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Resenha do livro “Let me Heal: The Opportunity to Preserve Excellence in American Medicine”

Ludmerer, KM. Let me heal: the opportunity to preserve excellence in American Medicine. 2015. Oxford, New York

A residência tem sido considerada o “padrão ouro” na formação médica especializada em todo o mundo, e isso não tem sido diferente no Brasil. Surpreende, entretanto, a escassa literatura nacional e internacional frente à importância do tema.

Essa falha foi amenizada com a publicação do livro Let me Heal, de Kenneth M. Ludmerer11. Ludmerer, KM. Let me heal: the opportunity to preserve excellence in American Medicine. New York: Oxford, 2015.. Trata-se de um reconhecido médico e escritor norte-americano que tem explorado o vasto campo da história da medicina. Let me Heal é o último livro de uma trilogia do autor, que compõe, com Learning to Heal e Time to Heal, um amplo e bem documentado relato histórico da educação médica nos Estados Unidos. Nesse terceiro livro, o foco é a história da residência médica e sua importância na formação de especialistas desde a sua criação, no final do século XIX, até sua consolidação nos dias atuais. Sem querer passar uma visão romântica ou idealizada dos “bons tempos” do início da residência, a leitura é fácil e agradável.

Ainda que esteja direcionado exclusivamente ao contexto de formação médica nos Estados Unidos, o livro é uma excelente fonte de informações para todos os que estão envolvidos com a residência médica no Brasil, uma vez que o modelo norte-americano sempre teve forte influência em nosso país.

Em primeiro lugar, fica claro como a graduação em Medicina se consolidou apenas como uma “introdução” à prática médica, já que o que define a atuação profissional como médico especialista é, efetivamente, a residência médica. E esta permanece, desde a sua origem, sendo entendida como uma experiência educativa intensa e com características peculiares.

É interessante perceber que, ao ler o livro, as comparações com o sistema brasileiro de educação médica passam a ser inevitáveis, forçando uma reflexão acerca do quanto ainda precisamos avançar. Na verdade, nada do que estamos enfrentando no contexto atual da residência médica no Brasil é novo: a discussão sobre a obrigatoriedade da residência para a prática profissional, a definição do número e da distribuição de vagas, a limitação da carga horária, a qualificação e o processo de credenciamento dos programas, a atuação das entidades médicas, entre outros aspectos. A sensação, contudo, é que estamos muito atrasados nessas discussões, uma vez que todos esses temas foram superados há várias décadas nos Estados Unidos,

Ludmerer inicia o livro justamente pela descrição de como se dava a formação médica no século XIX nos Estados Unidos, sua grande heterogeneidade e a influência da medicina europeia – especialmente a alemã. Logo após, passa a descrever a transição para uma nova fase, com a criação do primeiro programa de residência médica na Universidade Johns Hopkins e os princípios defendidos por seu idealizador, William Osler. Pelo relato, é possível perceber que a residência médica nos Estados Unidos tem duas raízes bem definidas: de um lado, a revolução na medicina científica no final do século XIX, especialmente com a proximidade entre educadores médicos e a universidade alemã, e, por outro lado, a demanda por uma atenção à saúde em grau de excelência.

Tendo a primazia do paciente como um dos princípios fundamentais da prática médica moderna, Osler propunha um modelo de formação que aliasse assistência à saúde de alta qualidade a uma vocação acadêmica e de pesquisa. Nos dias atuais, isto pode parecer óbvio, mas era, na realidade, um conceito revolucionário para a época, sendo essa a principal razão pela qual a origem dos programas de residência estava ligada a hospitais universitários. O que se queria era uma forma de estimular a curiosidade, criar um espírito crítico sobre a realidade e conhecer os princípios do método científico, no sentido de desenvolver o raciocínio clínico do residente e sua habilidade para resolver problemas. Isto se mostrou um terreno fértil também para o desenvolvimento das especialidades e das subespecialidades médicas, visto que o contexto desse período passou a exigir um conhecimento aprofundado das doenças, dos sistemas corporais e dos órgãos do corpo humano.

Outra afirmação contundente do autor é que o ambiente de formação é fundamental para uma prática médica qualificada. Sob esse ponto de vista, é interessante acompanhar as descrições sobre a rivalidade existente quanto à residência. No decorrer da narrativa, outras instituições também passam a receber destaque: ao lado da Johns Hopkins, o Peter Bent Brigham Hospital e o Massachusetts General Hospital compõem uma espécie de “trio de elite” na formação de especialistas médicos nos Estados Unidos, cada qual procurando sobressair frente às demais, numa disputa informal pelo título de melhor hospital. Nessa mesma linha, Ludmerer mostra, de forma cabal, que a excelência não estava ligada apenas ao currículo formal, a palestras ou aos livros, mas, sim, a questões intangíveis do ambiente de ensino: as habilidades e dedicação do corpo de preceptores, a habilidade e aspirações dos residentes, a oportunidade de assumir responsabilidade no cuidado, um número adequado de pacientes, liberdade para perseguir interesses intelectuais e a presença de padrões elevados e alta expectativa dos residentes.

Outro aspecto ressaltado pelo autor se refere ao princípio de que o médico residente deve ser o responsável pelo cuidado do paciente e, tão importante quanto isso, é que ele possa refletir sobre todo o processo. Ou seja, era esperado que o residente tivesse uma ideia completa da história clínica, do exame físico, dos exames laboratoriais e do plano terapêutico a ser seguido por cada paciente. Em suma, eram “seus” pacientes, sendo que esse fato contribuiria decisivamente para torná-lo um profissional especialista na área. Isto explica a tensão percebida na classificação da residência médica ora como “ensino”, ora como “assistência” – tensão que permanece até hoje.

A obra consegue discutir também temas mais recentes. O debate sobre a limitação das horas de trabalho, por exemplo, acaba sendo igualmente interessante para o caso brasileiro, que estabelece 60 horas semanais como limite (o esforço nos Estados Unidos era para limitar em 80 horas semanais). Da mesma forma, a questão do burnout entre os residentes também mereceu atenção. O que era tido como resultante de uma cultura de trabalho excessivo (e de pouco tempo fora da residência) chegou ao limite na década de 1970, quando esse tema começou a ser debatido de forma mais aprofundada. A ampla discussão que se seguiu direcionou os esforços para tornar o trabalho menos extenuante, sem, contudo, limitar as oportunidades de aprendizado ou colocar em risco a segurança do paciente num período de grande crescimento da demanda por serviços médicos e de complexificação da atenção à saúde.

Por fim, é importante salientar duas boas surpresas que acabam sendo pontos fortes do livro: uma ampla lista de notas e de referências bibliográficas, divididas por cada um dos seus 13 capítulos, e, ao final, um índice que indica a localização dos inúmeros nomes e instituições citados no decorrer do texto. São duas ferramentas extremamente úteis para pesquisadores do tema.

Talvez, para alguns, o subtítulo “The Opportunity to Preserve Excellence in American Medicine” comece a ser compreendido somente ao finalizarem a leitura: o que poderia parecer até enigmático se lido fora do contexto faz todo o sentido ao se perceber que apenas tendo um melhor conhecimento sobre a história da residência médica é que poderemos reconhecer seus erros e avançar ainda mais em suas fortalezas nos Estados Unidos, no Brasil ou em qualquer outro país.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Ludmerer, KM. Let me heal: the opportunity to preserve excellence in American Medicine. New York: Oxford, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    5 Set 2017
  • Aceito
    22 Fev 2018
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