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“Café com Educação Médica” – Breve Relato de uma Experiência para o Desenvolvimento da Docência

“Medical Education with Coffee” – a Brief Report of an Experience for Faculty Development

RESUMO

O desenvolvimento docente é uma necessidade nas escolas para adequar o ensino médico às intensas e contínuas transformações do mundo e da sociedade contemporânea. Iniciativas de desenvolvimento docente precisam avançar para além de cursos de capacitação, evoluindo para comunidades de prática. Com o intuito de incorporar princípios da educação médica ao cotidiano do professor, em diversos níveis, desde o planejamento até a avaliação dos processos de ensino, entendemos que ambientes informais também podem constituir espaços para o desenvolvimento da docência. Assim, a Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista, criou o “café com educação médica”, uma reunião matinal quinzenal para discussão de aportes teóricos para subsidiar as ações de pesquisa e prática do Núcleo de Apoio Pedagógico. A reunião tem configuração semelhante à dos clubes de revista tradicionais no ensino de graduação e residência médica, mas com particularidades voltadas à educação em saúde. O êxito da experiência se deve à possibilidade de ocorrer desenvolvimento docente em contexto acolhedor e informal. Tendo em vista os relatos de transformação da prática docente motivados por iniciativas semelhantes ao redor do mundo e observando como nossa experiência tem sido oportuna, encorajamos as escolas médicas brasileiras a compartilharem também seus clubes de revista em educação médica e os resultados com eles obtidos.

Docentes de Medicina; Ensino; Capacitação de Professores

ABSTRACT

Faculty development is needed if medical schools are to adapt to the intense and constant changes taking place in the world, and in society. Initiatives for faculty development should go beyond workshops, evolving into communities of practice. To incorporate the principles of medical education into all levels of the curriculum, from planning through to assessment, the assimilation of faculty development is needed, including in informal scenarios. To this end, Botucatu School of Medicine of the Universidade Estadual Paulista created “medical education with coffee”, a morning meeting that is held twice a month to discuss theoretical approaches to medical education that supports the practices and research of the institutional center for educational support. The meetings are similar to the traditional journal clubs for undergraduate and residency programs, except that they are specially geared towards medical education. The success of these meetings lies in their capacity to develop faculty, in a cozy and informal environment. Based on reports of improvements in teaching practices around the world due to similar initiatives, we encourage other Brazilian medical schools to adopt of medical education journal clubs, and to share their results.

Faculty, Medical; Teaching; Teacher Training

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da docência tem recebido grande atenção das escolas médicas em todo o mundo nos últimos anos. Trata-se de estratégia fundamental para adequar o ensino médico às intensas e contínuas transformações do mundo e da sociedade contemporânea 11. Steinert Y . Faculty development in the new millenium: key changes and future directions . Med Teach 2000 ; 22 ( 1 ): 44 - 50 . .

Ser professor de Medicina requer, além das habilidades e competências necessárias à prática clínica, habilidades para assessorar estudantes, planejar e avaliar currículos, facilitar o aprendizado, produzir novos conhecimentos, prover recursos educacionais e, finalmente, ser um modelo de comportamento no ambiente de ensino e como profissional clínico 22. López MJ , Troncon LEA . Capacitação e desenvolvimento docente – aspectos gerais . Medicina (Ribeirão Preto) 2015 ; 48 ( 3 ): 282 -294. .

Esses múltiplos papéis a serem desempenhados pelo professor mostram a evolução dos requisitos para exercer a atividade docente. Se até o século XIX a transmissão do conhecimento era a principal atribuição do professor, no século XX, a ênfase no domínio do conteúdo forjou a necessidade de os docentes se dedicarem às atividades de pesquisa científica e inovação tecnológica. Inegavelmente, esse papel foi fundamental para o crescimento exponencial do conhecimento em todas as áreas do saber, com melhoria da qualidade de vida das populações. Por outro lado, a impossibilidade de adquirir e transmitir aos estudantes todo o conhecimento disponível na literatura e a limitação do tempo formal de graduação mudaram a relação de ensino e aprendizagem entre professor e aluno. Tem-se, então, a revisão dos papéis do professor, que passa a ser facilitador do aprendizado 33. Troncon LEA , Bollela VR , Borges MC , Rodrigues MLV . A formação e o desenvolvimento docente para os cursos das profissões da saúde: muito mais que o domínio de conteúdos . Medicina (Ribeirão Preto) 2014 ; 47 ( 3 ): 245 -248. .

Mas esta revisão de papéis não é simples, pois se trata de mudar paradigmas organizacionais e de concepção de trabalho, especialmente em instituições tradicionais de ensino. Os professores foram formados no modelo universitário do século XX (ainda vigente), mas são provocados a se adaptar a um modelo inovador, tendo ainda sobre si as pressões acadêmicas de produção científica 44. Angell M . Publish or perish: a proposal . Ann Intern Med 1986 ; 104 ( 2 ): 261 -262.,55. Sarewitz D . The pressure to publish pushes down quality . Nature 2016 ; 533 ( 7602 ): 147 . , pelas quais são avaliados.

Nesse contexto, os programas de desenvolvimento docente têm se notabilizado por sua necessidade e pelo apelo do próprio tema, mas sobretudo pela efetividade refletida nas mudanças da prática docente 66. Steinert Y , Mann K , Centeno A , Dolmans D , Spencer J , Gelula M , Prideaux D . A systematic review of faculty development initiatives designed to improve teaching effectiveness in medical education: BEME guide no 8 . Med Teach 2006 ; 28 ( 6 ): 497 - 526 .,77. Campos HH, Campos JJB, Faria MJS, Barbosa PFA, Araújo MNT. Programas de desenvolvimento docente em escolas médicas: oportunidades e perspectivas – mais do que uma necessidade. Cad ABEM 2007 ; 3:24-28. . O que se espera desses programas é que induzam mudanças curriculares adaptadas à contemporaneidade, que façam dos professores excelentes modelos profissionais para os aprendizes 88. Steinert Y , Cruess S , Cruess R , Snell L . Faculty development for teaching and evaluating professionalism: from programme design to curriculum change . Med Educ 2005 ; 39 ( 2 ): 127 - 136 . e, finalmente, que resultem em mudanças na atenção à saúde das pessoas 99. Burdick W , Amaral E , Campos H , Norcini J . A model for linkage between health professions education and health: FAIMER international faculty development initiatives . Med Teach 2011 ; 33 ( 8 ): 632 - 637 . .

Entretanto, programas de formação docente em educação médica ainda são escassos no Brasil 1010. Perim GL, Abdalla IG, Aguilar-da-Silva RH, Lampert JB, Stella RCR, Costa NMSC . Desenvolvimento docente e a formação de médicos . Rev Bras Educ Méd. 2009 ; 33 (1 Supl 1): 70 - 82 .,1111. Silva FA, Costa NMSC, Lampert JB, Alves R. O desenvolvimento docente na autoavaliação institucional de escolas médicas brasileiras: o Método da Roda e suas possibilidades para análise qualitativa. Atas CIAIQ 2017 ; 2:482-491. . E embora muitos professores reconheçam a importância do tema, sua visão acerca de como se dá o desenvolvimento docente ainda é restrita, atribuindo grande ênfase à participação em “cursos de capacitação” 1010. Perim GL, Abdalla IG, Aguilar-da-Silva RH, Lampert JB, Stella RCR, Costa NMSC . Desenvolvimento docente e a formação de médicos . Rev Bras Educ Méd. 2009 ; 33 (1 Supl 1): 70 - 82 .,1212. Machado MMBC, Sampaio CA, Macedo SM, Figueiredo MFS, Rodrigues Neto JF, Lopes IG, Leite MTS . Reflexões e significados sobre competências docentes no ensino médico . Avaliação (Campinas) 2017 ; 22 ( 1 ): 85 - 104 . – atividades indubitavelmente importantes, mas pontuais.

A ampliação do conceito de desenvolvimento docente requer o entendimento de que o conjunto de ações da escola médica deve estimular o desenvolvimento docente 1212. Machado MMBC, Sampaio CA, Macedo SM, Figueiredo MFS, Rodrigues Neto JF, Lopes IG, Leite MTS . Reflexões e significados sobre competências docentes no ensino médico . Avaliação (Campinas) 2017 ; 22 ( 1 ): 85 - 104 . , valorizando abordagens formais e informais do ambiente universitário, as quais, estruturadas, podem convergir e serem contempladas em comunidade de práticas para o desenvolvimento docente 1313. Steinert Y . Faculty development: from workshops to communities of practice . Med Teach 2010 ; 32 ( 5 ): 425 - 428 . . Com esse entendimento, devem-se estimular ações e estratégias para que o desenvolvimento docente ocorra não somente em oficinas e cursos, mas também em outros espaços, como reuniões de departamento e de colegiado, planejamento de mudanças curriculares, assessorias pedagógicas individualizadas e até a espera do elevador e o “papo do cafezinho”.

PROFESSORES “POR ACASO”, EDUCAÇÃO MÉDICA “POR ACASO”

Os professores de Medicina ingressam na carreira docente com certa vocação para o ensino. No entanto, exercem a atividade docente na perspectiva de reproduzir a lógica dos modelos que tiveram em sua formação 1414. Costa NMSC. Formação pedagógica de professores de medicina. Rev Latino Am Enfermagem. 2010 ; 18(1):102-108.,1515. Ferreira CC , Souza AML . Formação e prática do professor de medicina: um estudo realizado na Universidade Federal de Rondônia . Rev Bras Educ Méd. 2016 ; 40 ( 4 ): 635 - 643 . . Para muitos deles, a docência é uma atividade secundária à profissão médica – o critério de contratação pelas escolas, aliás, prioriza o desempenho do profissional em sua área de atuação médica em detrimento de sua habilidade pedagógica para atuar como professor. Assim, muitos médicos se tornam professores “por acaso”.

Essa realidade não é exclusividade brasileira, é comum no mundo todo. Desta relação fortuita advêm muitos conflitos na construção da identidade do professor de Medicina, que tem de conciliar suas atribuições de médico com as de professor, sob as pressões para progressão na carreira 1616. Batista NA, Souza SH. A função docente em medicina e a formação/educação permanente do professor. Rev Bras Educ Méd. 1998 ; 22:31-36.,1717. Van Lankveld T , Schoonenboom J , Kusurkar RA , Volman M , Beishuizen J , Croiset G . Integrating the teaching role into one’s identity: a qualitative study of beginning undergraduate medical teachers . Adv Health Sci Educ Theory Pract 2017 ; 22 ( 3 ): 601 - 622 .,1818. Sethi A , Ajjawi R , McAleer S , Schofield S . Exploring the tensions of being and becoming a medical educator . BMC Med Educ . 2017 ; 17 :62. . Portanto, a revisão do papel de professor anteriormente apresentada pode se tornar ainda mais complexa. São salutares, então, iniciativas que têm preparado estudantes e residentes para uma carreira como educadores 1919. Chen HC , Wamsley MA , Azzam A , Julian K , Irby DM , O’Sullivan PS . The health profession education pathway: preparing students, residentes and fellows to become future educators . Adv Health Sci Educ Theory Pract 2017 ; 29 ( 2 ): 216 - 227 .,2020. Caramori J. Estímulo à docência desde a graduação. Cad ABEM 2016 ; 12:112-115. , pois trabalham na perspectiva de formar um docente desde os primeiros anos de sua formação profissional, reduzindo o “acaso” da carreira docente.

Também “por acaso” muitos professores ingressaram no campo da educação médica 2121. Hu WCY , Thistlethwaite JE , Weller J , Gallego G , Monteith J , McColl GJ . ‘It was serendipity’: a qualitative study of academic careers in medical education . Med Educ 2015 ; 49 ( 11 ): 1124 - 1136 . . Uma enquete internacional mostrou que, entre os profissionais que atuam na educação médica, a média de experiência clínica é de 20 anos, e a de educação, 13 anos. Além disso, poucos tiveram formação específica em educação (13% de mestrado, 7% de doutorado) 2222. Huwendiek S , Mennin S , Dern P , Ben-David MF , van der Vleuten C , Tönshoff B , Nikendei C . Expertise, needs and challenges of medical educators: results of an international web survey . Med Teach 2010 ; 32 ( 11 ): 912 - 918 . . Um reflexo desse acaso pode se ver na produção científica da educação médica: há um delay de cerca de oito anos entre o início da produção científica em geral e o início da produção científica em educação médica, particularmente 2323. Hamamoto Filho PT , Caramori JT . Perfil dos principais autores da Revista Brasileira de Educação Médica entre 2006 e 2015: perspectivas para um novo futuro? Rev Bras Educ Méd 2017 ; 41 ( 3 ): 442 - 448 . .

Assim, se entre aqueles que se dedicam à educação médica os conhecimentos teóricos e empíricos da educação médica estão aquém dos conhecimentos de sua expertise clínica, é necessário colocar na agenda o desenvolvimento docente em educação médica.

Novamente, há necessidade de instituir estratégias para incorporar princípios da educação médica no dia a dia do professor em diversos níveis, desde o planejamento até a avaliação dos processos de ensino, avançando para que atividades educativas possam se transformar em projetos de intervenção educacional. É preciso repensar a condução em outros cenários, como reuniões de colegiado ou consultas de apoio pedagógico. É importante combinar essas ações com estratégias que resultem em mudança das ações no ambiente de ensino, fortalecimento do trabalho em equipe, transformação de práticas, e que evoluam como atividade institucionalizada, promovendo com isso a apropriação do saber científico e constituindo uma responsabilidade da instituição.

O “CAFÉ COM EDUCAÇÃO MÉDICA” DA FACULDADE DE MEDICINA DE BOTUCATU

Em 2016, o Núcleo de Apoio Pedagógico (NAP) da Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp foi reestruturado e criou-se a Frente de Pesquisa no Ensino em Saúde. Essa frente de ação tem como objetivo desenvolver a produção científica sobre ensino e, para isso, trabalha em parceria com as outras frentes do NAP com o intuito de transformar suas atividades cotidianas em produção científica – o que ocorre por meio da reflexão teórica sobre educação em saúde, da elaboração de projetos de pesquisa, do acompanhamento da execução dos projetos e da busca por fomento.

Considerando o embasamento teórico como etapa indispensável do planejamento científico, a Frente de Pesquisa no Ensino em Saúde estimula que as atividades desempenhadas rotineiramente pelo NAP – avaliação do estudante, avaliação institucional, desenvolvimento docente, estratégias de educação à distância, ensino na comunidade – e os próprios projetos de pesquisa, naturalmente, sejam acompanhados por reflexão com teoria.

Para isso, foi instituído o “café com educação médica” (Figura 1) – reunião matinal quinzenal, em datas preestabelecidas e com horário fixo (das 7h às 8h15), para discussão de temas relacionados às atividades desenvolvidas pelo NAP e à educação médica.

FIGURA 1
Logomarca do “café com educação médica” da Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp

A programação ocorreu de modo flexível, e de acordo com as necessidades indicou-se o subsídio teórico. Assim, as reuniões ocorreram na forma de clube de revista, seminário, clipping de eventos científicos de participação recente ou apresentação de projetos de pesquisa em andamento.

Nesse período, entre outros temas, foram abordados métodos de pesquisa quantitativos e qualitativos em educação médica, pesquisa-ação, avaliação do estudante de Medicina, avaliação de programa, métodos de análise de resultados do teste de progresso, tecnologias digitais inovadoras para o ensino, psicometria (teoria clássica dos testes e teoria de resposta ao item), taxonomia de Bloom para objetivos educacionais no planejamento curricular e na avaliação, e uso do método de Angoff para estabelecimento de critérios de avaliação. A Figura 2 apresenta uma “nuvem de palavras” que identifica os temas abordados, com destaque para aqueles mais repetidamente discutidos.

FIGURA 2
Nuvem de palavras com os temas discutidos no “café com educação médica” da Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp

Com relação à audiência do café com educação médica, cerca de 20 profissionais, de diferentes áreas, já participaram das reuniões, entre professores, médicos assistentes da instituição, servidores técnico-administrativos e estudantes de Medicina. O cenário se completa com o café coado, o chá, o pão de queijo e o bolo, que cada participante oferece sem pactuação prévia.

Atualmente, as atividades do café são organizadas pelo coordenador da Frente de Pesquisa no Ensino em Saúde do NAP. Cabe a ele estabelecer os temas a serem discutidos nos encontros – levando em conta, naturalmente, as sugestões de todos os participantes e as demandas de aprofundamento teórico do próprio NAP – e sugerir os artigos para leitura e reflexão. Frequentemente, algumas referências citadas por um artigo são elencadas como os artigos dos encontros seguintes. Há um rodízio para apresentação dos artigos, e os responsáveis disponibilizam aos participantes do café o link para acesso à íntegra do artigo, um resumo do texto e o material de apresentação em repositório online e ambiente virtual de aprendizagem.

As sessões têm data preestabelecida e são divulgadas pelo gerenciador de eventos da escola e por redes sociais. Considerando todo o universo de professores e preceptores envolvidos com o curso de graduação em Medicina da escola, a taxa de adesão é baixa, mas, se considerarmos aqueles envolvidos com a liderança dos processos de mudança curricular da escola, as taxas de adesão e assiduidade são altas. A participação espontânea de estudantes também tem sido observada.

Um entrave para o desenvolvimento da atividade, portanto, tem sido a percepção de que apenas os professores já envolvidos com a educação médica participam do café. É necessário que a atividade seja atrativa para um espectro maior de participantes. Para ampliar a adesão do corpo docente, planeja-se a entrega de convites a cada docente com um material de sensibilização para a participação. Este é um entrave comum a várias atividades da educação médica em diversas escolas, e a superação deste desafio é um importante ponto de pauta da educação médica brasileira.

Por que a iniciativa deu certo?

A exemplo do que se preconiza para o sucesso de clubes de revista da área médica em geral 2424. Deenadalayan Y , Grimmer-Somers K , Prior M , Kumar S . How to run an effective journal club: a systematic review . J Eval Clin Pract . 2008 ; 14 ( 5 ): 898 - 911 . , as reuniões têm ocorrido com periodicidade regular, os objetivos de curto e longo prazo são claros para os participantes, o horário da reunião é exclusivo (os participantes não têm outras atividades acadêmicas nesse período), os materiais apresentados são disponibilizados para todos os participantes e armazenados, o ambiente é livre de formalidades acadêmicas, os participantes criam um ambiente acolhedor aos novos integrantes, inclusive estudantes, e os temas discutidos têm relação direta com as atividades desenvolvidas pelos participantes e o momento vivido pela instituição.

Segundo Rubem Alves 2525. Alves R. Conversas sobre educação. Campinas: Versus, 2011 . 123p. , o saber só é absorvido quando se retoma o prazer de aprender por meio do fascínio das coisas do mundo que nos cerca. “É inútil obrigar a inteligência a aprender mil coisas que não estão ligadas aos sonhos. A inteligência esquece logo”.

DISCUSSÃO

Clubes de revista são tradicionais na formação médica, especialmente durante a residência médica. Credita-se a Sir William Osler a organização de um dos primeiros clubes de revista, em 1875, na McGill University, com equivalentes um pouco anteriores na Europa 2626. Linzer M . The journal club and medical education: over one hundred years of unrecorded history . Postgrad Med J 1987 ; 63 ( 740 ): 475 - 478 . .

Entretanto, clubes de revista dedicados à educação médica são mais recentes, como seu próprio campo. Em 1999, Centeno e colaboradores 2727. Centeno AM , Blanco A , Arce M . Journal club devoted to educational issues . Acad Med 1999 ; 74 ( 5 ): 464 . descreveram o uso da estratégia como maneira de suplantar um hiato entre as necessidades apontadas por educadores e as necessidades educacionais sentidas pelos professores clínicos numa faculdade de Medicina argentina. Em 2011, Pollart e Caelleigh 2828. Pollart SM , Caelleigh AS . Changing conversations, changing culture: a medical education journal club . Med Educ 2011 ; 45 ( 11 ): 1134 . , na sessão de really good stuff da Medical Education, relataram o clube de revista de educação médica da Universidade de Virginia (EUA), cuja criação foi motivada pela mudança curricular da instituição. Os autores não avaliaram os resultados da participação nesse clube de revista, porém notaram que as práticas pedagógicas dos participantes foram transformadas. Mais recentemente, Sánchez-Mendiola e colaboradores 2929. Sánchez-Mendiola M , Morales-Castillo D , Torruco-García U , Varela-Ruiz M . Eight years’ experience with medical education journal club in Mexico: a quasi-experimental one-group study . BMC Med Educ 2015 ; 15 :222. descreveram uma experiência de oito anos com clube de revista dedicado à educação médica e avaliaram a percepção dos participantes, que reportaram melhora na habilidade de avaliar criticamente a literatura do campo e em seus comportamentos profissionais. Resultados similares têm sido descritos em outros países 3030. McLeod P , Steinert Y , Boudreau D , Snell L , Wiseman J . Twelve tips for conducting a medical education journal club . Med Teach 2010 ; 32 ( 5 ): 368 - 370 .,3131. Khan SA , Soliman MM . Medical education journal club: two years’ experience at King Saud University . Pak J Med Sci . 2017; 33 ( 5 ): 1284 - 1287 . .

Assim, o conjunto de publicações sobre o tema aponta necessidades de qualificação docente em aspectos teóricos e práticos da educação médica como motivadores para a criação de clubes de revista voltados à educação. Nossa experiência não foi diferente. A escola encontra-se num momento de reestruturação curricular, e as atividades desenvolvidas pelo NAP buscam contemplar as demandas do novo currículo. Além disso, o cenário nacional da educação médica é inquietante com relação a múltiplas ferramentas de avaliação do ensino médico, como teste de progresso, avaliação nacional seriada do estudante de Medicina, exame nacional de desempenho, exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, sistema de acreditação das escolas médicas. Para discutir novas ferramentas de ensino e de avaliação, é fundamental a apropriação de embasamento teórico – o que dificilmente se consegue nas reuniões de colegiado e com a sobrecarga de atividades acadêmicas e assistenciais. Portanto, reservar um momento exclusivo para o desenvolvimento docente em educação médica foi oportuno e auspicioso.

Não podemos afirmar que não ocorram iniciativas semelhantes em outras escolas médicas do País, haja vista a premência do aprofundamento teórico da educação médica, contemplada, inclusive, com programas de pós-graduação em ensino em saúde 33. Troncon LEA , Bollela VR , Borges MC , Rodrigues MLV . A formação e o desenvolvimento docente para os cursos das profissões da saúde: muito mais que o domínio de conteúdos . Medicina (Ribeirão Preto) 2014 ; 47 ( 3 ): 245 -248.,3232. Manfroi WC , Machado CLB , Dorneles MA , Ribeiro EC , Bordin R . Estratégias para a implementação de um projeto de pós-graduação em Educação e Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul . Rev Bras Educ Méd 2008 ; 32 ( 1 ): 127 - 32 .,3333. Vilela RQB , Batista NA . Mestrado Profissional em Ensino na Saúde no Brasil: avanços e desafios a partir de políticas indutoras . Rev Bras Pos-Grad 2015 ; 12 ( 28 ):307-31. . Porém, não há, até o momento, relatos formais da existência de clubes de revista para educação médica no Brasil.

Considerando os relatos de transformação da prática docente motivados por iniciativas semelhantes e observando como nossa experiência tem sido oportuna, encorajamos as escolas médicas brasileiras a compartilharem também seus clubes de revista em educação médica e os resultados com eles obtidos.

Para conduzi-los, McLeod e colaboradores 3030. McLeod P , Steinert Y , Boudreau D , Snell L , Wiseman J . Twelve tips for conducting a medical education journal club . Med Teach 2010 ; 32 ( 5 ): 368 - 370 . sugerem 12 passos: considerar o valor que essas reuniões podem ter para sua escola; definir seus objetivos; estabelecer a frequência com que ocorrerão e planejar atividades regulares; recrutar um largo espectro de participantes que representem áreas estratégicas para transformação da escola; variar o líder de cada reunião; articular os critérios para seleção de temas; desenvolver diretrizes para conduzir a discussão; considerar um número ideal de participantes; decidir quantos artigos poderão ser discutidos em cada reunião; disseminar os resultados do clube; lembrar que cada reunião precisa de um fechamento encadeado de ideias; e avaliar continuamente a atividade 3030. McLeod P , Steinert Y , Boudreau D , Snell L , Wiseman J . Twelve tips for conducting a medical education journal club . Med Teach 2010 ; 32 ( 5 ): 368 - 370 . (Quadro 1).

QUADRO 1
Passos para criação e funcionamento de um clube de revista de educação médica (adaptado de McLeod et al. 3030. McLeod P , Steinert Y , Boudreau D , Snell L , Wiseman J . Twelve tips for conducting a medical education journal club . Med Teach 2010 ; 32 ( 5 ): 368 - 370 . )

Introduzimos em nossa experiência outro passo útil: a partir do reconhecimento de que as práticas docentes podem ser influenciadas em ambientes informais 3434. Jonasson M . Ethnographical mapping of thick places – teaching and learning practices in teacher training schools . Ethnography and Education 2017 ; ahead of print. , foi útil acrescentar informalidade ao clube de revista com um café da manhã, por exemplo. Trata-se da adaptação do conceito sueco de fika , que transforma o simples momento do café numa atividade especial e de intimidade e cumplicidade entre seus participantes 3535. Brones A, Kindvall J. Fika: the art of Swedish coffee break, with recipes for pastries, and other treats. Penguin Random House Company. New York: 2015 . .

Desafios para o “café com educação médica”

Com pouco mais de um ano de atividades, o grupo de participantes está altamente motivado a mantê-las. Contudo, alguns aspectos merecerão atenção, como aumentar o número e a assiduidade, tornar a participação dos estudantes mais constante (trata-se de estimular o surgimento de lideranças da educação médica desde o início de sua formação profissional) e, finalmente, como objetivo da Frente de Pesquisa, a partir da capacitação teórica dos professores em educação médica, transformar suas atividades cotidianas em objetos de investigação científica. Para isto, vislumbra-se a possibilidade de aliar ao “café” um “laboratório de redação”, com o intuito de provocar e qualificar a habilidade de redação de comunicações científicas na própria educação médica.

CONCLUSÕES

Relatamos a criação e o andamento de uma estratégia de desenvolvimento docente no campo da educação médica. O “café com educação médica” tem oferecido a seus participantes um aprofundamento da reflexão teórica sobre princípios da educação de adultos, de modo a subsidiá-los para a análise crítica dos desafios do ensino em saúde contemporâneo e para mudanças em sua prática docente. A iniciativa tem se cristalizado como estratégia de desenvolvimento docente. A educação médica adentrou o “papo do cafezinho”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    4 Maio 2018
  • Aceito
    16 Maio 2018
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