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Sentimentos dos Estudantes de Medicina e Médicos Residentes ante a Morte: uma Revisão Sistemática

Feelings of Medical Students and Resident Doctors Facing Death: a Systematic Review

Resumo:

Introdução:

Como os profissionais da área médica terão que lidar com a questão da morte, este trabalho teve como objetivos identificar os sentimentos dos estudantes de Medicina e dos médicos residentes do Brasil ante o morrer e a morte, e compreender como eles vivenciam a própria formação durante a graduação e a especialização para esse enfrentamento.

Método:

Trata-se de uma revisão sistemática da literatura feita com base na metodologia PRISMA. A revisão foi conduzida entre agosto e dezembro de 2019 com os descritores “estudantes de medicina”, “medical students”, “morte” e “death”, pesquisados na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS).

Resultados:

Dos 372 artigos identificados na busca, 18 estudos publicados atendiam a todos os critérios de inclusão e exclusão estabelecidos. Quanto à análise dos artigos em relação aos sentimentos dos estudantes de Medicina e dos médicos residentes perante situações de morte, percebeu-se que a maioria dos estudos relatou experiências negativas, como medo, insegurança, tristeza, raiva e culpa. Apesar de ainda serem incipientes as disciplinas e estratégias institucionalizadas, parece que, com o decorrer do curso e da prática profissional, os sentimentos negativos são amenizados, porque se vivenciam com mais frequência contextos de terminalidade e morte, oportunizando, assim, o aprendizado por meio da observação e postura perante essas situações práticas, visto que a morte e suas interfaces fazem parte do cotidiano médico.

Conclusões:

Os estudantes de Medicina e os médicos residentes do Brasil apresentam desconforto e dificuldade em lidar com os processos de morte e do morrer. Para modificar esse cenário de despreparo, é consenso entre eles a necessidade de incluir disciplinas teórico-práticas de Tanatologia, Cuidados Paliativos e Psicologia Médica no currículo das faculdades de Medicina e reformular o conteúdo delas de forma a abordar mais profundamente o processo de morte no contexto prático.

Palavras-chave:
Estudantes de Medicina; Morte; Brasil; Pacientes; Cuidados Paliativos

Abstract:

Introduction:

Most professionals in the medical field will have to deal with the issue of death. This paper aims to describe the feelings of Brazilian medical students and resident doctors regarding end of life and death, as well as to understand how they experience their undergraduate training and specialization in dealing with this process.

Method:

This is a systematic literature review based on the PRISMA methodology, conducted between August and December 2019 with the descriptors “medical students” and “death,” in both English and Portuguese, in papers indexed in the Virtual Health Library (VHL).

Results:

372 papers were identified in the search; 18 were published studies that met all the established inclusion and exclusion criteria. Analysis of the articles concerning the feelings of medical students and resident doctors facing situations involving death revealed that most studies reported negative experiences, such as fear, insecurity, sadness, anger, and guilt. Despite the subjects and institutionalized strategies still being relatively new, it would seem that as their training and professional practice progress, the young doctors’ negative feelings are attenuated as they experience end-of-life and death situations more frequently, thus learning through observation and posture in these practical situations, seeing as death and dealing with it is part of everyday medical work.

Conclusions:

Medical students and medical residents in Brazil experience discomfort and difficulty in dealing with the processes of death and dying. To improve their preparedness in this respect, there is a consensus among them about the need to include the theoretical/practical disciplines of Thanatology, Palliative Care and medical psychology in the medical curriculum and to reformulate the content in order to approach the subject of death in a more practical context.

Keywords:
Medical Students; Death; Brazil; Patients; Palliative Care

INTRODUÇÃO

A morte é um fenômeno universal inerente à condição humana, permeada de simbolismos, significados e valores, variando no decorrer da história e entre as diversas culturas11. Falcão EBM, Mendonça SB. Formação médica, ciência e atendimento ao paciente que morre: uma herança em questão. Rev. Bras Educ Med. 2009;33(3):364-73.. Ao fazer uma análise histórica da relação do homem ocidental com a morte, Philippe Ariès22. Ariès P. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2013. relatou que, no passado, a morte fazia parte da cena cotidiana da vida, era natural e familiar. Ao longo dos séculos, a intimidade do homem com a morte deu lugar a uma atitude de medo e negação, transformando-a em um tabu social33. Hermes HR, Lamarca ICA. Palliative care: an approach based on the professional health categories. Cien Saude Colet. 2013;18(9):2577-88..

Na cultura ocidental dos dias atuais, a morte saiu das casas, afastou-se do seu ciclo familiar e instalou-se nos hospitais¹. Porém, de forma ambivalente, o ambiente médico nem sempre está preparado para alicerçar tal temática. Prepondera, muitas vezes, a conspiração do silêncio: não se fala em morte, e, quando se deparam com tal situação, os profissionais não estão preparados para o assunto, gerando um certo distanciamento em relação aos pacientes que têm doenças terminais44. Duarte AC, Almeida DVD, Popim RC. A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de Medicina. Interface Comun Saúde Educ. 2015;19(55):1207-19.. O despreparo médico para lidar com o processo de morrer é evidente desde a formação na graduação, visto que a maioria dos cursos de Ciências da Saúde, especialmente o de Medicina, ainda é falha em discutir e ensinar sobre a morte e o morrer55. Silva GSND, Ayres JRDCM. O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica. Rev Bras Educ Med . 2010;34(4):487-96..

O que se percebe é que o ensino médico é muito focado no tratamento curativo, e isso se tornou ainda mais evidente a partir do século XVIII, com o desenvolvimento científico e tecnológico, e com a institucionalização do doente terminal, pois o médico deixou de ser um mero espectador no processo do morrer e passou a ter um papel ativo, visando principalmente à cura33. Hermes HR, Lamarca ICA. Palliative care: an approach based on the professional health categories. Cien Saude Colet. 2013;18(9):2577-88..

Dessa forma, o estudante de Medicina foi estimulado a focar sua atenção nas doenças, dando menos importância aos aspectos humano e psicológico envolvidos no enfrentamento da morte. Pode-se perceber que isso ainda é valorizado no ensino médico. A grade curricular e os fatores envolvidos na aprendizagem e formação do médico são bastante responsáveis por essa maneira de empregar esforço laboral em busca da cura como se fosse a única alternativa possível66. Mello AAM, Silva LC da. The doctor Facing death: dealing with angst of the human condition. Rev Abordagem Gestál. 2012;18(1):52-60..

A terminalidade da vida, o sofrimento, o medo e as ansiedades por ela despertadas são uma realidade constante no cotidiano dos trabalhadores de saúde, o que justifica a necessidade de implementar orientações sobre o tema durante a aprendizagem nas faculdades de Medicina44. Duarte AC, Almeida DVD, Popim RC. A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de Medicina. Interface Comun Saúde Educ. 2015;19(55):1207-19.. As diretrizes nacionais vêm impulsionando mudanças nos currículos médicos, visando à formação reflexiva de um profissional com características humanitárias. Muitas escolas buscam implementar metodologias ativas, baseadas na andragogia, e também inserem em seus currículos o ensino da bioética. Porém, de acordo com um estudo realizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), tal iniciativa ainda é muito incipiente, visto que no Brasil menos de 5% das faculdades de Medicina apresentam em seus currículos acadêmicos a disciplina de Cuidados Paliativos77. Pereira EAL, Rangel AB, Giffoni JCG. Identificação do nível de conhecimento em cuidados paliativos na formação médica em uma escola de Medicina de Goiás. Rev Bras Educ Med . 2019; 43(4):65-71..

Com base nessas premissas e com o intuito de subsidiar a institucionalização de estratégias para a melhoria do ensino e da assistência sobre o processo do morrer e da morte, foi proposto o presente estudo. Seus objetivos são descrever os sentimentos dos estudantes de Medicina e dos médicos residentes do Brasil ante o morrer e a morte, e buscar compreender como são as vivências e experiências durante a sua formação na graduação e especialização para o enfrentamento desse processo.

MÉTODOS

Trata-se de revisão sistemática da literatura, conduzida pelas pesquisadoras A. L. C., S. L. O. e S. T. I. M., e a redação do trabalho final foi realizada conforme a recomendação dos Principais Itens para Relatar Revisões Sistemáticas e Metanálises (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses - PRISMA)8. Realizou-se busca on-line no Portal Regional da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) que é um espaço de integração de fontes de informação em saúde que abrange diversas bases de dados, incluindo Literatura Latino-Americana em Ciências da Saúde (Lilacs), Biblioteca Regional de Medicina (Bireme) e Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline). Foram usados os descritores: “estudantes de medicina”, “medical students”, “morte” e “death” com filtro Brasil em país/região de tema. A consulta ao portal foi realizada de agosto a dezembro de 2019.

Os critérios de inclusão foram: 1. artigos que abordavam os sentimentos e/ou a formação dos estudantes de medicina e dos médicos residentes em lidar com o processo de morrer e da morte no decorrer do curso de graduação e residência e/ou a percepção a respeito do tema; 2. estudos em português e inglês. Não se delimitou o ano de publicação. Excluíram-se os artigos que analisavam escolas médicas estrangeiras, estudos de revisão da literatura, relatos de caso e estudos que analisavam estudantes de outras graduações da área da saúde.

O rastreamento dos estudos foi feito de forma independente pelos pesquisadores a partir da avaliação dos títulos e resumos. Em caso de discordância entre os pesquisadores, nessa etapa os estudos eram incluídos. Em seguida, realizou-se a seleção dos estudos a partir da leitura completa dos textos, obedecendo rigorosamente aos critérios de inclusão e exclusão definidos no protocolo de pesquisa. Essa etapa também foi realizada de forma independente. Em caso de discordância, os pesquisadores com o apoio da orientadora arbitravam sobre a seleção do artigo em reunião de consenso.

Os dados foram extraídos de maneira padronizada pelos revisores, que trabalharam novamente de forma independente. Coletaram-se as variáveis relativas às características dos estudos (autor, nome do artigo, local de realização, desenho do estudo, forma de coleta dos dados e tipo de instituição), dados relativos à amostra de cada estudo (número de participantes e período do curso ou especialização), bem como os resultados dos estudos quanto às reações e aos sentimentos diante do morrer e da morte.

RESULTADOS

A seleção dos artigos para a revisão sistemática foi feita de acordo com o fluxograma apresentado na Figura 1. Na busca automática, identificaram-se 372 artigos, dos quais se rastrearam 43 após leitura de títulos e resumos. Depois da leitura integral do texto, incluíram-se 18 artigos.

Figura 1
Fluxograma das etapas de seleção dos estudos

Os 18 estudos identificados nesta revisão foram publicados entre 1998 e 2019, em sua maioria a partir de 2008. A maioria dos artigos abordou as reações e os sentimentos dos estudantes ou residentes de Medicina perante as situações de morte durante a formação médica. Outros artigos apontaram discussões sobre os aspectos psicossociais relacionados ao processo de morrer e da morte e o papel da educação médica na formação dos alunos para que possam lidar com essas questões.

Para a análise dos resultados, os artigos foram organizados no Quadro 1, de acordo com autor, título, local, tipo de estudo, população estudada e reações e sentimentos mais predominantes perante a morte.

Quadro 1
Características dos estudos incluídos na revisão

Os estados brasileiros que contribuíram com estudos foram: São Paulo (n = 7), Brasília (n = 3), Bahia (n = 1), Minas Gerais (n = 1), Rio Grande do Sul (n = 1), Rio Grande do Norte (n = 1), Acre (n = 1), Alagoas (n = 1), Paraná (n = 1) e Goiás (n = 1), conforme demonstrado na Tabela 1. Dos 18 artigos selecionados, cinco (27,7%) foram estudos qualitativos; dois (11,1%), quantitativos e qualitativos; dois (11,1%), quantitativos; oito (44,4%), transversais; e um (5,5%), estudo de coorte. A maior parte dos estudos utilizou questionários para avaliar os sentimentos e as reações da população estudada diante da morte (n = 11). Seis artigos utilizaram entrevistas para a coleta de informações, e um artigo adotou a avaliação curricular do componente Ética e Bioética da instituição para coletar as informações.

Tabela 1
Informações dos artigos analisados

Com relação às instituições de ensino que participaram dos estudos, a maior parte corresponde a universidades públicas (n = 9), três estudos foram feitos em instituições privadas e seis não informaram tal dado.

Quanto à população estudada, somam-se 1.828 estudantes dos 18 artigos, sendo 1.507 alunos realizando a graduação em Medicina e 321 médicos residentes, recém-formados. Dos estudos avaliados, 249 alunos haviam sido preparados para lidar com a morte por meio de disciplinas presentes em suas grades curriculares.

Quanto à análise dos artigos em relação aos sentimentos dos estudantes, a maioria dos alunos, tanto os do segundo como os do sexto ano, quando questionados sobre seus sentimentos perante situações de morte, referiu experiências associadas com a morte de algum parente ou pessoa próxima, mas poucos alunos mencionaram experiências relacionadas com a morte de pacientes durante o curso de graduação. Os alunos do sexto ano falaram sobre aprendizado e aceitação da morte, enquanto os alunos do segundo ano ressaltaram o lado negativo da experiência, utilizando palavras como: “culpa”, “raiva”, “sentimento ruim”2020. Mascia AR, Silva FB, Lucchese AC, De Marco MA, Martins MCFN, Martins LAN. Atitudes frente a aspectos relevantes da prática médica: estudo transversal randomizado com alunos de segundo e sexto anos. Rev Bras Educ Med . 2009;33(1):40-8.. Silva e Ayres55. Silva GSND, Ayres JRDCM. O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica. Rev Bras Educ Med . 2010;34(4):487-96. identificam que a experiência com o processo de morte e morrer ocorre mais ao final da graduação com a maioria dos estudantes.

Quanto à habilidade para lidar com a morte, Vianna e Piccelli2323. Vianna A, Piccelli H. O estudante, o médico e o professor de Medicina perante a morte e o paciente terminal. Rev Assoc Med Bras . 1998;44(1):21-7. constataram que a dificuldade ante as situações de morte entre os residentes é menor se comparada aos estudantes, principalmente os da fase pré-clínica do curso de Medicina, sugerindo que as experiências clínicas durante a residência contribuíram para que eles aprendessem a lidar melhor com a morte. Porém, ao mesmo tempo, a maioria dos residentes e dos professores do estudo relatou muita dificuldade para tratar do tema e até mesmo tentava evitá-lo.

Silva e Ayres5 e Vianna e Piccelli2323. Vianna A, Piccelli H. O estudante, o médico e o professor de Medicina perante a morte e o paciente terminal. Rev Assoc Med Bras . 1998;44(1):21-7. identificam em seus estudos que as experiências de ensino-aprendizagem são bastante escassas durante a graduação, sendo o tema pouco abordado e com frequência evitado. Esse fato foi reforçado na pesquisa de Azeredo, Rocha et al.19, que constataram que, ainda hoje, os alunos são estimulados a ver o paciente de forma mais objetiva e impessoal, negligenciando fatos triviais que ocorrem durante a prática médica, como a dor e o sofrimento. Os estudantes sentem-se pouco encorajados a desenvolver habilidades para lidar com a morte, e, na maior parte dos cursos, esse tema é negligenciado como competência na formação médica.

Apenas um estudo trouxe informações de acadêmicos que se sentiam mais preparados para lidar com a morte por terem recebido alguma preparação durante o curso. A instituição onde foi feita a pesquisa possuía um Programa Educacional de Habilidades e Atitudes Profissionais voltado ao treinamento do estudante em semiologia e comunicação médica, numa visão biopsicossocial, desenvolvido nos primeiros períodos do curso. Embora houvesse grande negatividade e insegurança para confortar e transmitir as más notícias, a maioria se sentia preparada para comunicar a morte em um serviço de urgência1818. Andrade SCD, Deus JAD, Barbosa ECH, Trindade EMV. Avaliação do desenvolvimento de atitudes humanísticas na graduação médica. Rev Bras Educ Med . 2011;35(4):517-25..

Sobre a institucionalização da formação para lidar com a morte, dos 18 artigos selecionados, um menciona essa preparação curricular no ambiente pesquisado, um trabalho não especifica tal informação, cinco informam que, entre a população estudada, uma parte obteve preparação acadêmica e outra não (sendo comum a maior parte da amostra sem preparação), porém a maioria dos estudos (n = 11) aponta a deficiência de formação teórico-prática relacionada à morte.

De acordo com Duarte, Almeida et al.44. Duarte AC, Almeida DVD, Popim RC. A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de Medicina. Interface Comun Saúde Educ. 2015;19(55):1207-19., faltam experiências voltadas para o ensino de habilidades comunicacionais e competências na esfera da sensibilidade humana, e tais saberes também são necessários para a formação do médico, contribuindo para seu próprio bem-estar e para o sistema de saúde de modo geral.

No estudo de Pereira, Rangel et al.77. Pereira EAL, Rangel AB, Giffoni JCG. Identificação do nível de conhecimento em cuidados paliativos na formação médica em uma escola de Medicina de Goiás. Rev Bras Educ Med . 2019; 43(4):65-71., a maioria dos entrevistados relatou ter sentido falta de mais contato com a disciplina Cuidados Paliativos e com a sua vivência na prática médica diante de pacientes que necessitam dessa técnica para ter uma melhora da qualidade de vida.

Em um estudo com médicos e alunos de Medicina sobre a percepção da morte, a maior parte dos médicos se sente preparada para lidar com a morte por conta dos anos de experiência profissional, o que não ocorre com a maioria dos discentes pesquisados. Porém, ambos os grupos enfatizam a necessidade da implantação de disciplina de Tanatologia no currículo ao longo do curso de Medicina1212. Meireles MADC, Feitosa RB, Oliveira LDA, Souza HJD, Lobão LM. Percepção da morte para médicos e alunos de medicina. Rev Bioét. 2019;27(3):500-9..

O estudo de Santos e Pintarelli1111. Santos TF, Pintarelli VL. Educação para o processo do morrer e da morte pelos estudantes de Medicina e médicos residentes. Rev Bras Educ Med . 2019;43(2):5-14. realizado com estudantes de Medicina e médicos residentes também apresenta concordância com os outros estudos, apontando que 58,9% dos estudantes de Medicina e 48,9% dos médicos residentes negaram ter recebido preparação sobre o morrer e a morte durante a formação médica.

Já os alunos de Medicina participantes do estudo de Azeredo, Rocha et al.1919. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2011;35(1):37-43. afirmam que há a necessidade de incluir o ensino sobre a morte de pacientes nas práticas de estágios, não só de forma teórica.

DISCUSSÃO

Até meados do século XX, o homem vivenciava a morte no cenário domiciliar. Estavam com ele a família e os amigos. Seus desejos e suas vontades eram respeitados, pois lhe era permitido expressá-los. Era raro o doente ser encaminhado ao hospital para morrer22. Ariès P. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2013.. Com a aceleração do processo de interdição da morte, ela saiu das casas e instalou-se nos hospitais. Com isso, os profissionais de saúde começaram a conviver com a terminalidade da vida de uma forma constante, e nem sempre estavam preparados para lidar com tal temática, visto que a morte é considerada um tabu social e, portanto, é pouco discutida22. Ariès P. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2013.. Aparentemente, a conspiração do silêncio começou a ser questionada recentemente, visto que a maior parte dos estudos encontrados foi publicada nos últimos anos, com representatividade de todos os estados brasileiros.

Quando se analisam os sentimentos dos estudantes de Medicina em relação à morte, pode-se perceber que a terminalidade da vida remete a sentimentos e sensações de fundo predominantemente negativo, com significado principal de fracasso, impotência e imperícia. Os alunos também revelam sentimentos de medo e angústia perante as experiências com a morte44. Duarte AC, Almeida DVD, Popim RC. A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de Medicina. Interface Comun Saúde Educ. 2015;19(55):1207-19.. Isso mostra que a morte continua sendo um tabu dentro das escolas de Medicina e que, muitas vezes, não há um ensino diferenciado para os alunos, restando-lhes apenas suas vivências e observações pessoais, como crenças, valores e experiências que o indivíduo adquiriu durante a vida.

Segundo os alunos, os profissionais de saúde parecem evitar o confronto com a morte, a qual é historicamente negada na sociedade ocidental2424. Boemer MR. A morte e o morrer. Ribeirão Preto: Holos; 1998.. Dessa forma, os profissionais de saúde parecem favorecer a conspiração do silêncio. Embora o ambiente hospitalar seja o palco principal em que os profissionais convivem diariamente com a terminalidade da vida, pouco ou quase nunca se fala sobre a morte ou sobre as situações que remetem a ela.

De acordo com os estudos, os profissionais de saúde têm dificuldade de lidar com a morte porque o ensino da Medicina, na sociedade contemporânea ocidental, é pautado quase exclusivamente no modelo técnico-científico de valorização absoluta da cura, no qual o cuidado médico, a medicina à beira do leito, o toque, a escuta e o olhar comprometido com o paciente são deslocados para um patamar secundário. Nesse contexto, a morte, parte integral do ciclo da vida, passa a ser considerada evento indesejável, prorrogável e que se pretende expulsar do cotidiano2525. Freitas EDD. Manifiesto por los cuidados paliativos en educación en medicina: estudio dirigido de la Carta de Praga. Rev Bioét . 2017;25(3):527-35.. O foco é sempre nos órgãos e sistemas acometidos pelas doenças e tende-se a perder progressivamente a visão sobre o todo, sobre o organismo vivo e inter-relacionado que alberga o órgão doente. Dessa forma, valorizam-se apenas o diagnóstico e a cura da doença, colocando em segundo plano o cuidado com o ser humano que adoeceu2626. Figueiredo MDGMC, Stano RDCM. O estudo da morte e dos cuidados paliativos: uma experiência didática no currículo de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2013;37(2):298-306..

Uma diferença observada refere-se ao fato de que, apesar de os alunos, tanto dos primeiros ou últimos anos, reportarem sentimentos negativos em relação à morte, estes são amenizados no decorrer do curso, já que os alunos de períodos mais avançados vivenciam com mais frequência contextos de terminalidade44. Duarte AC, Almeida DVD, Popim RC. A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de Medicina. Interface Comun Saúde Educ. 2015;19(55):1207-19..

De forma contraditória, a maioria dos médicos, sejam eles com diferentes especializações e/ou com alta qualificação profissional, continua tendo dificuldades para lidar com a morte, relatando sentimentos de incômodo e angústia11. Falcão EBM, Mendonça SB. Formação médica, ciência e atendimento ao paciente que morre: uma herança em questão. Rev. Bras Educ Med. 2009;33(3):364-73.. O que se percebe é que a maioria deles lida com a morte no cotidiano da profissão e com o passar do tempo, por meio de muito sofrimento, vai adquirindo maturidade profissional e emocional. Porém, mesmo após anos de experiência, ainda há relativa apreensão e sentimento de impotência quando vivenciam a perda de pacientes11. Falcão EBM, Mendonça SB. Formação médica, ciência e atendimento ao paciente que morre: uma herança em questão. Rev. Bras Educ Med. 2009;33(3):364-73..

Com isso, pode-se deduzir que os alunos de períodos avançados possuem um ilusório sentimento de maior preparo para lidar com a terminalidade da vida após poucas vivências e observações44. Duarte AC, Almeida DVD, Popim RC. A morte no cotidiano da graduação: um olhar do aluno de Medicina. Interface Comun Saúde Educ. 2015;19(55):1207-19.. Porém, percebe-se que o médico recém-formado ou mesmo aqueles que possuem anos de profissão, quando confrontados com um cenário de morte inevitável, travam uma luta solitária, o que indica claros custos emocionais exigidos no exercício da clínica2727. Poletto S, Bettinelli LA, Santin JR. Vivências da morte de pacientes idosos na prática médica e dignidade humana. Rev Bioét . 2016;24(3): 590-5..

A vulnerabilidade emocional pode prejudicar a vida pessoal e profissional do médico. Essa situação pode levar a uma sobrecarga, denominada síndrome de burnout, uma das consequências mais marcantes do estresse profissional, que se caracteriza por exaustão emocional e física, despersonalização e diminuição da capacidade de realização pessoal. Refere-se a um tipo de tensão emocional crônica de pessoas que cuidam de maneira muito intensa de outros indivíduos. Além disso, há uma elevada taxa de dependência química, depressão e suicídio entre os médicos2121. Marta GN, Marta SN, Andrea Filho AD, Job JRPP. O estudante de Medicina e o médico recém-formado frente à morte e ao morrer. Rev Bras Educ Med . 2009;33(3):405-16..

A falta de preparo médico pode influenciar negativamente também o cuidado com o paciente, visto que o médico, para defender-se dos seus temores relacionados à morte, muitas vezes se isola e se fragmenta. Há ruptura na comunicação entre médico e paciente verificada pela atitude de não falar da doença e da morte. Consequentemente isso gera um maior distanciamento médico-paciente e uma pior relação em um momento tão delicado2121. Marta GN, Marta SN, Andrea Filho AD, Job JRPP. O estudante de Medicina e o médico recém-formado frente à morte e ao morrer. Rev Bras Educ Med . 2009;33(3):405-16.),(2323. Vianna A, Piccelli H. O estudante, o médico e o professor de Medicina perante a morte e o paciente terminal. Rev Assoc Med Bras . 1998;44(1):21-7..

Há um consenso na literatura, percebido em todos artigos utilizados para a preparação deste trabalho, de que a maioria dos jovens médicos e dos estudantes de Medicina tem pouco ou nenhum apoio pedagógico durante a graduação. Dos 1.828 alunos analisados, apenas 249 receberam preparo para lidar com a morte por meio de disciplinas presente em suas grades curriculares, correspondendo apenas a 13% de todos os estudantes. Em Minas Gerais, apenas duas instituições oferecem, em caráter curricular, o estudo de Tanatologia e Cuidados Paliativos2626. Figueiredo MDGMC, Stano RDCM. O estudo da morte e dos cuidados paliativos: uma experiência didática no currículo de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2013;37(2):298-306.. Logo, os estudos apontam para a necessidade de introduzir conteúdos que visem desenvolver competências interpessoais, capacidade de reflexão sobre questões de ética e deontologia médica, envolvendo a terminalidade da vida.

A maioria dos artigos relata a necessidade de um curso teórico que aborde a temática, para que o estudante seja inserido em diversas situações de conflito do binômio “vida e morte”, fazendo com que ele desenvolva suas ferramentas cognitivas e afetivas, para que, ao se deparar com a situação real, não tenha um impacto que o faça sofrer de maneira disfuncional. Em estágios acadêmicos mais avançados, o ideal seria que o aluno tivesse maior contato pessoal e profissional com os pacientes terminais, sempre monitorados por cuidadores mais experientes que possam transmitir segurança em suas atitudes1414. Malta R, Rodrigues B, Priolli DG. Paradigma na formação médica: atitudes e conhecimentos de acadêmicos sobre morte e cuidados paliativos. Rev Bras Educ Med . 2018;42(2):34-44.. Os alunos precisam de exemplos que os inspirem a lidar com esses pacientes, e cabe aos professores e preceptores agir para detectar os sentimentos e as dificuldades que os discentes enfrentam, além de compartilhar suas próprias experiências como estratégia de orientação1919. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2011;35(1):37-43..

É necessário criar um cenário de discussões sobre morrer e morte de forma longitudinal ao longo do curso de Medicina, com uma visão mais humanística e holística do ser humano, desmistificando a ideia do médico que apenas trata e cura em favor do médico que se importa, independentemente de sua especialidade e do prognóstico do paciente1010. Marques DT, Oliveira MXD, Santos MLGD, Silveira RP, Silva RPM. Percepção, atitudes e ensino sobre a morte e terminalidade da vida no curso de Medicina da Universidade Federal do Acre. Rev Bras Educ Med . 2019;43(3):123-33.),(2828. Oliveira JR, Ferreira AC, Rezende NA, Castro LP. Reflexões sobre o ensino de bioética e cuidados paliativos nas escolas médicas do Estado de Minas Gerais, Brasil. Rev Bras Educ Med 2016;40(3):364-73..

Se bem utilizadas, as experiências acadêmicas com pacientes em fim de vida podem ser valiosas oportunidades de ensino e aprendizado. Lições como bons princípios na relação médico-paciente, discussões sobre questões bioéticas, estratégias para lidar com a morte, noções de autocuidado e profissionalismo, trabalho em equipe e autocrítica podem ser estimuladas desde o início da graduação até o final da carreira médica1010. Marques DT, Oliveira MXD, Santos MLGD, Silveira RP, Silva RPM. Percepção, atitudes e ensino sobre a morte e terminalidade da vida no curso de Medicina da Universidade Federal do Acre. Rev Bras Educ Med . 2019;43(3):123-33..

CONCLUSÕES

Estudantes de Medicina e médicos residentes apresentam desconforto em lidar com os processos de morte e do morrer, e citam sentimentos predominantes de angústia, incômodo e despreparo. O tema ainda é pouco trabalhado de maneira formal nos cursos médicos e de residência, e os alunos vão aprendendo a lidar com situações de sofrimento e com a finalidade da vida na prática, durante os atendimentos. Portanto, os estudantes de Medicina e médicos residentes do Brasil apontam a necessidade de incluir disciplinas teórico-práticas de Tanatologia e Cuidados Paliativos no currículo das escolas médicas para modificar esse cenário de despreparo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2020
  • Aceito
    16 Out 2020
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