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Intersetorialidade e Educação Popular em Saúde: no SUS com as Escolas e nas Escolas com o SUS

Intersector Integration and Popular Education in Health: in the SUS with Schools and in Schools with the SUS

RESUMO

Em 1988, a Constituição Federal do Brasil deu as bases para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo a saúde como direito. Em 2013, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS) amplia as conquistas nessa área ao reafirmar os princípios desse Sistema: universalidade, integralidade, equidade e participação social, esta essencial para o debate de Educação Popular em Saúde. Nesse contexto, o papel da universidade, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Medicina de 2014, de atuar sobre as necessidades da população, promovendo saúde e transformando a realidade da sociedade, é fundamental na formação dos estudantes, bem como no seu vínculo com a comunidade. O grupo de execução deste trabalho levantou a proposta de refletir sobre a realidade do SUS na perspectiva de estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) das escolas municipais de Uberlândia (MG), dialogando com seus saberes a fim de empoderar a população por meio da construção compartilhada de conhecimento. Nas vivências, identificamos o desconhecimento da população sobre seus direitos e o próprio SUS, e, assim, priorizamos o debate e o diálogo utilizando a amorosidade, princípio da PNEPS, para conseguirmos trabalhar os princípios desse Sistema de Saúde, bem como os direitos da população relativos à saúde. Notamos que a nossa formação ainda é centrada no médico, visto que houve uma dificuldade inicial de estabelecer o contato de forma confortável com ambas as partes. Por trabalharmos com pessoas, naturalmente surgiram demonstrações sobre suas insatisfações com o nosso sistema de saúde, e foi preciso utilizar isso para apontar possíveis soluções e como protagonizar essa luta sem colocar a responsabilidade da melhoria e consolidação de nossa saúde somente nas mãos de terceiros. Era preciso compreender a importância do SUS e saber como mudá-lo por meio, principalmente, da participação social. O objetivo foi alcançado pelo estabelecimento de um vínculo que possibilitou a construção conjunta de conhecimento, trazendo maior autonomia tanto ao grupo quanto aos participantes, aumentando nossa perspectiva de uma mudança na luta pela saúde que almejamos em nossa formação e futura atuação profissional.

PALAVRAS-CHAVE
Promoção da Saúde; Sistema Único de Saúde; Educação Médica; Educação em Saúde; Integração comunitária

ABSTRACT

In 1988, the Federal Constitution of Brazil established the foundations for the Unified Health System (SUS), guaranteeing health as a right. In 2013, the National Policy on Popular Education in Health (PNEPS) broadened the achievements in this area by reaffirming the principles of the System: universality, comprehensiveness, equality and social participation, essential to the debate on Popular Education in Health. According to the National Curricular Guidelines (DCN) for Medical Undergraduate Courses from 2014, the University's role is fundamental in training students to act on the needs of the population, promoting health, transforming the outlook of society, and their relations with the community. The group that conducted this study raised the proposal to reflect on the reality of the SUS from the perspective of Youth and Adult Education students (EJA) from the municipal schools of Uberlândia, Minas Gerais, drawing on their learnings to empower the population through shared knowledge. In the experiences, we identified a lack of knowledge among the public in relation to their rights and the SUS. Thus, we prioritized the debate and dialogue focusing on the PNEPS principle of lovingness in order to work on the principles of the health system and the public's rights in relation to health. It was revealed that our training remains doctor-centered, bearing in mind the initial difficulty in establishing comfortable contact on both sides. By virtue of working with people, demonstrations of dissatisfaction with our health system naturally arose and these were used to identify possible solutions and how to lead the way in this struggle without transferring the responsibility for improving and consolidating health care solely into the hands of third parties. We needed to understand the importance of the SUS and how to change it through, primarily, social participation. The goal was achieved by establishing a bond that enabled the joint construction of knowledge, bringing greater autonomy to both the group and the participants, broadening our perspective of a change in the fight for health that we strive for in our undergraduate training and our future medical practice.

KEYWORDS
Health Promotion; State Medicine (SUS); Medical Education; Health Education; Community Integration

INTRODUÇÃO

A Educação Popular, como prática libertadora, é o instrumento pelo qual educador(a) e educando(a), tendo o mundo real como fonte de problematização, colocam a práxis humana em prática. Tal práxis é composta por dois elementos fundamentais e indissociáveis: ação e reflexão sobre a realidade. Dessa forma, a Educação Popular cumpre o papel de promover autonomia e empoderamento das pessoas, ao torná-las capazes de entender e atuar sobre o mundo, além de produzir espaços democráticos de debate onde não há um dono do saber, mas um(a) educador(a) que, ao ensinar, aprende e um(a) educando(a) que, ao aprender, ensina11. Freire P. Pedagogia do Oprimido. 5ed, São Paulo: Paz e Terra, 1978.,22. Freire P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1986..

No Brasil, o grande marco legal que permite a institucionalização da Educação Popular em Saúde é a Constituição de 198833. Rolim LB, Cruz R de SBLC, Sampaio KJA de J. Participação popular e o controle social como diretriz do SUS: uma revisão narrativa. Saúde Em Debate. 2013;37(96):139–47., que apresenta uma das grandes conquistas da população brasileira em seu processo de redemocratização: a saúde como um direito de todos e dever do Estado, garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que possui, entre seus princípios fundamentais, o princípio da participação popular e controle social, que garante à população a participação nas decisões de políticas públicas de saúde44. Brasil. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988..

Em 2013, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde55. Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPSSUS). Disponível em: <bvms.saúde.gov.br/bvs/saudelegis>. Acesso em: 7 jan 2017
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cumpre o papel de reassumir o compromisso com os princípios do SUS de universalidade, integralidade, equidade e, principalmente, participação social. A Política define Educação Popular em Saúde como a prática político-pedagógica cujo objeto de reflexão são as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde. Esta deve ser realizada por meio de diálogo em que há troca dos diversos saberes, o que leva à construção de conhecimentos individuais - empoderando os sujeitos - e coletivos, ambos capazes de serem introduzidos na realidade do SUS, fomentando a participação social na consolidação e construção do SUS.

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Medicina de 201466. Brasil. Ministério da Educação. Resolução n° 3, de 20 de junho de 2014, Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Brasília: Ministério da Educação, 2014. afirmam que o(a) estudante deve ter uma formação que reconheça a educação em saúde como eixo inexorável em seu processo de aprendizagem. Também reafirma o reconhecimento da diversidade humana, para a construção de ações que concretizem a promoção da saúde.

Além disso, no contexto municipal, em 2015, verificou-se, nas ações de um projeto de extensão que acompanhava e estimulava a participação popular nas pré-conferências e na Conferência Municipal de Saúde em Uberlândia (MG), que o desconhecimento da população da cidade sobre o SUS e seus direitos nesse Sistema era grande e que o empoderamento para lutar por melhores condições nesse sistema de saúde era uma questão a ser trabalhada com essa população.

Dessa forma, dado o poder transformador proporcionado por ações de Educação Popular em Saúde77. Souza LA, Colomé ICS, Costa LED, Oliveira DLLC. A educação em saúde como grupos na comunidade: uma estratégia facilitadora da promoção da saúde. Rev Gaúcha de Enfermagem. 2005; 26(2):147-153,88. Alves GG, Aerts D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(1):319-25.,99. Horta N de C, Sena RR de, Silva MEOS, Tavares TS, Caldeira IM. A prática de grupos como ação de promoção da saúde na Estratégia Saúde da Família. Rev APS. 2009; 12(3):293-391 e a responsabilidade social que o(a) estudante e a universidade têm de atuar sobre as necessidades da sociedade em que estão inseridos - além do contexto específico da Universidade Federal de Uberlândia e da população da cidade -, percebemos a necessidade de intervir em nossa realidade por meio de um projeto de extensão universitário em Educação Popular em Saúde. O objetivo do presente trabalho é relatar a experiência vivenciada por estudantes e professores do curso de Medicina com essas ações.

Destaca-se que a presente proposta de relato de experiência se enquadra no item VIII do artigo primeiro da Resolução n° 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre as normas aplicáveis à pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Dessa maneira, o presente relato apresenta exclusivo cunho educacional e, por isso, não necessita de submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

METODOLOGIA

Inicialmente, foi feito contato com a Secretaria Municipal de Educação de Uberlândia (MG), por meio da construção conjunta com a Gestão Municipal da Educação, e o projeto foi nomeado “Desvendando o SUS junto a estudantes da EJA”. A EJA (Educação de Jovens e Adultos) foi a escolhida, pois contava com população de faixa etária heterogênea, usuária frequente dos serviços de saúde do SUS no município de Uberlândia. Com a EJA, vimos a oportunidade ideal de concretizar a construção compartilhada do conhecimento que, segundo a PNEPS-SUS, consiste em processos comunicacionais e pedagógicos entre pessoas e grupos de saberes, culturas e inserções sociais diferentes44. Brasil. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988., a fim de compreender e transformar de modo coletivo as ações de saúde desde suas dimensões teóricas, políticas e práticas.

Em nossa primeira reunião com o Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (Neja), foram-nos apresentadas todas as escolas municipais que compunham a EJA em Uberlândia. Quatro dessas escolas foram selecionadas para participar do projeto. Tais unidades foram escolhidas com base em número de alunos e setorização de cada uma, sendo que escolhemos a escola com maior quantidade de estudantes de cada um dos setores da cidade de Uberlândia (Norte, Sul, Leste e Oeste).

Após pactuação com a direção de cada escola, a equipe compareceu aos locais, estimulando os(as) estudantes a participar da atividade. Deixamos em cada instituição uma urna para que as pessoas depositassem livremente as experiências e dúvidas que tinham sobre o SUS, para que as ações construídas partissem dos contextos de vida dos(as) participantes e, assim, fizessem sentido para eles(as).

Após uma semana de permanência das urnas nas escolas, a equipe do projeto as recolheu, leu as perguntas e os relatos, e procurou agrupá-los em temas a serem trabalhados nas oficinas. Notamos grandes frustrações em relação ao sistema público de saúde, que foram acolhidas e usadas como disparadores para entendermos juntos o que é previsto e o que podemos acessar para mudar nossa realidade. Assim, viu-se como essencial a compreensão dos princípios do SUS: universalidade, integralidade, equidade e controle social. Estes seriam a base para saber pelo que lutar e como lutar, empoderando os(as) participantes em relação a seus direitos na saúde.

Para abordar as problemáticas durante as oficinas, pensou-se em utilizar a “Dinâmica do Repolho”, que consistia em usar algumas folhas de papel com perguntas sobre o SUS, formuladas com base no que encontramos nas urnas, embrulhadas na forma de um repolho. Assim como a hortaliça, nossa ferramenta soltava gradativamente suas folhas mais externas, sendo que os questionamentos ali descritos seriam discutidos no grupo. Dessa forma, a proposta era problematizar cada pergunta coletivamente segundo as vivências e saberes sobre o tema, permitindo a construção conjunta dos saberes.

A atividade com o repolho se assemelha à brincadeira “batata quente”, tradicional em nossa região. Ela faz uma analogia com a realidade do SUS no sentido de que não é fácil resolver os problemas do sistema, levando gestores(as) e usuários(as) muitas vezes a repassar esse problema a outras pessoas. Tal estratégia demandava uma sala ampla, com cadeiras dispostas em círculo, a fim de que cada participante pudesse ter contato visual com todos os(as) outros(as), projetor de slides e caixas de som.

Em cada visita às escolas para realizar a dinâmica, notamos a necessidade de um processo contínuo de aprimoramento das oficinas, incluindo a readequação das perguntas e a utilização de outros recursos estéticos, como o filme “Sicko - SOS Saúde”, que retrata a realidade dos serviços de saúde nos Estados Unidos (sistema privatizado) e em países como França, Inglaterra e Canadá (sistema público). Percebemos que, ao “conhecer” outras realidades, se tornou mais fácil compreender a realidade do SUS.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Primeira oficina, véspera de feriado, dia nublado - as expectativas não eram as melhores quanto à presença e participação dos(as) estudantes. Mesmo assim, estávamos lá, cadeiras em círculo, prontos para começar a dialogar. Aos poucos, os(as) estudantes foram adentrando a sala, e rapidamente notamos quão heterogêneo era aquele grupo com o qual iríamos trabalhar. Havia senhores(as) e adolescentes, uns(umas) entravam com tom de brincadeira, o que talvez pudesse ser entendido como deboche e desprezo, e outros(as) nos encaravam com ar de desafio, de embate, com olhares que sem palavras diziam: “O que esses meninos(as) acham que podem falar com a gente?”. O primeiro desafio estava posto: precisávamos propiciar o diálogo para que as mais diferentes idades e expectativas fossem sensibilizadas a participar e evidenciar que nesse diálogo seríamos aliados na compreensão e construção de um Sistema Único de Saúde (SUS), e não rivais.

Começamos a oficina com a apresentação dos(as) que ali estavam, e logo foi possível identificar as diferentes personalidades que compunham o grupo, aqueles(as) mais tímidos(as) e os(as) mais extrovertidos(as). Com o início da dinâmica, essas singularidades tornaram-se ainda mais evidentes. Um homem e uma mulher tendiam a monopolizar as falas, protagonizavam o grupo, enquanto os(as) outros(as) assumiam papel de espectadores(as) do diálogo unilateral que se estabelecia. Sendo assim, coube a nós estimular a participação dos(as) demais, utilizando a fala dos(as) mais participativos(as) como “gatilhos”, disparadores para que o diálogo fosse estendido.

Diante disso, surgiram inúmeros relatos de experiências que evidenciavam a insatisfação das pessoas com o SUS. O ápice dessa demonstração de insatisfação aconteceu quando o homem que tentava monopolizar as falas se levantou e tirou a camisa, ali na nossa frente. Para nos mostrar o preço “das falhas do sistema de saúde que temos”, as marcas que o SUS e os(as) “maus(más) médicos(as)” haviam deixado no seu corpo, pois, segundo ele, a demora no diagnóstico e tratamento culminou na complicação da sua situação e quase lhe custou a vida. Um homem quase nu, expondo o corpo, sua história, suas marcas físicas e emocionais, representando o grito de quem quase nunca tem a oportunidade de ser ouvido de fato, mas que tem muito a dizer. Talvez ali ele estivesse representando a insatisfação compartilhada por todos(as) os(as) presentes. Com essa atitude aparentemente simples, porém repleta de significados, pudemos ver na prática como a amorosidade se dá na Educação Popular em Saúde. Aquele princípio da PNEPS-SUS - que, em belas palavras, diz que amorosidade é a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas55. Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPSSUS). Disponível em: <bvms.saúde.gov.br/bvs/saudelegis>. Acesso em: 7 jan 2017
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- nos fez perceber que a amorosidade não é simplesmente um olá, um sorriso e um aperto de mão, mas é realmente esse amor pelo(a) outro(a), essa entrega de corpo e alma ao diálogo, à escuta (mesmo daquilo que me contradiz) e à construção conjunta de saberes na Educação Popular em Saúde.

Percebemos também, nitidamente, o quanto estávamos distantes das pessoas. Tentamos trabalhar com o que partisse da realidade das pessoas de cada escola com base no que encontramos em cada uma das urnas, porém traduzimos suas realidades segundo nossas perspectivas, em perguntas que tentavam problematizar o SUS. Usávamos palavras como universalidade, equidade, integralidade, descentralização, que as pessoas simplesmente não entendiam, nunca tinham ouvido e muitas vezes não sabiam nem pronunciar. Por exemplo, quando questionadas sobre conselhos de saúde, elas os entendiam como “uma recomendação” dada a uma pessoa doente, que levava à sua melhora. Imersos no academicismo, sequer conseguimos nos fazer entender, e, na ânsia de trabalhar conceitos, esquecemos de que trabalhávamos com pessoas. Isto dificultou a problematização e distanciou ainda mais as pessoas de nós, o que potencializou o clima de insatisfação que já estava posto. Então percebemos que, naquele momento, precisávamos nos aproximar novamente dos princípios e de uma prática de Educação Popular em Saúde, e deixar de trabalhar para as pessoas e passar a trabalhar com as pessoas.

Além disso, velada por trás de todo o clima de insatisfação e distanciamento, ficava nítida a atmosfera de desesperança na construção de uma realidade melhor. Isto porque a responsabilidade de todas as questões que levantamos recaía nas mãos de terceiros - nessa oficina, especificamente os(as) políticos(as). Para as pessoas que ali estavam, eram eles(as) os(as) principais agentes e responsáveis pelo SUS, os(as) principais “culpados(as)” pela realidade em que as pessoas se encontravam. Aqui ouvimos frases como “são os políticos que têm poder de fazer alguma mudança, mas eles não se importam com o povo”; “se os políticos não fazem nada para melhorar o SUS, o que nós poderíamos fazer?”; “as pessoas não podem fazer nada, elas sempre se corrompem quando têm poder”. E, porque associavam políticos(as) ao poder, o que se pensava era que ninguém poderia fazer um SUS bom para o povo.

Além dessa desesperança, enquanto algumas pessoas presentes pensavam nunca ter usado o SUS, outras, totalmente descrentes do Sistema Único de Saúde, acreditavam que a solução era extingui-lo e adotar planos de saúde populares. Além disso, acreditavam que a população não tinha o poder de promover alguma melhoria. Então, como poderíamos conversar sobre esse Sistema e as formas de construí-lo conjuntamente? Percebemos a necessidade de compreender a importância do SUS, antes de compreender sua organização. Assim, notamos que uma das maneiras de conhecer a importância de algo é imaginar sua perda. Propusemos então a seguinte reflexão: “como seria a saúde do nosso país se não existisse o SUS?”. Logo em seguida, exibimos o início do filme “Sicko - SOS Saúde”, que mostra o sistema de saúde estadunidense, no qual a saúde não é direito do cidadão e dever do Estado, e os planos privados norteiam o cuidado da população, que pode pagar por eles ou não. Assim se evidenciam os diversos problemas existentes quando a saúde é tratada sob a lógica de mercado.

Durante a exibição do trecho do filme, percebemos muitos olhares de surpresa, e até quem não havia participado da oficina até então demonstrava estar atento. Houve uma quebra de expectativas, pois o que esperavam ser o melhor dos sistemas de saúde se revelou uma tragédia. Ficou evidente que, quando a saúde é tratada como mercadoria, as coisas não dão certo. Então, questionamos a diferença entre esse sistema e o SUS, e ficou claro para todos que a grande conquista do SUS, mesmo com todos os seus problemas, é a garantia de saúde como um direito de todos. Com base nesse pensamento, todos os princípios do SUS que tentamos trabalhar foram (re)significados. Ficou óbvio que não tem sentido querer o fim do SUS, mas, sim, a sua consolidação. E isso acreditamos ser crucial para o fortalecimento do SUS: que a população entenda a importância do Sistema e defenda sua melhoria, e não a sua extinção, ao mesmo tempo em que toma ciência dos seus direitos e passe a lutar para sua efetivação. É isso o que a PNEPS-SUS chama de compromisso com a construção do projeto democrático e popular, que é:

a reafirmação do compromisso com a construção de uma sociedade justa, solidária, democrática, igualitária, soberana e culturalmente diversa que somente será construída por meio da contribuição das lutas sociais e da garantia do direito universal à saúde no Brasil, tendo como protagonistas os sujeitos populares, seus grupos e movimentos, que historicamente foram silenciados e marginalizados.44. Brasil. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

A partir daí, algumas perguntas dominaram a discussão. “E como lutar pelos nossos direitos?”; “nós podemos fazer algo?”. Discutimos, então, com as pessoas, o princípio da participação social, mostrando que todos os indivíduos podem agir em prol da melhoria do SUS, usando mecanismos, até então desconhecidos, como os conselhos de saúde, as conferências e a ouvidoria, que são de suma importância para a manutenção da saúde como um direito e a construção coletiva do SUS.

Saímos da primeira atividade de Educação Popular em Saúde com os(as) estudantes da EJA de Uberlândia cientes de que era preciso mudar a forma de conduzir as atividades seguintes. Assim, elaboramos transformações na dinâmica, mudando as perguntas de forma a nos aproximar da realidade das pessoas por meio de uma linguagem mais acessível a elas a fim de trabalharmos, folha a folha do repolho, os princípios do SUS. Além disso, percebemos que as oficinas não poderiam ser planejadas mecanicamente, pois nosso interesse era construir um diálogo com as pessoas e fomentar o empoderamento popular, levando em conta a necessidade de cada grupo e a importância de conduzir as discussões segundo as demandas levantadas pelas pessoas envolvidas, a fim de tornar o ambiente mais participativo e construtivo.

Mesmo com as singularidades de cada atividade, muito do que aconteceu na primeira se repetiu. Muitas pessoas também acreditavam não usar o SUS, em nenhuma oficina havia alguém que conhecesse os conselhos de saúde, as conferências, e poucas sabiam da ouvidoria. Também surgiu de novo a ideia de que “eu” não posso fazer nada para mudar o SUS e de que essa responsabilidade cabe aos(as) políticos(as), médicos(as) e a terceiros(as) não nominados. Além disso, de forma geral, havia nas pessoas o mesmo pessimismo e insatisfação observados anteriormente.

CONCLUSÃO

Após o término de todas as oficinas, percebemos que, mesmo se tratando de uma ação pontual, houve um ganho pessoal e coletivo tanto para nós, que conduzimos as oficinas, quanto para os que participaram, pois todos aprendemos sobre o SUS, sobre nossos direitos e sobre mecanismos para defendê-los.

Mais do que isso, foi plantada em nós - médicos(as), professores(as), futuros(as) médicos(as) e população - a semente de que é possível a construção de um SUS universal, equânime e integral por meio do trabalho coletivo, de políticos(as), profissionais e da participação social. Um SUS que assegure longitudinalidade no cuidado e que atenda as demandas da população, sendo efetivo e de qualidade.

No final das oficinas, os olhares e as falas de agradecimentos deixaram claro para nós que a Educação Popular em Saúde, como forma de discutir e compreender a realidade, é capaz de desenvolver autonomia, traz dignidade ao ser humano e o(a) coloca como sujeito(a) de sua própria vida. Logo, usá-la como instrumento para “desvendar” o SUS é empoderar, é promover saúde, é lutar para termos a saúde que tanto desejamos.

É importante ressaltar que todas essas reflexões, inclusive as críticas à nossa formação, ainda centrada no(a) médico(a), e à postura no cuidado às pessoas, só foram possíveis graças à realização dessas atividades. Estávamos lá para ouvir as pessoas, para aprender com elas, e juntos construir um conhecimento coletivo. Aqui apresentamos algo que só foi possível por esse encontro, não de professores(as) e estudantes, não de médicos(as) e usuários(as), mas de pessoas que podem se encontrar, se afetar, dialogar e ouvir simplesmente porque são pessoas.

Este projeto tem perspectivas de continuidade neste e nos próximos anos. Para nós, diante da preparação e realização das oficinas, fica evidente a necessidade de construir uma consciência crítica e democrática em relação aos conceitos que envolvem o Sistema Único de Saúde no Brasil e de compreender que a Educação Popular em Saúde é uma estratégia potente para fortalecer o SUS.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos às Sras. Liliane Ribeiro da Silva e Maria Geralda Ferreira Santana e a toda a equipe do Centro Municipal de Estudos e Projetos Educacionais Julieta Diniz (Cemepe) de Uberlândia (MG). Agradecemos também à Gestão Municipal da Educação no município em 2016, pois, sem a acolhida e intenso interesse e trabalho com o nosso projeto, ele jamais teria a oportunidade de sair do papel e render tão bons frutos.

Nosso muito obrigado também à direção, professores(as) e estudantes de cada escola que nos recebeu com muito carinho e disposição. Aprender com vocês foi fundamental para nossa formação pessoal e profissional. Que nossos laços permaneçam e que a Educação Popular em Saúde em nosso município se fortaleça, para que sigamos na luta por uma sociedade mais justa e melhor para vivermos.

  • FINANCIAMENTO
    O projeto de extensão que deu origem a este relato foi aprovado pelo edital “Programa de Extensão Integração UFU/Comunidade (PEIC/UFU/2016)”, da Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), registrado no Siex sob o n° 13.673, tendo sido financiado com os recursos desse edital.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Freire P. Pedagogia do Oprimido. 5ed, São Paulo: Paz e Terra, 1978.
  • 2
    Freire P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
  • 3
    Rolim LB, Cruz R de SBLC, Sampaio KJA de J. Participação popular e o controle social como diretriz do SUS: uma revisão narrativa. Saúde Em Debate. 2013;37(96):139–47.
  • 4
    Brasil. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil Brasília, DF: Senado, 1988.
  • 5
    Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.761, de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPSSUS). Disponível em: <bvms.saúde.gov.br/bvs/saudelegis>. Acesso em: 7 jan 2017
    » bvms.saúde.gov.br/bvs/saudelegis
  • 6
    Brasil. Ministério da Educação. Resolução n° 3, de 20 de junho de 2014, Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Brasília: Ministério da Educação, 2014.
  • 7
    Souza LA, Colomé ICS, Costa LED, Oliveira DLLC. A educação em saúde como grupos na comunidade: uma estratégia facilitadora da promoção da saúde. Rev Gaúcha de Enfermagem 2005; 26(2):147-153
  • 8
    Alves GG, Aerts D. As práticas educativas em saúde e a Estratégia Saúde da Família. Ciênc Saúde Coletiva 2011;16(1):319-25.
  • 9
    Horta N de C, Sena RR de, Silva MEOS, Tavares TS, Caldeira IM. A prática de grupos como ação de promoção da saúde na Estratégia Saúde da Família. Rev APS. 2009; 12(3):293-391

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2017
  • Aceito
    23 Nov 2017
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