Acessibilidade / Reportar erro

Role-Play como Estratégia Pedagógica para Problematizar as Linhas de Cuidado Integral em Saúde aos Adolescentes e Jovens

Role-Play as a Pedagogical Strategy to Problematize the Lines of Comprehensive Health Care for Adolescents and Young People

RESUMO

Diante da necessidade de integrar o debate de gênero e sexualidade à formação médica, uma unidade curricular de Saúde Coletiva de um curso de Medicina público federal propôs a metodologia da Aprendizagem Baseada em Projetos (ABPj) para essa formação. Nessa proposta pedagógica, os estudantes constroem um produto final como recurso para intervenção/aprimoramento da realidade. Dessa forma, a metodologia da Problematização, com o Arco de Maguerez, forneceu o subsídio à concretização desses produtos. Cada um desses projetos utilizou uma das políticas públicas relacionadas ao debate em torno do gênero e da sexualidade. Neste artigo, relata-se o projeto relacionado à Política Pública de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde. Na apresentação desse produto foi utilizada a metodologia do role-play, com três cenas, para intervenção/aprimoramento da realidade observada/vivida. Essa experiência também conquistou a premiação de melhor trabalho apresentado naquele ano no Congresso Brasileiro de Educação Médica, construindo nessa escola médica um espaço formal para o desenvolvimento de competências no tocante aos determinantes sociais de gênero e sexualidade, para uma prática médica integral e equânime. Este relato de experiência destaca ainda a relevância do uso de metodologias ativas, como a ABPj e role-play, na educação médica.

Educação Médica; Aprendizagem Baseada em Projetos; Role-Play; Políticas Públicas; Assistência Integral à Saúde; Adolescente

ABSTRACT

Faced with the need to integrate the gender and sexuality debate into medical training, a Public Health curricular unit from a Federal Public Medicine course proposed the Project Based Learning (PjBL) methodology as a resource for the implementation of this debate. In this pedagogical proposal, the students construct a final product as a resource for intervention/improvement of reality. Thus, the methodology of Problematization, with the Arch of Maguerez, supported the consolidation of these products. Each of these projects was based on one of the public policies that are related to the debate of gender and sexuality. In this article, we report the project related to the public policy of Comprehensive Health Care for Adolescents and Young People in Health Promotion, Protection and Recovery. The presentation of this product was made using the methodology of role-play, with three scenarios, for intervention/improvement in the observed/lived reality. This experience also won the award for best work presented that year at the Brazilian Congress of Medical Education, building a formal space for the development of gender and sexuality determined competencies in the Medical School, to ensure comprehensive and equal medical practice. Moreover, this report highlights the relevance of the use of active methodologies, such as PjBL and role-play, in medical education.

Medical Education; Project-Based Learning; Role-Play; Public Policy; Comprehensive Health Care; Adolescent

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2006, evidenciou a necessidade de integração longitudinal e transversal aos currículos dos cursos da área da saúde das discussões de gênero e sexualidade11 World Health Organization. Department of Gender. Woman and Health (GWH) Integrating gender into the curricula for health professionals. Geneva: World Health Organization, Department of Gender, Woman and Health (GWH), 2006. . Em 2014, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Medicina (DCN), em consonância com a proposta da OMS, destacaram a relevância dessa temática na formação médica22 Brasil. Resolução n.º 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais Do Curso De Graduação Em Medicina. Diário Oficial da União, 2014. .

Diante da formação e cuidado em saúde no tocante aos aspectos de gênero e sexualidade, a saúde de jovens e adolescentes mostra-se um grande desafio, visto que esse período pode ser considerado um processo complexo de emancipação, em diálogo com as esferas macrossociais, institucionais e biográficas33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010. .

Então, no sétimo período do curso de Medicina de uma instituição pública brasileira, implantou-se no currículo formal a discussão sobre gênero e sexualidade no Módulo de Saúde Coletiva. Considerou-se necessário, além de problematizar os aspectos concernentes às políticas públicas que envolvem essas temáticas, buscar estratégias que as correlacionem às atividades práticas de cuidado vivenciadas pelos discentes. Assim, seriam produzidos elementos para subsidiar a formação médica para um cuidado em saúde equânime e integral.

Tal discussão se deu por meio da Aprendizagem Baseada em Projetos (ABPj), um modelo de ensino-aprendizagem em que os estudantes são confrontados com problemas reais que considerem significativos, a fim de determinar estratégias para que eles sejam abordados44 Bender WN. Aprendizagem Baseada Em Projetos: Educação Diferenciada Para O Século XXI. Porto Alegre: Penso Editora, 2015. . Esse método estimula a geração de produtos autênticos por meio do trabalho coletivo e colaborativo. Para concretizar tal ação, a construção de Linhas de Cuidado surgiu como uma possibilidade concreta.

De acordo com Franco & Franco55 Franco CM, Franco TB. Linhas do cuidado integral: uma proposta de organização da rede de saúde [s/ n]. Disponível em: <https://dms.ufpel.edu.br/sus/files/media/Linha-cuidado-integral.pdf>. Acesso em:18 abr. 2018.
https://dms.ufpel.edu.br/sus/files/media...
, a “linha do cuidado é a imagem pensada para expressar os fluxos assistenciais seguros e garantidos ao usuário, no sentido de atender às suas necessidades de saúde” (p. 1). Estas representam possibilidades para o cuidado em saúde sem impor caminhos únicos e se fundamentam no conceito de integralidade do cuidado em saúde para (re)organizar o processo de trabalho em equipes de saúde66 Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS: Abrasco, 2009. , 77 Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerário terapêutico. Ciência & Saúde Coletiva, 2016; 21(3)843-51. .

Compreendeu-se então que a produção de Linhas de Cuidado em Saúde se articula com as DCN22 Brasil. Resolução n.º 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais Do Curso De Graduação Em Medicina. Diário Oficial da União, 2014. na ação-chave “Investigação de Problemas em Saúde Coletiva”. Assim, propor a sistematização das vivências e pesquisas realizadas pelos estudantes no componente curricular por meio de Linhas de Cuidado permite sistematizar os saberes apreendidos, compreender o itinerário terapêutico percorrido por usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), pensar o cuidado em saúde a partir da integralidade e ampliar a compreensão do impacto das políticas públicas no processo saúde-adoecimento-cuidado das pessoas.

Com a sistematização promovida pelas Linhas de Cuidado, torna-se premente sensibilizar os pares para a importância atribuída aos novos saberes que nos aproximam do cuidado em saúde integral. Nesse sentido, o role-play apresenta-se como uma estratégia possível e com grandes potencialidades nesse processo. Nessa metodologia, os estudantes são inseridos numa simulação, incorporando papéis e atuando em determinado contexto, sendo estimulados a agir como na vida real e permitindo o aprendizado pela reflexão sobre os papéis e sobre a situação abordada88 Nestel D, Tierney T. Role-play for medical students learning about communication: Guidelines for maximising benefits. BMC Medical Education, 2007; 7(3):1-9. , 99 Rabelo L, Garcia VL. Role-Play para o Desenvolvimento de Habilidades de Comunicação e Relacionais. Revista Brasileira de Educação Médica, 2015; 39(4):586-96. .

Diante disso, o presente relato de experiência, produzido por discentes e docentes, objetiva apresentar e problematizar o caminho para a construção de Linha(s) de Cuidado para diversas populações, de maneira particular em relação às questões de gênero e sexualidade de adolescentes e jovens, numa universidade federal, no primeiro semestre de 2017. Objetiva também apresentar e problematizar a utilização do role-play como recurso didático para compartilhar essas Linhas de Cuidado e sensibilizar os pares para aprimoramento do cuidado integral em saúde.

PERCURSOS METODOLÓGICOS E CONTEXTUALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

A temática do Módulo Saúde Coletiva VII do curso de Medicina em questão estava relacionada ao estudo do gênero e da sexualidade como determinantes sociais do processo saúde-adoecimento-cuidado, perpassando os aspectos individuais e da profissão médica, do trabalho em equipes de saúde, do cuidado em saúde e das Políticas Públicas de Atenção Integral à Saúde da Mulher, do Homem, dos Adolescentes e da População LGBT.

Tendo em vista a organização do processo de trabalho em grupos neste módulo, foram formadas oito equipes discentes, com a utilização do MBTI ( Myers-Briggs Type Indicator), um teste psicométrico fundamentado na teoria dos tipos psicológicos de Carl Jung1010 Durão I, Meuriño MJ. Inovação em serviços de saúde com foco no indivíduo. In: Congresso Nacional de Excelência em Saúde & III Inovarse – Responsabilidade Social Aplicada, 2016. Rio de Janeiro: FIRJAN-RJ, 2016. Disponível em: < http://www.inovarse.org/sites/default/files/T16_198.pdf>. Acesso em: 14 mai. 2019.
http://www.inovarse.org/sites/default/fi...
. Assim, o MBTI foi utilizado para a construção das equipes de trabalho, com o propósito de uma composição heterogênea, para que personalidades distintas pudessem complementar habilidades, permitindo alto desempenho na concretização de produtos1111 Rosa GFC, Rosa MH, Barros MCV, Hattori WT, Paulino DB, Raimondi GA. O MBTI na Educação Médica: uma Estratégia Potente para Aprimorar o Trabalho em Equipe. Revista Brasileira de Educação Médica, 43.4 (2019): 15-25. .

Cada equipe de discentes ficou responsável por trabalhar com uma das políticas públicas mencionadas, por meio da ABPj, tendo como fio condutor a Problematização1212 Colombo AA. A Metodologia da Problematização com o Arco de Maguerez e sua relação com os saberes de professores. Semina: Ciências Sociais e Humanas, 2007; 28(2):121-46. . É importante considerar que a ABPj é uma metodologia de ensino-aprendizagem em que os estudantes, inseridos em determinada realidade, identificam lacunas e potencialidades de aprimoramentos (questão motriz). Então, iniciam o processo de brainstorming , com o levantamento de ideias e possibilidades de solução, o que permite construir um plano de tarefas em grupo e ressignificar os conhecimentos obtidos por meio da busca de respostas na literatura científica para a confecção de um produto que aperfeiçoe os aspectos frágeis identificados na realidade44 Bender WN. Aprendizagem Baseada Em Projetos: Educação Diferenciada Para O Século XXI. Porto Alegre: Penso Editora, 2015. .

A ABPj se destaca como metodologia de ensino na medida em que busca suscitar no estudante o desenvolvimento ativo de competências com base na realidade que o cerca, o exercício do conhecimento baseado em evidências, o trabalho em equipe com constante reflexão e feedback e a apresentação dos produtos construídos com disseminação de resultados e estímulo à produção científica44 Bender WN. Aprendizagem Baseada Em Projetos: Educação Diferenciada Para O Século XXI. Porto Alegre: Penso Editora, 2015. .

Além disso, a metodologia da Problematização, sistematizada pela ABPj e com suporte do Arco de Maguerez, perpassou as seguintes etapas: observação da realidade (problema), pontos-chave de aprendizagem, teorização, hipóteses de solução, aplicação à realidade (prática)1212 Colombo AA. A Metodologia da Problematização com o Arco de Maguerez e sua relação com os saberes de professores. Semina: Ciências Sociais e Humanas, 2007; 28(2):121-46. . Dessa forma, a associação dessas metodologias potencializou o aprendizado e a produção das Linhas de Cuidado. A representação do uso do Arco de Maguerez em nossa experiência é ilustrada na Figura 1 .

FIGURA 1
Representação da problematização como estratégia para a transformação da realidade do cuidado em saúde de adolescentes e jovens no tocante aos determinantes gênero e sexualidade/;

A observação da realidade se deu no Hospital Universitário, que foi o cenário das atividades práticas no primeiro semestre letivo de 2017. Essa observação teve por objetivo (questão motriz) compreender, dentro dos recortes de cada política pública, como é a atenção à saúde de cada população, qual a compreensão dos profissionais de saúde acerca dos conceitos de gênero e sexualidade e sua importância para o cuidado integral em saúde, bem como a efetivação dos princípios presentes na política pública, entre outras questões.

Para alcançar esse objetivo, após a leitura de cada uma das políticas públicas, cada grupo construiu um roteiro semiestruturado para dialogar com os profissionais do serviço e compreender as questões citadas. Para ampliar essa análise e compreender a perspectiva dos usuários do serviço, também utilizamos a Narrativa de Adoecimento McGill1313 Leal EM, de Souza AN, de Serpa Júnior OD, de Oliveira IC, Dahl CM, Figueiredo AC, et al. McGill Entrevista Narrativa de Adoecimento - MINI: tradução e adaptação transcultural para o português. Ciência & Saúde Coletiva, 2016; 21(8):2393-402. – Mini, uma ferramenta de entrevista para a pesquisa dos sentidos e dos modos de narrar a experiência do adoecimento, para compreender a percepção de adolescentes sobre sua trajetória e cuidado em saúde oferecido no SUS.

Após observação da realidade, cada grupo procedeu às etapas seguintes (identificação de pontos-chave, teorização, levantamento de hipóteses de solução e aplicação à realidade), que foram finalizadas com um produto, construído no formato de uma Linha de Cuidado77 Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerário terapêutico. Ciência & Saúde Coletiva, 2016; 21(3)843-51. . Esta, por sua vez, deveria ser socializada com os pares em uma produção audiovisual que contemplasse o conteúdo apreendido e sistematizado na Linha de Cuidado de forma criativa e atrativa.

Destacamos neste texto o relato da nossa trajetória com a Política de Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010. e a problematização do conhecimento adquirido com nossos pares por meio do role-play 99 Rabelo L, Garcia VL. Role-Play para o Desenvolvimento de Habilidades de Comunicação e Relacionais. Revista Brasileira de Educação Médica, 2015; 39(4):586-96. , metodologia que escolhemos para apresentar a Linha de Cuidado a nossos pares. Além do mais, este relato de experiência integra um conjunto de atividades pedagógicas desenvolvidas por meio da inserção da discussão de gênero e sexualidade no currículo formal de nossa instituição descrita por Raimondi et al .1414 Raimondi GA, Paulino DB, Hattori WT, Limirio Júnior V, Lima e Silva VMO, Zaidhaft S. Ensinoaprendizagem de Gênero e Sexualidade em um Curso de Medicina no Brasil: promovendo o Cuidado Integral em Saúde e os Direitos Humanos. Rev. bras. educ. med., 2019; 43(2):130-42. .

Este relato de experiência se enquadra no item VIII do artigo primeiro da Resolução nº 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde, não necessitando de submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Primeiros encontros e reflexões

O grupo que compúnhamos ficou responsável pelas Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010. e fomos direcionados a realizar nossa observação da realidade na Enfermaria de Clínica Médica do Hospital Universitário.

O diálogo estabelecido com a profissional responsável pela Enfermaria de Clínica Médica, por meio de uma entrevista semiestruturada dirigida às nossas necessidades de aprendizagem, nos permitiu concluir que não há um setor específico no hospital para o atendimento à população de adolescentes e jovens. Além disso, existe uma limitação do cuidado em saúde para as queixas específicas apresentadas, de modo que questões de gênero e sexualidade só são abordadas caso estejam relacionadas às demandas.

Já o diálogo com a adolescente através da Mini – Narrativa de McGill1313 Leal EM, de Souza AN, de Serpa Júnior OD, de Oliveira IC, Dahl CM, Figueiredo AC, et al. McGill Entrevista Narrativa de Adoecimento - MINI: tradução e adaptação transcultural para o português. Ciência & Saúde Coletiva, 2016; 21(8):2393-402. nos permitiu compreender as fragilidades da assistência à saúde dada aos adolescentes e jovens e as dificuldades de colocar em prática a atenção integral proposta pela política pública desta população nos diferentes pontos da Rede de Atenção à Saúde.

Diante disso, identificamos um ponto-chave para a construção da nossa Linha de Cuidados, que atravessava várias fragilidades observadas na realidade: a deficiência na formação de discentes e profissionais da saúde em relação à necessidade da abordagem de gênero e sexualidade enquanto componentes da atenção integral à saúde dos adolescentes e jovens durante a anamnese, bem como as competências e habilidades de comunicação necessárias para isto.

Identificando nosso ponto-chave, desenvolvendo ideias

Com o objeto de estudo centrado na saúde integral de adolescentes e jovens e o ponto-chave identificado, partimos para o processo de teorização, tendo como referencial inicial as Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010. .

Quando nos detivemos na análise das questões de gênero e sexualidade na política, encontramos três objetivos: empoderar jovens para decisões saudáveis e responsáveis relacionadas à sexualidade e à vida reprodutiva; assegurar direitos sexuais e reprodutivos do adolescente; promover informações claras e atuais sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e Planejamento Familiar33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010. .

Após o estudo da política, nos concentramos em procurar na literatura os aspectos teórico-práticos do processo e as habilidades de comunicação necessárias à abordagem de gênero e sexualidade com adolescentes e jovens. De posse dos conhecimentos fundamentais para isto, retomamos a Linha de Cuidados e sua proposta de criação de um produto final audiovisual inédito e criativo para apresentar a teorização ao restante da turma.

Diante disso, buscamos um método de ensino-aprendizagem que, ao expor os aspectos teóricos da abordagem sobre gênero e sexualidade, também nos auxiliasse no desenvolvimento do nosso ponto-chave. Ou seja, que fosse capaz de desenvolver em nossos pares competências fundamentais para a abordagem de gênero e sexualidade que estávamos propondo, a fim de que tais aspectos teóricos fossem efetivamente incorporados em suas práticas profissionais e repercutissem no cuidado integral aos adolescentes e jovens.

A linha de cuidados e o role-play

As particularidades e complexidades do atendimento ao adolescente iniciam-se na relação médico-paciente, que, habitualmente, é perpassada por um terceiro elemento: os pais ou responsáveis legais. Cabe ao médico garantir os aspectos éticos do atendimento, assegurando o direito ao sigilo do adolescente e preservando a confidencialidade. O diálogo amistoso com os responsáveis promove maior vínculo e os encoraja a lidar com o aumento da autonomia dos adolescentes/jovens1515 Pfeffer B, Ellsworth TR, Gold MA. Interviewing Adolescents About Sexual Matters. Pediatric Clinics of North America, 2017; 64(2):291-304. .

Pfeffer et al. 1515 Pfeffer B, Ellsworth TR, Gold MA. Interviewing Adolescents About Sexual Matters. Pediatric Clinics of North America, 2017; 64(2):291-304. propõem que a obtenção da história clínica e sexual se dê seguindo alguns passos por meio do acrônimo HEEADSSS (em inglês), respectivamente: h o me environment (ambiente familiar), education (educação) e employment (ocupação), eating (hábitos alimentares) e activities ( hobbies e interesses), drug use/depression (uso de drogas e depressão), suicidality (ideações suicidas), sexuality/safety (sexualidade e segurança) e spirituality/strenghts (espiritualidade e potencialidades), o qual constitui uma ferramenta que gradualmente aumenta a intimidade dos assuntos abordados durante a consulta.

Com relação à sexualidade, nota-se a importância de priorizar a formação do vínculo e o respeito aos limites desejados pelo adolescente e jovem. Além disso, recomenda-se utilizar uma linguagem despida de julgamentos e conduzir a temática gradualmente, empoderando os adolescentes para a tomada de decisões que priorizem relações saudáveis e preparando-os para lidar com suas responsabilidades.

Pfeffer et al. 1515 Pfeffer B, Ellsworth TR, Gold MA. Interviewing Adolescents About Sexual Matters. Pediatric Clinics of North America, 2017; 64(2):291-304. também propõem que a abordagem a respeito de gênero e sexualidade deve perpassar as questões de gênero, atração, orientação, comportamentos, função e satisfação sexual. Por fim, devem-se avaliar os relacionamentos existentes e abrir para demandas específicas do adolescente. Cada tópico deve ser abordado conforme o grau de desenvolvimento da sexualidade, para adequação da profundidade e abordagem necessária.

Diante disso, é necessário aplicar tais teorias à nossa realidade. Segundo Manfredi et al .1616 Manfredi SM. Trabalho, qualificação e competência profissional: das dimensões conceituais e políticas. Educação & Sociedade, 1998; 19(64):13-49. , a qualificação trata da capacidade de mobilizar saberes em situações concretas com base em experiências prévias, agregando, assim, o “saber fazer”, que engloba dimensões práticas, técnicas e científicas, o “saber ser”, que inclui traços de personalidade e caráter que modulam comportamentos interpessoais, e o “saber agir”, que se refere à capacidade de ação, decisão e resolução de problemas diante de situações diversas e inéditas.

Para alcançar isso, encontramos o role-play como resposta ao que buscávamos. Segundo Rabelo e Garcia99 Rabelo L, Garcia VL. Role-Play para o Desenvolvimento de Habilidades de Comunicação e Relacionais. Revista Brasileira de Educação Médica, 2015; 39(4):586-96. , o role-play é uma técnica na qual discentes são convidados a atuar, de acordo com o esperado em sua situação real, em determinado contexto, interpretando papéis específicos. Ressalta-se a potencialidade dessa metodologia em conduzir estudantes na reflexão sobre o papel como futuros profissionais, sob a perspectiva do usuário, e fornecer feedback pelo papel do observador. Nesse caminho, o role-play promove o aprendizado na prática e sobre a prática ao atuar suscitando experiências e sentimentos prévios articulados para a dramatização e ao refletir retrospectivamente na forma como a dramatização se concluiu88 Nestel D, Tierney T. Role-play for medical students learning about communication: Guidelines for maximising benefits. BMC Medical Education, 2007; 7(3):1-9. .

Construímos então três cenas que representavam desafios na prática de cuidado e ilustrariam os tópicos a serem abordados durante a história de cada usuário, integrando os saberes das políticas públicas e dos determinantes sociais no cuidado a esses usuários.

Foi solicitado à turma que formasse grupos com três integrantes, que, no papel de médicos, contracenariam com os integrantes do nosso grupo na condição de adolescentes e jovens, no cenário de atendimento à saúde. A proposta pretendia apresentar aos estudantes situações que poderiam ser reais, confrontando-os com demandas de aprendizagens da prática de cuidado das políticas públicas e determinantes sociais, exigindo que os estudantes mobilizassem conhecimentos anteriores, habilidades de comunicação e de construção da relação médico-paciente para atuar diante da complexidade de tais situações e desenvolver as habilidades de resolução de problemas e capacidade de decisão.

Cada cena ocorreria no centro da sala de aula, para que todos pudessem acompanhar e refletir sobre aquela cena e, posteriormente, sugerir ações alternativas. No final, todos foram convidados a um feedback aberto para compartilhar com a turma pensamentos, sentimentos, aprendizagens e dificuldades diante das vivências, objetivando a construção e consolidação coletiva de tais conhecimentos.

Antes da execução do role-play, disponibilizamos a todos os estudantes do Módulo de Saúde Coletiva a Linha de Cuidados que produzimos, a qual sintetizava a trajetória do grupo na execução da ABPj e os aspectos teóricos da abordagem dirigida aos jovens e adolescentes. Apresentamos a seguir a construção de cada cena proposta para essa atividade e a descrição da experiência vivenciada.

Cena 1

A primeira cena objetivava trabalhar a confidencialidade na relação médico-paciente-acompanhante, bem como as abordagens de gênero, sexualidade e início da vida sexual. Rodolfo, 14 anos, estava acompanhado da mãe, extremamente preocupada com seu comportamento, pois passa muito tempo no banho e acessa sites de “conteúdo adulto”.

A mãe transitava por sentimentos como ansiedade e indignação, impedindo que a comunicação de fato se estabelecesse entre o médico e aquele cujo cuidado estava em discussão: seu filho. Rodolfo permanecia em silêncio, com expressão corporal de vergonha, enquanto sua mãe tecia diversos comentários, como: “Meu filho ainda é uma criança”, “Ele não pode fazer isso!”, “Isso não é normal”. Incomodados com a postura da mãe, os médicos perceberam que, para uma comunicação efetiva com Rodolfo, era preciso construir um vínculo de confiança com a mãe. Para isso, tentaram acalmá-la respondendo algumas perguntas e demonstrando uma postura de compreensão em relação às suas preocupações, mas também salientando que Rodolfo, em princípio, apresentava comportamentos relacionados à adolescência.

À medida que a confiança era construída, a mãe se mostrava mais segura e, ao ser convidada a deixar o consultório, permitiu que o filho conversasse a sós com o médico. Assim, foi possível ouvir as perspectivas de Rodolfo sobre sua sexualidade e identificar possíveis sinais de alarme para sua saúde.

No final da cena, os discentes expuseram as dificuldades encontradas ao lidar com a mãe e ao mesmo tempo estimular o adolescente a ser protagonista do seu processo de cuidado. Destacaram o desafio de efetivar as ações propostas pela política pública e a relevância de integrar habilidades de comunicação e empatia ao cuidado.

Além disso, reforçou-se que os princípios éticos garantem ao adolescente a privacidade e a confidencialidade, bem como a importância disso para a criação de vínculo e a promoção de cuidado integral, atentando-se para as necessidades específicas de cada população e buscando diminuir vulnerabilidades33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010. . Ainda assim, foi lembrado que situações especiais – violência estrutural, estupro de vulnerável, HIV/aids, exploração do trabalho – preveem a quebra do sigilo, e nessas situações os adolescentes devem ser informados sobre os motivos que respaldam tal atitude1717 Taquette SR. Conduta ética no atendimento à saúde de adolescentes. Adolescência & Saúde, 2010; 7(1):6-11. .

Cena 2

A segunda cena se baseava na abordagem da orientação e comportamento sexuais. Julieta, 17 anos, lésbica, procurou atendimento médico para orientações sobre proteção contra IST e exames preventivos de câncer de colo uterino.

Os médicos, interpretados por discentes do sexo masculino, foram surpreendidos por Julieta ser lésbica e manifestaram reações de espanto, entremeadas com risos, que pareciam expressar o desejo de fuga diante de uma situação nova que se lhes apresentava em um momento avançado de sua formação. Passado o susto inicial e embasados pelo apresentado na Linha de Cuidados, algumas orientações foram realizadas de forma coerente, tendo apenas caráter informativo, sem preocupação dirigida em acolher e compreender particularidades da usuária.

Durante a discussão das reflexões em grupo, os discentes expressaram desconforto em relação ao ineditismo de uma situação que nunca havia sido abordada durante o curso. Apontaram que a formação médica ainda aborda a sexualidade com foco na heteronormatividade, entendida como a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, alicerçados pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família (esquema pai-mãe-filhos)1818 Foster DW. Consideraciones sobre el estudio de la heteronormatividad en la literatura latinoamericana. Letras, 2001; 22:49-53. .

Assim, a cena permitiu problematizar a diversidade da sexualidade humana e ratificou a importância de que a formação e as práticas médicas se dirijam à aplicação do previsto nas políticas públicas. Isto porque as diferenças no campo da sexualidade atuam na determinação do processo saúde-adoecimento-cuidado e, assim, é necessário despir a atuação médica de preconceitos e julgamentos que descontroem a relação médico-paciente1515 Pfeffer B, Ellsworth TR, Gold MA. Interviewing Adolescents About Sexual Matters. Pediatric Clinics of North America, 2017; 64(2):291-304. .

O que os discentes elucidaram vai ao encontro do trabalho de Rufino et al. 1919 Rufino AC, Madeiro AP, Girão MJ. O ensino da sexualidade nos cursos médicos: a percepção de estudantes do Piauí. Revista Brasileira de Educação Médica, 2013; 37(2):178–85. , que apontam que a atuação médica em questões que envolvem a saúde sexual se mostra limitada para o atendimento integral e humanizado em situações de saúde, como para a população LGBT. A assistência a essa população atualmente desafia os profissionais de saúde pública a superar a histórica abordagem estigmatizante, associada à própria criação dessas categorias identitárias enquanto patologias pelo discurso médico-científico. Identificamos que o discurso da não diferença2020 Paulino DB. Discursos sobre o acesso e a qualidade da atenção integral à saúde da população LGBT entre médicos (as) da estratégia saúde da família, 2016. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016. – acionado por médicos para justificar o não acolhimento/atendimento das demandas da população LGBT, numa construção discursiva que almeja uma imagem de não preconceito e que, na verdade, produz apenas silenciamento e não cuidado – não surgiu nessa situação como possível justificativa dos discentes para a dificuldade no cuidado a Julieta.

Assim, percebemos que a qualificação da formação médica para cuidado integral à população LGBT, conforme apontado por Paulino2020 Paulino DB. Discursos sobre o acesso e a qualidade da atenção integral à saúde da população LGBT entre médicos (as) da estratégia saúde da família, 2016. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016. , é um caminho para superar discursos e práticas que não cuidam, adoecem e só afastam lésbicas, gays , bissexuais, travestis e transexuais do direito à saúde.

Cena 3

A terceira cena tinha como objetivo abordar satisfação e comportamento sexuais, bem como a construção de um relacionamento saudável com o parceiro. Paulo, 20 anos, compareceu à Unidade Básica de Saúde para solicitar exames de rotina. Aos estudantes que assumiam o papel de médicos foi solicitado que fizessem uma investigação sobre a atividade sexual do usuário e as orientações pertinentes.

Durante a anamnese, Paulo diz ter vida sexual ativa com parceira fixa e que não tem vontade de ser pai no momento, pois é “muito jovem”. No entanto, ao ser perguntado sobre os métodos contraceptivos, diz que nunca se importou com isso e que a responsabilidade de evitar uma gravidez indesejada é da namorada, pois “isso é coisa de mulher”.

Foi nítida a reação de espanto, e até mesmo raiva, dos médicos, que demonstraram incômodo e rispidez ao conduzirem o atendimento e abordarem o planejamento familiar compartilhado. No final da cena, todos compartilharam o sentimento de incômodo provocado pelo comportamento de Paulo e reconheceram o impacto disso no desenvolvimento da consulta. Assim, enfatizou-se a importância de escuta ativa, postura respeitosa e desenvolvimento adequado de habilidades de comunicação, para que certos sentimentos não se sobreponham à qualidade do cuidado e à promoção de saúde.

A fim de lidar com a postura intransigente de Paulo, foi apresentado o “Modelo Transteórico de Mudança”2121 Prochaska JO, Diclemente CC, Norcross JC. In search of how people change: Applications to addictive behaviors. American Psychologist, 1992; 47(9):1102-114. , que discorre sobre os processos do sujeito até uma mudança de atitude, sendo eles: (a) pré-contemplação, quando não há sinais de vontade de mudar; (b) contemplação, quando a pessoa considera a possibilidade de mudança e pesa prós e contras; (c) preparação, quando se inicia o planejamento; (d) ação, quando se coloca em prática; (e) manutenção, quando as mudanças comportamentais são sustentadas.

Paulo está claramente em pré-contemplação2222 Rollnick S, Miller WR. Motivational interviewing: Preparing people for change. 2. ed. New York: Guildford Press, 2002. , não reconhece a necessidade de se responsabilizar por sua saúde sexual e reprodutiva e não apresenta desejo de mudar. No entanto, isto não significa que não haja nada a fazer.

Em associação com o Modelo Transteórico, a Entrevista Motivacional é uma ferramenta eficaz em fomentar mudanças de atitudes mesmo em pacientes que estejam na pré-contemplação, como Paulo. Nesses casos, concentra-se em escutar respeitosamente suas opiniões e fornecer informações que o façam problematizar a necessidade de mudança, estimulando-se decisões autônomas2121 Prochaska JO, Diclemente CC, Norcross JC. In search of how people change: Applications to addictive behaviors. American Psychologist, 1992; 47(9):1102-114. .

Além disso, os discentes puderam ver concretizadas, no âmbito da consulta médica e do cuidado em saúde – muitas vezes, tida como um local que prescinde da formação em Ciências Sociais e Humanas em Saúde, bem como das construções propostas pelas diversas políticas públicas que nos atravessam –, algumas das problemáticas apresentadas pelas políticas públicas, conforme a destacada a seguir:

No sistema de valores que fundamenta a cultura sexista, o masculino representa a supremacia e o poder, enquanto o feminino é associado à fraqueza e dependência. Essa injustiça repercute tanto sobre as mulheres quanto sobre os homens. De acordo com a construção sociocultural dos gêneros que prevalece na tradição ocidental, a reprodução seria um assunto feminino, em decorrência da natureza da mulher, e o campo da sexualidade seria essencialmente masculino, em decorrência da natureza do homem. (p. 54)33 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010.

Assim, é necessária uma articulação entre diferentes saberes, competências e habilidades para a concretização do cuidado integral em saúde e atenção aos determinantes sociais do processo saúde-adoecimento-cuidado. Defendemos aqui que um cuidado em saúde sem a devida atenção às políticas públicas que o cercam se torna vazio de realidade, eficácia e efetividade, ficando a pessoa à mercê de uma atuação puramente mecânica e biomédica.

Outras reflexões e aprendizados

Acreditamos que a educação médica se beneficie de experiências como esta, que, de forma dinâmica e envolvente, permitem aos estudantes o aprendizado de questões relacionadas aos aspectos de gênero e sexualidade e que integram competências relacionadas a educação, políticas públicas e assistência à saúde. Assim, propicia-se uma formação para um cuidado em saúde ético, sensível, integral e com responsabilidade social, o que já é apontado por diversos autores1414 Raimondi GA, Paulino DB, Hattori WT, Limirio Júnior V, Lima e Silva VMO, Zaidhaft S. Ensinoaprendizagem de Gênero e Sexualidade em um Curso de Medicina no Brasil: promovendo o Cuidado Integral em Saúde e os Direitos Humanos. Rev. bras. educ. med., 2019; 43(2):130-42. , 2323 Obedin-Maliver J, Goldsmith ES, Stewart L, White W, Tran E, Brenman S, et al. Lesbian, gay, bisexual, and transgender–related content in undergraduate medical education. Jama, 2011; 306(9):971–77.

24 Rufino AC, Madeiro A, Girão MJBC. Sexuality education in Brazilian medical schools. The journal of sexual medicine, 2014; 11(5):1110–117.
- 2525 Negreiros FRN, Ferreira BO, Freitas DN, Pedrosa JIS, do Nascimento EF. Saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: da Formação Médica à Atuação Profissional. Rev. bras. educ. med., 2019; 43(1):23-31. .

O role-play , ao colocar o discente no lugar do outro ou dele mesmo como futuro médico, permite o desenvolvimento de competências e o reconhecimento de eventuais lacunas no aprendizado. Estas, por sua vez, vão sendo aprimoradas no encontro com os saberes de outros colegas e docentes, que passam a assumir o papel de facilitadores do processo de ensino-aprendizagem.

Tais constatações são corroboradas por uma recente publicação, editada após a nossa experiência e com a qual nos deparamos durante a busca por material teórico para a construção deste artigo. Ela apresenta um estudo realizado com estudantes de Medicina que comparou o desempenho na abordagem de gênero e sexualidade por meio do role-play com “pacientes padronizados”, pré- e pós-instrumentalização com o acrônimo HEEADSSS, evidenciando diferença estatisticamente significativa (P < 0,001) na habilidade dos estudantes em abordar as áreas temáticas-chave da saúde do adolescente. Além disso, esse estudo constatou que o role-play , associado a metas predefinidas, é um modo eficaz de ensinar habilidades de entrevistas aos estudantes2626 Kaul P, Fisher JH, Hanson JL. Medical students’ acquisition of adolescent interview skills after coached role play. Journal of Pediatric and Adolescent Gynecology, 2018; 31(2):102-6. .

Apontamos algumas necessidades de aprimoramento, conforme orientado por Nestel e Tierney88 Nestel D, Tierney T. Role-play for medical students learning about communication: Guidelines for maximising benefits. BMC Medical Education, 2007; 7(3):1-9. , para o uso do role-play , entre elas o estabelecimento de objetivos e demonstrações práticas para motivar os estudantes e evitar que recorram à jocosidade por constrangimento. Além disso, o uso de recursos adequados, como espaço físico para a formação de pequenos grupos, e rodízio entre os diferentes papéis, maior número de docentes e roteiro estruturado com os objetivos para melhor feedback potencializam a experiência.

Por fim, retomando a proposta da ABPj e as etapas do Arco de Maguerez, quanto à prática na realidade, acreditamos que o desenvolvimento de uma estratégia de avaliação qualitativa ou quantitativa do impacto do uso do role-play no cuidado em saúde dos adolescentes possa corroborar o aprimoramento e a validação dessa estratégia de ensino-aprendizagem da abordagem dos aspectos de gênero e sexualidade na formação médica. Para tanto, é preciso reproduzir essa estratégia em outras instituições de ensino e cenários de aprendizagem, aprofundando reflexões e criando formas de reavaliar o aluno exposto ao role-play numa fase seguinte do curso.

Uma experiência premiada

Em 2017, ano de desenvolvimento desta proposta pedagógica, o Congresso Brasileiro de Educação Médica apontava para as inovações do ensino médico. O evento convidava docentes e discentes a divulgar sua produção científica e suas experiências, levando em conta três aspectos: a educação, a política e a atenção à saúde. Assim, identificamos o contexto ideal para a divulgação da experiência aqui relatada. Nosso trabalho foi aprovado para divulgação na modalidade Apresentação Oral.

A plenária final do Congresso anunciava os trabalhos que se destacaram no evento. Estávamos ali. Paralisados diante do anúncio de melhor trabalho de educação médica do País naquele ano. Nosso olhar fixo escancarava: estávamos extremamente honrados com aquele reconhecimento, especialmente pelo desafio proposto por meio da temática. Consolidava-se o espaço de discussões de gêneros e sexualidades em nosso curso, e, além disso, criavam-se possibilidades para (re)produzir essa experiência em outros contextos e avaliar seus impactos a curto, médio e longo prazos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber a relevância do uso de metodologias ativas na educação médica, pois despertam o interesse do estudante em produzir soluções partindo da realidade por meio da problematização, especialmente em temas negligenciados durante a formação médica, como é o caso do cuidado integral em saúde do adolescente. Integrando aspectos teórico-práticos da política e resgatando reflexões problematizadas, o (futuro) médico torna-se capaz de produzir um cuidado centrado na empatia e na formação de vínculos. Como consequência, ele consolida seu papel como agente transformador da realidade, contribuindo para o empoderamento e auxiliando na tomada de decisões saudáveis por parte de adolescentes e jovens, especialmente no que se refere aos aspectos relacionados a gênero e sexualidade, que são importantes determinantes sociais do processo saúde-adoecimento-cuidado.

O role-play mostrou-se uma importante possibilidade para o aprimoramento de competências fundamentais ao cuidado integral do adolescente, e sua associação com a Problematização e a Aprendizagem Baseada em Projetos pode ser potente. A articulação entre o aprendizado das políticas públicas e as habilidades de comunicação mediada pelo role-play parece ter potencial para a formação médica e para um cuidado integral em saúde, na medida em que transpõe os estudantes para situações possíveis do cotidiano do profissional médico que demandam uma abordagem centrada na pessoa com empatia e sensibilidade. A formação nos aspectos de gênero e sexualidade pode superar discursos e práticas que não cuidam de todas as pessoas, permitindo alcançar o cuidado integral e equânime e a formação médica com responsabilidade social.

Recomendamos fortemente o estudo dos aspectos de gênero e sexualidade na formação médica, preferencialmente associados a metodologias ativas de ensino-aprendizagem, como o role-play, capazes de sensibilizar e transformar a formação e, futuramente, o cuidado e a saúde de nossa população. É importante também incentivar a avaliação de seu uso, permitindo sua aplicação no ensino médico de forma mais ampla.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos discentes do curso de Medicina da UFU, Marina Hubaide Rosa e Rafael Martins Valadão Ferreira, pelas contribuições na execução dessa proposta e incentivo à construção deste relato. Agradecemos à Faculdade de Medicina (FAMED), ao Departamento de Saúde Coletiva (DESCO) e ao Curso de Medicina da Instituição que nos apoiaram na participação no Programa FAIMER® Brasil e na concretização desse projeto. Agradecemos ao Programa FAIMER® Brasil pela formação e por todo o apoio compartilhados para que essa e outras experiências de aprimoramento da Educação Médica em nossa Instituição fossem possíveis. Agradecemos aos(às) discentes do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, que participaram de forma ativa na execução dessa proposta.

REFERÊNCIAS

  • 1
    World Health Organization. Department of Gender. Woman and Health (GWH) Integrating gender into the curricula for health professionals. Geneva: World Health Organization, Department of Gender, Woman and Health (GWH), 2006.
  • 2
    Brasil. Resolução n.º 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais Do Curso De Graduação Em Medicina. Diário Oficial da União, 2014.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção em Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Área técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem, 2010.
  • 4
    Bender WN. Aprendizagem Baseada Em Projetos: Educação Diferenciada Para O Século XXI. Porto Alegre: Penso Editora, 2015.
  • 5
    Franco CM, Franco TB. Linhas do cuidado integral: uma proposta de organização da rede de saúde [s/ n]. Disponível em: <https://dms.ufpel.edu.br/sus/files/media/Linha-cuidado-integral.pdf> Acesso em:18 abr. 2018.
    » https://dms.ufpel.edu.br/sus/files/media/Linha-cuidado-integral.pdf>
  • 6
    Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS: Abrasco, 2009.
  • 7
    Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerário terapêutico. Ciência & Saúde Coletiva, 2016; 21(3)843-51.
  • 8
    Nestel D, Tierney T. Role-play for medical students learning about communication: Guidelines for maximising benefits. BMC Medical Education, 2007; 7(3):1-9.
  • 9
    Rabelo L, Garcia VL. Role-Play para o Desenvolvimento de Habilidades de Comunicação e Relacionais. Revista Brasileira de Educação Médica, 2015; 39(4):586-96.
  • 10
    Durão I, Meuriño MJ. Inovação em serviços de saúde com foco no indivíduo. In: Congresso Nacional de Excelência em Saúde & III Inovarse – Responsabilidade Social Aplicada, 2016. Rio de Janeiro: FIRJAN-RJ, 2016. Disponível em: < http://www.inovarse.org/sites/default/files/T16_198.pdf> Acesso em: 14 mai. 2019.
    » http://www.inovarse.org/sites/default/files/T16_198.pdf>
  • 11
    Rosa GFC, Rosa MH, Barros MCV, Hattori WT, Paulino DB, Raimondi GA. O MBTI na Educação Médica: uma Estratégia Potente para Aprimorar o Trabalho em Equipe. Revista Brasileira de Educação Médica, 43.4 (2019): 15-25.
  • 12
    Colombo AA. A Metodologia da Problematização com o Arco de Maguerez e sua relação com os saberes de professores. Semina: Ciências Sociais e Humanas, 2007; 28(2):121-46.
  • 13
    Leal EM, de Souza AN, de Serpa Júnior OD, de Oliveira IC, Dahl CM, Figueiredo AC, et al. McGill Entrevista Narrativa de Adoecimento - MINI: tradução e adaptação transcultural para o português. Ciência & Saúde Coletiva, 2016; 21(8):2393-402.
  • 14
    Raimondi GA, Paulino DB, Hattori WT, Limirio Júnior V, Lima e Silva VMO, Zaidhaft S. Ensinoaprendizagem de Gênero e Sexualidade em um Curso de Medicina no Brasil: promovendo o Cuidado Integral em Saúde e os Direitos Humanos. Rev. bras. educ. med., 2019; 43(2):130-42.
  • 15
    Pfeffer B, Ellsworth TR, Gold MA. Interviewing Adolescents About Sexual Matters. Pediatric Clinics of North America, 2017; 64(2):291-304.
  • 16
    Manfredi SM. Trabalho, qualificação e competência profissional: das dimensões conceituais e políticas. Educação & Sociedade, 1998; 19(64):13-49.
  • 17
    Taquette SR. Conduta ética no atendimento à saúde de adolescentes. Adolescência & Saúde, 2010; 7(1):6-11.
  • 18
    Foster DW. Consideraciones sobre el estudio de la heteronormatividad en la literatura latinoamericana. Letras, 2001; 22:49-53.
  • 19
    Rufino AC, Madeiro AP, Girão MJ. O ensino da sexualidade nos cursos médicos: a percepção de estudantes do Piauí. Revista Brasileira de Educação Médica, 2013; 37(2):178–85.
  • 20
    Paulino DB. Discursos sobre o acesso e a qualidade da atenção integral à saúde da população LGBT entre médicos (as) da estratégia saúde da família, 2016. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.
  • 21
    Prochaska JO, Diclemente CC, Norcross JC. In search of how people change: Applications to addictive behaviors. American Psychologist, 1992; 47(9):1102-114.
  • 22
    Rollnick S, Miller WR. Motivational interviewing: Preparing people for change. 2. ed. New York: Guildford Press, 2002.
  • 23
    Obedin-Maliver J, Goldsmith ES, Stewart L, White W, Tran E, Brenman S, et al. Lesbian, gay, bisexual, and transgender–related content in undergraduate medical education. Jama, 2011; 306(9):971–77.
  • 24
    Rufino AC, Madeiro A, Girão MJBC. Sexuality education in Brazilian medical schools. The journal of sexual medicine, 2014; 11(5):1110–117.
  • 25
    Negreiros FRN, Ferreira BO, Freitas DN, Pedrosa JIS, do Nascimento EF. Saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: da Formação Médica à Atuação Profissional. Rev. bras. educ. med., 2019; 43(1):23-31.
  • 26
    Kaul P, Fisher JH, Hanson JL. Medical students’ acquisition of adolescent interview skills after coached role play. Journal of Pediatric and Adolescent Gynecology, 2018; 31(2):102-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2019
  • Aceito
    4 Jul 2019
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com