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Avaliação da Reforma Curricular de um Curso de Medicina na Perspectiva dos Docentes

RESUMO

Em 2006, o curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FCMS da PUC-SP) reestruturou inteiramente seu currículo e o projeto pedagógico, e passou a utilizar métodos ativos de ensino-aprendizagem, centrados na Aprendizagem Baseada em Problemas. É comum haver certa resistência de parte dos docentes em relação às mudanças em função das possíveis consequências para a sua prática diária. Entretanto, a participação do docente e seu comprometimento diante de propostas de reformas são fundamentais para que elas de fato ocorram e se renovem continuamente. Neste sentido, este estudo teve como objetivo avaliar a visão do docente do curso de Medicina da FCMS da PUC-SP sobre as mudanças desencadeadas pela reforma curricular e o impacto destas mudanças sobre seu próprio trabalho, sobre a qualidade do curso e do médico formado e as sugestões para aperfeiçoar o currículo, dentro da busca contínua por um profissional bem formado e adequado às necessidades da população e do sistema de saúde. Os dados foram obtidos por meio de um questionário semiestruturado, pré-testado, enviado aos docentes em atividade no curso. A segunda parte do questionário, objeto deste artigo, deveria ser respondida pelos docentes que já estivessem em atividade antes da reforma curricular. Dos 178 docentes, 102 responderam ao questionário, e, destes, 73 (71,6%) já exerciam atividades no curso antes da reforma curricular e responderam à segunda parte do questionário. De maneira geral, os docentes têm uma visão positiva sobre as mudanças desencadeadas pela reforma, com ênfase no papel ativo do aluno no processo de ensino-aprendizagem e no crescimento proporcionado ao professor, gerado pelo modelo pedagógico escolhido. Também consideram que houve melhora na qualidade do curso e do médico formado. Embora bem avaliada, a mudança para um modelo interdisciplinar e as deficiências da estrutura física e dos equipamentos disponibilizados para o curso dificultam o trabalho do professor. A dificuldade na avaliação do aluno e a falta de um plano de capacitação permanente do docente aparecem como os principais problemas a serem enfrentados na busca do aperfeiçoamento do curso.

Educação Médica; Currículo; Aprendizagem Baseada em Problemas; Docentes

ABSTRACT

In 2006, the medical course of the Faculty of Medical Sciences and Health of PUC-SP (FCMS of PUC-SP) completely restructured its curriculum and pedagogical project and began to use active teaching/learning methods, centered on problem-based learning. There is often some resistance on the part of the teachers in relation to the changes, depending on the consequences for their daily practice. However, the participation of the teachers and their commitment to reform proposals are fundamental for them to occur and to be continually renewed. In this sense, this study had as objective to evaluate the teachers’ view of the FCMS of the PUC-SP medical course on the changes triggered by the curricular reform; the impact of these changes on their own work, on the quality of the course and on the graduate doctor and, the suggestions to improve the curriculum, as part of the ongoing goal to produce well-trained professionals adapted to the needs of the population and to the health care system. The data were obtained through a pre-tested semi-structured questionnaire, sent to the teachers working on the medical course. The second part of the questionnaire, object of this article, was to be answered only by the teachers who were already working before the curricular reform. Of the 178 teachers, 102 answered the questionnaire and, of these, 73 (71.6%) had already worked on the course before the curricular reform and answered the second part of the questionnaire. In general, the teachers have a positive view of the changes triggered by the reform, with emphasis on the active role of the student in the teaching/learning process and the growth provided to the teacher, induced by the pedagogical model chosen. They also consider that there has been an improvement in the quality of the course and the graduate doctor. Although well evaluated, the change to an interdisciplinary model and the deficiencies of the physical structure and equipment made available for the course complicate the work of the teacher. The difficulty in evaluating the student and the lack of a permanent teacher development plan appear as the main problems to be faced in the search for improving the course.

Medical Education; Curriculum; Problem-Based Learning; Faculty

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, as mais diversas instituições comprometidas com o ensino médico têm discutido as mudanças necessárias para adequar o modelo de ensino ao novo perfil do aluno e à formação do profissional de saúde que atenda às necessidades atuais da população e do sistema de saúde, como orientado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCN)11 Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES no 4, de 7/11/2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2001.,22 Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES no 3, de 20/06/2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2014.. Entre as mudanças, têm sido muito discutidas e vêm acontecendo em muitas escolas médicas aquelas relacionadas ao modelo pedagógico, com a transição do modelo tradicional do ensino, centrado no professor, baseado no Relatório Flexner33 Flexner A. Medical Education in the United States and Canada Bulletin Number Four (The Flexner Report). Carnegie Bull. 1910. p. 364., com os ciclos básico e clínico, predominantemente hospitalares, para um modelo estruturado com base no uso de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, centrado no aluno e também voltado à atenção primária à saúde11 Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES no 4, de 7/11/2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2001.,22 Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CES no 3, de 20/06/2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2014.. Entre as metodologias ativas, a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) tem sido utilizada e comparada ao modelo tradicional de ensino médico44 Gomes R, Brino RF, Aquilante AG, Avó LRS. Aprendizagem Baseada em Problemas na formação médica e o currículo tradicional de Medicina: uma revisão bibliográfica. Rev. bras. educ med. 2009; 33(3):433-40.

5 Gomes AP, Rego S. Transformação da educação médica: é possível formar um novo médico a partir de mudanças no método de ensino-aprendizagem? Rev. bras. educ med. 2011; 35(4):557-66.

6 Leon LB, Onofrio FQ. Aprendizagem Baseada em Problemas na Graduação Médica – Uma Revisão da Literatura Atual. Rev. bras. educ med. 2015; 39 (4):614-619.

7 Teofilo TJS, Santos NLP, Baduy RS. Apostas de mudança na educação médica: trajetórias de uma escola de medicina. Interface. 2017; 21(60):177-188.

8 Qin Y, Wang Y, Floden RE. The Effect of Problem-Based Learning on Improvement of the Medical Educational Environment: A Systematic Review and Meta-Analysis. Med PrincPract. 2016;25(6):525-532.

9 Neville AJ. Problem-Based Learning and Medical Education Forty Years On. Med PrincPract 2009;18(1):1-9.
-1010 Schauber SK, Hecht M, Nouns ZM, Kuhlmey A, Dettmer S. The role of environmental and individual characteristics in the development of student achievement: a comparison between a traditional and a problem-based-learning curriculum. Adv Health SciEducTheoryPract. 2015;20(4):1033-52..

Nesse contexto, em 2006, o curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FCMS da PUC-SP), campus Sorocaba, que desde a década de 1970 seguia o modelo tradicional de ensino médico, reformulou inteiramente seu currículo e seu projeto pedagógico, passando a utilizar estratégias ativas de ensino-aprendizagem, centradas na ABP. O curso organizou-se em eixos, que comportam módulos temáticos horizontais e verticais, cujos objetivos de aprendizagem se complementam. Um módulo não corresponde a uma disciplina, como nos currículos tradicionais, mas inclui conteúdos de várias áreas, favorecendo a interdisciplinaridade1111 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde. Projeto pedagógico do curso de medicina. Sorocaba: PUC-SP/FCMS; 2014..

As mudanças na metodologia exigiram adequações não só na concepção do ensino, mas também na estrutura física, instalações, equipamentos e na estrutura administrativa, na qual a coordenação e os colegiados do curso passaram a exercer um papel regulador na condução das atividades curriculares e no processo de mudanças. Houve também ampliação do espaço de prática, que exigiu a articulação entre a universidade e o serviço municipal de saúde, com a inserção dos alunos na atenção primária à saúde desde o primeiro ano do curso, aproximando os alunos da realidade da população em seus aspectos mais amplos1111 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde. Projeto pedagógico do curso de medicina. Sorocaba: PUC-SP/FCMS; 2014.,1212 Anjos RMP, Gianini RJ, Minari FC, Luca AHS, Rodrigues MP. “Vivendo o SUS” uma experiência prática no cenário da atenção básica. Rev. bras. educ med. 2010; 34(1):172-83..

São muitas as dificuldades enfrentadas para a implantação e manutenção de um projeto pedagógico como proposto pelo curso em questão. Entre elas, é comum certa resistência dos docentes em relação às mudanças em função das possíveis consequências para a prática diária. Contudo, a participação do docente e seu posicionamento diante das reformas propostas são fundamentais para que elas de fato ocorram e se renovem continuamente em busca dos ajustes necessários77 Teofilo TJS, Santos NLP, Baduy RS. Apostas de mudança na educação médica: trajetórias de uma escola de medicina. Interface. 2017; 21(60):177-188.,1313 Almeida EG, Batista NA. Desempenho docente no contexto PBL: essência para aprendizagem e formação médica. Rev. bras. educ med. 2013; 37(2):192-201.

14 Alves CRL, Belisário SA, Lemos JMC, Abreu DMX, D’Ávila LS, Goulart LMHF. Mudanças curriculares: principais dificuldades na Implementação do PROMED. Rev. bras. educ med. 2013; 37(2):157-166.
-1515 Machado MMBC, Sampaio CA, Macedo SM, Figueiredo MFS, Rodrigues Neto JF, Lopes IG, et al. Reflexões e significados sobre competências docentes no ensino médico. Avaliação. 2017; 22(1):85-104..

Diante disso, este estudo teve como objetivo avaliar a visão do docente do curso de Medicina da FCMS da PUC-SP sobre as mudanças desencadeadas pela reforma curricular de 2006, o impacto destas mudanças sobre seu próprio trabalho, sobre a qualidade do curso e do médico formado e as sugestões para aperfeiçoar o currículo, dentro da busca contínua por um profissional bem formado e adequado às necessidades da população e do sistema de saúde.

MATERIAL E MÉTODOS

Este estudo fez parte de uma tese de doutorado, uma colaboração entre a pós-graduação em Educação Superior da Universidade de Sorocaba (Uniso) e o curso de Medicina da FCMS da PUC-SP, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (CAAE: 20027213.8.0000.5500) e autorizado pela coordenação do curso e direção da FCMS da PUC-SP.

Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva, transversal, com abordagem quantitativa e qualitativa. Um questionário, organizado em duas partes, pré-testado, foi enviado aos 178 docentes em atividade no curso de Medicina, para ser respondido online, através do sistema Google Drive, por aqueles que desejassem participar da pesquisa. A segunda parte do questionário, objeto deste artigo, deveria ser respondida pelos docentes que já estivessem em atividade antes da reforma curricular. Continha 11 questões fechadas, em escala Likert, bipolar, com cinco opções de respostas e, no final, trazia uma questão aberta, “Quais suas considerações sobre a reforma curricular em prática desde 2006?”, na tentativa de obter outras informações, além daquelas presentes no questionário fechado ou identificar possíveis explicações para as respostas encontradas nas perguntas fechadas. Dos 178 docentes, 102 responderam ao questionário, e, destes, 73 (71,6%) exerciam atividades no curso antes da reforma curricular e responderam à segunda parte do questionário.

Foi feita uma análise descritiva dos resultados das questões fechadas do questionário. A consistência interna das respostas em escala Likert foi avaliada utilizando-se o coeficiente de correlação (r), que relaciona a resposta de cada questão às demais respostas do mesmo participante, criando um valor “r” que pode variar de zero a um, sendo considerado consistente quando superior a 0,151616 Moraes SG. Desenvolvimento e avaliação de uma metodologia para o ensino de embriologia humana [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2005.. Todas as respostas tiveram r > 0,70, garantindo sua consistência interna. Para avaliar a confiabilidade do conjunto do questionário em escala Likert, foi aplicado o Alfa de Cronbach, que resultou no valor 0,92, mostrando sua alta confiabilidade1717 Bland JM, Altman DG. Cronbach’s alpha (Statistics notes). BMJ 1997:314:572..

As respostas para a questão aberta do questionário foram agrupadas por semelhança temática, buscando identificar o posicionamento geral dos docentes em relação à reforma curricular e suas considerações, sugestões e críticas sobre as mudanças operadas, numa tentativa de identificar fatores positivos e negativos em relação à reforma1818 Gomes R. Análise e interpretação de dados em pesquisa qualitativa. In: Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Minayo M, editor. 30th ed. Petrópolis: Vozes; 2011. p. 79-107..

Após a análise dos dados obtidos no questionário, foram feitas entrevistas aprofundadas com seis docentes, sendo critérios de escolha ser docente do curso de Medicina, ter carga horária semanal igual ou superior a 20 horas semanais e ter iniciado a atividade docente antes da reforma curricular. Procurou-se garantir que os docentes entrevistados tivessem atividades nos diversos anos do curso. Dois entrevistados tinham atividades apenas nos primeiros três anos do curso, um nos últimos anos do curso e três ao longo de todo o curso. O número de entrevistados foi determinado com base na análise das entrevistas, encerradas quando se observou que seus conteúdos estavam saturados. Foram feitas leituras e releituras do material transcrito, aprovado pelos entrevistados, para compreender os conteúdos mais significativos e categorizá-los1919 Bogdan R, Biklen S. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1991.,2020 Taquette SR, Minayo MCS. Ensino-Aprendizagem da Metodologia de Pesquisa Qualitativa em Medicina. Rev. bras. educ med. 2015;39(1):60-7..

As questões abordadas nas entrevistas emergiram da análise das respostas obtidas no questionário, incluindo a visão geral do docente sobre a reforma curricular, o impacto da reforma sobre o trabalho docente, sobre a qualidade do curso, a qualidade do médico formado, as dificuldades na avaliação do estudante e a visão dos entrevistados sobre a capacitação contínua dos docentes. A leitura das entrevistas permitiu criar novas categorias de análise: a visão dos docentes sobre a evolução do curso e as sugestões para correções de rumo. Os recortes das entrevistas serão apresentados nos resultados, com a identificação dos docentes entrevistados realizada por números de (E1) a (E6).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A estruturação de uma reforma curricular em qualquer instituição de ensino não é tarefa simples, e os desafios aparecem nas mudanças de conceitos que a norteiam e na prática diária. Neste caso, tratou-se de passar do modelo tradicional de ensino médico para a educação problematizadora, fundamentada na relação dialógica entre educador e educando e na construção de conhecimentos, tomando por base a vivência de experiências significativas prévias1111 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde. Projeto pedagógico do curso de medicina. Sorocaba: PUC-SP/FCMS; 2014..

Visão geral dos docentes

Quando questionados objetivamente sobre o quanto gostaram das mudanças nas atividades de ensino desencadeadas pela reforma curricular do curso de Medicina da FCMS-PUC-SP, 42,5% dos docentes responderam ter gostado, e 34,2%, gostado muito, totalizando 76,7% de avaliação positiva. Apenas 9,5% responderam “não gostei” e não houve resposta “não gostei nem um pouco”. Embora satisfação não seja o único componente para motivação, certamente contribui muito para que os docentes tenham uma visão positiva em relação às mudanças desencadeadas pela reforma, o que pode ser considerado um fator que favorece o processo.

Nas considerações à questão aberta, no final do questionário, 59 dos 72 docentes se manifestaram a favor da reforma e do modelo pedagógico proposto.

Ela era necessária e urgente.

A reforma curricular promoveu mudanças importantes (para melhor) na metodologia de ensino-aprendizagem.

O PBL [ABP] mudou para melhor a formação médica dos nossos alunos.

O mesmo se verificou na análise das entrevistas, em que se confirma a visão positiva sobre a reforma e o modelo de ensino-aprendizagem proposto.

Eu vejo como uma coisa muito positiva essa reforma que aconteceu aqui na faculdade. (E1)

Eu avalio de forma positiva. [...] Eu acho que era hora de mudar mesmo, eu acho que tem que ser esse método. (E6)

Como identificado por Almeida et al.2121 Almeida MTC, Maia FA, Batista NA. Gestão nas escolas médicas e sustentabilidade dos programas de desenvolvimento docente. Avaliação. 2013;18(2):299-310. na análise da percepção dos docentes em relação à gestão em escolas médicas que usam metodologias ativas, é muito importante que os gestores estimulem e mantenham esse ambiente afirmativo em relação às propostas de mudanças, para que se transforme em um ciclo de renovação contínua do curso.

O trabalho do professor

Como se observa na Tabela 1, quando perguntado sobre a influência da reforma curricular sobre o seu trabalho, 52,1% dos docentes responderam “melhorou” e 6,8% responderam “melhorou muito”. Em relação às estratégias de ensino, 47,9% dos participantes responderam que a mudança para metodologias ativas melhorou o trabalho como professor e 15,1%, que melhorou muito. Para as duas perguntas, 13,7% referiram ter havido piora do trabalho e nenhum docente referiu ter piorado muito. Quando questionados se a mudança no formato do curso – antes organizado em disciplinas, para um modelo com eixos temáticos e módulos interdisciplinares – teve influência sobre o seu trabalho como professor, 41,1% referiram “melhorou”, 12,3% “melhorou muito” e 15,1% que piorou. Para 31,5% dos docentes, “nem melhorou/nem piorou”.

TABELA 1
Opinião quanto às mudanças no trabalho docente de 73 professores que vivenciaram a reforma curricular e a mudança do projeto pedagógico do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP, Sorocaba, SP

Em estudo realizado por Teófilo et al.77 Teofilo TJS, Santos NLP, Baduy RS. Apostas de mudança na educação médica: trajetórias de uma escola de medicina. Interface. 2017; 21(60):177-188., a organização de um curso de Medicina por módulos também aparece como dificuldade para a consolidação da reforma curricular proposta pela Instituição pesquisada. Tais dificuldades aparecem nas relações de poder entre as disciplinas, áreas de conhecimento e instâncias gestoras. Se, por um lado, o modelo curricular baseado em eixos temáticos e módulos pode ser mais instigante, criativo e desafiador para os docentes, por outro, os obriga a sair do conforto da estrutura de disciplinas, onde existia familiaridade com os temas e a natureza do trabalho. O modelo interdisciplinar pressupõe a inter-relação entre os docentes das diversas áreas, buscando as interfaces dos conhecimentos específicos e a desejável troca e complementaridade de saberes, necessitando estabelecer negociações interpessoais, com grande investimento de tempo, como demonstrado por Batista e Almeida1313 Almeida EG, Batista NA. Desempenho docente no contexto PBL: essência para aprendizagem e formação médica. Rev. bras. educ med. 2013; 37(2):192-201. na análise das concepções dos docentes sobre o PBL. Tudo isso é trabalhoso e exige mais do docente, e, para que não se tornem fatores desmotivadores, precisa haver reconhecimento e recompensa77 Teofilo TJS, Santos NLP, Baduy RS. Apostas de mudança na educação médica: trajetórias de uma escola de medicina. Interface. 2017; 21(60):177-188.,1313 Almeida EG, Batista NA. Desempenho docente no contexto PBL: essência para aprendizagem e formação médica. Rev. bras. educ med. 2013; 37(2):192-201..

As observações feitas pelos docentes na questão aberta do questionário reforçam os dados obtidos nas questões fechadas. Aparecem indícios de que as mudanças ocorreram pela necessidade e motivação para rever a maneira de ensinar.

A reforma curricular trouxe nova disposição para parte dos professores.

O impacto de um currículo com metodologias ativas de aprendizagem na prática docente aparece na necessidade de capacitação do docente em novas práticas de ensino, do exercício de trabalho interdisciplinar e na habilitação para avaliações formativas.

Porém, aparecem também as dificuldades enfrentadas na prática diária, relacionadas ao modelo que exige integração.

Considero a necessidade de [...] haver maior integração entre as atividades, mas evoluímos muito desde o início do atual currículo.

Dificultou o desenvolvimento do meu trabalho, uma vez que comprometeu a carga horária e a distribuição na matriz curricular.

As entrevistas indicam um novo caminho que pode estar se abrindo para o trabalho docente e mostram que a nova proposta teve impacto em suas práticas, com mudança virtuosa no processo de ensino-aprendizagem na área médica, favorecendo o desenvolvimento docente, com ganho em aprendizado e mudança de comportamento.

Eu acho que tornou o meu trabalho mais difícil. [...] o currículo hoje exige muito mais compromisso do professor, mas tem o aspecto positivo do professor também crescer. [...] nesses últimos anos [...] eu tive um grande crescimento como educador. (E1)

Dá muito mais trabalho! No outro modelo eu dava sempre as mesmas aulas. Agora não. [...], mas é bom, me anima! Eu me sinto mais atualizado! É gratificante! (E5).

Segundo a avaliação de Kirkpatrick2222 Kirkpatrick DL. Evaluating Training Programs: The Four Levels: Easyread Edition, 2009., habitualmente utilizada para processos de capacitação educacionais, poderíamos classificar essas respostas como sendo do nível 1 (reação positiva de satisfação), nível 2 (aprendizado) e nível 3 (mudança de comportamento no ambiente de trabalho).

Os dados apontam um aspecto de grande relevância do processo de mudança que afeta as práticas docentes, ou seja, anunciam o fim da docência tradicional, que se alimenta de uma matriz disciplinar em que o saber está centralizado no conhecimento do professor.

Lampert2323 Lampert JR. Dois séculos de escolas médicas no Brasil e a avaliação do ensino médico no panorama atual e perspectivas. GazMed Bahia. 2008; 78(1):31-7. nos oferece uma comparação entre o ensino tradicional e as novas práticas educacionais integradoras baseadas nas diretrizes curriculares, valorizando as vantagens das últimas nos aspectos do trabalho e desenvolvimento docente, das práticas pedagógicas e seus cenários. A atividade docente tradicional pode parecer um caminho seguro e confortável, porém essa aparente segurança pode se transmutar num comportamento burocrático em detrimento da pesquisa e da criatividade, inerentes ao exercício docente, como sugerido por Costa et al.2424 Costa NMSC, Cardoso CGLV, Costa DC. Concepções sobre o bom professor de medicina. Rev Bras Educ Med. 2012; 36(4):499-505. em pesquisa sobre o bom professor de medicina.

Participação do aluno no processo de ensino

O efeito positivo da reforma sobre o envolvimento do aluno no processo de ensino esteve presente entre as manifestações feitas pelos docentes no final do questionário, citado 15 vezes.

O aspecto que considero mais importante é que os alunos são mais ativos, tomam a iniciativa em suas atividades, fazem mais questionamentos ao professor e são mais reflexivos.

Nas entrevistas, a participação ativa dos alunos aparece como um aspecto fundamental para a avaliação positiva das mudanças desencadeadas pela reforma curricular.

O principal impacto que eu senti foi o interesse do aluno [...]. Isso eu não tive dúvida [...] que foi positivo. Vem um aluno mais interessado, debatendo o tema [...] Ter um aluno mais presente, mais proativo. (E2)

Outro professor assim se expressa:

[...] Um aspecto positivo, sem nenhuma dúvida, é o autoaprendizado. [...] Melhorou muito! (E3)

Essa mudança na atitude do aluno é a premissa na qual se fundamenta o uso das metodologias ativas, isto é, o aprendizado centralizado no aluno e o desenvolvimento da capacidade de aprender a aprender, como sustentado por Santos2525 Santos SR. O aprendizado baseado em problemas (Problem-basedlearning – PBL). Rev. bras. educ med. 1994; 18(3):121-4., já nos primórdios da implementação da ABP no Brasil. Estudos nacionais44 Gomes R, Brino RF, Aquilante AG, Avó LRS. Aprendizagem Baseada em Problemas na formação médica e o currículo tradicional de Medicina: uma revisão bibliográfica. Rev. bras. educ med. 2009; 33(3):433-40.,66 Leon LB, Onofrio FQ. Aprendizagem Baseada em Problemas na Graduação Médica – Uma Revisão da Literatura Atual. Rev. bras. educ med. 2015; 39 (4):614-619.e internacionais88 Qin Y, Wang Y, Floden RE. The Effect of Problem-Based Learning on Improvement of the Medical Educational Environment: A Systematic Review and Meta-Analysis. Med PrincPract. 2016;25(6):525-532.,99 Neville AJ. Problem-Based Learning and Medical Education Forty Years On. Med PrincPract 2009;18(1):1-9.,1010 Schauber SK, Hecht M, Nouns ZM, Kuhlmey A, Dettmer S. The role of environmental and individual characteristics in the development of student achievement: a comparison between a traditional and a problem-based-learning curriculum. Adv Health SciEducTheoryPract. 2015;20(4):1033-52. mostram que a busca por conhecimento, a iniciativa e a capacidade de lidar com críticas e limites pessoais estão entre os dados positivos no uso da APB como metodologia de ensino.

Essa proatividade do aluno, segundo os docentes, auxilia a integração entre as diferentes áreas do conhecimento que compõem o currículo do curso de Medicina, constituindo, nesse caso, um ponto de chegada e influenciando de maneira positiva seu comportamento diante da atividade médica.

Eu vejo os alunos iniciando as habilidades desde o primeiro ano, se envolvendo mais quando chegam à parte profissional do curso. Eles têm uma linguagem médica mais adequada, uma postura, uma comunicação diferente. Eles se envolvem mais com os casos clínicos e vêm buscar nas disciplinas básicas explicações para o que encontram no estudo dos casos clínicos. (E4)

Na percepção dos professores, a reforma curricular atingiu os objetivos de formar um estudante com mais autonomia e capacidade de reflexão, (Kirkpatrick nível 3), constituindo um forte indicador nos processos formativos de construção do conhecimento2222 Kirkpatrick DL. Evaluating Training Programs: The Four Levels: Easyread Edition, 2009..

O curso e o médico formado

Mas o que os professores pensam sobre a qualidade do curso? Sem dúvida alguma, esta é uma questão central, razão de ser da reforma do curso de Medicina. Não obstante as dúvidas manifestadas, ainda assim se pode dizer que predomina um olhar favorável.

As respostas à pergunta do questionário “quanto a reforma curricular mudou para melhor ou para pior a qualidade do curso?” (Tabela 2) mostram que para 72,6% dos docentes a reforma melhorou a qualidade do curso e 11% consideram que houve piora. Aqui também pode haver um efeito positivo sobre a motivação dos docentes, colaborando para que o modelo de ensino proposto tenha se consolidado não por imposição, mas pelo entrosamento contínuo entre satisfação e percepção de bons resultados.

TABELA 2
Opinião de 73 professores que vivenciaram a reforma curricular e a mudança do projeto pedagógico do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP, Sorocaba (SP) sobre as mudanças na qualidade do curso e nos profissionais formados

Quando questionados sobre o uso das metodologias ativas sobre a qualidade do médico formado (Tabela 2), 67,1% dos docentes referiram melhora, 11% apontaram piora e 21,9% não observaram mudança. O mesmo se verifica em relação à pergunta sobre o modelo interdisciplinar baseado em eixos temáticos: 65,8% dos professores responderam que melhorou a qualidade do médico formado pela instituição, 20,5% responderam que foi indiferente e 13,7% responderam que piorou.

A análise das considerações feitas pelos docentes no final do questionário sugere que, embora haja uma visão positiva sobre o processo de ensino-aprendizagem, as dificuldades relacionadas à avaliação do conhecimento do aluno e do impacto da reforma parecem gerar incerteza sobre a avaliação do profissional formado. Parece haver uma percepção de incompletude do processo de reforma.

Acho que os alunos se encontram muito mais motivados. No entanto, faltam instrumentos de avaliação que sejam realmente eficazes para avaliar o desempenho do aluno.

Não é possível avaliar o impacto da reforma curricular sobre a formação discente, pois não dispomos de instrumentos específicos.

Temos muito trabalho ainda pela frente, no sentido de melhorar o ensino médico em nossa faculdade.

Nas entrevistas, os docentes tendem a uma avaliação positiva sobre as mudanças geradas pela reforma, porém têm ressalvas. Estas parecem relacionadas à falta de dados sobre os resultados, o que dificulta a formação de um juízo consistente. Não obstante, predomina um olhar positivo sobre a qualidade do profissional formado.

Os alunos que vêm de metodologias ativas são mais desenvoltos, mais prontos e têm mais iniciativa. [Eles] têm mais potencial para serem mais autônomos ao longo da vida profissional. (E1)

Hoje, olhando criticamente, eu acho que a gente forma alunos muito bons. (E6)

Pergunta difícil, porque é baseada no achismo, o que é meio complicado. Eu diria que sim, as coisas estão diferentes. (E3)

A clareza da instituição em relação aos objetivos a alcançar é fundamental para que os docentes tenham um posicionamento mais seguro em relação às suas práticas. Isto só é possível mediante uma rigorosa avaliação do programa educacional. É preciso compartilhar esses objetivos com todos os membros da comunidade acadêmica e manter um processo de avaliação contínua das diversas etapas do processo de ensino-aprendizagem para que se possa oferecer feedback constante aos docentes e demais integrantes dessa comunidade2626 Goldie J. AMEE Education Guide no. 29: evaluating educational programmes. MedTeach 2006;28(3):210–24..

Instalações físicas e disponibilidade de equipamentos

Quanto à influência da reforma curricular sobre a qualidade das instalações físicas e a disponibilidade de equipamentos, 72,6% dos docentes consideram ter havido melhorias nas instalações físicas e 73,9% entendem que houve melhora na disponibilização de equipamentos para o curso. Entretanto, ficou claro que há docentes que esperavam mais, pois houve considerações negativas quanto à estrutura física e equipamentos na análise do questionário e nos dados obtidos nas entrevistas.

Outras ferramentas educacionais necessitam [...] ser aumentadas, como [...] as atividades de simulação.

[Eu] esperava uma melhor adequação dos recursos didáticos.

Os laboratórios são falhos [...] as UBS não comportam os estudantes.

As entrevistas evidenciam as dificuldades geradas pelas deficiências estruturais, as quais exigem maior gasto de energia do docente, mesmo para atividades cotidianas.

Eu estou cansada de sempre estar lutando para conseguir dar aula. (E2)

O relato de um docente parece resumir essa visão sobre o momento atual em termos do projeto pedagógico e da estrutura para o seu funcionamento.

O projeto pedagógico que nós temos é um projeto inovador e está dentro dos padrões internacionais [...] Mas essa defasagem da infraestrutura e da organização do corpo docente tem dificultado cumprir as metas previstas no plano pedagógico. (E4)

As adequações da estrutura física e dos equipamentos necessários à prática médica, segundo o modelo pedagógico proposto, parecem não ter conseguido seguir o ritmo da implantação do currículo, gerando dificuldades concretas no dia a dia do docente.

Nós tivemos [...] preocupação com a parte da estrutura curricular, da organização didática e pedagógica do curso [...], mas a infraestrutura e a adequação do corpo docente não foram preparadas com a mesma ênfase. (E4)

Em acordo com esses dados, uma pesquisa realizada entre as escolas médicas que tiveram apoio do Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares (Promed) para suas reformas curriculares, na qual o curso de Medicina da FCMS da PUC-SP foi incluído, mostrou que a inadequação da estrutura física, dos equipamentos e dos recursos humanos esteve presente entre as queixas dos entrevistados em oito das 19 escolas que participaram do estudo1414 Alves CRL, Belisário SA, Lemos JMC, Abreu DMX, D’Ávila LS, Goulart LMHF. Mudanças curriculares: principais dificuldades na Implementação do PROMED. Rev. bras. educ med. 2013; 37(2):157-166.,2727 Brasil. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Secretaria de Políticas de Saúde. Secretaria de Ensino Superior. Organização Pan-Americana de Saúde. Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.. Esses dados demonstram a inadequação entre a proposta de mudanças e os ajustes necessários à sua implantação, provavelmente porque estes dependiam de recursos não oferecidos pelo programa.

Manifestações contrárias à reforma

Embora as respostas às questões fechadas do questionário mostrem clara avaliação positiva, em todas há uma pequena porcentagem de docentes que considera ter havido piora dos aspectos pesquisados. Na análise das respostas à pergunta aberta, no final do questionário, os comentários que apontam insatisfação com o currículo ou com as mudanças desencadeadas pela reforma curricular abordam avaliação do estudante, capacitação docente, falta de conteúdos das áreas básicas, falta de integração entre as áreas do conhecimento, necessidade de revisão do projeto pedagógico, falta de comprometimento docente e necessidade de avaliação do curso. A Figura 1 apresenta o número absoluto de vezes em que as queixas mais frequentes aparecem nos comentários à pergunta aberta aos participantes.

FIGURA 1
Frequência absoluta com que os pontos negativos apareceram nas observações dos docentes participantes (n = 73) em respostas à questão aberta do questionário

As sugestões e críticas sobre a deficiência de integração entre as áreas do conhecimento (nove vezes) e falhas no conteúdo das áreas básicas (11 vezes) apareceram de forma bastante consistente entre os participantes que se mostram contrários à reforma, o que mostra a coerência das respostas. A implantação de uma reforma, qualquer que seja, requer que as pessoas implicadas se apropriem das novas propostas pedagógicas. É preciso reconhecer os fatores que fazem com que os conceitos disciplinares continuem presentes no discurso de parte dos docentes em atividade em um curso que busca a interdisciplinaridade em seus aspectos mais amplos. Esse reconhecimento talvez possa criar um ambiente de busca conjunta de soluções para que se chegue ao almejado por todos, aqui representado pela formação de bons médicos.

Chama a atenção a frequência com que as dificuldades nas áreas básicas foram percebidas e citadas como observações negativas sobre a reforma. Sete foram feitas por participantes que se mostraram contrários à reforma, três por docentes que se mostraram neutros e apenas uma por docente favorável à reforma. Um docente assim se expressou:

Os alunos não possuem conhecimento de anatomia e fisiologia de maneira mais ampla como no método antigo.

Embora as observações sejam relativas às antigas disciplinas básicas, são feitas por docentes que atuam em diferentes anos do curso. Ou seja, não parecem ter sido feitas pelos docentes das antigas disciplinas básicas, que poderiam estar expressando sentimentos de desvalorização do seu trabalho diante das mudanças. Um estudo realizado numa escola médica na Alemanha avaliou, por meio do teste de progresso, a aquisição de conhecimentos específicos das ciências básicas e verificou que, no ensino tradicional, pode haver superioridade nos primeiros semestres, mas no final do curso não há diferença estatística quando comparado ao ensino que utiliza o método da ABP, o que pode justificar essa percepção de parte dos docentes2828 Nouns Z, Schauber S, Witt C, Kingreen H, Schüttpelz-Brauns K. Development of knowledge in basic sciences: a comparison of two medical curricula. Med Educ 2012; 46 (12):1206-14.. Mas, aqui, essa percepção também pode representar a persistência de um conceito de segurança baseado na transmissão linear do conhecimento e na repetição de modelos aprendidos ao longo da formação médica.

As avaliações negativas sobre a capacitação docente e a avaliação do aluno

Como se observa na Figura 1, a dificuldade na avaliação do aluno foi citada 17 vezes na questão aberta do questionário. Notadamente, com certa insatisfação com o que vem ocorrendo.

Faltam instrumentos de avaliação que sejam realmente eficazes, tanto para avaliar o desempenho do aluno quanto do professor.

Acredito que a avaliação do aluno de internato mereça maior cuidado: todas as clínicas deveriam utilizar os métodos de avaliação (ex. Mini-CEX) da mesma forma.

Os relatos das entrevistas reforçaram a dificuldade quanto à avaliação do aluno, mostrando que, mesmo entre aqueles francamente favoráveis ao currículo em prática, há uma percepção das dificuldades enfrentadas na avaliação.

Nós estamos pecando na questão da avaliação [...] Nós estamos muito aquém do necessário nesse quesito da avaliação, tanto dos alunos quanto do curso [...] é uma falha do currículo. (E1)

A falta de capacitação docente foi citada 17 vezes na questão aberta do questionário (Figura 1). Neste aspecto, o posicionamento dos entrevistados é francamente negativo.

Não, de jeito nenhum! Eu vou procurar muita coisa por mim mesma. (E2)

A capacitação contínua parece não fazer parte das atividades propostas pela instituição, conforme se percebe nas afirmações.

A instituição não tem se preocupado muito com isso. Eu acho que isso está sendo feito por mérito individual e informalmente por nós [docentes]. Um ajudando o outro nas dificuldades. Mas não existe institucionalmente uma preocupação nessa linha. (E4)

Em instituições que se propõem fazer mudanças curriculares, é comum certa dificuldade dos docentes em relação à avaliação, como demonstrado por Alves et al.1414 Alves CRL, Belisário SA, Lemos JMC, Abreu DMX, D’Ávila LS, Goulart LMHF. Mudanças curriculares: principais dificuldades na Implementação do PROMED. Rev. bras. educ med. 2013; 37(2):157-166.. É preciso ter claro que os processos de aperfeiçoamento profissional são imprescindíveis para que as mudanças pretendidas tenham êxito e é importante que estejam inseridos no contexto da instituição e ocorram de maneira permanente1313 Almeida EG, Batista NA. Desempenho docente no contexto PBL: essência para aprendizagem e formação médica. Rev. bras. educ med. 2013; 37(2):192-201.,2929 Rego C, Batista SH. Desenvolvimento docente nos cursos de medicina: um campo fecundo. Rev. bras. educ med. 2012; 36 (3):317-324.,3030 Steinert Y, Mann K, Centeno A, Dolmans D, Spencer J, Gelula M, et al. A systematic review of faculty development initiatives designed to improve teaching effectiveness in medical education: BEME Guide No. 8. Med Teach. 2006; 28(6):497-526..

Os reflexos da falta de um programa de desenvolvimento docente consistente são percebidos mais especificamente na avaliação da aprendizagem do aluno, onde predomina a insegurança e a dificuldade, como exemplificado nesta manifestação:

Avaliação [...] Ah! Essa eu estou perdida faz tempo. Tenho dificuldade de avaliar o aluno. (E2)

Os saberes dos docentes médicos são construídos habitualmente com base não na formação didático-pedagógica, mas nas experiências vividas como alunos, com os pares e com a própria prática docente, como verificado por Machado et al.1515 Machado MMBC, Sampaio CA, Macedo SM, Figueiredo MFS, Rodrigues Neto JF, Lopes IG, et al. Reflexões e significados sobre competências docentes no ensino médico. Avaliação. 2017; 22(1):85-104., por meio das falas dos próprios médicos professores universitários. Neste sentido, os docentes expõem muito claramente as dificuldades enfrentadas na avaliação. Entre elas, a mais importante parece se relacionar com a dissonância entre a formação do docente e as ferramentas de avaliação do modelo pedagógico proposto, como exemplificado a seguir:

Eu acho que é difícil para o professor avaliar. Primeiro porque nós temos um problema sério entre as mudanças e a formação que a gente tem. (E5).

Entretanto, como também demonstrado por Costa et al.2424 Costa NMSC, Cardoso CGLV, Costa DC. Concepções sobre o bom professor de medicina. Rev Bras Educ Med. 2012; 36(4):499-505., os docentes percebem que há necessidade de preencher esta lacuna.

Vejo também dificuldade na realização das avaliações, tanto as formativas como as somativas. Temos muito trabalho ainda pela frente, no sentido de melhorar o ensino médico em nossa faculdade.

Uma série de fatores pode dificultar a adequação da atividade docente na área da saúde, entre eles a desvalorização da atividade de ensino, a falta de profissionalização docente, a desvalorização da formação docente do professor de medicina, a resistência às mudanças e o individualismo2121 Almeida MTC, Maia FA, Batista NA. Gestão nas escolas médicas e sustentabilidade dos programas de desenvolvimento docente. Avaliação. 2013;18(2):299-310.,2424 Costa NMSC, Cardoso CGLV, Costa DC. Concepções sobre o bom professor de medicina. Rev Bras Educ Med. 2012; 36(4):499-505..

Temos ainda resistências de professores à reforma curricular, mesmo após oito anos de implantação. Elas precisam ser superadas com capacitações contínuas.

No processo de implementação do atual modelo pedagógico, houve atenção dos seus organizadores com a capacitação do docente para a atividade de tutoria da ABP, muito diferente das práticas docentes anteriores. Esse movimento inicial parece ter criado um ambiente positivo em relação às propostas de mudança.

As capacitações iniciais e a assessoria pedagógica foram fundamentais no momento da reforma. (E1)

Entretanto, de acordo com os entrevistados, não há um plano de ação claro em relação à infraestrutura, a equipamentos e à capacitação docente. Essa dificuldade na tomada de decisões pode contribuir para a insegurança que paira entre parte dos entrevistados.

Planejar, gerenciar e motivar os docentes para as suas atividades a fim de que cheguem aos resultados esperados exige o desenvolvimento de lideranças implicadas nesse processo, com gestão participativa, maior investimento nos docentes e elaboração e aplicação de programas de capacitação contínua1515 Machado MMBC, Sampaio CA, Macedo SM, Figueiredo MFS, Rodrigues Neto JF, Lopes IG, et al. Reflexões e significados sobre competências docentes no ensino médico. Avaliação. 2017; 22(1):85-104.,2121 Almeida MTC, Maia FA, Batista NA. Gestão nas escolas médicas e sustentabilidade dos programas de desenvolvimento docente. Avaliação. 2013;18(2):299-310.,2929 Rego C, Batista SH. Desenvolvimento docente nos cursos de medicina: um campo fecundo. Rev. bras. educ med. 2012; 36 (3):317-324..

Sugestões para correções de rumo

Quando se promovem mudanças na estrutura curricular e na maneira de ensinar, a avaliação sistemática das práticas e processos é fundamental para retroalimentar as iniciativas dos gestores e fazer correções de rumo, indispensáveis para alcançar as metas desejadas. Neste sentido, as manifestações dos docentes, sejam nas respostas às questões abertas, sejam nas entrevistas, se revestem de grande importância. Os docentes manifestam francamente a necessidade de maior integração entre as diferentes áreas/atividades.

Considero a necessidade de procurar soluções para haver maior integração entre as atividades, mas evoluímos muito desde o início do atual currículo.

Análise semelhante foi feita no estudo realizado por Almeida et al.2121 Almeida MTC, Maia FA, Batista NA. Gestão nas escolas médicas e sustentabilidade dos programas de desenvolvimento docente. Avaliação. 2013;18(2):299-310., que mostra as dificuldades enfrentadas na integração exigida para a implantação de um curso de Medicina que tem a ABP como eixo curricular central. Nesse estudo, os entrevistados ressaltam o papel fundamental dos gestores que, na visão dos autores, devem exercer obrigatoriamente a função de avaliadores do processo de implementação das mudanças, corrigindo seus rumos2121 Almeida MTC, Maia FA, Batista NA. Gestão nas escolas médicas e sustentabilidade dos programas de desenvolvimento docente. Avaliação. 2013;18(2):299-310..

Os professores que viveram o currículo anterior relatam mudanças positivas na aprendizagem discente e no trabalho docente. Entretanto, aparentam certo desalento e apontam falta de estímulo, falta de objetivo e falta de entrosamento entre a entidade mantenedora e a administração acadêmica.

O que eu vejo na faculdade que me deixa chateada é que eu estou vendo deteriorar uma série de coisas, e eu estou vendo que a gente não está conseguindo achar uma saída para resolver essas questões. (E2)

Eu sinto que há um descompasso muito grande entre a [mantenedora] e a Reitoria. [...] uma falta de diálogo entre as ações da [mantenedora] e a Reitoria, envolvendo o ensino, a docência e a atividade dos professores. (E4)

Os depoimentos dos docentes apontam caminhos que permitem avançar em direção a mudanças mais efetivas que deverão resultar na elevação do padrão de ensino e da formação do profissional médico. Verifica-se, no depoimento a seguir, que o docente visualiza que o próprio projeto carrega mecanismos para guiar seu rumo, e esses mecanismos parecem não estar sendo utilizados em suas totais potencialidades, mas poderiam ser uma via para a correção dos rumos.

Nós temos algumas comissões, que são instâncias fundamentais no desenvolvimento do currículo atual. Uma delas se chama Comissão de Avaliação [...], mas ela não tem claras quais são as suas prioridades. [...]. O Núcleo Docente Estruturante é responsável pelo acompanhamento do projeto pedagógico ao longo do tempo para fazer correção de rumo e trazer modificações para aquilo que se mostra ineficiente no projeto. Houve no máximo dois encontros durante o ano letivo [...]. E tem outra comissão muito importante, a Comissão de Capacitação Docente e Pedagógica contínua [...]. Ela foi estruturada e organizada oficialmente, mas [...] a universidade não deu condições para que [...] desempenhasse sua função. (E4).

Ainda que em alguns momentos se digam desmotivados, os professores se mostram preocupados com o futuro do curso, fazem uma série de críticas e indicam possíveis correções de rumos. Esse fato merece ser valorizado e explorado pela instituição.

Os dados deste estudo não permitiram elucidar as respostas de indiferença apresentadas nas questões fechadas do questionário. Entretanto, merecem atenção dos gestores, pois podem representar uma porcentagem significativa de docentes que não se apropriaram das mudanças propostas, gerando maior esforço do grupo para manter os rumos. Outra limitação do estudo foi ter realizado a avaliação do processo educacional apenas na perspectiva do docente. Outros estudos são necessários para avaliar a visão dos alunos, particularmente dos egressos, e o desempenho dos alunos nas avaliações externas.

CONCLUSÕES

Os docentes, de maneira geral, reconhecem que a reforma curricular do curso de Medicina em questão trouxe mudanças positivas para o curso como um todo, com destaque para os estudantes, que se tornaram os protagonistas das novas situações de aprendizagem, assim como para os docentes, que estão mais estimulados com suas atividades diárias. Embora manifestem uma visão positiva em relação à qualidade do curso e do profissional formado, os docentes parecem se ressentir de evidências para opinar com segurança a respeito. Além disso, as dificuldades na avaliação do aluno evidenciam a falta de um plano de capacitação permanente do docente, que requer um esforço conjunto dos diversos setores da instituição.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2019
  • Aceito
    20 Maio 2019
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