico frequentemente se refere em sua prática. A desconstrução da imagem de herói e a consciência da sua humanidade e impotência perante a morte ou eventos adversos de saúde possibilitam ao médico uma atividade profissional mais humana e próxima dos seus semelhantes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2017
  • Aceito
    06 Dez 2017
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