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Percepções acerca do Programa Mais Médicos e do Processo de Supervisão Acadêmica

Resumo:

Introdução:

Este estudo teve como objetivo analisar as percepções dos atores envolvidos acerca do Programa Mais Médicos (PMM) e do processo de supervisão acadêmica, as suas fragilidades e pontencialidades para a melhoria das práticas na atenção primária à saúde.

Método:

Trata-se de estudo qualitativo, realizado por meio de cinco entrevistas em profundidade com médicos supervisores do PMM, analisados com auxílio do software Iramuteq, e 24 entrevistas com gestores de unidades, 12 coordenadores da atenção básica e sete médicos da atenção secundária, que foram submetidas à análise de conteúdo.

Resultados:

Da análise surgiram três eixos temáticos: benefícios do programa para os municípios e a população, os desafios do processo de supervisão e as dificuldades do sistema de saúde fragmentado.

Conclusões:

As percepções dos atores acerca do PMM são positivas, sobretudo porque o programa levou médicos para os municípios com áreas vulneráveis. Antes do PMM, os médicos não tinham interesse em deslocar-se para essas áreas e, quando o faziam, não permaneciam muito tempo nesses locais. A supervisão é importante apoio de formação continuada em serviço, contudo requer que seja mais bem articulada com os diversos níveis de gestão do sistema de saúde. A precariedade da rede de serviços limita a atuação tanto dos médicos como da supervisão, demonstrando que é preciso investir em uma rede de atenção sólida e eficaz. Ademais, ficou evidente que, mais uma vez, a população enfrentará a falta de médicos por causa das mudanças nas políticas de saúde que não priorizam a garantia do acesso universal aos serviços de saúde. É necessária a construção de políticas mais abrangentes que não se limitem ao provimento esporádico de médicos. É imprescindível que haja ações contínuas e mais bem integradas às redes de atenção, visando a um sistema de saúde eficiente e eficaz.

Palavras-chave:
Recursos Humanos; Médicos; Área Remota; Atenção Primária à Saúde

Abstract:

Introduction:

This study aims to analyze the perceptions of the involved actors about the “Mais Médicos” Program (PMM) and the academic supervision process, its strengths and weaknesses aiming to improve Primary Heath Care practices.

Method:

Qualitative study carried out through 05 in-depth interviews with PMM supervising doctors, and 24 interviews with unit managers, 12 Primary Heath Care coordinators, and 07 Secondary Health Care doctors.

Results:

Three thematic axes emerged from de analysis: benefits of the program for the municipalities and for the population; the challenges of the supervisory process and the difficulties of the fragmented health system.

Conclusions:

The actors’ perception of the “Mais Médicos” Program are positive, especially because it brought doctors to municipalities with vulnerable areas, where doctors did not go to and where they did not stay. Supervision is an important support for continuing in-service training; however, it requires a better articulation with the different levels of the health system management. The precariousness of the service network limits the performance of both doctors and supervisors, demonstrating that it is necessary to invest in a solid and effective care network. Moreover, it was once again evident that the population will face a shortage of doctors due to changes in health policies. It is necessary to build more comprehensive policies, that will not only result in sporadic provision of medical care. There is a need for continuous actions, better integrated to the healthcare networks, aiming at an efficient and effective healthcare system.

Keywords:
Human Resources; Doctors; Remote Areas; Primary Health Care

INTRODUÇÃO

Diversos países encontram dificuldades para prover médicos em áreas remotas e vulneráveis, e buscam resolvê-las por meio de políticas e ações de longo prazo11. World Health Organization. Increasing access to health workers in remote and rural areas through improved retention: global policy recommendations. Geneva: WHO; 2010 [access in 28 jul 2020]. Available from: Available from: http://www.searo.who.int/nepal/mediacentre/2010_increasing_access_to_health_workers_in_remote_and_rural_areas .pdf .
http://www.searo.who.int/nepal/mediacent...
)-(55. Viscomi M, Larkins S, Gupta T. Recruitment and retention of general practitioners in rural Canada and Australia: a review of the literature. Can J Rural Med. 2013;18(1):13-23.. No Brasil, observam-se problemas semelhantes66. Pinto H, Oliveira FP, Santana JSS, Santos FOS, Araujo SQ, Figueiredo AM, et al. Programa Mais Médicos: avaliando a implantação do Eixo Provimento de 2013 a 2015. Interface. 2017;21(supl 1):1087-101., apesar de esforços realizados para melhorar a distribuição de médicos pelo país, especialmente na atenção primária à saúde (APS), estratégia adotada para melhorar o acesso equitativo da população aos serviços de saúde77. Giovanella L, Ruiz-Mendoza A, Pilar ACA, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(6):1763-76..

Países como Irã, Tailândia, Canadá, Austrália e Japão abordaram a questão de forma sistemática e demonstraram que as intervenções, quando fragmentadas, levaram a resultados negativos22. Dussault G, Franceschini MC. Not enough there, too many here: understanding geographical imbalances in the distribution of the health workforce. Hum Resour Health. 2006;4(12) [access in 30 aug 2020]. Available from: Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1481612/ .
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
),(33. Chopra M, Munro S, Lavis JN, Vist G, Bennett S. Effects of policy options for human resources for health: an analysis of systematic reviews. Lancet. 2008;371(9613):668-74.),(88. Chopra M, Munro S, Lavis JN, Vist G, Bennett S. Effects off policy options for human resources for health: an analysis off systematic reviews. Lancet . 2008;371(9613):668-74., sugerindo a construção de políticas mais amplas, baseadas em processo de planejamento contínuo e não esporádico, acompanhadas de monitoramento e avaliação.

O Programa Mais Médicos (PMM) foi criado em 2013, com diversas estratégias para atrair, recrutar e reter médicos em áreas remotas e vulneráveis. Contou com articulação intersetorial, com envolvimento do Ministério da Saúde (MS), do Ministério da Educação (MEC), além dos estados e municípios. Apresentava três eixos de atuação: 1. provimento emergencial de médicos por meio da contratação de profissionais brasileiros formados no exterior e estrangeiros para que pudessem atuar em regiões remotas e vulneráveis66. Pinto H, Oliveira FP, Santana JSS, Santos FOS, Araujo SQ, Figueiredo AM, et al. Programa Mais Médicos: avaliando a implantação do Eixo Provimento de 2013 a 2015. Interface. 2017;21(supl 1):1087-101.),(99. Brasil. Portaria Interministerial nº 1.369, de 8 de julho de 2013. Dispõe sobre a implementação do Projeto Mais Médicos para o Brasil. Diário Oficial da União; 9 jul 2013., 2. melhoria da infraestrutura das unidades básicas de saúde (UBS) e 3. mudança na matriz curricular dos cursos de Medicina com maior ênfase na APS e na ampliação de vagas66. Pinto H, Oliveira FP, Santana JSS, Santos FOS, Araujo SQ, Figueiredo AM, et al. Programa Mais Médicos: avaliando a implantação do Eixo Provimento de 2013 a 2015. Interface. 2017;21(supl 1):1087-101.),(99. Brasil. Portaria Interministerial nº 1.369, de 8 de julho de 2013. Dispõe sobre a implementação do Projeto Mais Médicos para o Brasil. Diário Oficial da União; 9 jul 2013..

Entre as estratégias de monitoramento e avaliação do programa, destacou-se a supervisão acadêmica como parte do eixo educacional, cujo propósito era fortalecer a política de educação permanente por meio da integração ensino-serviço1010. Brasil. Portaria Normativa nº 14, de 9 de julho de 2013. Dispõe sobre os procedimentos de adesão das instituições federais de educação superior ao Projeto Mais Médicos e dá outras providências. Diário Oficial da União;10 jul 2013; Seção 1, p.18.),(1111. Brasil. Portaria nº 27, de 14 de julho de 2015. Dispõe sobre a adesão de instituições de ensino e programas de residência ao Projeto Mais Médicos para o Brasil enquanto das instituições supervisoras. Diário Oficial da União;15 jul 2015; Seção 1, p.11.. A Portaria Normativa MEC no 14, de 9 de julho de 2013, dispunha sobre a adesão de instituições federais de educação superior ao programa, que previa o acompanhamento dos médicos do PMM in loco, a tutoria e a supervisão1010. Brasil. Portaria Normativa nº 14, de 9 de julho de 2013. Dispõe sobre os procedimentos de adesão das instituições federais de educação superior ao Projeto Mais Médicos e dá outras providências. Diário Oficial da União;10 jul 2013; Seção 1, p.18.. A tutoria visava acompanhar o processo de trabalho da supervisão acadêmica que buscava incentivar o aperfeiçoamento técnico-assistencial do médico dentro do contexto do fortalecimento da atenção básica em saúde1010. Brasil. Portaria Normativa nº 14, de 9 de julho de 2013. Dispõe sobre os procedimentos de adesão das instituições federais de educação superior ao Projeto Mais Médicos e dá outras providências. Diário Oficial da União;10 jul 2013; Seção 1, p.18.. Além disso, objetivava permitir reflexões sobre o processo de trabalho, a implantação do serviço, o trabalho em equipe, o território e seus determinantes sociais. A operacionalização da supervisão se dava por meio de visita individual e presencial, e também por meio do uso de ferramentas de comunicação à distância, como telefone ou internet, para desenvolver ações de segunda opinião formativa, interconsulta ou outras atividades necessárias para o aprimoramento das ações médicas1010. Brasil. Portaria Normativa nº 14, de 9 de julho de 2013. Dispõe sobre os procedimentos de adesão das instituições federais de educação superior ao Projeto Mais Médicos e dá outras providências. Diário Oficial da União;10 jul 2013; Seção 1, p.18.)- (1212. Brasil. Portaria Normativa nº 28, de 14 de julho de 2015. Dispõe sobre a criação e organização do Grupo Especial de Supervisão para áreas de difícil cobertura de supervisão, no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 15 jul 2015; Seção 1, p. 11.. Cabia também ao supervisor apoiar os médicos na elaboração e implementação dos projetos de intervenção desenvolvidos durante o curso de Especialização em Saúde da Família, realizado por todos os médicos do PMM do primeiro ciclo formativo1010. Brasil. Portaria Normativa nº 14, de 9 de julho de 2013. Dispõe sobre os procedimentos de adesão das instituições federais de educação superior ao Projeto Mais Médicos e dá outras providências. Diário Oficial da União;10 jul 2013; Seção 1, p.18.)- (1212. Brasil. Portaria Normativa nº 28, de 14 de julho de 2015. Dispõe sobre a criação e organização do Grupo Especial de Supervisão para áreas de difícil cobertura de supervisão, no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 15 jul 2015; Seção 1, p. 11..

A supervisão tem sido adotada com diferentes finalidades e estratégias por outros países como apoio aos médicos que trabalham em áreas remotas e vulneráveis, obtendo-se resultados satisfatórios na melhoria técnica dos cuidados, na redução da sensação de isolamento dos profissionais e certamente no fortalecimento da educação permanente1313. Moran AM, Coyle J, Pope R, Boxall D, Nancarrow SA, Young J. Supervision, support and mentoring interventions for health practitioners in rural and remote contexts: an integrative review and thematic synthesis of the literature to identify mechanisms for successful outcomes. Hum Resour Health . 2014;12(10):1-30. doi: 10.1186/1478-4491-12-10.
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),(1414. Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, Cruz MM. Educação permanente em saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde Debate. 2019;43(120):223-39.. No Brasil, a supervisão foi implantada, no âmbito do PMM, como apoio aos médicos e com o intuito de melhorar o processo de trabalho e de gestão da APS1515. Almeida ER, Martins AF, Macedo HM, Penha RC. More Doctors in Brazil Project: an analysis of Academic Supervision. Interface . 2017;21(suppl 1):1291-300.)-(1717. Luna WF, Ávila BT, Brazão CFF, Freitas FPP, Cajado LCS, Bastos LOA. Projeto Mais Médicos para o Brasil em áreas remotas de Roraima, Brasil: relações entre médicos e Grupo Especial de Supervisão. Interface (Botucatu). 2019;23(supl 1):e180029. doi: 10.1590/Interface.180029.
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.

Como se trata de estratégia relevante para a manutenção dos médicos em áreas remotas e vulneráveis e considerando a importância de avaliar o programa sob diferentes perspectivas1818. Harris M. Mais Médicos (More Doctors) Program - a view from England. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9) 2919-23., justifica-se a necessidade de analisar como esse processo ocorreu no PMM a partir dos sujeitos que vivenciaram a experiência. Como esses sujeitos têm percepções relevantes para compreensão de políticas e programas estratégicos, podem fornecem subsídios para o aprimoramento de novas políticas mais robustas e duradouras, capazes de beneficiar a população de forma mais equitativa e justa.

Assim, este estudo tem como objetivo analisar as percepções dos atores envolvidos na implementação do PMM acerca do processo de supervisão acadêmica, as suas fragilidades e pontencialidades para a melhoria das práticas na APS.

MÉTODO

Trata-se de estudo qualitativo fundamentado no construcionismo social1919. Dicicco-Bloom B, Crabtree BF. The qualitative research interview. Med Educ. 2006;40(4):314-21., que permite conhecer os conhecimentos compartilhados por um determinado grupo social e orienta as suas práticas1919. Dicicco-Bloom B, Crabtree BF. The qualitative research interview. Med Educ. 2006;40(4):314-21.. Nessa perspectiva, partiu-se do pressuposto de que é importante compreender as percepções dos atores envolvidos no processo de implementação do programa em nível local para melhor informar as políticas públicas de provimento e promover a retenção de médicos para áreas vulneráveis.

O local deRealizou-se o estudo na Região Integrada do Distrito Federal e Entorno, que envolve os municípios dos estados de Goiás e Minas Gerais e do Distrito Federal. Trata-se de região com grandes contrastes socioenômicos, com cidades denominadas de dormitórios, bolsões de pobreza e algumas com extensas áreas rurais.

Foram realizadas entrevistas em profundidade com cinco médicos supervisores e, visando à triangulação metodológica, com 24 gerentes de unidades, 12 coordenadores da atenção básica e sete médicos da atenção secundária, para compreender as repercussões do processo de supervisão no processo de trabalho, na organização do serviço e no sistema de saúde.

O roteiro de entrevista dos supervisores versava sobre a experiência de trabalho no PMM, as facilidades e dificuldade do processo de supervisão, e as repercussões da finalização do PMM. O roteiro dos coordenadores da APS e dos gerentes das unidades da APS continha questões sobre a supervisão do processo de trabalho, as suas contribuições e limitações. E o dos médicos da atenção secundária abordava a comunicação/integração dos médicos do PMM com a APS, bem como com a rede de atenção.

As entrevistas foram realizadas no período de abril a junho de 2019 e duraram cerca de 45 minutos cada. Todos os sujeitos assinaram o Termo de Consetimento Livre e Esclarecido, e o Projeto Multicêntrico foi aprovado sob o no 3.289.154.

Trascreveram-se todas as entrevistas dos supervisores, doravante denomindas de corpus, as quais foram analisadas no software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Iramuteq), que permite demonstrar os conteúdos compartilhados e acordados por um determinado grupo social2020. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8.. Do processamento do corpus, classificaram-se 71,92%, o que é considerado satisfatório2020. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8..

As entrevistas dos coordenadores, dos gerentes das unidades da atenção básica e dos médicos da atenção secundária foram submetidas à análise de conteúdo na perspectiva hermenêutica, pois visaram complementar a compreenssão das contribuições e limitações do processo de supervisão no contexto do PMM.

Neste estudo, optou-se por utilizar a Classificação Hierárquica Descendente (CHD), em que os segmentos de texto de um corpus são classificados em função dos seus respectivos vocabulários estatisticamente significativos, em forma de classes2020. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8.. Após o processamento e o agrupamento quanto às ocorrências das palavras, cria-se na CHD um dendograma das classes. Para a criação de um dicionário de palavras, o programa utiliza o teste qui-quadrado (χ2 ) que revela a força de associação entre as palavras e a sua respectiva classe2020. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8.. O dendograma, além de apresentar as classes, demonstra a ligação entre elas, pois estão associadas entre si2020. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8..

RESULTADOS

No dendograma (Figura 1), observam-se três eixos temáticos: O primeiro - com a classe 3 com 30,9% e a classe 1 com 18,5%, que estão interligadas - trata dos benefícios do programa para o muncípio e a população. O segundo eixo temático, com a classe 4 (26,1%), revela os desafios do processo de supervisão. O terceiro eixo aborda as dificuldades de comunicação e articulação com a rede de atenção à saúde.

Figura 1
Dendograma: Percepções do Programa Mais Médicos e da supervisão acadêmica

As palavras contidas na classe 3 relevaram que o programa levou médicos para lugares aos quais eles “não iam” e, quando iam, “não ficavam”.

Eu acho que foi um ganho, porque os médicos do Programa Mais Médicos estão em locais que não costumava ter médicos. E quando tinha [médicos], a rotatividade era muito grande, então acho que eles trouxeram uma continuidade no acompanhamento que, com certeza, beneficiou a população (Suj 2).

Contudo, no início, houve certo receio do programa, sobretudo pela ida de grande número de médicos estrangeiros, particularmente de cubanos. Havia certa desconfiança da compentência técnica desses médicos por causa da não revalidação do diploma.

Achava que o médico do Programa Mais Médicos não era médico, porque não tinha CRM, só tinha autorização do Ministério da Saúde para exercer as atividades. Então ele não era médico. O farmacêutico lá na farmácia, seja a farmácia do município ou privada, ele não queria dispensar as receitas prescritas pelo médico integrante do Programa Mais Médicos. Isso gerou alguns processos, inclusive, de conselho para conselho, que já foram resolvidos nesse momento (Suj 5).

Nessa mesma classe, destacou-se que os municípios não têm tido condições financeiras para arcar com o número de médicos necessários para APS. Nesse sentido, a contribuição do pagamento dos salários compatíveis com a complexidade do trabalho na APS pelo Eu acho que foi MS mostrou-se fundamental. Além disso, evidenciou-se a viabilização de um programa com menor interferência política, que é muito comum nos municípios e, por vezes, compromete tanto a forma de organização do processo de trabalho, especialmente na prioridade dos atendimentos da população, como a segurança contratual dos médicos.

Na classe 1, salientaram-se os benefícios do programa, sobretudo os salários que eram pagos na forma de bolsas. Apesar da precariedade do vínculo contratual, o programa permitiu que os médicos recebessem com regularidade, o que comumente não ocorre quando o pagamento é realizado diretamento pelos municípios. Contudo, revelou-se que, para continuidade do programa ou similiar, seria importante a criação de uma carreira de cargos e salários para os médicos.

Outro benefício muito valorizado pelos médicos foi a oportunidade de realizar o curso de especialização em Saúde da Família, à distância, com metodologia de aprendizagem ainda pouco usual na área da saúde, que foi desenvolvido com o apoio das universidades.

O benefício primordial que eu vejo é a especialização. Mesmo sendo Educação à Distância (EAD). No nosso país não tem uma cultura muito boa, não enxerga com bons olhos essa questão de curso e de aprendizagem à distância. Mas é muito boa, e isso é o principal (Suj 2).

Por fim, evidenciou-se que o desligamento de alguns médicos por conta da finalização do programa trará grandes prejuízos para os municípios, que não conseguirão recompor as unidades de APS com o número de médicos necessários, em razão da falta de recursos financeiros para o pagamento dos salários compatíveis com a complexidade da APS, bem como outros tipos de apoios, requeridos para atrair médicos para regiões com infraestrutura precária e/ou afastadas dos grandes centros: “E se acabar o Programa Mais Médicos, vai ser o caos. Os municípios não têm condição de manter esse posto funcionando como está, com o médico, enfermeiro, todo mundo. Não têm”. (Suj 1).

O eixo 2 contém a classe 4 que trata do processo de supervisão acadêmica, que tem como foco/sentido um processo formativo capaz de contribuir para a realização da síntese entre a teoria e a prática.

O nosso título é de supervisor acadêmico. Acho que 80% do objetivo do Programa, a meu entender. É o que é passado para nós quando a gente ingressa, como médico ou supervisor, é formar esse profissional. E consolidar esse conhecimento teórico, acadêmico, com a prática diária (Suj 1).

Destacou-se nessa classe a importância do processo de supervisão, sobretudo para os médicos estrangeiros, particularmente para os cubanos, denominados de cooperados, que eram a grande maioria e que tiveram formação baseada em outro contexto: “Era uma quantidade bem grande de médicos cooperados. A realidade deles, dos estudos deles é bem diferente. Então tinha uma necessidade maior ainda desse link do que eles estudaram lá no país onde se formaram” (Suj 1).

Observou-se que os médicos brasileiros apresentavam maior resistência ao processo de supervisão. Nesse sentido, afirmaram que a supervisão envolveu o desafio de lidar com os próprios pares, que têm o mesmo nível de formação acadêmica e, portanto, não aceitavam com facilidade as orientações realizadas.

Acho que o mais desafiador é lidar com pessoas na supervisão. Você está falando com colegas que são médicos como você, e, muitas vezes, eles não recebem muito bem um eventual feedback que você precise dar. E isso já me criou alguns problemas, gente que não reagiu bem a alguns comentários. Mas, enfim, eu entendo que é meu papel alí de supervisão mesmo (Suj 2).

Nessa classe, constatou-se também o modus operandi do processo de supervisão que envolvia encontros presenciais mensais e apoio à distância, por meio do uso de tecnologias de comunicação que permitem a discussão dos “casos” e a resolução de dúvidas clínicas.

Bom, tem a supervisão presencial, que a gente faz uma vez no mês. Mas a gente também fica à disposição deles durante o mês, à distância. Faz-se supervisão por WhatsApp, basicamente. Mandam foto de lesão de pele, resultado de exame, relatam casos para discutir. E a gente faz essas discussões no dia a dia (Suj 2).

Além disso, realizavam-se encontros regionais, a cada quatro meses, com a finalidade de articular os problemas e as dificuldades identificados no processo de supervisão com a gestão da unidade e as gestões municipal e estadual: “A gente tem reuniões dentro do comitê estadual, junto com os supervisores e o pessoal da UnB, que faz todo o processo de acompanhamento pedagógico para identificar as dificuldades ou entraves que tenha acontecido dentro da região” (Gest AB 11).

Todavia, observaram-se dificuldades no processo de supervisão. A maioria dos gerentes das unidades de APS não percebia claramente a atuação da supervisão ou afirmou que os supervisores tinham atuação muito restrita e superficial, com pouco envolvimento com os atendimentos realizados nas unidades da APS: “Bom, a experiência que a gente tem com o supervisor não é muito boa não. Ele chega aqui, faz algumas perguntas e tal. Mas não é só fazer pergunta, ele tem que analisar na prática” (Gest 1).

Os supervisores demonstraram que a falta de envolvimento da gestor da unidade dificultou a criação de estratégias de intervenção por meio da escuta dos médicos que atuam no cotidiano dos serviços.

Eu acho que, na realidade, a maior dificuldade é essa questão de as gerências participarem um pouco mais nas atividades de supervisão. Porque algumas vezes eles estão na unidade, só que dizem oi e saem. Então seria um espaço privilegiado, de escuta daquilo que o médico está colocando de dificuldade, e aquilo que eu como supervisora poderia auxiliar no serviço com alguma proposta de intervenção junto à gestão (Suj 4).

Os gestores da APS observaram mais claramente os benefícios do processo de supervisão, como um processo dialógico, que faz a escuta dos médicos que estão no cotidiano dos serviços bem como da gestão: “Eles [os supervisores] são bem, vamos dizer assim, democráticos. Eles escutam a gestão, escutam o médico, o que o médico está tendo dificuldade no município. Então sempre há um diálogo que facilita a comunicação” (Gest AB 8).

Nesse sentido, os coordenadores da APS afirmaram que, com a finalização do programa, os municípios perderão o processo de formação em servico, que ocorre por meio da estratégia de supervisão, que se consitui um apoio institucional relevante.

Com o encerramento do contrato, a gente tem perdido muitos profissionais, e consequentemente os supervisores de campo também. Isso é um problema para a gente, porque dificulta. Você vai perdendo essa capacidade grande, essa formação em serviço que os supervisores proporcionam aos profissionais. Coisa que a gente não consegue fazer ainda na estrutura da Secretaria de Saúde hoje. Ter um apoiador institucional, um apoiador regional, discutindo com os profissionais problemas do seu dia a dia com uma periodicidade (Suj 11).

O último eixo temático trata dos desafios da supervisão no contexto de um sistema de saúde fragmentado, especialmente o da comunicação com os outros níveis de atenção à saúde. O prontuário eletrônico foi estratégia criada para melhorar a comunicação entre os médicos dos três níveis de atenção, visando favorecer a continuidade do cuidado. Entretanto, embora tenha sido implantado em muitos municípios, não tem sido usado, por problemas de infraestrutura, falta de conexão do sistema, falta de treinamento de pessoal.

O DF implementou o prontuário eletrônico, mas tem muita dificuldade com relação ao acesso à internet. Isso dificulta algumas ferramentas que eles poderiam estar utilizando como suporte acadêmico da telemedicina para ter acesso aos cadernos da atenção básica (Suj 7).

Além disso, revelaram que o prontuário eletrônico só permite comunicacão com os serviços do nível municipal, pois não tem ligação com os níveis estadual e federal, portanto não possibilita a comunicação com os outros níveis de atenção, secundário e terciário, que estão sob a responsabilidade de esferas de governo distintas: “Agora é que os médicos estão fazendo curso para se adaptar ao programa do prontuário eletrônico municipal. Esse prontuário eletrônico municipal ainda não se comunica com o prontuário eletrônico estadual” (Suj 1).

Observaram-se dificuldades de estabelecimento da APS como coordenadora do sistema de saúde por causa da falta de cultura de valorização da APS como porta de entrada e ordenadora do sistema, tanto pelos médicos como pela população.

Demonstraram que existe dificuldade de acesso para realização de exames, bem como para conseguir os seus resultados para implementação do cuidado em tempo oportuno.

Muito precário. O acesso para a realização dos exames, e depois o resultado, por exemplo uma prevenção ginecológica: a gente tem retorno de até seis meses do resultado de um papanicolau. Um carcinoma in situ em que a mulher depois de seis meses recebe o resultado, e tem todo aquele processo de buscar atendimento específico para o caso dela (Suj 1).

Verificaram também que os mecanismos de referência e contrarreferência não estão claramente estabelecidos dentro do sistema de saúde. Há, portanto, dificuldades para encaminhamento de usuários que necessitam de serviços dos outros níveis de atenção.

DISCUSSÃO

As percepções dos atores envolvidos no PMM são bastante positivas de um programa que levou médicos para os municípios com áreas remotas e vulneráveis, aonde os médicos não iam e, quando iam, não ficavam. O PMM permitiu à população o acesso aos serviços básicos de saúde2121. Campos GWS, Pereira JN. A atenção primária e o programa mais médicos do Sistema Único de Saúde: conquistas e limites. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9):2655-63.)-(2424. Santos LMP, Oliveira A, Trindade JS, Barreto ICHC, Palmeira PA, Comes Y, et al. Implementation research: towards universal health coverage with more doctors in Brazil. Bull World Health Organ. 2017;95(2):103-12., o que está garantido na Constituição vigente como um direito de todos os cidadãos. No entanto, verifica-se a dificuldade de esse direito ser garantido, sobretudo na APS que provê a oferta de serviços para a grande maioria da população77. Giovanella L, Ruiz-Mendoza A, Pilar ACA, Rosa MC, Martins GB, Santos IS, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(6):1763-76.),(2121. Campos GWS, Pereira JN. A atenção primária e o programa mais médicos do Sistema Único de Saúde: conquistas e limites. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9):2655-63..

Nesse sentido, diversos estudos mostraram que o PMM possiblitou principalmente a concretização do princípio da equidade, por meio da distribuição de médicos na APS, segundo os critérios de vulnerabilidade social e de populações específicas2121. Campos GWS, Pereira JN. A atenção primária e o programa mais médicos do Sistema Único de Saúde: conquistas e limites. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9):2655-63.)-(2525. Santos LMP, Rasella D, Millett C, Hone T. The end of Brazil’s More Doctors Program? BMJ. 2018;363:k5247 doi: 10.1136/bmj.k5247.
https://doi.org/doi: 10.1136/bmj.k5247...
. O PMM proporcionou a presença de médicos em áreas de difícil acesso, de extrema pobreza e distante de grandes centros. Além disso, o programa atingiu as periferias de regiões metropolitanas e atendeu as populações indígenas, ribeirinhas e quilombolas, e os povos do campo2121. Campos GWS, Pereira JN. A atenção primária e o programa mais médicos do Sistema Único de Saúde: conquistas e limites. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9):2655-63.)-(2525. Santos LMP, Rasella D, Millett C, Hone T. The end of Brazil’s More Doctors Program? BMJ. 2018;363:k5247 doi: 10.1136/bmj.k5247.
https://doi.org/doi: 10.1136/bmj.k5247...
que antes estavam excluídos do sistema.

Não obstante isso, há que se considerar que, inicialmente, parte da corporação médica posicicionou-se contrariamente ao programa, sobretudo por conta da vinda de grande número de médicos cubanos2626. Jesus RA, Medina MG, Prado NM, Brito L. Programa Mais Médicos: análise documental dos eventos críticos e posicionamento dos atores sociais. Interface. 2017;21(supl 1):1241-56., o que contribuiui para a criação de percepções negativas desses médicos e do programa2727. Lima JC. Public use of reason and argumentation: analysis of discussions about the More Doctors Program. Interface . 2017;21(supl 1):1115-27.)-(2929. Ferla AA, Pinto HA, Possa LB, Trepte RB, Ceccim RB. Ideias, imagens e crenças na produção de políticas públicas: o caso do Programa Mais Médicos. Interface 2017;21(supl 1):1129-41.. A falta de revalidação dos diplomas era o argumento central, pois os médicos cubanos haviam obtido um registro único por meio do MS para atuar apenas em atividades definidas pelo programa. À época, o Conselho Federal de Medicina (CFM) exigiu do PMM a comunição da relação de médicos e do local de atuação deles, sob o argumento de que estariam submetidos às leis vigentes quanto às responsabilizações profissional, civil, penal e ética2727. Lima JC. Public use of reason and argumentation: analysis of discussions about the More Doctors Program. Interface . 2017;21(supl 1):1115-27.. Além disso, o CFM exigiu ações de capacitação que culminaram no processo de acolhimento dos médicos, com vistas a aprimorar a proficiência em língua portuguesa e apresentar os princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), com acompanhamento e avaliação de tutores acadêmicos2828. Villen P. A face qualificada-especializada do trabalho imigrante no Brasil: temporalidade e flexibilidade. Cad. CRH. 2017;30(79):33-50..

A população, ao ter oportunidade de conviver com esses profissionais no cotidiano e reconhecer as suas boas práticas, pôde desconstruir as percepções pejorativas dos médicos e consequentemente ressignificar a importância do programa.

É clara a percepção de que um programa de tamanha envergadura não se viabilizou apenas com os recursos financeiros municipais, mas contou com a responsabilidade do nível federal, mais precisamente do MS2020. Camargo BV, Justo AM. IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas Psicol. 2013;21(2):513-8.),(2222. Scheffer M. Programa Mais Médicos: em busca de respostas satisfatórias. Interface (Botucatu). 2015;19(54):637-40., para o pagamento de salários compatíveis com a complexidade da APS em áreas vulneráveis. A vinculação do programa ao MS possiblitou maior sensação de segurança contratual aos médicos e, por conseguinte, maior liberdade para o desenvolvimento do trabalho, com menor interferência política nos municípios. No entanto, o tipo de contrato de trabalho foi avaliado como precário, pois os médicos eram remunerados por meio de bolsas2121. Campos GWS, Pereira JN. A atenção primária e o programa mais médicos do Sistema Único de Saúde: conquistas e limites. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9):2655-63.),(2222. Scheffer M. Programa Mais Médicos: em busca de respostas satisfatórias. Interface (Botucatu). 2015;19(54):637-40., o que não contemplava garantias trabalhistas2727. Lima JC. Public use of reason and argumentation: analysis of discussions about the More Doctors Program. Interface . 2017;21(supl 1):1115-27..

Outros estudos confirmaram que bons salários, aliados a outros tipos de beneficios, ajudam na fixação de médicos em áreas remotas e vulneráveis, contudo não garantem que isso ocorra2929. Ferla AA, Pinto HA, Possa LB, Trepte RB, Ceccim RB. Ideias, imagens e crenças na produção de políticas públicas: o caso do Programa Mais Médicos. Interface 2017;21(supl 1):1129-41., sendo necessários outros apoios materiais e imateriais, como a possiblidade de realizar tomadas de decisões clínicas compartilhadas, alcance de especialistas, entre outros.

No PMM, os municípios tinham como contrapartida: garantir aos médicos moradia, alimentação e deslocamento; implantar ou apoiar os programas de residência em medicina de família e comunidade; e assegurar aos profissionais o tempo necessário para as atividades de aperfeiçoamento66. Pinto H, Oliveira FP, Santana JSS, Santos FOS, Araujo SQ, Figueiredo AM, et al. Programa Mais Médicos: avaliando a implantação do Eixo Provimento de 2013 a 2015. Interface. 2017;21(supl 1):1087-101.. Estudos têm mostrado que a possibilidade de continuar a formação e a disponiblidade de tempo para estudos para que possam manter os conhecimentos da área atualizados são fatores que têm contribuído fortemente para a retenção dos profissionais de saúde em áreas remotas3030. Bertone MP, Witter S. The complex remuneration of human resources for health in low-income settings: policy implications and a research agenda for designing effective financial incentives. Hum Resour Health . 2015;13(62):9. doi: 10.1186/s12960-015-0058-7.
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), (3131. Braga LPM, Figueiró Filho EA, Santos BC, Gheler MF, Shinzato DN, Simonetti LR, et al. Supervisão docente indireta: percepções das pacientes em ambulatórios de obstetrícia e pediatria. Rev Bras Educ Med. 2017;41(1):4-11..

Observou-se percepção positiva da supervisão acadêmica como um processo formativo que utiliza a abordagem dialógica para realizar a síntese entre a teoria e prática, permitindo uma práxis reflexiva, que possibilita melhorar a atuação na APS. A potência da supervisão reside no estímulo à busca de novos conhecimentos3131. Braga LPM, Figueiró Filho EA, Santos BC, Gheler MF, Shinzato DN, Simonetti LR, et al. Supervisão docente indireta: percepções das pacientes em ambulatórios de obstetrícia e pediatria. Rev Bras Educ Med. 2017;41(1):4-11.),(3232. Xavier K, Shepherd L, Goldstein D. Clinical supervision and education via videoconference: a feasibility project. J Telemed Telecare. 2007;13(4):206-9.) por meio de problematizações, com base na realidade concreta1616. Penha RC, Sousa RG, Oliveira SS, Almeida ER, Firmiano JGA. A gestão da supervisão acadêmica no Projeto Mais Médicos para o Brasil por instituições de educação superior. Interface . 2019;23(supl 1):e180061. doi: 10.1590/interface.180061.
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),(1717. Luna WF, Ávila BT, Brazão CFF, Freitas FPP, Cajado LCS, Bastos LOA. Projeto Mais Médicos para o Brasil em áreas remotas de Roraima, Brasil: relações entre médicos e Grupo Especial de Supervisão. Interface (Botucatu). 2019;23(supl 1):e180029. doi: 10.1590/Interface.180029.
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, que apresenta complexidade crescente na APS, por conta da deterioração da qualidade de vida da população nos útltimos anos como resultado da recessão econômica3333. Hone T, Mirelman AJ, Rasella D, Paes-Sousa R, Barreto ML, Rocha R, et al. Effect of economic recession and impact of health and social protection expenditures on adult mortality: a longitudinal analysis of 5565 Brazilian municipalities. Lancet Glob Health. 2019;7(11):e1575-e1583..

O processo de supervisão foi mais valorizado pelos médicos estrangeiros (os cooperados) do que pelos médicos brasileiros, possivelmente porque esse tipo de apoio tornou-se mais proveitoso para quem tinha formação e vivência em outras realidades, auxiliando-os tanto na melhorias das práticas clínicas como no reconhecimento do território.

A supervisão, aliada a outros benefícios contratuais do PMM, promoveu como modificação relevante a permanência dos médicos em tempo integral nas unidades, o que permitiu o atendimento de maior número de pacientes, sobretudo da demanda espontânea. Além disso, esses profissionais participaram de outras atividades na unidade e na comunidade, o que resultou na satisfação dos usuários2323. Comes Y, Trindade JS, Shimizu HE, Hamann EM, Bargioni F, Ramirez L, et al. Avaliação da satisfação dos usuários e da responsividade dos serviços em municípios inscritos no Programa Mais Médicos. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9):2749-59.. Nesse aspecto, reitera-se que o processo de supervisão por meio de estratégia da problematização da realidade pode contribuir para o maior comprometimento dos médicos com o próprio trabalho1414. Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, Cruz MM. Educação permanente em saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde Debate. 2019;43(120):223-39., extremamente relevante para a APS, que requer a formação de vínculos entre profissionais e os usuários2323. Comes Y, Trindade JS, Shimizu HE, Hamann EM, Bargioni F, Ramirez L, et al. Avaliação da satisfação dos usuários e da responsividade dos serviços em municípios inscritos no Programa Mais Médicos. Ciênc Saúde Colet . 2016;21(9):2749-59..

A supervisão tem sido utlizada como estratégia de apoio em diversos países com áreas remotas, com o propósito de ajudar os médicos nas tomadas de decisões mais oportunas e acertadas1515. Almeida ER, Martins AF, Macedo HM, Penha RC. More Doctors in Brazil Project: an analysis of Academic Supervision. Interface . 2017;21(suppl 1):1291-300.)-(1717. Luna WF, Ávila BT, Brazão CFF, Freitas FPP, Cajado LCS, Bastos LOA. Projeto Mais Médicos para o Brasil em áreas remotas de Roraima, Brasil: relações entre médicos e Grupo Especial de Supervisão. Interface (Botucatu). 2019;23(supl 1):e180029. doi: 10.1590/Interface.180029.
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. Entretanto, a sua introdução nas práticas da APS requer mudança de cultura profissional, com maior valorização desse tipo apoio desde a formação acadêmica dos médicos1414. Ferreira L, Barbosa JSA, Esposti CDD, Cruz MM. Educação permanente em saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde Debate. 2019;43(120):223-39..

A estratégia metodológica de suporte à distância também tem sido usada em muitos países com regiões longíquas e vulneráveis, como apoio ao processo de supervisão, e mostrou-se bastante profícua1313. Moran AM, Coyle J, Pope R, Boxall D, Nancarrow SA, Young J. Supervision, support and mentoring interventions for health practitioners in rural and remote contexts: an integrative review and thematic synthesis of the literature to identify mechanisms for successful outcomes. Hum Resour Health . 2014;12(10):1-30. doi: 10.1186/1478-4491-12-10.
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. Do ponto de vista dos profissionais, observou-se aumento do sentimento de autoconficança, satisfação, e, do ponto de vista do cuidado, maior acesso aos especialistas, além de tomadas de decisões adequadas em tempo oportuno. Todavia, no contexto do PMM, embora implantada na maioria dos municipios, observaram-se dificuldades relacionadas à precariedade da infraestrutura de tecnologias, especialmente de internet nos municípios.

Verificou-se neste estudo que o processo de supervisão não envolveu satisfatoriamente todos os sujeitos responsáveis pela gestão dos serviços da APS, particularmente os gerentes das unidades, que são fundamentais para apoiar as intervenções mais abrangentes. É nesse nível de gestão que podem ser feitas mudanças, tanto no processo de trabalho como na estrutura organizacional, e algumas interferências na rede de atenção.

Observaram-se dificuldades de comunicação e articulação com os demais níveis do sistema de saúde. A falta de rede de atenção à saude apresentou-se como a maior dificuldade para os médicos, pois não conseguem resolver o problema dos usuários que necessitam de outros serviços além da APS.

Ficou, portanto, evidente que, embora seja necessário recrutar, treinar e implantar médicos de família, apenas o PMM, não é suficiente para produzir APS eficaz, porque é necessária uma rede de referência sólida e eficaz, e também é importante o investimento adequado na infraestrutura de redes de atenção à saúde. Essa observação nos leva a considerar o seguinte: um apoio mais consistente dos municípios para integrar os novos médicos do PMM nas redes teria sido fundamental, bem como mais investimento na infraestrutura tecnológica, talvez através por meio da exigência de incentivos acumulados por meio de políticas relacionadas, como o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ), as de rede e outras, a serem mais bem integradas para evitar a fragmentação do cuidado na APS.

Quanto às limitaçoes do estudo, não foram realizadas entrevistas com os tutores para se obter outro contraponto do processo de supervisão. Ademais, a coleta de dados foi realizada quase no momento de finalização do programa, quando os entrevistados estavam vivenciando sentimentos difíceis relacionados ao desligamento dos próprios colegas (os médicos), o que pode ter interferido na construção das percepções do processo de supervisão e do programa.

CONCLUSÕES

As percepções dos atores envolvidos no PMM são bastante positivas de um programa que levou médicos para os municípios com áreas remotas e vulneráveis, aonde os médicos não iam e, quando iam, não ficavam. Portanto, o PMM permitiu à população o acesso aos servicos básicos de saúde com equidade. O processo de supervisão foi compreendido como importante apoio de formação continuada em serviço, que auxilia no processo de tomada de decisão clínica. Contudo, requer que seja mais bem articulado com os diversos níveis de gestão para melhorar a sua capacidade de atuação no sistema de saúde local. Além disso, observou-se que a precariedade da rede de serviços limita a atuação tanto dos médicos como da supervisão, demonstrando que não basta recrutar, treinar e implantar médicos, é preciso investir na rede de atenção sólida e eficaz.

Todavia, ficou evidente que, mais uma vez, a população enfrentará a falta de médicos por causa das mudanças nas políticas de saúde, que não têm como prioridade a garantia do acesso universal aos serviços de saúde.

AGRADECIMENTOS

Helena Eri Shimizu agradece à Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF/ Nº Processo:00193.00002099/2018-65) a bolsa de pós-doutorado para desenvolver o estudo.

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  • FINANCIAMENTO

    Este projeto foi financiado pelo Medical Research Council (MRC)/Newton Fund UK-Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), iniciativa conjunta em Sistemas de Saúde Bolsa MR/R022887/1, FAP/DF, bolsa nº 00193-00000356/2018-24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2020
  • Aceito
    21 Out 2020
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