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A Análise de Trajetórias Assistenciais como Metodologia de Integração Ensino-Serviço na Saúde

The Analysis of Critical Pathways as a Tool for Integrating Teaching and Service in Health

RESUMO

A integração ensino-serviço é considerada pelo Ministério da Saúde (MS) uma importante estratégia para a formação de profissionais que atendam aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Este artigo descreve um relato de experiência acerca da promoção de integração entre estudantes de Medicina e uma equipe Estratégia Saúde da Família (ESF). A partir das Visitas Domiciliares (VD) às famílias acompanhadas pelos estudantes, elaborou-se o desenho de trajetórias assistenciais que posteriormente foram discutidas com os profissionais da ESF. As trajetórias evidenciaram o agravo de doenças crônicas, o mix público-privado na utilização dos serviços de saúde e a busca de atendimento apenas quando surgem os sintomas. A equipe de saúde confirmou as dificuldades relatadas pelos usuários em relação ao atendimento especializado, ao acesso a procedimentos cirúrgicos e à realização de alguns exames. Por outro lado, os profissionais também relataram cuidados que não apareceram nas trajetórias informadas pelo usuário, como a realização de consultas médicas na ESF e atendimento realizado pela equipe de enfermagem. Observou-se que muitos usuários percebem a atenção primária (AP) como uma extensão do atendimento emergencial, não compreendendo as atribuições desse nível de atenção. Esta situação, somada à dificuldade da equipe na realização da promoção em saúde e de VD, contribui para a frustração dos trabalhadores da ESF. Esta análise permitiu aos estudantes identificar tanto as dificuldades do usuário no acesso à saúde como as da equipe para promover a integralidade do cuidado. Além disso, verificou-se certo distanciamento entre o preconizado pelas políticas públicas e os processos de trabalho, apesar dos esforços dos trabalhadores para atender às necessidades dos usuários, evidenciando também as falhas na gestão e na rede de atenção à saúde. Constatou-se a importância desta metodologia para a formação interprofissional em saúde, visto que promove a análise de situações encontradas no cotidiano de uma equipe de saúde.

–Trajetórias Clínicas; –Educação Médica; –Equipe Interdisciplinar de Saúde; –Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

The integration of teaching and service is considered by Ministry of Health and Education as an important strategy for training professionals, according to the principles and guidelines of the Unified Health System (Sistema Único de Saúde – SUS). This article reports on an experience of integration between medical students and a Family Health Strategy (FHS) team, carried out based on the analysis and discussion of users’ clinical pathways. The clinical pathways were designed based on Home Visits (HV) to families who had been followed up by the students. These clinical pathways were then discussed with the professionals of the FHS. The pathways evidenced a worsening of chronic diseases, the use of a mixture of public and private health services, and the search for care only when symptoms appear. The health team confirmed the difficulties reported by the users in relation to specialized care, access to surgical procedures, and the performance of some diagnostic tests. On the other hand, the professionals also reported care that is not known to the users, such as obtaining medical consultations in the FHS and the care given by the nursing team. It was observed that many users perceive Primary Care (PC) as an extension of Emergency Care, and do not understand level-of-care assignments. This situation, together with the difficulty of the team in promoting health and home visits, contributes to the frustration of the FHS workers. This analysis enabled the students to identify the difficulties of users in accessing health, and the difficulties of the FHS team in promoting comprehensiveness of healthcare. In addition, there was a certain distance between public policies and work processes, despite the health workers’ efforts to meet the needs of users, also showing failures in health care management and network. The importance of this method for inter-professional training in health was apparent, as it promotes an analysis of situations encountered in the daily life of the health team.

–Clinical Pathways; –Medical Education; –Patient Care Team; –Primary Health Care

INTRODUÇÃO

A integração ensino-serviço é considerada pelos ministérios da Saúde (MS) e da Educação (MEC) uma importante estratégia para a formação de profissionais que atendam aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com Albuquerque et al.11. Albuquerque VS, Rezende CH, Sampaio MX, Dias OV, Lugarinho RM. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Revista brasileira de educação médica. 2008; 32(3): 356-362., define-se como um trabalho coletivo, pactuado e integrado de discentes e docentes com trabalhadores que compõem as equipes dos serviços de saúde, para que seja promovida qualidade de atenção à saúde individual e coletiva, além de uma formação interprofissional e o desenvolvimento e satisfação dos trabalhadores dos serviços11. Albuquerque VS, Rezende CH, Sampaio MX, Dias OV, Lugarinho RM. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Revista brasileira de educação médica. 2008; 32(3): 356-362.. Enquanto o docente contribui na identificação de problemas da assistência e propõe estratégias de superação, o profissional da assistência fornece informações sobre a realidade em que atua22. De Farias Brehmer LC, Ramos FRS. Experiências de integração ensino-serviço no processo de formação profissional em saúde: revisão integrativa. Revista Eletrônica de Enfermagem. 2014;16(1): 228-37..

O uso de novas formas de ensino da Medicina e a melhor integração do estudante com a atenção primária e seu funcionamento em si, bem como os questionamentos e possíveis resoluções mostram-se possíveis mediante o uso de técnicas inovadoras, como as Metodologias Ativas (MA). Este modelo de aprendizagem baseia-se na premissa de que o saber médico deve ser aproximado da prática assistencial e pedagógica, o que requer reflexões contínuas acerca de suas ações e planejamento embasado na realidade33. Carvalho VLS, Cletino VO, Pinho LMO. Educação em saúde nas páginas da REBEn no período de 1995 a 2005. RevBrasEnferm. 2008;61(2): 243-8..

As MA estimulam o ensino-aprendizagem como um processo crítico-reflexivo, do qual o educando participa como o principal agente responsável por seu aprendizado. Este método, portanto, propõe situações-problema que promovem uma aproximação reflexiva do estudante com a realidade, fomentando reflexões acerca do problema a ser enfrentado; disponibilizando recursos para a pesquisa de problemas e soluções; e identificando e organizando soluções hipotéticas mais adequadas à situação e sua aplicação44. Sobral FR, Campos CJG. Educação em saúde nas páginas da REBEn no período de 1995 a 2005. Utilização de metodologia ativa no ensino e assistência de enfermagem na produção nacional: revisão integrativa. Rev. esc. enferm. USP. 2012;46(1): 208-218.. Nesse contexto, a MA permite o intercâmbio entre a universidade, o serviço e a comunidade, uma vez que possibilita a intervenção sobre a realidade a partir da análise55. Feuerwerker LCM. Gestão dos processos de mudança na graduação em Medicina. In Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC (org.) Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec, 2004, 17-39.. Além disso, esse método pode incentivar o desenvolvimento de habilidades que permitem a autoaprendizagem dirigida e continuada66. Lobo Vianna Cabral AL, Martinez-Hemáez A, Gurgel Andrade EI, Leal Cherchiglia M. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. 2011;16(11)..

Bordenave apresenta o processo ensino-aprendizagem utilizando o método do arco criado por Charles Maguerez. Este modelo é constituído pelos seguintes pontos principais: observação da realidade, pontos-chave, teorização, hipóteses de solução e aplicação à realidade. A primeira etapa é a observação, em que os estudantes identificam os problemas da realidade social. Na segunda parte, identificam-se os pontos-chave; na terceira fase, conhecida como teorização, os estudantes buscam conhecimentos científicos e informações para identificar e entender as manifestações empíricas e os princípios teóricos dos problemas. Após, formulam-se hipóteses de solução para o problema encontrado. E, por fim, a etapa de aplicação à realidade, na qual o estudante coloca em prática as soluções mais viáveis do estudo44. Sobral FR, Campos CJG. Educação em saúde nas páginas da REBEn no período de 1995 a 2005. Utilização de metodologia ativa no ensino e assistência de enfermagem na produção nacional: revisão integrativa. Rev. esc. enferm. USP. 2012;46(1): 208-218..

Na experiência relatada por este artigo, empregou-se a MA, por meio da qual os estudantes do curso de Medicina acompanharam, desde o início da sua formação, uma família de um bairro da cidade de Lajeado (RS). Foram realizadas visitas domiciliares (VD) nas quais se observou a realidade social em que vive o grupo familiar e as situações de saúde de cada um de seus componentes, identificando, assim, os principais pontos positivos e deficitários da trajetória assistencial dessa família inserida no SUS. A trajetória assistencial compreende os caminhos percorridos por pessoas em busca de cuidados terapêuticos e não necessariamente coincidem com esquemas ou fluxos predeterminados, sendo constituída por todos os movimentos desencadeados por indivíduos ou grupos na preservação ou recuperação da saúde, incluindo diferentes recursos – desde cuidados caseiros e práticas religiosas até os dispositivos biomédicos66. Lobo Vianna Cabral AL, Martinez-Hemáez A, Gurgel Andrade EI, Leal Cherchiglia M. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. 2011;16(11)..

Este artigo tem por objetivo descrever e analisar uma experiência de integração ensino-serviço desenvolvida entre estudantes do quinto semestre de Medicina da Universidade do Vale do Taquari e uma equipe de ESF do município de Lajeado (RS).

METODOLOGIA

Trata-se de um relato de experiência de abordagem crítico-reflexiva acerca de integração ensino-serviço por meio da discussão de trajetórias assistenciais entre estudantes de Medicina e uma equipe de ESF. As trajetórias foram descritas durante as aulas práticas no território da ESF, por meio de VD.

Após explanação feita pelos autores do trabalho, o desenho da trajetória foi analisado e discutido com a equipe da ESF (enfermeira, técnica de enfermagem, médica e agentes comunitários de saúde (ACS)), com a participação da docente do módulo de Saúde e Sociedade V (responsável pela aplicação da MA) e todo o grupo de estudantes do quinto semestre da Faculdade de Medicina, durante aula prática na ESF. O grupo analisou a trajetória com o objetivo de avaliar a rede de atenção à saúde e a integralidade do cuidado, propondo ações e mudanças nos processos de trabalho.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Realizou-se VD a uma família acompanhada há cinco semestres pelos estudantes de Medicina, buscando aprofundar o conhecimento acerca da trajetória assistencial de um dos membros do domicílio. Descreveu-se o percurso assistencial de uma mulher de 73 anos, branca, portadora de diabetes melittus tipo II e hipertensão arterial, história prévia de varizes em membros inferiores e aguardando artroplastia do referido joelho há sete anos.

A análise da trajetória assistencial foi dividida em dois momentos, para melhor compreensão. No primeiro, a usuária relatou o percurso para realização de uma cirurgia de varizes há 35 anos (Figura 1). Já a segunda parte da trajetória ilustra outra cirurgia de varizes, realizada recentemente (Figura 2).

FIGURA 1
Primeiro momento da trajetória assistencial

FIGURA 2
Segundo momento da trajetória assistencial

A usuária da ESF e seu familiar relataram pontos positivos e negativos na sua assistência. Como positivos, destacaram a boa comunicação com os ACS e a estrutura hospitalar na qual foi realizado o procedimento cirúrgico mais recente. Além desses, apontam o bom humor da equipe que os recebeu no hospital, aspecto que contribuiu para aliviar a tensão pré- e pós-operatória. “Nem parece que é pelo SUS. Os quartos, TV, ar-condicionado... Particular e SUS é tudo igual” (usuária).

Os pontos negativos mencionados foram a necessidade de orientação quanto à documentação necessária aos agendamentos na Secretaria de Saúde, falta de comunicação entre os setores da Secretaria de Saúde e longo período de espera para a realização de consultas ou procedimentos. Falhas operacionais também foram apontadas, como a inexistência do nome da usuária no sistema utilizado para autorizar a cirurgia e uma autorização de consulta com médico de especialidade diferente daquela apresentada na sua requisição (neste caso, fora agendada uma consulta com otorrinolaringologista em vez do cirurgião vascular que realizaria a consulta pós-operatória). “Eles mandam uma carta para verificar se o paciente ainda precisa do exame”, “mais de um ano para ecografia” (acompanhante da usuária).

Diante do que foi observado, constata-se que, mesmo com avanços, o SUS ainda não consegue cumprir plenamente o princípio da integralidade, visto que a usuária teve de buscar atendimento privado para as consultas com especialistas, assim como para realizar seus exames a fim de ter atendidas suas demandas assistenciais. Isto contraria claramente o Art. 7º da Lei nº 8.080, que trata da integralidade da assistência como conjunto harmonioso e contínuo de ações e serviços demandados a cada caso em todos os níveis de atenção77. Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990.. Dessa maneira, o tempo de espera tanto para as consultas como para a realização de exames e procedimentos torna-se inviável ao manejo da doença, pois sua demora pode vir a agravar as condições de saúde do usuário.

Em relação à Atenção Primária à Saúde, a boa relação da população com os ACS e com a ESF de referência mostrou-se claramente indispensável à resolutividade dos problemas apresentados pelos usuários, como ocorreu na trajetória descrita. Este vínculo é que torna nítidos os benefícios retratados pela usuária.

DISCUSSÃO DAS TRAJETÓRIAS ASSISTENCIAIS COM A EQUIPE DE SAÚDE

A equipe de saúde confirmou as dificuldades relatadas pelos usuários em relação ao acesso a procedimentos cirúrgicos e à realização de exames de alta complexidade. Por outro lado, relatou a prestação de cuidados assistenciais que não apareceram na fala dos usuários. Verificou-se dificuldade da equipe na realização da promoção em saúde e de VD. Segundo o MS99. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. As Cartas da Promoção da Saúde. Brasília, DF:2002., esta situação vai de encontro à ampliação da resolutividade na situação de saúde das pessoas e coletividades proposta pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)1010. Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.446/GM de 11 de Novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Brasília, DF: 2014., gerando distanciamento da equipe em relação à realidade observada na comunidade.

Conceito não tão recente, a promoção da saúde, segundo a Carta de Ottawa1111. Carta de Ottawa. Primeira Conferência Internacional sobre promoção da saúde; novembro de 1986; Ottawa; Ca. In: Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. As Cartas da Promoção da Saúde. Brasília, DF:2002; p.19., é o nome dado ao processo de capacitação da comunidade para que esta atue na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, compreendendo, ainda, maior participação no controle deste processo. Para atingir esse resultado, no entanto, os indivíduos devem ter a capacidade de agir sobre o processo saúde-doença, modificando favoravelmente o meio em que vivem99. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Projeto Promoção da Saúde. As Cartas da Promoção da Saúde. Brasília, DF:2002..

Em relação à organização da APS, o MS afirma que a base de atuação das equipes é a Unidade Básica de Saúde. Porém, atividades como as VD são muito importantes para o monitoramento da situação de saúde das famílias. Elas devem ser realizadas de forma programada ou voltadas ao atendimento de demandas espontâneas e contar com os ACS para a identificação das necessidades dos usuários1212. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Caderno de atenção domiciliar. Brasília: 2012..

Mesmo assim, na análise feita pelos profissionais que participaram da discussão, não se percebe nas atividades de promoção da saúde a valorização dos usuários quanto às dinâmicas empregadas, bem como dos próprios profissionais da ESF, visto que poucos grupos de saúde organizados pela equipe conseguem a adesão da comunidade. Além disso, foram relatadas situações de violência contra os profissionais no bairro.

A desvalorização da APS pode estar associada, conforme Raupp et al.1313. Raupp LM et al. Doenças crônicas e trajetórias assistenciais: avaliação do sistema de saúde de pequenos municípios. Physis. Rio de Janeiro:jun 2015;25(2): 615-634., a uma concepção equivocada do usuário, segundo a qual esta seria uma atenção simplificada e de baixo custo, efetivada por meio de serviços simples e poucos equipamentos. Uma visão simplista de uma medicina que, na realidade, é imprescindível ao funcionamento da rede de saúde.

Não se pode deixar de perceber que, por outro lado, a desvalorização pode estar associada a uma percepção equivocada da equipe com relação às demandas da população, o que, de certo modo, traz à tona um vínculo equipe-usuário enfraquecido, um descontentamento atribuído ao serviço prestado ou uma agressividade desmedida que deve ser trabalhada em consultas individuais ou grupos de apoio.

Complementarmente, foram identificadas dificuldades de acesso aos serviços de saúde no discurso dos profissionais. Estes salientaram que muitos usuários buscam o atendimento apenas quando surgem os sintomas das doenças crônicas, pois utilizam a APS da mesma forma que o pronto atendimento, não compreendendo as atribuições desse nível de atenção. Em relação ao perfil de quem busca a rede de saúde, Raupp et al.1313. Raupp LM et al. Doenças crônicas e trajetórias assistenciais: avaliação do sistema de saúde de pequenos municípios. Physis. Rio de Janeiro:jun 2015;25(2): 615-634. apontam os usuários que não frequentam rotineiramente a APS ou que a procuram apenas para consultas ou procedimentos eventuais como sendo os que buscam tardiamente a assistência, ou seja, apenas em casos agudos, mesmo antes de terem conhecimento de suas doenças crônicas.

A discussão das trajetórias assistenciais com a equipe de saúde permitiu aos estudantes identificar tanto as dificuldades do usuário no acesso à saúde, como os esforços da equipe de AP para garantir a integralidade do cuidado. Verificou-se também certo distanciamento entre o preconizado pelas políticas públicas e os processos de trabalho, apesar da tentativa desses profissionais de atender às necessidades dos usuários.

A PNAB preconiza um conjunto de ações de saúde no âmbito individual e coletivo que, entre outras coisas, abarca a promoção e a proteção da saúde, tendo por objetivo proporcionar uma atenção integral que deve ser desenvolvida por meio da execução de práticas de cuidado e gestão que demonstrem trabalho interprofissional. Desse modo, a equipe, considerando a dinâmica existente no território, assume responsabilidade sanitária pela população adstrita à ESF, garantindo que toda demanda seja acolhida e manejada da melhor maneira possível1414. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Brasília:2017..

De acordo com as atribuições referentes às equipes da ESF e preconizadas por esse modelo assistencial, as atividades deverão ser desenvolvidas de forma dinâmica, com avaliação constante por meio do acompanhamento dos indicadores de saúde específicos a cada área de atuação. Assim, as equipes devem estar preparadas para conhecer a realidade das famílias pelas quais são responsáveis, dando ênfase às suas características sociais, demográficas e epidemiológicas de maneira a identificar os problemas de saúde para que seja prestada uma assistência integral, com ênfase nas ações de promoção à saúde1010. Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.446/GM de 11 de Novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Brasília, DF: 2014..

Observou-se que os pontos relatados pela equipe de saúde corroboram os cinco problemas teórico-práticos apontados por Cecílio: a quimera da atenção básica em saúde; o “usuário-fabricado” e o “usuário-fabricador”; a disjunção entre o tempo dos gestores, o tempo da equipe de saúde e o tempo dos usuários; os múltiplos sistemas que regulam o acesso e o consumo de serviços de saúde; e o sentimento de estranhamento dos gestores com o espaço micropolítico na gestão em saúde1515. Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos “mais do mesmo”. Saúde e Soc. Jun 2012;21(2): 280-289..

Nesse sentido, identificou-se na fala dos trabalhadores uma série de fatores que contribuem para a frustração da equipe de saúde. Sinalizada pela enfermeira, está a discrepância entre a teoria apresentada durante a graduação e a realidade profissional vivenciada na prática. Essa constatação tem sua gênese no distanciamento ensino-serviço ofertado pelas instituições responsáveis pela formação técnica dos estudantes da área da saúde.

Observou-se que o desejo dos trabalhadores de promover um cuidado integral ainda compreende desafios, incluindo disponibilidade de recursos financeiros, infraestrutura e aspectos culturais da população. Esta situação foi classificada por Cecílio1515. Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos “mais do mesmo”. Saúde e Soc. Jun 2012;21(2): 280-289. como a quimera da AB, o sonho distante de uma ampla rede de serviços, próxima dos usuários, de acesso universal, resolutiva, produtora de um cuidado integral, promovedora de cidadania e consciência sanitária.

A segunda questão, que relaciona a tensão entre o usuário-fabricado e o usuário fabricador1515. Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos “mais do mesmo”. Saúde e Soc. Jun 2012;21(2): 280-289., diz respeito à população, que busca os serviços da ESF como se estes fossem uma extensão do atendimento emergencial, esperando que a equipe atenda às suas necessidades imediatamente. Assim, verifica-se que, ao ignorarem os fluxos estabelecidos pelo sistema de saúde, os usuários dessa localidade não se sujeitam às normas estabelecidas pelos gestores, confundindo os serviços cabíveis a cada nível de atenção.

Além disso, notou-se a presença do dilema da externalidade/internalidade da produção do cuidado em saúde na fala da profissional médica, que revelou dificuldades originadas pela forma como a agenda é organizada. Identifica-se, portanto, o terceiro problema teórico-prático apontado por Cecílio, que é a disjunção entre o tempo do usuário, o tempo do gestor e o tempo da equipe de saúde quando se trata do acesso e do consumo de serviços de saúde1515. Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos “mais do mesmo”. Saúde e Soc. Jun 2012;21(2): 280-289..

Em outros relatos, constatou-se a frustração da equipe de saúde, como na fala da médica responsável pela ESF que apontou a necessidade de dedicar mais tempo ao usuário durante os atendimentos a fim de ofertar uma atenção integral. Verifica-se que a equipe se encontra saturada, trabalhando para atender a uma demanda crescente exigida pelos usuários. Em contrapartida, há um distanciamento do usuário no fazer saúde, não ocorrendo o protagonismo deste no SUS, corroborando o quarto problema teórico-prático apontado por Cecilio1515. Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos “mais do mesmo”. Saúde e Soc. Jun 2012;21(2): 280-289..

A discussão das trajetórias revelou fluxos extremamente burocráticos que dificultam o atendimento das necessidades do usuário em um tempo que impeça o agravo de sua doença. Nesse sentido, observou-se o resultado do quinto problema teórico-prático: os múltiplos regimes de regulação do acesso e consumo de serviços de saúde ou funcionamento do SUS real como uma produção social1515. Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos “mais do mesmo”. Saúde e Soc. Jun 2012;21(2): 280-289.. A regulação do acesso, embora necessária, por vezes interfere na autonomia dos profissionais e usuários, e dificulta a resolutividade.

Na tentativa de adequar as necessidades apontadas ao tempo do usuário, as trajetórias relatadas acabaram sendo marcadas pelo mix público-privado. As interconexões entre o sistema suplementar, privado e público são comuns em muitos itinerários terapêuticos, conforme demonstrado por Conill1616. Conill EL. O mix público-privado na utilização de serviços de saúde: um estudo dos itinerários terapêuticos de beneficiários do segmento de saúde suplementar brasileiro. CiêncSaude Colet. 2008;13(5): 1501-10.. Na trajetória apresentada neste artigo, no primeiro momento, a usuária utilizou o sistema suplementar para a identificação do problema; no segundo momento, o sistema público foi a porta de entrada e o meio para a resolutividade mediante cirurgia, porém o setor privado mostrou-se necessário à realização de exames em tempo hábil.

O MS1010. Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.446/GM de 11 de Novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Brasília, DF: 2014. esclarece que a unidade de Saúde da Família deve ser a porta de entrada do sistema local de saúde. Portanto, a mudança no modelo assistencial tradicional carece de integração entre os níveis de atenção induzida e reordenada pela ESF, que os articula por meio de serviços existentes no município ou região. Dessa maneira, a ESF é um dos componentes de uma política de complementaridade, não devendo agir de forma isolada do sistema local, mas provocando uma transformação interna ao próprio modelo para que as ações e serviços de saúde venham a ser reorganizados de forma a romper com a dicotomia entre as ações de saúde pública e a atenção médica privada.

A aproximação entre o ensino e o serviço vai ao encontro do resultado demonstrado por Vendruscolo et al.1717. Vendruscolo C, et al. Integração ensino-serviço e sua interface no contexto da reorientação da formação na saúde. Interface (Botucatu). Dez 2016;20(59): 1015-1025., visto que provocou uma reflexão sobre as práticas de atenção à saúde, suscitando o desejo de transformá-las por meio de possibilidades de “fazer diferente”, mediante a inserção do acadêmico no mundo da prática e do profissional no mundo do ensino1717. Vendruscolo C, et al. Integração ensino-serviço e sua interface no contexto da reorientação da formação na saúde. Interface (Botucatu). Dez 2016;20(59): 1015-1025..

A análise da trajetória assistencial permitiu aos estudantes conhecer a burocracia existente para realização dos procedimentos solicitados pelos médicos assistentes. Tal fato levou os estudantes a inferir que a consequência do formato burocrático e despersonalizado de atenção à saúde é sujeitar a população a um prolongado tempo de espera. Assim, a prática demonstrou a importância de um processo de formação que vá além da garantia da competência técnica do estudante, contemplando uma competência social e política para a prestação do cuidado no SUS88. Rocha FAA, Barreto ICHC, Moreira AEMM. Colaboração interprofissional: estudo de caso entre gestores, docentes e profissionais de saúde da família. Interface (Botucatu). jun 2016; 20(57):415-426.. Em relação aos trabalhadores da ESF, o processo de construção das trajetórias com os usuários e discussão com a equipe de saúde pode mostrar-se muito valioso, já que provoca o debate para que a equipe obtenha maior apreciação de seu papel em todo o sistema de cuidados, buscando melhorias no atendimento do paciente1818. Mould G, Bowers J, Ghattas M. The evolution of the pathway and its role in improving patient care. Qual SafHealtCare. 2010;19(5)..

A articulação entre trajetórias assistenciais e linhas do cuidado não se dará de forma instantânea, mas na medida em que os princípios ético-políticos forem ativamente incorporados, promovendo encontros entre indivíduos – usuários dos serviços, profissionais de saúde e gestores. No entanto, para que linhas de cuidado não se reduzam a meros fluxos assistenciais e técnicos, fundamentados em protocolos clínicos, e para que os itinerários não sejam meros termômetros para guiar previamente as linhas do cuidado na atenção a patologias, a análise deve fazer parte das práticas de saúde e da construção de projetos terapêuticos1919. Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. CiêncSaude Colet. Rio de Janeiro: mar 2016;21(3): 843-851..

CONCLUSÕES

Neste relato, buscou-se assinalar os pontos de reflexão gerados por meio da análise da trajetória assistencial de uma usuária do SUS, em contraponto à percepção da equipe da ESF. Ressalte-se que o trabalho não tem a intenção de esgotar a discussão a respeito de questões referentes à assistência à saúde, como os modos de gestão e articulação dos processos assistenciais e as trajetórias deles decorrentes, tampouco de estabelecer respostas definitivas a respeito do assunto.

A estratégia de levantar informações não disponíveis pelos mecanismos de avaliação tradicionais, utilizando o estudo de trajetórias assistenciais, revelou-se de grande valia. Essa metodologia permitiu o registro de detalhes, nuances de escolhas e decisões do cotidiano dos indivíduos envolvidos que são desconhecidas ou omitidas pelas estatísticas usuais e que poderiam ser debatidas com prioridade pelas equipes de saúde e gestores.

No decorrer do processo analítico dessas trajetórias, percebeu-se que a sinergia entre usuário e equipe tem sido fator precípuo para a estruturação de um cuidado mais humano. De outro modo, observou-se que essa ligação, facilitadora nos limites de abrangência da ESF, ao se deparar com a burocracia do sistema público de saúde, torna-se insuficiente para transpor trâmites obsoletos.

O levantamento de trajetórias assistenciais, cujas informações, sob distintos pontos de vista, foram analisadas em debate proporcionado pela integração ensino-serviço, possibilitou vislumbrar a importância dessa ferramenta na formação de profissionais para o SUS. Uma contribuição que atende a diferentes aspectos da integralidade e contribui para a qualidade do serviço no atendimento ao usuário.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2018
  • Aceito
    11 Jun 2018
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