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Estudantes de Medicina em Roda: os Diálogos da Extensão Popular com os Indígenas Potiguara

Resumo:

Introdução:

A extensão universitária com populações excluídas socialmente pode ser uma estratégia na formação de profissionais sobre a diversidade cultural e social brasileira. A perspectiva da Educação Popular em Saúde (EPS) nesse contexto é uma das possibilidades para fomentar interações dialógicas entre ensino e comunidade, favorecendo espaço para o desenvolvimento da formação em saúde com compromisso social. O Projeto de Extensão Îandé Gûatá surge em 2013, na Paraíba, a partir dos princípios da EPS e da Extensão Popular, com foco no encontro entre indígenas Potiguara e estudantes de Medicina. Esta pesquisa objetivou avaliar os aprendizados construídos pelos extensionistas desse projeto em sua formação médica.

Método:

Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa com abordagem qualitativa a partir dos referenciais teórico-metodológicos das práticas discursivas. Utilizou-se a técnica da roda de conversa para construção de dados, realizada no momento de encerramento do ciclo do projeto. Para análise do material, foram identificados repertórios linguísticos a partir das falas dos sujeitos com construção de três conjuntos de sentidos: a extensão universitária como espaço contra-hegemônico de formação médica; o desenvolvimento de competências gerais para o futuro profissional de saúde; o encontro entre diferentes culturas nas vivências da extensão. Os repertórios linguísticos foram discutidos com base em referenciais teóricos de EPS, saúde indígena e competências na educação médica.

Resultados:

Nas falas dos estudantes, o projeto permitiu ganhos nos seguintes atributos: conhecimento, porque permitiu reflexões, identificação de lacunas e maior entendimento sobre o processo saúde-doença no contexto da população indígena; habilidades de fazer e receber críticas, de trabalho em equipe e de diálogo entre culturas diferentes; e atitudes, ampliando a postura do profissionalismo, a compreensão e a ação perante as questões éticas e sociais.

Conclusões:

Dessa forma, destacam não somente o desenvolvimento de competências gerais para o futuro médico, mas também as mais específicas, como a competência cultural. Além disso, enfatizam o desafio de dialogar na polaridade, de modo a diminuir as distâncias dentro do mesmo espaço institucional e do conflito cultural, e promover a compreensão e ação numa educação emancipatória. Esse coletivo de estudantes esperançou com a comunidade indígena a aproximação dessas distâncias, num compromisso coletivo de produzir mudança e transformação social.

Palavras-chave:
Extensão Comunitária; Saúde Indígena; Educação Médica; Educação Popular; Competência Cultural

Abstract:

Introduction:

University extension projects with socially excluded populations can be a strategy for the training of professionals in the cultural and social diversity of the Brazilian population. The practice of Popular Health Education (PHE) through university extension is one of the possibilities to foster dialogic interactions between teaching and the community and has been a space for the development of health education with social commitment. The Îandé Gûatá Extension Project was created in Paraíba in 2013, based on the principles of PHE and Popular Extension, focusing on the meeting between Potiguara indigenous people and Medical students. This study aimed to evaluate the learning built by this project students’ for their medical education.

Method:

Therefore, a qualitative approach research was developed through the analysis of discursive practices, using the talking circle technique at the end of the project cycle. To analyze the material, linguistic repertoires were identified from the subjects’ speech and three sets of meanings were built: extension university as a counter-hegemonic space of medical education; building skills for the future doctor; relations between health and culture in care. The linguistic repertoires were discussed based on theoretical references, such as popular health education, indigenous health and competences in medical education.

Results:

According to the students, this project allowed them gains in the attributes of: knowledge, as it allowed reflections, identification of gaps and greater understanding about the health-disease process in the context of the indigenous population; allowed gains in the ability of making and receiving criticism, teamwork and dialogue between different cultures; and allowed gains in attitudes, broadening the attitude of professionalism, the comprehension and performance on ethical issues and the construction of social commitment.

Conclusion:

Therefore, they highlight both the development of general competences for the future doctor, but also more specific ones, such as cultural competence. Moreover, the challenge of dialoguing in the polarity: aiming to reduce the distances within the same institutional space; cultural conflicts; and understanding and acting in an emancipatory education. This group of students wished, with the indigenous community, that these distances would be lessened, in a collective commitment aimed at producing change and social transformation.

Keywords:
Community-Institutional Relations; Indigenous Health; Medical Education; Popular Education; Cultural Competency

INTRODUÇÃO

A dinâmica complexa da saúde brasileira exige a formação de profissionais de saúde que possuam, além da ética e capacidade de atuação em vários níveis de atenção, o respeito à cidadania e o conhecimento/vivência do compromisso e a responsabilidade social no processo saúde-doença11. Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES nº 3 de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Brasília; 20 jun 2014.. Assim, a extensão universitária no processo de formação pode possibilitar interações dialógicas com troca de saberes, de modo a superar a ideia de hegemonia acadêmica e construir soluções em parceria com a sociedade22. Brasil. Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras. Manaus: Forproext; 2012.. Nesse contexto, a prática da Educação Popular em Saúde (EPS) é uma das possibilidades para fomentar a ligação entre o ensino e a comunidade, visto que professores, alunos e profissionais podem coletivamente promover um Sistema Único de Saúde (SUS) mais equânime, focado na participação social e na longitudinalidade do cuidado33. Raimondi GA, Paulino DB, Mendes Neto JP, Diniz LF, Rosa GFC, Limirio Junior V, et al. Intersetorialidade e Educação Popular em Saúde: no SUS com as escolas e nas escolas com o SUS. Rev. bras. educ. med. 2018;42(2):73-8..

Populações excluídas socialmente - tais como os quilombolas, ribeirinhos e indígenas - são invisibilizadas nas matrizes curriculares da maioria dos cursos de graduação em Medicina. Projetos de extensão universitária com esses grupos podem ser uma estratégia no sentido de aproximação à diversidade cultural e social da população brasileira44. Luna WF, Nordi ABA, Rached KS, Carvalho ARV. Projeto de Extensão Iandé Guatá: vivências de estudantes de Medicina com indígenas Potiguara. Interface (Botucatu) 2019;23(1):1-15.. Há descrições de experiências de extensão com as populações indígenas com base no mapeamento de políticas e serviços de saúde indígena55. Cuervo MRM, Radke MB, Riegel EM. PET-Redes de atenção à saúde indígena: além dos muros da universidade, uma reflexão sobre saberes e práticas em saúde. Interface (Botucatu) 2015;19(1): 953-63., em ambulatórios especializados no espaço urbano, com o objetivo de trabalhar nas redes de atenção e construção de práticas interculturais66. Hoefel MGL, Severo DO, Bermudez XP, Hamann EM, Carvalho HS. PET-Saúde Indígena UnB: construindo redes interculturais em saúde. Rev. Tempus: Actas de Saud Col 2015;9(1):43-63., ou ainda na vivência no serviço de atenção primária à saúde nas aldeias77. Silva RP, Barcelos AC, Hirano BQL, Izzo RS, Calafate JMS, Soares TO. A experiência de alunos do PET-Saúde com a saúde indígena e o programa Mais Médicos. Interface (Botucatu) 2015;19(1): 1005-14. e no cotidiano das famílias indígenas44. Luna WF, Nordi ABA, Rached KS, Carvalho ARV. Projeto de Extensão Iandé Guatá: vivências de estudantes de Medicina com indígenas Potiguara. Interface (Botucatu) 2019;23(1):1-15.. Outras inciativas ainda trabalham os conceitos e as práticas de saúde dos povos indígenas nos currículos ou nas disciplinas eletivas, com destaque à presença de universitários indígenas nessas experiências. Tomando como referência as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Graduação em Medicina11. Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNE/CES nº 3 de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Brasília; 20 jun 2014., atividades nesses contextos podem apontar caminhos para a construção de competências para o respeito às singularidades humanas e de grupos sociais em que as questões étnico-raciais estão presentes.

Nesse sentido, o Projeto de Extensão Îandé Gûatá foi desenvolvido por dois docentes, um médico de família e comunidade e uma fisioterapeuta sanitarista, e 19 estudantes dos diversos períodos do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba (FCM/PB). Teve como princípios orientadores a EPS e a Extensão Popular. As atividades tinham foco no encontro entre a população indígena e os extensionistas, possibilitando a construção de relações dialógicas e senso de trabalho em comunidade. A opção pelo trabalho com a população indígena foi favorecido pela experiência de um dos docentes como médico da equipe multidisciplinar de saúde indígena nas aldeias Potiguara88. Luna WF, Nordi ABA. Nossa caminhada no Projeto de Extensão Iandé Guatá. In: Cruz PJSC, Rodrigues APME, Pereira EAAL, Araújo RS, Alencar IC. Vivências de extensão em educação popular no Brasil: extensão e formação universitária: caminhos, desafios e aprendizagens. João Pessoa: CCTA; 2018, v. 1, p. 79-102..

Os encontros mensais com os Potiguara ocorreram entre os anos de 2013 a 2015, aos sábados, com atividades das 7 às 17 horas, quando os estudantes vivenciavam o cotidiano da aldeia com os indígenas. Complementarmente, ocorriam encontros teórico-reflexivos semanais na faculdade, com discussões e elaborações a partir das vivências44. Luna WF, Nordi ABA, Rached KS, Carvalho ARV. Projeto de Extensão Iandé Guatá: vivências de estudantes de Medicina com indígenas Potiguara. Interface (Botucatu) 2019;23(1):1-15.), (88. Luna WF, Nordi ABA. Nossa caminhada no Projeto de Extensão Iandé Guatá. In: Cruz PJSC, Rodrigues APME, Pereira EAAL, Araújo RS, Alencar IC. Vivências de extensão em educação popular no Brasil: extensão e formação universitária: caminhos, desafios e aprendizagens. João Pessoa: CCTA; 2018, v. 1, p. 79-102.. O povo Potiguara vive no litoral norte da Paraíba e possui uma população de cerca de 19 mil indígenas99. Cardoso TM, Guimarães GC. Etnomapeamento dos Potiguara da Paraíba. Brasília: Funai, CGMT, CGETNO, CGGAM; 2012.. Estão em constante processo de reorganização social e cultural, desencadeando conquistas importantes, tais como a demarcação de suas terras, a representatividade política e institucional (prefeituras e câmaras municipais, educação escolar indígena, políticas de saúde, políticas ambientais e de desenvolvimento) e um renovado interesse pelas expressões culturais tradicionais (ritual do toré, língua tupi, pinturas corporais, produção de livros e vídeos) (1010. Palitot EM. Os Potiguara de Monte-Mór e a cidade de Rio Tinto: a mobilização indígena como reescrita da história. Revista de Estudos e Investigações Antropológicas 2017; especial II:191-215..

No âmbito universitário, a Extensão Popular é um ponto de partida em que aos estudantes, docentes e técnicos permite-se uma imersão na realidade social, por meio de uma construção participativa e compartilhada, experimentando seus processos dinâmicos e complexos, suas dores e alegrias, e estabelecendo um diálogo com os protagonistas da realidade1111. Cruz PJSC, Carneiro DGB, Tófoli AMMA, Rodrigues APME, Alencar IC. Extensão popular: caminhos em construção. João Pessoa: CCTA ; 2017.. Esse foi o entendimento de extensão que direcionou as atividades do Projeto Îandé Gûatá, cujo nome significa “Nossa Caminhada” em tupi.

Em vista do encerramento do ciclo de atividades desse projeto de extensão, surgiu a necessidade de análise das experiências do grupo, sendo realizada a pesquisa apresentada neste manuscrito, com o objetivo de descrever os aprendizados desenvolvidos pelos extensionistas.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, realizado com participantes do Projeto de Extensão Îandé Gûatá. Como referencial teórico-metodológico, utilizaram-se as práticas discursivas e a produção de sentidos1212. Spink MJ. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez; 1999., que busca a produção de sentidos por meio da linguagem ordinária e de conversas do cotidiano.

Para construção de dados, optou-se pela técnica da roda de conversa1313. Bernardes JS, Santos RAS, Silva LB. A roda de conversa como dispositivo ético-político na pesquisa social: metodologias - pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas. Maceió: Edufal; 2015.), (1414. Luna WF, Bernardes JS. Tutoria como estratégia para aprendizagem significativa do estudante de Medicina. Rev bras. ed. med. 2015;40(3):653-62., por causa da aproximação com os princípios da Extensão Popular, baseados em construções compartilhadas de saberes em espaços de diálogo. Dessa forma, a roda de conversa utilizada como técnica de pesquisa possibilita compreender a inserção dos pesquisadores em seu campo e o trabalho vivenciado no cotidiano1414. Luna WF, Bernardes JS. Tutoria como estratégia para aprendizagem significativa do estudante de Medicina. Rev bras. ed. med. 2015;40(3):653-62., pois, nesse caso, há o interesse de que os sujeitos sejam ativos na produção do conhecimento, funcionando como dispositivo metodológico estratégico apoiado pela radicalização na construção de uma ciência democrática, que busca desmistificar a falácia da neutralidade1313. Bernardes JS, Santos RAS, Silva LB. A roda de conversa como dispositivo ético-político na pesquisa social: metodologias - pesquisas em saúde, clínica e práticas psicológicas. Maceió: Edufal; 2015.. Caracterizada como um espaço de conversas espontâneas e sem um roteiro de perguntas preestabelecidas1515. Spink PK. O pesquisador conversador no cotidiano. Psicol. soc. 2008;20(1):70-7., essa técnica de pesquisa possibilita maior intercâmbio de informações entre pesquisadores e participantes, iniciando-se com a exposição de um tema ao grupo, seguida de discussões, elaborações e posicionamento dos presentes1616. Mello RP, Silva AA, Lima MLC, Di Paolo AF. Construcionismo, práticas discursivas e possibilidades de pesquisa em psicologia social. Psicol. soc . 2007;19(3):26-32.. A roda de conversa tem seus princípios baseados na lógica da Educação Popular1717. Freire P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1999. e trabalha de forma dialógica orientada para a construção coletiva entre saberes.

Para esta pesquisa, realizou-se uma roda de conversa com os 13 estudantes de Medicina que eram extensionistas ao final do Projeto Îandé Gûatá. Foi conduzida pelos dois docentes coordenadores do projeto de extensão, com duração de 2 horas e 17 minutos. No início, explicaram-se os objetivos da pesquisa, reforçando a voluntariedade de participação, além da necessidade de concordarem com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Sugeriu-se aos participantes que avaliassem o Projeto de Extensão Îandé Gûatá e discutissem sobre experiências marcantes e aprendizados. Na conversa, o grupo resgatou as próprias vivências, defendeu seus posicionamentos e apresentou convergências e divergências, com breves intervenções dos dois facilitadores. Ressalta-se que essa roda de conversa aconteceu especificamente para a realização desta pesquisa.

O áudio da roda de conversa foi gravado e os pesquisadores realizaram a transcrição integral do material, buscando orientações da transcrição naturalista1818. Azevedo V, Carvalho C, Fernandes-Costa F, Mesquita S, Soares J, Teixeira F, et al. Transcrever entrevistas: questões conceptuais, orientações práticas e desafios. Rev. Enf. Ref. 2017;4(14):159-68.. Além disso, os nomes dos participantes foram substituídos por códigos, a fim de garantir o sigilo das identidades.

Elaborou-se um mapa dialógico para o processo inicial da análise como forma de aproximação dos pesquisadores aos materiais e discursos, à interanimação dialógica e às rupturas1919. Nascimento VLV, Tavanti RM, Pereira CCQ. O uso de mapas dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014. p.248-72.. Nesse mapa buscou-se relacionar os objetivos da pesquisa e as falas dos sujeitos, permitindo o reconhecimento dos repertórios linguísticos surgidos na roda de conversa.

Os repertórios linguísticos são a primeira unidade de análise do discurso, caracterizados pelo conjunto de termos, descrições e múltiplas maneiras de se falar sobre a experiência2020. Spink MJ, Medrado B. Produção de sentido no cotidiano. In: Spink MJ, organizadora. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas . Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais ; 2013. p.22-41.. Nesse material, identificaram-se enunciados, vozes, repertórios interpretativos, tempos e rupturas2121. Aragaki SS, Piani PP, Spink MJ. Uso de repertórios linguísticos em pesquisas: In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas . Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociai; 2014. p.229-246.. A análise dos repertórios linguísticos provenientes do mapa dialógico possibilitou focar posicionamentos, relações e controvérsias daí decorrentes2121. Aragaki SS, Piani PP, Spink MJ. Uso de repertórios linguísticos em pesquisas: In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento VLV, Cordeiro MP, organizadoras. A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas . Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociai; 2014. p.229-246..

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da FCM/PB, com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 44662015.7.0000.5178.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Definiram-se três conjuntos de sentidos relacionados à experiência de participação no Projeto de Extensão Îandé Gûatá: 1. a extensão universitária como espaço contra-hegemônico de formação médica; 2. o desenvolvimento de competências gerais para o futuro profissional de saúde; 3. o encontro entre diferentes culturas nas vivências da extensão. As discussões desses resultados foram realizadas a partir de referenciais teóricos da EPS, da saúde indígena e de competências na educação médica.

Conjunto de sentidos 1: A extensão universitária como espaço contra-hegemônico de formação médica

“Aqui é um lugar que é exatamente para você quebrar essa cabeça fechada.”

Nesse primeiro conjunto de sentidos, são apresentadas as falas dos estudantes numa reflexão sobre a extensão universitária como uma estratégia contra-hegemônica na formação médica. O paradigma vigente na maioria dos cursos de Medicina é o biomédico, baseado no modelo cartesiano de ciência, concebendo o corpo de forma biomecânica, com intensa especialização e separação entre o normal e o patológico, o biológico e o social2222. Koifman L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist. ciênc. saúde-Manguinhos 2001;8(1):49-69..

Na educação médica, o modelo biomédico considera os aspectos clínicos como os mais importantes para formar o bom profissional, sendo de menor relevância o domínio de outras habilidades, como as socioculturais. Neste ponto, é importante ressaltar o desafio no encontro desse paradigma dominante com a abordagem das questões sociais, pois operam a partir de princípios epistemológicos distintos. Enquanto o primeiro trabalha numa lógica exclusiva, em que uma nova técnica, procedimento ou produto deve substituir o anterior, as Ciências Sociais operam com escolas de pensamento distintas e complementares, de forma a não serem excluídas e assim perdurarem2323. Barros, NF. As Ciências Sociais na educação médica. São Paulo: Hucitec; 2016.. As falas dos extensionistas mostraram que a extensão universitária permitiu aproximação desses dois campos:

Eu entrei buscando alguma coisa diferente com relação a lidar com o paciente.

Nós vamos ser médicos. Nós vamos conviver com os mais variados tipos de cultura. E os médicos não estão preparados para isso. Precisamos ver além.

Aqui a gente pode conhecer, conviver com o diferente.

Os extensionistas destacaram que é importante conviver com diferentes pessoas e que a realidade social está relacionada à concepção ampliada de saúde. Na comunidade, a vivência do cotidiano das condições de vida e saúde exigiu o diálogo de saberes para além da formação tecnicista em saúde2424. Rios DRS, Caputo MC. Para além da formação tradicional em saúde: experiência de Educação Popular em Saúde na formação médica. Rev. bras. educ. med . 2019;43(3):184-95., agregando inclusive perspectivas políticas e sociais1111. Cruz PJSC, Carneiro DGB, Tófoli AMMA, Rodrigues APME, Alencar IC. Extensão popular: caminhos em construção. João Pessoa: CCTA ; 2017.. Trouxeram também em suas falas a resistência dos demais estudantes da faculdade ao conversarem sobre essa experiência, o que reforça a hegemonia do modelo biomédico na formação:

Na nossa sala, o pessoal é bem resistente! Eles ficam “tirando onda”: “Vocês têm prova amanhã e vão viajar para o ‘negócio’ dos índios?”.

O pessoal que não é do projeto sempre diz: “Isso aí eu só vejo de interessante para contar horas para o currículo”.

O modelo biomédico reverencia a homogeneidade entre as doenças e também sobre as formas dos acadêmicos no pensar, vestir e agir, sendo pouco aceitas atitudes diferentes da maioria. Em contrapartida, a extensão popular valoriza a diversidade e demonstra que os seus protagonistas são abertos a mudanças a partir das experiências vivenciadas44. Luna WF, Nordi ABA, Rached KS, Carvalho ARV. Projeto de Extensão Iandé Guatá: vivências de estudantes de Medicina com indígenas Potiguara. Interface (Botucatu) 2019;23(1):1-15., enquanto o modelo tradicional tende a sufocar essas práticas.

Na extensão popular, há contribuição para a formação de profissionais de saúde mais empáticos, éticos e comprometidos. Essa aproximação entre academia e realidade social gera estranhamentos mútuos, inquieta e leva os envolvidos a uma reflexão crítica sobre o seu posicionamento no mundo2525. Leite MF, Ribeiro KSQS, Anjos UU, Batista PSS. Extensão popular na formação profissional em saúde para o SUS: refletindo uma experiência. Interface (Botucatu) 2014;18(2):1569-78..

Nas falas apresentadas a seguir, os estudantes refletiram sobre o espaço da extensão como possibilidade de produção de diversidade:

Não é qualquer grupo na faculdade que é tão misto, tão cheio de gente diferente.

Quem é que ia imaginar que eu ia estar aqui? O povo da minha sala ia dizer: “Esse maluco ficou num projeto de extensão indígena? Esse cara deve ser o mais ignorante da face da Terra com os pacientes”.

A diferença desse grupo é que são pessoas que estão aqui e aceitam mudanças.

O Îandé Gûatá transformou outras áreas da minha vida também. Não só academicamente.

A extensão universitária foi associada a expressões como: realidade local, conhecer, conviver com o diferente, enriquecimento de vida, olhar diferenciado, lidar com o paciente, quebrar a cabeça fechada, grupo misto, inúmeras aprendizagens. Quando se referenciaram aos estudantes que não tiveram contato com a extensão, associaram a expressões como: não preparados para conviver com o diferente, resistentes ao novo, foco em carga horária. Nessa comparação, ficou evidente o impacto da extensão popular na constituição de criticidade, para além de uma formação biomecânica e tecnicista1111. Cruz PJSC, Carneiro DGB, Tófoli AMMA, Rodrigues APME, Alencar IC. Extensão popular: caminhos em construção. João Pessoa: CCTA ; 2017.), (2222. Koifman L. O modelo biomédico e a reformulação do currículo médico da Universidade Federal Fluminense. Hist. ciênc. saúde-Manguinhos 2001;8(1):49-69..

Fazer extensão universitária em um curso de Medicina com sua carga horária extenuante foi considerado um desafio, demandando esforço de estudantes e professores. Assim, foram necessárias relações horizontais e o exercício da compreensão para que o grupo conseguisse crescer junto, numa relação entre educador e educandos em que todos ensinavam e todos aprendiam1717. Freire P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1999..

Nem sempre a gente tinha tempo pra extensão.

Mesmo quando eu estava cansada, ir para a aldeia no sábado me trazia muito aprendizado.

Para mim, uma coisa que contou muito foi a integração com os professores.

Para mim foi novo. Eu nunca tive essa questão de ter esse laço com professores, de poder brincar, ser mais informal, porque eu nunca me permiti.

Eu tive a oportunidade de ter uma conversa com o professor que me ajudou. Se eu não tivesse tido o projeto de extensão, talvez a gente não tivesse essa oportunidade e a liberdade de conversar.

O entendimento do projeto de extensão como espaço de troca e, sobretudo, construção de saberes só foi possível por causa do estímulo ao protagonismo dos extensionistas. Os professores, nesse caso, atuaram como disparadores de um processo identitário de aprendizagem, em que os estudantes produziam de forma ativa. Isso ficou evidente em termos como: trabalhar com a autonomia, fazer diferente, assumir, fé no taco de vocês, motivar vocês, acender o fogo. A partir daí, os estudantes trouxeram elementos em suas falas que denotaram a autonomia conquistada:

Foi a época que a gente mais se mobilizou.

Eu achei legal que a gente teve abertura pra falar do projeto.

Se a gente quer que isso dê certo, a gente vai ter que fazer diferente.

Eu meti a colher.

Nesse caminho, um aspecto destacado nas falas é o fato de a administração do projeto ter sido realizada por meio da gestão compartilhada, pelo método da roda2626. Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições - o método da roda. São Paulo: Hucitec ; 2013.. Abordaram a divisão de tarefas, mas também o companheirismo entre os colegas e a energia de novos integrantes em momentos de fragilidade da extensão, no caminho da construção coletiva:

Eu aprendi aqui a dividir totalmente os papéis.

Quando alguém estava desanimado, alguém fazia alguma coisa.

Porque todo mundo tem que querer, vamos fazer esse negócio dar certo.

Dessa forma, os extensionistas trouxeram em suas falas que, por meio do diálogo em roda, o encerramento do ciclo da extensão foi um processo natural, com movimentos construídos por eles e mediação feita pelos professores.

Conjunto de sentidos 2: O desenvolvimento de competências gerais para o futuro profissional de saúde

“Não vou ser uma médica que vai olhar de qualquer jeito para todo mundo.”

Os estudantes elucidaram os saltos educacionais que obtiveram com a extensão universitária. Utilizamos o conceito de competência inclusiva e dialógica2626. Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições - o método da roda. São Paulo: Hucitec ; 2013.)-(2828. Lima VV. Competência: distintas abordagens e implicações na formação de profissionais de saúde. Interface comum. saúde educ. 2005;9(17):369-79.) como referência para a apresentação e discussão dos resultados desse conjunto de sentidos.

A competência profissional é o uso habitual e criterioso de comunicação, conhecimento, habilidades técnicas, raciocínio clínico, emoções, valores e reflexão na prática diária em benefício do indivíduo e da comunidade2525. Leite MF, Ribeiro KSQS, Anjos UU, Batista PSS. Extensão popular na formação profissional em saúde para o SUS: refletindo uma experiência. Interface (Botucatu) 2014;18(2):1569-78.), (2929. Frank JR, Snell LS, Cate OT, Holmboe ES, Carraccio C, Swing SR, et al. Competency-based medical education: theory to practice. Med. teach. 2010;32(8):638-45.. A perspectiva da abordagem dialógica trabalha a partir de duas ideias que se complementam: o desenvolvimento combinado de atributos/desempenhos (cognitivos, psicomotores e afetivos) que conformam distintas maneiras de realizar tarefas essenciais e características da prática profissional; e o reconhecimento e a consideração da história das pessoas e das sociedades que legitimam os atributos e os resultados esperados nessa determinada área profissional2828. Lima VV. Competência: distintas abordagens e implicações na formação de profissionais de saúde. Interface comum. saúde educ. 2005;9(17):369-79..

Nesse sentido, os estudantes trouxeram palavras que se repetiram ou tiveram ênfase como: crescer, olhar, aprender com os erros, opinião, cabeça mais aberta (para o diferente e as críticas), adaptação, aprendizado:

Eu acho que cada um aqui vai ter um olhar muito mais abrangente em relação a qualquer pessoa que chegar.

Vai saber que por trás daquela pessoa tem uma história e tem toda uma vida e todo um contexto.

As falas apontaram para a necessidade constante da prática da reflexão para o futuro profissional, visto que precisam estar abertos às críticas e às opiniões diferentes e ter um olhar sensível no cuidado integral das pessoas. Esses aspectos corroboram a ideia de que a competência é contexto dependente, sendo uma declaração de relação entre uma habilidade, uma tarefa (no mundo, serviço ou sistema de saúde) e o contexto em que essas tarefas ocorrem2727. Epstein RM, Hundert EM. Defining and assessing professional competence. JAMA 2002;287(2): 226-35..

Essa explicitação permite um processo mais aberto de exploração de concepções, interesses, valores e ideologias distintos que invariavelmente governam e determinam a intencionalidade dos processos educativos28. Assim, a utilização da problematização como estratégia metodológica oportunizou aos estudantes a possibilidade de estarem nos espaços reais de vida dos indígenas e, nas etapas seguintes, refletirem sobre a prática e voltar à realidade com uma leitura de mundo mais embasada e discutida1717. Freire P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1999..

Os estudantes avaliaram que o modo de organização da extensão universitária favoreceu a autonomia e o trabalho em equipe dos integrantes. O grupo evidenciava uma solidez na abertura às discussões na perspectiva de crescimento e aprendizado contínuo e ativo:

É um grupo que eu acho que todo mundo soube respeitar o outro.

Gestão compartilhada, essa equidade fez toda a diferença, porque dessa forma sentia que todo mundo ali era responsável.

A avaliação dos estudantes em relação à gestão compartilhada do projeto estimulou desempenhos a partir de três perspectivas: 1. aprendizado colaborativo percebido pela coesão do grupo, com respeito às diferentes opiniões e sentimento de pertencimento; 2. aquisição de atributo atitudinal de trabalho em equipe; 3. aprendizagem significativa.

O trabalho em pequenos grupos e a aposta em um formato de extensão em que a gestão é responsabilidade e tarefa de todos facilitaram a interação e tornaram possível o aprendizado colaborativo. Além disso, a aprendizagem por meio da prática possibilitou a aquisição de conhecimentos e habilidades e o desenvolvimento de atributos atitudinais essenciais para a adequada atuação profissional futura3030. Reis FJC, Souza CS, Bollela VR. Princípios básicos de desenho curricular para cursos das profissões da saúde. Medicina (Ribeirão Preto) 2014;47(3):272-9..

Quando o processo de aprender é desencadeado pelo cotidiano, o significado é construído em função de sua motivação para aprender e do valor potencial que os novos saberes têm em relação à sua utilização na vida pessoal e profissional. Portanto, o processo que favorece a aprendizagem significativa requer uma postura ativa e crítica por parte daqueles envolvidos na aprendizagem3131. Ausubel D, Novak JD, Hanesian H. Psicologia educacional. Rio de Janeiro: Interamericana; 1980..

Mereceu destaque para o grupo o desenvolvimento de trabalhos científicos e suas apresentações que permitiram o desenvolvimento de outros potenciais nos extensionistas. Descreveram melhora na capacidade de escrita, de uso das ferramentas disponíveis para tal, de comunicação em apresentações orais e de expressar-se no dia a dia.

Um monte de coisa que eu nunca tinha visto! Não sabia que existia. O professor foi mostrando. Assim abriu minha mente!

Sempre fui ansioso, muito nervoso para falar em público. Ainda continuo, mas dei uma melhorada.

A dificuldade que eu tinha é na parte da escrita. Eu sempre achei que eu escrevo muito mal. Hoje em dia me sinto mais confiante.

A distância entre as práticas que uma pessoa já domina e as novas adquiridas podem ser diminuídas a partir da interação de pessoas e competências diversas, traduzida por Vygotsky3232. Vygotsky LS. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes; 1998. como zona de desenvolvimento proximal. Na avaliação dos estudantes, o desafio de romper a excessiva fragmentação do conhecimento e ampliar a consciência ética na produção de novos conhecimentos3333. Morin E. Por uma reforma do pensamento. In: Pena-Veja A, Nascimento E, organizadores. O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond; 1999. p. 21-34. foi importante para construir um melhor desempenho no campo cognitivo e de habilidades de comunicação escrita e falada.

Além disso, o atendimento às necessidades de aprendizagem de todos os envolvidos numa iniciativa educacional garante respeito, aceitação, inclusão e comprometimento3434. Maturana H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG; 2005.. Sem dúvida, não se trata de um processo simples e romântico, e, por isso, é fundamental destacar que a mediação dos docentes foi fator crítico de sucesso. Essa análise foi feita pelos próprios estudantes e reverberada na roda de conversa da pesquisa: compreenderam que os docentes, mesmo não sendo o centro do processo, tiveram um papel fundamental nas intencionalidades, na articulação dos diferentes pontos de vista e no suporte nos momentos de crise do grupo.

Esse conjunto de sentidos permitiu vislumbrar ganhos de competências, na perspectiva dialógica, para a construção da identidade e do papel dos estudantes na vida futura profissional. Reforçou, complementarmente, o papel da extensão universitária, a partir da aprendizagem de adultos e da educação como prática de liberdade e de autonomia1717. Freire P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1999., especialmente construída por meio do desenvolvimento da consciência crítica dos educandos.

Conjunto de sentidos 3: O encontro entre diferentes culturas nas vivências da extensão

“Aprendi outra forma de ver o mundo. É algo que você nem sabia que existia.”

Nesse último conjunto de sentidos, é apresentado, a partir das falas dos extensionistas, o encontro entre diferentes culturas na aproximação entre estudantes de Medicina e indígenas Potiguara. Assim, é necessário compreender que, contemporaneamente, ainda há uma compreensão evolucionista e com forte caráter eurocêntrico que influencia a sociedade brasileira, favorecendo o imaginário de que os povos originários são primitivos e pouco evoluídos. O fato é que o processo histórico sobre o conceito de cultura na Europa no período iluminista, na descrição de que cada sociedade iria percorrer as mesmas etapas até se tornar uma sociedade mais desenvolvida, ainda favorece a compreensão de que ser evoluído é estar mais próximo da sociedade europeia3535. Laraia RB. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2004.. As falas dos estudantes trouxeram o que ecoa da voz da sociedade:

Teve um dia que eu estava lá no hospital, daí chegou um pajé Potiguara para ver o irmão dele que tinha sofrido um AVC, ou algo assim. Então eu ouvi um dos cirurgiões falando: “Ah, esse povo aí indígena, atrasado, não sei o quê”.

Essa postura impactou as relações de contatos iniciais entre indígenas e estudantes, que apresentavam desconhecimento e insegurança quando chegaram as primeiras vezes à aldeia, o que foi sendo desconstruído com o tempo:

Você caiu de paraquedas em um lugar que você está com as vendas e você não sabe o que está fazendo. Aí com as visitas a gente foi aprendendo.

Demonstraram em suas falas que ficaram surpresos com uma não correspondência à expectativa inicial sobre as aldeias - muito relacionada à visão romântica do indígena genérico - ao se depararem com costumes e práticas semelhantes aos do seu cotidiano:

A gente quebra logo a visão que a gente tinha, que ia encontrar eles bem do jeito característico, de cocar.

A gente ficou supersurpreso com a história dos pacotes de TV por assinatura que vendiam na aldeia. A gente ainda tinha aquela visão de índio fechado para o mundo.

Nesse contexto, percebe-se que foram acontecendo rupturas, numa construção de aprender a partir do que é vivido, com abertura para ser transformado pela experiência e pelos afetos por ela provocados, numa relação direta entre conhecimento e vida humana3636. Bondia JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. bras. educ. 2002;19(1):20-8.. Assim, os extensionistas foram questionando sua própria visão etnocêntrica por meio do relativismo cultural, considerando a diversidade de formas de organização comunitária e familiar e superando a natureza evolucionista da cultura ao incorporarem a ideia de que ela é dinâmica e não estática3535. Laraia RB. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2004..

Eu lembro daquela liderança, naquela primeira visita, que se sentou ali no pé da escada da casa dele e surpreendeu a gente com tanta inteligência, que a gente jamais imaginou.

Descobrimos que a casa de farinha tinha uma função comunitária e que se pagava por aquilo. Mostrou uma visão que a gente não tinha conseguido ter.

As falas dos estudantes focaram o processo de vivenciar e superar preconceitos, o que foi possibilitado por meio da experiência com o diferente, num processo de reconhecer o conflito e torná-lo potência na relação.

A maioria de nós se pintou, e, quando veio para a faculdade, teve aquela surpresa. Tinha gente que estranhava, gente que gostava, gente que não gostava. Tinha gente que realmente não disfarçava.

A questão do significado da pintura é incrível, eu acho que realmente mexe com você! Porque a minha pintura significava um guerreiro, era forte. E eu achava o máximo!

Nas falas dos estudantes, ter a pele pintada com um grafismo indígena foi por diversas vezes revelado como uma experiência geradora de conflitos e desencontros, mas também de saberes. Por conseguinte, construíram novos entendimentos que não poderiam ser desenvolvidos a partir de atividades com planejamentos rígidos e que impediriam que algo imprevisto e espontâneo acontecesse3636. Bondia JL. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. bras. educ. 2002;19(1):20-8..

Na aproximação entre as diferentes culturas, os estudantes trouxeram falas que demonstraram o respeito e a tolerância possibilitados a partir do reconhecimento de especificidades relativas a hábitos, costumes e crenças. Ressaltaram adicionalmente o entendimento de que provêm de uma cultura diferente, mas não hierarquicamente inferior3737. Langdon EJ. A tolerância e a política de saúde do índio no Brasil: são compatíveis os saberes biomédicos e os saberes indígenas? In: Grupioni LDB, Vidal LB, Fischmann R, organizadores. Povos indígenas e tolerância. São Paulo: Edusp; 2001. p. 157-65.. Numa assembleia indígena em que puderam participar, reconheceram diferenças quanto à forma de organização e de relações entre as pessoas:

Uma das coisas mais interessantes que eu vi foi que eles ficavam chacoalhando a maraca para a pessoa não fugir do assunto. Mas isso é diferente quando é um ancião. Eles respeitavam o ancião e não balançavam a maraca. Ele tinha a preferência. Era o respeito que ele tinha, que muita gente não tem na cidade!

Tinha a população em geral que não tinha nenhum cargo específico e eles estavam lá! Lutando também e dizendo que estavam acompanhando, que queriam ir para Brasília quando eles fossem lutar. Eu achei, assim, muito organizado. Se fosse eu, não ia saber nem o que era nada daquilo.

Eu antes via como se se aproveitassem da condição histórica para conseguir tudo. E eu percebi que não é isso, entendeu? Eles têm a forma deles lutarem. É uma das forças deles, não são só oprimidos.

Portanto, a possibilidade de reconhecerem uma cultura diferente da sua e que deve ser respeitada surgiu nas falas, trazendo um importante aprendizado: a competência cultural. Por competência cultural entende-se uma capacidade de compreender as necessidades culturais trazidas pelos pacientes e responder efetivamente a elas de forma horizontal, sem hierarquização de valores e práticas, superando preconceitos3838. Helman CG. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed; 2009..

Eu via sempre eles falando que tinham que mostrar a cultura deles e que eles não tinham que ter vergonha, que eles já tinham adquirido muita coisa, mas que nunca deveriam ter vergonha de dançar o toré. Eu achei bonito isso.

A gente comunga dessa vontade de estar aberta a novas ideias, de querer conhecer outras coisas. Isso é o que nos propicia a estar próximos, porque a gente chega aqui desprendido de preconceitos. Querendo fazer outros conceitos, assim.

Na identificação e no trabalho com uma diferente cultura no campo da saúde, é possível reconhecê-la como um conjunto de símbolos e significados que permitem aos indivíduos de um grupo interpretar a experiência e direcionar suas ações. Essa definição de cultura como sistemas entrelaçados de símbolos interpretáveis, dentro dos quais os acontecimentos sociais, os comportamentos e as instituições podem ser descritos de forma inteligível, possibilita entender a saúde (e, em complemento, a doença) como um sistema que é social e cultural na sua origem, estrutura, função e significado3939. Couto MT. Contribuições da antropologia médica para a medicina. Revista de Medicina 2012; 91(3):155-8..

Assim, da mesma forma que outros estudos, percebe-se que a educação médica deve se voltar para as necessidades dos pacientes de populações culturalmente heterogêneas, e, para isso, é necessário estar com os estudantes de Medicina nesses diferentes cenários, inclusive em áreas remotas e indígenas, podendo ser a extensão universitária um desses espaços no caminho da formação de médicos mais conscientes das diferentes realidades socioeconômicas e culturais brasileiras4040. Martins AC, Schlosser AR, Arruda RA, Klein WW, Andrade BW, Labat ALB, et al. Ensino médico e extensão em áreas ribeirinhas da Amazônia. Rev. bras. educ. med . 2013;37(4):566-72.), (4141. Moreira GO, Motta LB. Competência cultural na graduação de Medicina e de Enfermagem. Rev. bras. educ. med . 2016;40(2):164-71..

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise das falas dos extensionistas, percebe-se que as avaliações no Projeto de Extensão Îandé Gûatá aconteceram como uma estratégia contínua e sistematizada para a ressignificação das práticas e de possíveis mudanças no percurso de aprendizagem. Dessa forma, foram reconhecidas as posturas de gestar um projeto em permanente avaliação, de construir de forma compartilhada com os indígenas e de utilizar estratégias diversificadas no seu cotidiano. Essas posturas favoreceram ganhos nos seguintes atributos: conhecimento, permitindo reflexões, identificação de lacunas e maior entendimento sobre o processo saúde e doença no contexto da população indígena; habilidades de fazer e receber críticas, de trabalho em equipe e de diálogo entre culturas diferentes; e atitudes, ampliando a postura do profissionalismo, a compreensão e ação perante as questões éticas e a construção do compromisso social.

Dessa forma, destacaram não somente o desenvolvimento de competências gerais para o futuro médico, mas também as mais específicas, como a competência cultural. A realização da roda de conversa no encerramento do ciclo, recorte deste estudo, ratifica essas informações, bem como destaca as avaliações processuais anteriores como muito expressivas do ponto de vista da potência na mobilização dos aprendizes.

Adicionalmente, revelaram uma compreensão da extensão universitária como espaço contra-hegemônico de formação, no encontro entre diferentes culturas e no desenvolvimento de competências. Apontaram na direção do compromisso social, reforçando a potência da perspectiva da Educação Popular na formação de profissionais de saúde.

Entretanto, demonstraram uma formação ainda impregnada pela dimensão técnica do trabalho e enquadrada na “grade” curricular do curso. Em todos esses aspectos, há o desafio de dialogar na polaridade, de modo a aproximar as distâncias no espaço institucional, reduzir o conflito cultural e promover a compreensão e ação. Ademais, com os embates apareceram a criticidade, a flexibilidade, o compartilhamento, a esperança.

Ou talvez esperançar? Nas ideias de Freire4242. Freire P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra ; 2001., esperançar é “ir atrás, é se juntar, é não desistir. É ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa capacidade de integridade e a nossa fé ativa nas obras”. Esse coletivo de estudantes, com os limites desta experiência, esperançou com uma comunidade indígena a aproximação dessas distâncias, num compromisso coletivo de produzir mudança e transformação social.

AGRADECIMENTOS

Ao povo Potiguara pelos inúmeros ensinamentos proporcionados e que estão aqui relatados. Nossa mais sincera gratidão pela oportunidade de ter vivenciado cada momento nas terras e aldeias de vocês. A todos os extensionistas que estiveram no Îandé Gûatá e deixaram suas pegadas nesta caminhada. À Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba pela parceria e pelo incentivo para o desenvolvimento da pesquisa e do projeto de extensão. À nossa ancestralidade indígena por nos pintar com ousadia e resistência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2020
  • Aceito
    31 Mar 2020
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