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A População Transgênero sob o Olhar da Bioética: Um Panorama dos Currículos de Graduação e dos Cursos de Bioética das Escolas Médicas do Estado de São Paulo

Resumo:

Introdução:

Pessoas transgênero constituem um grupo sujeito a situações de discriminação e adoecimento por causa da marginalização social e da falta de acesso a direitos básicos, em especial a saúde. Sofrem com a inadequação do atendimento voltado a demandas básicas de saúde, com a alta incidência de doenças e com o não atendimento de demandas específicas. A vulnerabilidade dessas pessoas atinge um nível preocupante em razão das atitudes desrespeitosas que as levam a não buscar ajuda. Como uma educação médica voltada às necessidades das populações marginalizadas constitui a base para a melhoria do acesso e para uma assistência adequada, é essencial que as escolas médicas definam conteúdos e estratégias pedagógicas destinados a grupos vulnerados. Com base nisso, este estudo se propôs a investigar e discutir como (e se) a temática da assistência à população trans está inserida no currículo de graduação das escolas médicas do estado de São Paulo.

Método:

Trata-se de um estudo exploratório, de natureza descritiva-analítico, realizado com base em dados coletados de escolas médicas paulistas. O estudo foi conduzido em duas etapas: 1. fez-se uma análise documental sobre a inserção da temática trans nos currículos de graduação e 2. adotou-se um questionário destinado aos professores dos cursos de Bioética com o objetivo de avaliar como e se o tema é abordado como conteúdo programático. Os dados obtidos na primeira etapa foram analisados quantitativamente e são apresentados por meio das frequências relativas das características avaliadas. Na segunda fase, examinaram-se os dados por meio do método estatístico descritivo (perguntas fechadas) e da análise de conteúdo (perguntas abertas).

Resultados:

Identificamos menções à temática trans nos currículos formais de apenas duas das 32 escolas médicas pesquisadas, com um total de cinco citações referentes ao tema. Na análise dos questionários aplicados aos docentes da área de bioética, encontramos relatos de discussões sobre esse tema em 5/12 (42%) das escolas. Apesar de todos os participantes afirmarem que a temática é importante, somente 7/12 (58%) se consideram preparados para abordá-la.

Conclusões:

Postula-se que a evidente falta de conteúdo formativo voltado à temática trans nas escolas médicas pode dificultar a busca por um atendimento mais digno dentro da rede de atenção à saúde e o combate à transfobia. A partir de subsídios encontrados no referencial teórico da bioética de proteção, acreditamos que os currículos médicos e os cursos de Bioética deveriam criar espaços para abordar essa temática, empregando diferentes práticas pedagógicas efetivamente transformadoras e respeitando a diversidade de gênero em todos os ambientes.

Palavras-chave:
Pessoas Transgênero; Educação Médica; Bioética

Abstract:

Introduction:

Transgender people are subject to discrimination and illness due to social marginalization and lack of access to basic rights, especially health care. They suffer from the inadequacy of care directed to basic health demands, high incidence of diseases and non-fulfillment of specific demands. The vulnerability of these people reaches a disturbing level due to disrespectful attitudes that lead trans people to avoid seeking help. Understanding that medical education geared to the needs of marginalized populations is the basis for universal access and adequate care, it is essential that medical schools define contents and pedagogical strategies for vulnerable groups. The aim of this study was to investigate and discuss how (and if) the topic of transgender people healthcare is contemplated in the undergraduate curriculum of medical schools in the state of São Paulo.

Method:

Exploratory, descriptive-analytical study based on data collected from medical schools in São Paulo, conducted in two stages: 1st, documentary research on the inclusion of the topic of trans people health in the undergraduate curricula; 2nd, research with teachers of the Bioethics courses, where a questionnaire was applied to evaluate how and if the topic is approached as a programmatic content. The data obtained in the 1st stage were analyzed quantitatively and are presented as relative frequencies of the evaluated characteristics, while those of the 2nd stage were analyzed through the descriptive statistical method (closed questions) and content analysis (open questions).

Results:

We identified references to the trans topic in the formal curricula of only 2 of the 32 surveyed medical schools, with a total of 5 citations on the topic. Analyzing the questionnaires applied to teachers in the area of bioethics, we found reports of discussions on this topic in 5/12 (42%) schools. Although all participants consider the topic to be important, only 7/12 (58%) consider themselves prepared to address it.

Conclusion:

It is postulated that the evident lack of content aimed at trans health in medical schools can make it difficult to reduce transphobia and develop more dignified services within the healthcare network for these people. Based on the subsidies found in the Bioethics of Protection theoretical framework, we believe the medical curricula and Bioethics courses should create spaces to address this issue, using different and effectively transformative pedagogical practices, and respecting gender identity in all environments.

Keywords:
Transgender Persons; Education Medical; Bioethics

INTRODUÇÃO

O termo “gênero” é definido na língua portuguesa como “conjunto de propriedades atribuídas social e culturalmente em relação ao sexo dos indivíduos”11. Buarque de Holanda A. Dicionário da língua portuguesa. 5a ed. Curitiba: Positivo; 2010. 2222 p. e na língua inglesa como “a condição física e/ou social de ser masculino ou feminino” (22. Cambridge University Press. Cambridge English dictionary; 1999 [acesso em 26 ago 2019]. Disponível em: Disponível em: http://dictionary.cambridge.org
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. Embora ambas as definições possuam coerência entre si, nenhuma delas abarca a complexidade do fenômeno social envolvido. Desse modo, o conceito de gênero é intensamente discutido e reconstruído de acordo com o período histórico vivido, com importante protagonismo dos movimentos feministas, motivados pela desigualdade nas relações sociais e políticas entre homens e mulheres33. Guedes MEF. Gênero, o que é isso? Psicol Ciênc Prof. 1995;15(1-3):4-11 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v15n1-3/02.pdf
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.

Jaqueline de Jesus44. de Jesus JG. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília: Autor; 2012. define gênero como uma forma de classificação pessoal e social das pessoas autodeclaradas como homens ou mulheres, constituída por um conjunto de papéis e expressões de gênero dinamicamente construído e independente do sexo de nascimento. Nos últimos anos, novas questões relativas ao gênero emergiram questionando o próprio conceito binário de propriedades inerentes ao sexo. Essas questões passaram a conceber um espectro feminino-masculino ao qual as pessoas podem pertencer ou não e no qual podem se deslocar livremente55. Dos Reis N, Pinho R. Gêneros não-binários: identidades, expressões e educação. Reflexão e Ação. 2016;24(1):7..

Nesse contexto, pessoas transgênero, mais frequentemente chamadas de trans, são indivíduos que apresentam diversos graus de não conformidade de gênero, ou seja, a identidade de gênero deles difere da compulsoriedade sexo-gênero designada no nascimento. Contudo, a maneira como cada pessoa reivindica sua identidade é variável, dando origem a diversas condições identitárias possíveis. Ativistas trans no Brasil reivindicam suas identidades e as nomeiam social e politicamente como homens trans, mulheres transexuais e travestis, além de pessoas não binárias e gênero queer. O reconhecimento dessas subjetividades é essencial para se oferecer uma efetiva linha de cuidado em saúde trans como recomendado pela Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais66. Brasil. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Ministério da Saúde; 2013 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_lesbicas_gays.pdf
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Por conta das semelhanças das pautas de seus movimentos representativos, fruto do preconceito e da opressão, tais pessoas são frequentemente incluídas na designação coletiva LGBTQIA (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexo e Assexuais). Contudo, esse agrupamento pode causar confusão, visto que são sobrepostos dois conceitos independentes, o de variabilidade e não conformidade de gênero atribuído ao nascimento e o de variações da orientação sexual, esse último referente ao gênero pelo qual o indivíduo se sente atraído sexualmente.

Além de padecerem como toda a população com a inadequação do atendimento voltado a demandas básicas de saúde, as pessoas trans sofrem pela alta incidência de abuso de drogas, infecções sexualmente transmissíveis (IST), transtornos mentais e violência77. Carrara S. Discrimination, policies, and sexual rights in Brazil. Cad Saúde Pública. 2012;28(1):184-9 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2012000100020
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)-(99. Haas AP, Eliason M, Mays VM, Mathy RM, Cochran SD, D’Augelli AR, et al. Suicide and suicide risk in lesbian, gay, bisexual, and transgender populations: review and recommendations. J Homosex. 2010;58(1):10-51. doi: 10.1080/00918369.2011.534038
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, pelo não atendimento de demandas gerais e específicas1010. Cruz TM. Assessing access to care for transgender and gender nonconforming people: a consideration of diversity in combating discrimination. Soc Sci Med. 2014;110:65-73. doi: 10.1016/j.socscimed.2014.03.032
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),(1111. Albuquerque GA, Garcia CL, Quirino GS, Alves MJH, Belém JM, Figueiredo FWS, et al. Access to health services by lesbian, gay, bisexual, and transgender persons: systematic literature review. BMC Int Health Hum Rights. 2016;16(1):2. doi: 10.1186/s12914-015-0072-9
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, como o acompanhamento integralizado em saúde mental, terapia hormonal e cirurgias de modificações corporais1212. Arán M, Murta D, Lionço T. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciênc Saúde Colet. 2009;14(4):1141-9 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000400020&lng=pt&tlng=pt
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),(1313. Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 2016;388(10042):390-400. doi: 10.1016/S0140-6736(16)00683-8
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ante as limitações de ampliação, reformulação e efetivação do “Processo Transexualizador” do Sistema Único de Saúde1414. Brasil. Portaria no 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília; 2013; p. 25-30.. Com frequência, profissionais de saúde despreparados contribuem para a acentuação dessa vulnerabilidade da população trans, particularmente quando adotam posturas preconceituosas que tendem a tornar o acesso aos cuidados de saúde ainda mais penoso e levam os pacientes, muitas vezes, a não buscar ajuda1010. Cruz TM. Assessing access to care for transgender and gender nonconforming people: a consideration of diversity in combating discrimination. Soc Sci Med. 2014;110:65-73. doi: 10.1016/j.socscimed.2014.03.032
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),(1515. Muller MI, Knauth DR. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é “babado”! Cad EBAPE.BR. 2008;6(2):1-14 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512008000200002&lng=pt&tlng=pt
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Do ponto de vista bioético, ao pensarmos intervenções necessárias ao bem-estar dessas pessoas, é importante compreendê-las não somente como vulneráveis, ou seja, suscetíveis a serem afetadas por condições desfavoráveis, em última análise todos os seres humanos, mas também como “vulneradas”, pois estão efetivamente afetadas e são frequentemente incapazes de, por meios próprios, defender-se dessas condições1616. Schramm FR. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioét. 2008;16(1):11-23..

Desse modo, a partir do entendimento de que uma educação médica voltada para as necessidades das populações marginalizadas é essencial e constitui a base para a ampliação do interesse pelo temam para a melhoria do acesso à saúde e para uma assistência adequada1717. Parameshwaran V, Cockbain BC, Hillyard M, Price JR. Is the lack of specific lesbian, gay, bisexual, transgender and queer/questioning (LGBTQ) health care education in medical school a cause for concern? Evidence from a survey of knowledge and practice among UK medical students. J Homosex . 2017;64(3):367-81. doi: 10.1080/00918369.2016.1190218
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, é fundamental que as escolas médicas definam conteúdos e estratégias pedagógicas voltados a esses grupos, fornecendo subsídios para que a população trans possa ter uma assistência à saúde mais eficiente e respeitosa.

Tendo por base os dados preliminares da literatura internacional e instigados pela escassez de dados brasileiros1818. Reisner SL, Poteat T, Keatley J, Cabral M, Mothopeng T, Dunham E, et al. Global health burden and needs of transgender populations: a review. Lancet . 2016 Jul;388(10042):412-36. doi: 10.1016/S0140-6736(16)00684-X
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, propomo-nos a investigar se os currículos das escolas médicas do estado de São Paulo oferecem espaços formais tanto para os conteúdos ligados aos aspectos técnicos da assistência à população trans como para a discussão dos aspectos éticos relacionados ao acolhimento dessa parcela de nossa população. Por enxergamos na bioética uma ferramenta para a promoção de competências ligadas a essa temática, acreditamos ser importante investigar com maior detalhe como e se os cursos de Bioética nas graduações médicas contemplam a assistência a pessoas trans.

MATERIAIS E MÉTODOS

Este é um estudo exploratório, do tipo descritivo-analítico, que tem como foco as escolas médicas do estado de São Paulo. Empregamos uma abordagem mista qualitativa/quantitativa em duas etapas.

Na primeira etapa, foi realizada uma análise documental. Buscamos, por meio virtual, no portal de transparência de cada instituição e por contato via e-mail com coordenadores e diretores dos cursos médicos, os projetos político-pedagógicos, as grades curriculares e os conteúdos programáticos. Nossos critérios de inclusão foram os seguintes: cursos de Medicina credenciados no Ministério da Educação (MEC) e aqueles localizados no estado de São Paulo. Excluímos os cursos que não teriam alunos frequentando cada um dos seis anos da graduação em 2017.

Após a coleta inicial, solicitamos aos coordenadores ou diretores das instituições analisadas que enviassem os documentos faltantes e complementassem as informações obtidas. De posse dos documentos dos cursos, utilizamos para busca no texto as seguintes palavras-chave relacionadas à temática trans - “trans”, “transexual(is)”, “transgênero(s)”, “travesti(s)”, “intersexo(s)”, “intersexual(is)”, “LGBT”, “gênero”, “sexo”, “sexual(is)”, “sexualidade” - com o intuito de verificar se havia efetivamente alguma abordagem desse tópico nos currículos de graduação médica.

Na segunda fase, enviamos a professores de cursos de Bioética das diferentes faculdades um e-mail-convite acompanhado de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e um questionário on-line contendo cinco perguntas fechadas e oito abertas. Os dados obtidos foram analisados quantitativamente por meio de estatística descritiva e qualitativamente por meio de uma análise de conteúdo1919. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2008. 227 p.),(2020. Campos CJG. Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos no campo da saúde. Rev Bras Enferm. 2004;57(5):611-4. doi: 10.2214/AJR.07.7066
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.

RESULTADOS

Por meio de busca realizada nas principais bases de dados (PubMed, SciELO e Lilacs) utilizando o termo “educação” em conjunto com “transgênero(s)”, “trans”, “transexual(is)” ou “LGBT”, pudemos evidenciar que há poucos dados na literatura sobre a atual situação da educação médica voltada à população trans, bem como seu impacto na atenção à saúde dela. Não foram encontrados quaisquer estudos brasileiros, sendo a maioria dos dados relevantes extrapolados de estudos internacionais (majoritariamente norte-americanos) e direcionados à população LGBT como um todo e apenas raramente à população trans.

Etapa 1: Análise documental dos projetos pedagógicos dos cursos médicos

No portal oficial do MEC (http://emec.mec.gov.br/), identificamos 46 cursos de Medicina ativos no estado de São Paulo. Destes, foram incluídos na pesquisa os 32 cursos nos quais os seis anos da graduação médica já estivessem em funcionamento em 2017. A partir dessa busca, pudemos elencar 29 grades curriculares contendo os nomes das disciplinas, os anos em que são oferecidas e a carga horária; 13 conteúdos programáticos ou ementas com a descrição do conteúdo a ser ministrado em cada disciplina; e nove projetos político-pedagógicos contendo o objetivo geral do curso, métodos de ensino, competências e habilidades desejadas. No total, contemplamos documentos dessa natureza em 29 das 32 instituições pesquisadas. Foram encontradas 114 menções às palavras-chave, mas em apenas cinco era possível inferir relação direta com a temática transgênero. Em algumas menções, como “Sexualidade, concepção e integração social em saúde”, “Discutir o conceito gênero e sua aplicação aos estudos da área de saúde reprodutiva” e “Atendimento a vítimas de abuso sexual”, embora a temática trans pudesse estar incluída nas discussões, as atividades não se mostraram pensadas com essa finalidade específica. As cinco menções claramente relacionadas com a capacitação profissional para lidar com a temática trans foram encontradas em apenas duas das escolas médicas.

Em uma faculdade privada do interior, encontramos três menções: um curso on-line obrigatório (“Saúde LGBT da UNA-SUS”), uma ação de extensão (“Educação LGBT e como abordar uma consulta médica”) e uma atividade da “Liga Acadêmica de Neuropsiquiatria” com a palestra sobre “Gêneros e transsexualidade na conjuntura atual”.

Em uma escola médica pública, também localizada no interior, encontramos duas menções, ambas nas ementas da disciplina de Bioética e Ética Médica: “Identidade de gênero e diversidade sexual” aparece como tema de discussão da disciplina, assim como “Transexualismo”.

Etapa 2: Análise dos questionários para professores de Bioética

Na segunda etapa deste estudo, enviamos convites a professores de Bioética das escolas médicas do estado de São Paulo, dessa vez sem a exclusão daquelas escolas que não tivessem todos os anos do curso em funcionamento. Os contatos foram obtidos por meio do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), diretamente dos coordenadores das escolas médicas ou até mesmo dos próprios professores de Bioética.

Realizaram-se até cinco tentativas de contato, e obtiveram-se respostas de 13 professores de 12 faculdades diferentes, das quais cinco são públicas, e sete, privadas. Todos os participantes da pesquisa responderam integralmente ao questionário. No caso da instituição com mais de um participante, combinaram-se os dados e, quando houve divergência em relação aos números do curso, utilizaram-se aqueles que representavam maior inserção do tema. Observamos que a maior parte das aulas de Bioética se concentra no início do curso de graduação, e 9/12 (75%) das instituições ministram aulas apenas entre o primeiro e sexto semestre, e apenas 1 (8,3%) ministra aulas nos dois últimos anos do curso. A média de carga horária ao longo do curso foi de 102,3 horas e a mediana de 66 horas.

Dos que responderam ao questionário, 10/12 (83%) confirmaram a existência de conteúdos voltados a populações vulneráveis, com uma carga horária média de 15,5 horas e mediana de 9 horas. Entre aqueles que ministram conteúdos voltados a populações vulneráveis, 9/10 utilizam aulas expositivas e/ou exposições dialogadas; 7/10, discussões de caso; 3/10, seminários apresentados pelos estudantes; e 5/10, obras artísticas.

Tabela 1
Indicadores de carga horária e conteúdo programático nos cursos de Bioética.

Quanto à presença de conteúdos voltados especificamente à população transgênero, 5/12 (42%) escolas a confirmaram, das quais apenas três informaram a carga horária, com uma média de 4,7 horas entre os que responderam. Apenas 2/12 (17%) faculdades possuem conteúdos voltados à população transgênero em outras disciplinas, sendo mencionadas a psiquiatria, endocrinologia e ginecologia.

Entre as instituições cujos cursos de Bioética não possuem conteúdos voltados à população transgênero (7/12, 58%), apenas 2/7 relataram haver propostas de inserção da temática no curso. Um participante relatou que o diretório acadêmico dos estudantes de Medicina vinha conduzindo discussões acerca do tema.

Todos os participantes (12/12) consideraram importante a abordagem da temática “atendimento médico à população transgênero”, contudo 5/12 (42%) consideraram que não estavam preparados e precisavam de mais estudo ou auxílio de outros profissionais. A maioria dos professores desempenha a função há menos de dez anos, o que indica uma tendência de docentes mais jovens assumirem essa disciplina.

Foram variados os motivos pelos quais os professores de Bioética consideram importante a inclusão da temática trans. Um deles referiu que discussões em espaços não formais vinham ocorrendo por causa da presença de alunos trans no curso, e outro relatou que a importância decorre da vulnerabilidade e discriminação e que os alunos têm carência de informação. Outros três mencionaram a importância de desmistificar e quebrar preconceitos. Um levantou a necessidade de compreensão das necessidades específicas de saúde, e outro afirmou que é importante considerar a sexualidade como construção social, além dos fatores biológicos.

A proposta pedagógica mais frequentemente sugerida, mencionada por 5/12 (42%) dos entrevistados, consiste em realizar debates, seminários ou práticas em saúde com envolvimento direto de pessoas trans em sala de aula.

DISCUSSÃO

A partir do que observamos em nosso estudo, o cenário da educação médica no estado de São Paulo, no que se refere à saúde das pessoas trans, mostrou-se preocupante: apenas 42% das escolas avaliadas ministram aulas sobre o tema e dedicam apenas 4,7 horas em média para a discussão acadêmica do assunto. Embora o discurso dos educadores implicados na formação ética dos novos profissionais médicos alinhe-se no sentido de reforçar a importância dessas discussões (100% dos que responderam ao questionário), observamos que uma parte desses professores (42%) não se considera suficientemente preparada para abordar com segurança a temática trans.

Infelizmente, a falta de espaço formativo oferecido nos cursos médicos para a promoção das competências destinadas a melhorar o atendimento a um grupo tão vulnerável como a população trans guarda semelhança com o que encontramos na literatura internacional. Em um estudo canadense, os profissionais entrevistados reconheceram falhas em sua formação e concordaram com a necessidade de uma melhor abordagem do assunto nos espaços de ensino2121. McPhail D, Rountree-James M, Whetter I. Addressing gaps in physician knowledge regarding transgender health and healthcare through medical education. Can Med Educ J. 2016 Oct;7(2):e70-8 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28344694%0Ahttp://www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?artid=PMC5344057
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. Em outro estudo, conduzido em 176 escolas médicas estadunidenses e canadenses, menos de um terço delas abordava o assunto, com uma carga horária de, em média, cinco horas2222. Obedin-Maliver J, Goldsmith ES, Stewart L, White W, Tran E, Brenman S, et al. Lesbian, gay, bisexual, and transgender - related content in undergraduate medical education. JAMA. 2011 Sep 7;306(9):971-7. doi: 10.1001/jama.2011.1255
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Um estudo de grande porte, que analisou questionários preenchidos por 4.262 estudantes de Medicina canadenses e estadunidenses, sugere que uma maior exposição aos conteúdos LGBT na graduação prepara melhor e aumenta a segurança dos estudantes para abordar temas específicos. Contudo, 67,2% desses estudantes classificaram seus currículos entre “mediano” e “muito ruim” nesse quesito2323. White W, Brenman S, Paradis E, Goldsmith ES, Lunn MR, Obedin-Maliver J, et al. Lesbian, gay, bisexual, and transgender patient care: medical students’ preparedness and comfort. Teach Learn Med. 2015 Jul 3;27(3):254-63. doi: 10.1080/10401334.2015.1044656
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Contudo, é possível encontrar relatos de significante melhora de conhecimento e atitude dos estudantes após intervenções educacionais voltadas especificamente ao conteúdo LGBT, como terminologia, percepção de vieses pessoais, anamnese de saúde sexual e decisão de encaminhamentos2424. Walker K, Arbour M, Waryold J. Educational strategies to help students provide respectful sexual and reproductive health care for lesbian, gay, bisexual, and transgender persons. J Midwifery Womens Health. 2016 Nov;61(6):737-43. doi: 10.1111/jmwh.12506
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),(2525. Kelley L, Chou CL, Dibble SL, Robertson PA. A critical intervention in lesbian, gay, bisexual, and transgender health: knowledge and attitude outcomes among second-year medical students. Teach Learn Med . 2008 Jul 14;20(3):248-53. doi: 10.1080/10401330802199567
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Com base nesse cenário, em que a temática trans dispõe de espaços ínfimos nas escolas médicas e professores de Bioética, ainda que considerem a temática importante, não se sentem seguros para abordá-la, urge discutirmos como a educação em Bioética poderia contribuir para formar médicos mais bem preparados para lidar com pessoas trans, para além da classificação nosológica de “transexualismo”2626. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-IV. 4th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2000. 886 p. [acesso em 17 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: https://search.library.wisc.edu/catalog/999733358502121
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que foi recentemente reposicionada de forma psicodespatologizada na Classificação Internacional de Doenças (CID-11)2727. World Health Organization. International Classification of Diseases 11th revision (ICD-11). WHO; 2018 [acesso em 9 set 2019]. Disponível em: Disponível em: https://icd.who.int/en/
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Embora o termo “transexualismo” não tenha sido incluído nas palavras-chave buscadas por conta de seu uso majoritariamente depreciativo e patologizador, optamos por incluí-lo nos resultados, tendo em vista a clara relação com a temática pesquisada. Ademais, em razão do método utilizado, não foi possível aprofundar o contexto do emprego desse termo, e não conseguimos identificar se o sufixo -ismo foi empregado de fato como doença ou como provocação para uma discussão.

Para melhorar esse cenário de informação veiculada pelas escolas médicas, são necessárias boas práticas médicas formativas, para as quais se demandam evidências científicas, atualizadas e voltadas à população abordada, levando-se em consideração peculiaridades regionais, étnicas, culturais e religiosas que se inter-relacionam com as questões de gênero e orientação sexual. É imprescindível também que o profissional médico desenvolva competências sociais e comunicativas de maneira a compreender e avaliar demandas específicas de cada grupo e de cada pessoa que busca atendimento, evitando situações danosas que concorram para o aumento do sofrimento físico e psíquico.

A aquisição dessas competências, assim como a produção científica voltada para a atuação profissional médica, dá-se majoritariamente em ambientes universitários. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina2828. Brasil. Resolução no 3, de 20 de Junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Brasília; 2014; p. 8-11., os profissionais formados deveriam estar aptos a atuar no Sistema Único de Saúde, assistindo de maneira capacitada todos os recortes populacionais existentes no território nacional.

Inicialmente, é importante salientar que compreendemos a bioética não apenas como uma área acadêmica voltada às discussões de conflitos éticos nas ciências biológicas e na assistência à saúde humana, mas também como uma ferramenta para fornecer esclarecimento ético e orientação moral para a resolução de problemas. Na medida em que as ciências biológicas e os cuidados com a saúde são assuntos de interesse geral e de evidente complexidade, entendemos que a bioética poderia promover, por meio da educação formal, competências que ajudem não somente o enfrentamento acadêmico de problemas bioéticos, mas também de problemas práticos mais amplamente vivenciados, sejam eles de natureza ética, moral ou política2929. Serodio A, Kopelman BI, Bataglia PU. Promoting moral and democratic competencies: towards an educational turn of Bioethics. Rev Bioét . 2016 Aug;24(2):235-42 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-80422016000200235&lng=en&tlng=en
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Para analisar esse cenário e com o objetivo de encaminhar da melhor maneira possível os diferentes problemas éticos e morais enfrentados pelas pessoas trans, especialmente na sua demanda por cuidados apropriados à saúde, este estudo toma como principal referencial teórico o modelo de análise conhecido como bioética de proteção, que elege dois valores prioritários: 1. a noção rawlsiana de justiça como equidade, pelo qual se trata os desiguais de maneira desigual; e 2. o princípio da beneficência, pelo qual ajudamos os outros a consolidar seus interesses legítimos1616. Schramm FR. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioét. 2008;16(1):11-23..

Há abundantes evidências1010. Cruz TM. Assessing access to care for transgender and gender nonconforming people: a consideration of diversity in combating discrimination. Soc Sci Med. 2014;110:65-73. doi: 10.1016/j.socscimed.2014.03.032
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2014...
),(1515. Muller MI, Knauth DR. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é “babado”! Cad EBAPE.BR. 2008;6(2):1-14 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512008000200002&lng=pt&tlng=pt
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) de que o desconhecimento e o preconceito são fatores preponderantes na limitação de cuidados em saúde para a população trans. Compreendemos que tal processo de marginalização é uma construção lenta, sustentada por mecanismos de controle social, como a criminalização e patologização da diversidade, praticadas em nossa história em relação à cor, religião, orientação sexual e identidade de gênero3030. Bento B, Pelúcio L. Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Rev Estud Fem. 2012;20(2):569-81 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2012000200017&lng=pt&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
),(3131. Arán M. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora (Rio J.). 2006;9(1):49-63. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982006000100004&lng=pt&tlng=pt
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Acreditamos que o ensino da bioética pode capacitar os indivíduos não apenas a tomar decisões e agir de acordo com seus próprios valores, como também orientá-los no sentido de empregar a racionalidade de maneira comunicativa, buscando, por exemplo, compreender a diversidade como atributo legítimo e desejável da realidade. Desse modo, ao promover competências ligadas à moralidade e à democracia2929. Serodio A, Kopelman BI, Bataglia PU. Promoting moral and democratic competencies: towards an educational turn of Bioethics. Rev Bioét . 2016 Aug;24(2):235-42 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-80422016000200235&lng=en&tlng=en
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, a bioética pode colaborar para a transformação gradual das características socioculturais envolvidas na gênese da vulnerabilidade e, como postulamos, da vulneração de indivíduos trans.

A atuação de profissionais de saúde destaca-se como ferramenta para promover equidade, pois representa a via de acesso a um bem inestimável e provido de múltiplas subjetividades. Porém, quando o debate do acesso à saúde de pessoas transgênero é negligenciado no ambiente universitário, esses profissionais podem atuar no sentindo oposto, causando maior sofrimento, por conta de posturas inadequadas1010. Cruz TM. Assessing access to care for transgender and gender nonconforming people: a consideration of diversity in combating discrimination. Soc Sci Med. 2014;110:65-73. doi: 10.1016/j.socscimed.2014.03.032
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2014...
),(1515. Muller MI, Knauth DR. Desigualdades no SUS: o caso do atendimento às travestis é “babado”! Cad EBAPE.BR. 2008;6(2):1-14 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512008000200002&lng=pt&tlng=pt
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. Assim, processos institucionais estruturantes que caminhem no sentido de repensar os projetos político-pedagógicos e construir a nova formação médica de maneira mais inclusiva carregam grande potencial transformador, uma vez que o acesso à saúde determina a viabilidade de outras lutas a serem travadas, como pela ocupação de espaços culturais, de trabalho e produção científica.

Nesse escopo, somos impelidos ao debate do protagonismo da população trans nessa iniciativa de diálogo entre academia e sociedade. Além da marginalização sofrida, raramente as pessoas trans ocupam os espaços institucionais como colegiados universitários, nos quais questões importantes sobre o projeto pedagógico são decididas. Assim, deparamo-nos frequentemente com indivíduos que falam pelas pessoas trans, sem necessariamente conhecer em profundidade suas vivências.

Conforme descrito anteriormente, o exercício proposto pela bioética de proteção requer a consolidação dos interesses legítimos de cada indivíduo. Isso, intuitivamente, implica a necessidade de aproximação dos indivíduos vulnerados para conhecer suas necessidades. Tal aproximação, entretanto, ocorre invariavelmente sob a ótica do agente protetor3232. Serodio AMB. Avaliação da competência do juízo moral de estudantes de medicina: comparação entre um curso de bioética tradicional e um curso de bioética complementado com o método Konstanz de Discussão de Dilemas: a educação em bioética na promoção das competências mo. Universidade Federal de São Paulo; 2013.. Assim, o conceito de proteção corre o risco de assumir um viés paternalista, culminando em práticas invasivas e que em última instância podem privar os indivíduos supostamente protegidos de exercer seus desejos individuais, e ao mesmo tempo gerando um falso sentimento de justiça na comunidade acadêmica.

Enfrentamos, portanto, o que Bauman3333. Bauman Z. Postmodern Ethics. 1 ed. Oxford: Blackwell; 1993. 262 p. denomina de “aporia da proximidade”, definida pelo paradoxo de não agir, tomando posição de indiferença, ou agir com base na interpretação pessoal do sofrimento alheio, eventualmente assumindo uma postura paternalista, dificultando ou impedindo a manifestação autônoma dos indivíduos protegidos.

Para lidar com esse impasse, propomos um uso crítico da bioética de proteção que lance mão de uma construção coletiva das intervenções e estimule não apenas participação, mas também um protagonismo das populações vulneradas, para que não sejamos levados a aferir erroneamente prioridades e propor abordagens inadequadas. Essa proposta vem ao encontro da demanda do movimento social trans nacional e internacional com o lema “Nada sobre nós, sem nós”.

Sabemos que a elaboração de documentos pedagógicos (grade curricular, ementa, conteúdo programático, projeto político-pedagógico) é vista como uma penosa burocracia por parte dos docentes. Isso propicia a apresentação de documentos incompletos, desatualizados ou simplesmente mal preparados, podendo dificultar sobremaneira a interpretação dos dados aqui apresentados. É possível que iniciativas voltadas à temática trans simplesmente não tenham sido explicitadas nos referidos documentos. Ainda assim, parece evidente que o assunto não é abordado na proporção e com o cuidado necessários. Nosso estudo verificou que somente 2/29 (7%) escolas médicas explicitam algum tipo de preocupação com o preparo dos futuros médicos para cuidar de pacientes trans.

Conforme discutido anteriormente neste trabalho, alguns dados internacionais reforçam a importância de novos estudos e, principalmente, novas intervenções educacionais voltadas à saúde transgênero2121. McPhail D, Rountree-James M, Whetter I. Addressing gaps in physician knowledge regarding transgender health and healthcare through medical education. Can Med Educ J. 2016 Oct;7(2):e70-8 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28344694%0Ahttp://www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?artid=PMC5344057
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28344...
)-(2525. Kelley L, Chou CL, Dibble SL, Robertson PA. A critical intervention in lesbian, gay, bisexual, and transgender health: knowledge and attitude outcomes among second-year medical students. Teach Learn Med . 2008 Jul 14;20(3):248-53. doi: 10.1080/10401330802199567
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. Nosso estudo corrobora esses achados com dados locais e propõe a necessidade de estabelecer objetivos definidos, escolher conteúdos e propor práticas pedagógicas que conduzam, em última instância, a transformações no âmbito assistencial.

Contudo, esse caminho deve ser trilhado com cautela, de modo a evitar uma medicalização da diversidade de gênero, visto que o enfoque em diagnosticar e buscar abordagens clínico-cirúrgicas no “processo transexualizador” pode ser demasiado simplista, às vezes até colaborando para a exclusão desses indivíduos. A oferta de serviços especializados para transição de expressões de gênero, bem como para cuidados em saúde geral da população trans, é necessária, mas não deve ser considerada suficiente para um cuidado integral. É primordial, nesse sentido, a educação em saúde, tanto no que se refere à formação de profissionais de saúde quanto no que concerne ao esclarecimento da população. Dessa maneira, buscamos garantir o cumprimento de regras já estabelecidas (como o uso de nome social nos serviços de saúde) e fomentar o respeito e a generosidade que devem permear todo contato entre médicos e pacientes1212. Arán M, Murta D, Lionço T. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciênc Saúde Colet. 2009;14(4):1141-9 [acesso em 14 jul 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000400020&lng=pt&tlng=pt
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CONCLUSÃO

Entendemos que cabe às escolas médicas despertar o interesse pela temática trans, não apenas nos poucos estudantes que poderão se tornar especialistas capazes de examinar, prescrever e realizar procedimentos, mas principalmente no conjunto dos estudantes, a fim de despi-los de seus preconceitos e buscar a excelência naquilo de mais básico para o cuidado em saúde: o contato humano.

Na contramão do que pensa parte da sociedade brasileira, temos a convicção de que discussões sobre identidade de gênero devem ser estimuladas nos cursos médicos. Julgamos essencial a inclusão da comunidade trans nesse processo participando das atividades pedagógicas por meio de depoimentos e debates e auxiliando na construção coletiva de futuras ações. Como pudemos observar neste estudo, essa proposta surge com frequência entre os professores, mas ainda carece de implementação institucional mais sistematizada.

Os cursos de Bioética são espaços privilegiados para essas discussões. Ainda que universalmente presentes, contam com carga horária diminuta, o que dificulta a inclusão da temática trans em meio à plêiade de assuntos importantes abordados pela Bioética. Nesse sentido, é importante fornecer maior subsídio para formação dos professores dessa disciplina, capacitando-os para abordar o assunto por meio de ferramentas pedagógicas efetivamente transformadoras, desde sua proposição em ambiente acadêmico até a prática cotidiana, respeitando a diversidade de gênero em nossos ambientes de trabalho, educação e lazer. Imbuídos desse compromisso, cumpriríamos de fato o papel da universidade na formação profissional inclusiva e libertadora e proporcionaríamos um ambiente questionador a serviço das dinâmicas demandas sociais.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem o apoio institucional e financeiro do Cremesp no desenvolvimento da pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2019
  • Aceito
    18 Jun 2020
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