INTRODUÇÃO
O advento do computador trouxe uma enorme ampliação da dimensão do homem, aumentando a sua capacidade de calcular e armazenar grandes volumes de informação e isso em nanosegundos. Ampliou significativamente sua memória e o tempo de recuperação de uma informação. O “aqui e agora” passou a ser o mote do mundo atual, caracterizando uma sociedade em mudança rápida e constante.
Inteligência artificial (IA) é um ramo da ciência da computação que se propõe a desenvolver sistemas que simulem a capacidade humana na percepção de um problema, identificando seus componentes e, com isso, resolver problemas e propor/tomar decisões.
Outra definição de Inteligência Artificial indica que seria a criação de sistemas inteligentes de computação capazes de realizar tarefas sem receber instruções diretas de humanos (os “robôs” são exemplos disso). “Robôs” seguem uma programação computadorizada de movimentos e ações conformando, desde logo, a definição de Inteligência Artificial.
Usando diferentes algoritmos e estratégias de tomada de decisão e um grande volume de dados, sistemas de IA são capazes de propor ações, quando solicitados.
Inteligência Artificial já está transformando a vida humana, mudando o conceito de transporte, com seus veículos autodirigidos, com suas cirurgias feitas por robôs, com sistemas de comunicação automatizados, com a automação de serviços financeiros e bancários, enfim, com um número cada vez maior de usos e funções.
O armazenamento de dados passou a ser gigantesco, levando ao conceito de “big data”. Estima-se em 2,5 exabytes (exabyte corresponde a 10 à potência 18; para comparação gigabyte é 10 à potência 9) com um crescimento anual previsto de 57% no período de 2014-2019 (1), chegando a 24,3 exabites em 2019, admitindo-se que em 2019 vídeos deverão corresponder a 50% do tráfego na internet.
“Big data“ está sendo gradualmente introduzido no sistema de atenção à saúde, como já influi em áreas como consumo, serviços bancários e financeiros, logística e gestão de capital humano. Dados de prevalência, incidência e evolução de enfermidades, permitiriam gerar dados estatísticos, antecipar surtos epidêmicos e prescrever ações preventivas.
IA envolve várias etapas ou competências como reconhecer padrões e imagens, entender linguagem aberta escrita e falada, perceber relações e nexos, seguir algoritmos de decisão propostos por especialistas, ser capaz de entender conceitos e não apenas processar dados, adquirir “raciocínios” pela capacidade de integrar novas experiências e, pois, se auto aperfeiçoar (“self learning”), resolvendo problemas, ou realizando tarefas.
Estudos (2 ) tem sido realizados comparando IA e “machine learning” (ML) com medicina por evidências (EBM em inglês. Assim, indicou-se que enquanto EBM examina o relacionamento entre um número limitado de variáveis pré-definidas numa amostra de pequenas dimensões (centenas ou milhares de pessoas), ML examina o relacionamento entre muitas variáveis, não previamente definidas, em um grande volume de dados (centenas de milhares de pacientes), obtidos em várias fontes (prontuários eletrônicos, dados administrativos, dispositivos vestíveis e corporais, genomas, e determinantes sociais) processando algoritmos propostos. A dificuldade de entender o processamento de dados e como se formulam decisões em ML preocupa os médicos, sobretudo, se comparados com a transparência de pesquisas com os conceitos da EBM.
Há atualmente a proposta de que as duas estratégias se complementem. ML pode oferecer melhores indicações de riscos e de implicações da correlação entre diagnósticos e terapias, dados que poderão ser posteriormente confirmadas por estudos randomizados e controlados em uma amostra de pacientes.
Sistemas computadorizados de apoio à decisão clínica têm indicado um alto grau de acurácia em suas propostas diagnósticas. Ao mesmo tempo, o supercomputador Watson da IBM registrou toda a informação médica disponível no PubMed e Medline (3), tornando mais fácil, idealmente, o acesso à informação em saúde.
Atualmente, o uso de dispositivos vestíveis (“wearable devices”) têm sido introduzidos obtendo informações continuas sobre glicemia, ECG e movimento, por exemplo, que podem gerar ações automatizadas como injetar insulina, reconhecer uma arritmia e, eventualmente, dar uma descarga elétrica de um desfibrilador subcutâneo, ou variar a dose de um medicamento em pacientes com doença de Parkinson. Informações desses “gadgets” são capturados pelo celular do paciente e podem ser transmitidos ao seu médico, facilitando o acompanhamento de casos crônicos.
Pesquisa recente da empresa de consultoria Price Waterhouse &Coopers (4) realizada em 12.000 indivíduos de 12 países da Europa, Oriente Médio e África indicou que 54% aceitariam ser atendidos por um robô com Inteligência Artificial (94% na Nigéria, 85% na Turquia e 41% na Alemanha e 39% na Inglaterra) aptos a responder a questões de saúde, realizar exames, fazer diagnósticos baseados nesses exames e. mesmo, recomendar um tratamento.
Poder-se-ia argumentar que robôs não têm empatia e não atendem pacientes de forma individualizada e humana, mas pacientes dizem que muitos médicos, na atualidade, também não o fazem.
Em 2009 verificou-se que 32% dos erros médicos nos EEUU resultavam da diminuição do tempo de interação do médico com pacientes, produzindo diagnósticos equivocados, não reconhecimento da urgência, ou piora da evolução do paciente que demandariam prescrever ou realizar ações pertinentes. Mesmo em hospitais dispondo de prontuários médicos eletrônicos (5), com a possibilidade de uma melhor coleta de dados, admite-se que em torno de 78,9% dos erros médicos estariam relacionados a problemas na relação médico-paciente, num exame clínico deficiente, na falha de avaliação dos dados do paciente, ou falta de exames comprovando a hipótese diagnóstica feita.
Na verdade, de regra, existem uma série de barreiras na comunicação médico-paciente. Além da grande assimetria de informação, há por vezes uma dificuldade de comunicação e, frequentemente, uma barreira cultural.
Segundo Eric Topol (6) a assimetria de informação tende a diminuir com a facilidade atual de acesso do paciente à informação sobre saúde, levando ao seu empoderamento. Um colega me dizia outro dia que um paciente o procurou no consultório dizendo: “doutor, vim ter uma segunda opinião sobre o meu problema de saúde, porque a primeira já tive no Google”!
Admitir que o paciente será cada vez mais bem informado e pretenderá entender e participar na discussão de seu caso é uma premissa a ser considerada nos nossos tempos.
O uso de “smart-phones” tem possibilitado a gravação da consulta médica pelo próprio paciente (7), muitas vezes sem informar o médico. O desejo de registrar o que o médico fala, o orientando e discutindo os exames solicitados e medicação indicada é a justificativa da gravação (por vezes usadas pelo paciente em casos de erro médico).
Isso reforça o empoderamento do paciente na discussão e solução do seu problema de saúde.
A dificuldade de comunicação advém do emprego pelo médico de termos próprios à profissão e desconhecidos pelo paciente e, por vezes, por fatores culturais. Há 20 anos a Faculdade de Medicina de Maastricht (8) inclui um curso longitudinal de habilidades de comunicação ao longo do curso médico para capacitar o aluno a estabelecer melhor comunicação com o paciente, lidar com questões de língua e cultura e com pacientes problemáticos
Colocávamos fora dos consultórios médicos da Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho, hoje hospital regional, quando o mesmo era operado por docentes e alunos da Faculdade de Medicina da UnB, uma auxiliar de enfermagem que perguntava ao paciente o que o médico lhe havia falado e prescrito. Praticamente 100% dos pacientes não sabiam contar a entrevista, o que fazia com a que a auxiliar tivesse que explicar a prescrição e os exames solicitados.
À época realizamos uma pesquisa cronometrando não só o tempo da consulta, mas o tempo destinado à identificação e anamnese, exame físico, pedido de exames e prescrição e de orientação ao pacientes e equipe médica. Quando havia mais pressa, dada a pressão assistencial, cortava-se primeiro o tempo da orientação do paciente, a seguir anamnese, pedido de exames e prescrição, mantendo-se mais fixo o tempo dedicado ao exame físico do paciente.
O tempo de consulta variava de 15 a 30 minutos, diminuindo ao longo da sessão de atendimento. Interessante é que o número de exames solicitados aumentava com a diminuição do tempo da consulta.
Mas como melhorar o atendimento na rede pública, por exemplo, na qual cada médico tem pelo menos 16 pacientes marcados para prestar atendimento em uma jornada de quatro horas.
Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto (9), avaliando 480 consultas, indicou que pacientes atendidos em 11,4 e 15 minutos consideravam o atendimento excelente, consultas de 7,6 a 11,3 minutos foram consideradas boas, sendo que consultas de 3,8 a 7,5 eram consideradas regulares e que pacientes com consultas realizadas em menos de 3,7 minutos achavam serem mal atendidas!
COMO SERÁ A PRÁTICA DO MÉDICO NO FUTURO, CONSIDERANDO IA
Há que se considerar que a identificação de problemas e padrões (“pattern recognition”) pelo computador, reconhecendo, por exemplo, uma lesão dermatológica, ou fazendo um laudo em um exame de imagem, ou, ainda, pelo processamento de um grande volume de dados de pacientes (“big data”), poderá indicar o “know what” de um problema de saúde.
Mas caberá ao médico discutir o caso com seu paciente agregando o seu “know-why”, orientando-o e aliviando suas tensões, já que o computador não tem emoções e uma compreensão do “outro”.
Mas como fazer isso no SUS, considerando que o médico tem pelo menos 16 pacientes marcados para prestar atendimento em uma jornada de quatro horas, como já indicado? Ou seja, dedicar a cada doente escassos 15 minutos. Na rede conveniada, o parâmetro é que os profissionais atendam igualmente quatro pacientes por hora – ou seja, os mesmos 15 minutos para cada um.
Há que se pensar em mudanças na prática médica, de modo a reservar mais tempo para que o médico possa ouvir, obter e/ou analisar dados do paciente, explicar e propor soluções para seu problema, aliviando suas tensões, o que deverá ocorrer considerando o uso de IA, com medidas como segue:
Emprego de sistemas de processamento de linguagem natural para registrar dados em prontuários eletrônicos;
Uso de sistemas de interação paciente/médico através de um computador, ou “smartphone”
Adoção de tecnologias que auxiliem a obtenção de dados dos pacientes (dispositivos vestíveis e disponíveis em “smart phones”) e o acompanhamento de doentes crônicos;
Uso de tecnologias de reconhecimento de imagens (radiologia, dermatologia, oftalmologia, cardiologia, etc.);
Emprego de sistemas de apoio à decisão clínica orientando, a partir dos sintomas e sinais apresentados pelo paciente, hipóteses de diagnóstico, exames e tratamentos a serem prescritos;
Trabalho em equipes multiprofissionais, delegando ações de saúde e, definindo prioridades para o atendimento médico;
Utilização de robôs em cirurgias, realização de exames complementares e no acompanhamento de pacientes em domicílio;
Adoção da telemedicina no atendimento remoto, reconhecimento de lesões e imagens e avaliação de problemas de saúde;
Adoção de protocolos e diretrizes que norteiem o seu trabalho;
Emprego de sistemas de interação médico-paciente pela internet, sobretudo no controle de pacientes crônicos, ou tratando-os em domicílio;
Considerar a participação e o empoderamento dos pacientes;
Participar de redes colaborativas para intercambiar experiência e discutir casos clínicos;
IA E EDUCAÇÃO MÉDICA
A deficiência na interação com o paciente e na realização de seu exame clínico e a dependência de exames complementares no diagnóstico médico, são fatores que irão enfatizar cada vez mais o uso do computador e da IA em medicina.
A mudança da prática médica deverá se refletir num currículo médico ajustado a esses novos paradigmas resultantes da mudança de uma época da informação e do conhecimento para uma época caracterizada por novas tecnologias e pela inteligência artificial (10).
Tópicos como comunicação, trabalho em equipe, avaliação e manejo de risco, uso de novas tecnologias, capacidade de analisar dados de pacientes e da população deverão ser incorporados aos currículos de formação médica.
De um período centrado em avaliação da informação centrada em pesquisas controladas de evidências clínicas, conferindo relevância, acurácia, oportunidade dessa informação, passa-se em nossos dias à utilização de IA e “machine learning” processando um grande volume de dados de pacientes na avaliação de risco e no estudo de correlações entre diagnósticos, genomas, determinantes sociais e tratamentos.
Em 2013 a Associação Americana de Medicina criou (11) um consórcio, inicialmente de 11 escolas médicas, para discutir o impacto de novas tecnologias na atenção à saúde e na formação de novos profissionais. Esse número de escolas foi acrescido em 2015 de mais 21 instituições; um total de 19.000 estudantes de medicina estudam nas 32 escolas do consórcio.
O sumário desse estudo está contido no relatório (12): “Creating a Community of Innovation – The work of the AMA accelerating change in medical education”. Esse estudo indicou as seguintes propostas
Estudos de sistemas de saúde “considerado como o terceiro pilar da educação médica”, além do estudo de ciências básicas e clínicas
Estudo dos determinantes sociais da saúde
Trabalho em equipe multidisciplinar da saúde e liderança.
Disponibilização de prontuários eletrônicos “ajustados” ao aprendizado
Desenvolvimento de base de dados para dar suporte ao estudo de saúde da população
Desenvolvimento de habilidades de comunicação, sobretudo considerando barreiras de cultura e linguagem
Inserção de estudantes em serviços comunitários de saúde ao longo de seu curso
Cursos flexíveis baseado em competências
Desenvolvimento de hábitos de estudo e auto avaliação dos conhecimentos
Telemedicina e atendimento em áreas rurais e remotas
Algumas universidades indicaram mudanças curriculares de maior relevância, como a Universidade de Nova York que criou um currículo baseado em números (“health care by the numbers”) para capacitar os alunos no manejo de “big data” buscando melhorar a coordenação da atenção em saúde, melhorar a qualidade e a saúde da população.
A Universidade da Dakota do Norte, por sua vez, usa tecnologia no desenvolvimento de simulações com manequins com alta tecnologia incorporada e o uso de computadores para atendimento remoto.
Ênfase em educação continuada, com aprendizado flexível e adaptado ao projeto do aluno, foi salientado em várias universidades, como Harvard, Vanderbilt, Michigan, Oregon, Nova York.
Mas o interessante é se constatar que só recentemente as universidades americanas descobriram a importância de se estudar sistemas de saúde, de se enfatizar o trabalho em equipes multiprofissionais, de se incorporar os alunos a serviços comunitários de saúde e discutir problemas de comunicação entre médico e paciente.
COMO DEVERÁ SER A FORMAÇÃO MÉDICA NO FUTURO
A Universidade deverá oferecer aos alunos uma formação geral, que o prepare para exercer funções no atendimento de pacientes em unidades de atenção primária.
Para tal, deverá definir um núcleo de conhecimentos (“core curriculum”) visando preparar um profissional com bons conhecimentos de ciências básicas, incluindo biologia celular, molecular e genética, cursos de fisiopatologia de sistemas orgânicos e determinantes biológicos e sociais das doenças, integrando ciências básicas, clínicas e sociais.
O ciclo clínico de sua formação deverá se desenvolver como parte de uma equipe multiprofissional de atenção à saúde atuando em vários cenários: da comunidade e unidades de atenção primária, hospital secundário e unidades de emergência. Cursos integrados, com objetivos bem definidos e oferta ampla de oportunidades de aprendizagem, com supervisão contínua e oferta de auto avaliação, permitindo ao aluno desenvolver as competências de um médico atuando em serviços de saúde oferecendo a cobertura de necessidades e demandas de uma população.
O aprendizado em pediatria, por exemplo, deverá contemplar a atuação do aluno na comunidade, escola, residência dos pacientes, atendimento ambulatorial e hospitalar, incluindo sala de parto e berçários, participando, ademais, de programas de vacinação, pré-natal e crescimento e desenvolvimento.
A Universidade deverá oferecer uma gama de oportunidades de aprendizagem, mediadas por professores, ajustadas aos interesses e vocações dos alunos
Oferecer cursos modulares e de acesso livre (Humboldt já propunha isso em 1808 ao criar a Universidade de Berlim), validar conhecimentos, oferecer novas oportunidades de aprendizagem, sistematizar os conhecimentos e as habilidades necessárias a outorgar a sua licença profissional, além de, obviamente, pesquisar e desenvolver novos conhecimentos.
Aprender a aprender e buscar seu autodesenvolvimento, de acordo com sua vocação, seu interesse, e em função das oportunidades que antevê na sua vida, deve ser a meta dos alunos. Flexibilidade no aprender e se adaptar a novos encargos e funções, deverá ser o objetivo de uma geração de estudantes conectada, mas inquieta e seguindo seus próprios ideais e anseios de vida.
O aprendizado flexível deverá prevalecer numa sociedade em que a Inteligência Artificial terá cada vez mais importância.