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Mentoria em contexto

Mentoring in context

“Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós” (Manoel de Barros, p. 43) 1 1. Barros M. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Planeta; 2006. .

A mentoria, relação de orientação e suporte entre um profissional experiente e um iniciante, tem sido reconhecida como importante estratégia de desenvolvimento profissional e pessoal na formação médica, beneficiando mentores e mentorados. Além do caráter desenvolvimental, a relação de mentoria diminui o estresse emocional, potencializando recursos para o enfrentamento de adversidades.

Embora não nomeada especificamente como mentoria, encontramos nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de Graduação em Medicina22. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Diretrizes Curriculares Nacionais de Graduação em Medicina. Diário Oficial da União; 23 jun 2014. Seção 1., publicadas em 2014, indicativos coerentes com esse conceito. Citamos, como exemplo, dois trechos em destaque nas DCN:

Art. 7º Na Educação em Saúde, o graduando deverá corresponsabilizar-se pela própria formação inicial, continuada e em serviço, autonomia intelectual, responsabilidade social, ao tempo em que se compromete com a formação das futuras gerações de profissionais de saúde, e o estímulo à mobilidade acadêmica e profissional, objetivando: IV - aprender em situações e ambientes protegidos e controlados, ou em simulações da realidade, identificando e avaliando o erro, como insumo da aprendizagem profissional e organizacional e como suporte pedagógico; Art. 29. A estrutura do Curso de Graduação em Medicina deve: V - criar oportunidades de aprendizagem, desde o início do curso e ao longo de todo o processo de graduação, tendo as Ciências Humanas e Sociais como eixo transversal na formação de profissional com perfil generalista [...].

No artigo 7º, identificamos a valorização de um processo educacional que desenvolva o autoconhecimento e a autonomia do educando da mesma forma que explicita a importância do ambiente de aprendizagem seguro para que a reflexão sobre a prática aconteça de forma sistematizada e orientada. No artigo 29, destaca-se a importância de a gestão do curso, de forma intencional e transversal, oportunizar o desenvolvimento pessoal e profissional de forma ampla e individualizada.

Nesse contexto, a reflexão sobre a mentoria apresentada no suplemento é coerente e apoia os objetivos da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) para a melhoria da formação médica, desde o momento de ingresso na escola médica.

A pandemia do novo coronavírus, com as necessárias medidas de controle, afetou médicos e profissionais da saúde na linha de frente do cuidado, com intensa sobrecarga física e emocional, impactando fortemente também a formação médica. Em um período turbulento, de interferência drástica nas atividades das escolas médicas, as ações de suporte, entre elas a mentoria, tornaram-se ainda mais relevantes.

A divulgação científica sobre mentoria pela Revista Brasileira de Educação Médica (RBEM), por meio de um suplemento especial, visou estimular a reflexão sobre as potencialidades dessa intervenção a qual, ao mesmo tempo que incrementa a formação, por meio das trocas intergeracionais, promove saúde mental, por meio de relações próximas, empáticas e solidárias.

Considerando a diversidade de públicos, práticas e contextos nos quais pode ser desenvolvida, buscou-se com essa iniciativa dar visibilidade às práticas brasileiras relacionadas à mentoria e valorizá-las, no âmbito das escolas médicas e/ou residência médica, acolhendo tanto a experiência de programas de mentoria consolidados quanto daqueles em processo de desenvolvimento.

Neste suplemento, o leitor interessado pelo tema encontrará experiências e reflexões sobre desafios e potencialidades da mentoria, impacto na formação dos alunos, componentes éticos da relação mentor-mentorado-instituição de ensino, necessidade de desenvolvimento docente específico para a atividade e modelos de inserção curricular dela.

MENTORIAS: EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES DA COMUNIDADE ACADÊMICA

A proposta do suplemento parece ter estimulado aqueles que se dedicam à mentoria em suas instituições a contar sua história, sejam eles mentores, alunos, residentes e/ou coordenadores de programa.

Recebemos 56 artigos para avaliação, sendo 40 relatos de experiência, dez artigos originais, três ensaios e três revisões sistemáticas. Desse total, 29 estão publicados neste suplemento.

Programas de mentoria estão acontecendo em todas as regiões do Brasil e nas diferentes regionais da Abem (Figura 1).

Figura 1
Artigos submetidos por regional da Abem.

Recebemos manuscritos de 38 instituições: 27 públicas e 11 privadas.

Em relação às linhas temáticas, 75,0% dos artigos abordaram a mentoria na graduação médica; 8,9%, a mentoria por pares; 5,4%, o desenvolvimento docente para mentoria; 5,4%, a mentoria reversa; 3,6%, aspectos relacionados à implantação de programas de mentoria; e 1,8%, a mentoria na residência médica.

NOSSAS PERCEPÇÕES

A mentoria na formação médica brasileira, embora relativamente recente, mostra-se viva e atuante, além de produzir encantamento.

O número de artigos e a variedade de experiências nos permitem afirmar que a mentoria é uma prática de crescente aplicação. Seja como programa estruturado ou prática informal, ação institucional ou iniciativa voluntária individual, ou ainda como prática colaborativa entre docentes e ou discentes, a mentoria está presente em diferentes instituições de ensino superior brasileiras.

Os artigos mostram que há um desejo genuíno de cuidar dos futuros médicos com trabalho sério e persistente: há experiências gerando experiência em mentoria, ou seja, a multiplicidade dos “fazeres” nas diferentes escolas produz, em conjunto, um “saber acumulado” sobre a mentoria em si. Mostram ainda a criatividade e resiliência dos diferentes programas, firmes em seu propósito de manter a mentoria acontecendo mesmo de forma remota, em tempos de pandemia.

Contudo, destacam-se os diferentes entendimentos sobre o que seja mentoria, apresentada muitas vezes numa abordagem mais de ensino do que de acompanhamento do desenvolvimento integral da pessoa do educando. Embora a orientação seja um importante componente pedagógico da tarefa do mentor, o foco da mentoria não está na facilitação da aprendizagem de temas ou de práticas, mas sim no educando e nas vivências dele. A mentoria considera as diferentes dimensões que constituem o educando como sujeito33. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 9a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1998. p.159-65., as repercussões em seu desenvolvimento de um processo formativo tensionado, desgastante e estressante, e os recursos de diferentes naturezas para seu enfrentamento.

A tradução de mentoring por tutoria em português pode explicar parte dessa confusão, sendo recente a inserção da palavra mentoria em nossos dicionários44. Houaiss A. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa [acesso em 18 maio 2021]. Disponível em: Disponível em: https://houaiss.uol.com.br .
https://houaiss.uol.com.br...
. Além disso, práticas de treinamento de determinadas habilidades, conhecidas como coaching, e a supervisão de atividades práticas realizadas por estudantes e residentes, denominada preceptoria, também se misturam com alguns aspectos da mentoria55. Bellodi PL. Tutor. In: Bellodi PL, Martins MA. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005. p. 69-86., mostrando a necessidade de definição de um solo comum conceitual para o caminhar da atividade66. Botti SHO, Rego S. Preceptor, supervisor, tutor e mentor: quais são seus papéis? Rev Bras Educ Med. 2008;32(3):363-73..

Os artigos mostram que o caminho para o estabelecimento de um programa de mentoria de sucesso, isto é, aquele que consegue estruturar espaços para que relações satisfatórias de mentoria aconteçam de forma regular ao longo do tempo, não é percorrido rapidamente. Nesse sentido, as instituições de ensino têm um papel fundamental nos processos de estruturação, apoio, acompanhamento e reestruturação dos programas, de modo a permitir a continuidade da mentoria.

Muitas e diferentes são as necessidades dos alunos e residentes, e muito se espera da mentoria. Jean Rhodes77. Rhodes J. Stand by me: the risks and rewards of mentoring today’s youth. Cambridge: Harvard University Press; 2002., importante pesquisadora em mentoria para jovens, lembra que “fervor sem infraestrutura” (p. 106) gera frustração, isto é, não basta apenas desejar a proposta e acreditar intensamente nela. Se as etapas de estruturação não forem percorridas com cuidado, especialmente a de desenvolvimento docente para o papel de mentor, rapidamente se poderá caminhar da onipotência para a impotência.

Aprender com o exercício da mentoria implica a promoção de espaços de reflexão sobre a prática, por meio de encontros regulares entre os mentores, para a identificação de problemas e a construção de soluções. Implica também, especialmente, estabelecer um canal com os alunos aberto ao feedback, essencial para o aprimoramento dos processos e resultados dessa intervenção.

A boa formação em mentoria se orienta pelo Relatório Delors88. Delors J. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez; 1998. p. 89-101. para a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization - Unesco), da Comissão de Educação para o século XXI, que aponta a necessidade de uma aprendizagem ao longo de toda vida fundamentada em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a ser, aprender a fazer e aprender a conviver. É preciso compreender em profundidade os princípios da atividade (conhecer), ter atributos pessoais (ser) e exercitar habilidades para o papel de mentor (fazer). É preciso ainda, e especialmente, aprender com a experiência, a própria, e também a de outros (conviver). Afinal, não é essa a essência da própria mentoria?

Desejamos que vocês encontrem neste suplemento experiências que traduzam essa essência. E que essas experiências acolham, inspirem, orientem e, por que não dizer, sejam “mentoras” de novos e criativos projetos na área.

Para finalizar, deixamos aqui registrado o nosso agradecimento a todas as pessoas que, generosamente, doaram seu tempo, expertise, motivação e alegria, contribuindo amorosamente para que este suplemento fosse realidade. Nosso agradecimento especial aos avaliadores que prontamente atenderam ao chamado e à diretoria da Abem que nos confiou essa editoria. Dedicamos este suplemento aos alunos e aos seus mentores por acreditarem ser possível desenvolverem-se juntos, valorizando a história e as experiências dela derivadas, vivenciando o hoje e, especialmente, esperançando o futuro.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Barros M. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Planeta; 2006.
  • 2
    Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Diretrizes Curriculares Nacionais de Graduação em Medicina. Diário Oficial da União; 23 jun 2014. Seção 1.
  • 3
    Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 9a ed. São Paulo: Paz e Terra; 1998. p.159-65.
  • 4
    Houaiss A. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa [acesso em 18 maio 2021]. Disponível em: Disponível em: https://houaiss.uol.com.br
    » https://houaiss.uol.com.br
  • 5
    Bellodi PL. Tutor. In: Bellodi PL, Martins MA. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005. p. 69-86.
  • 6
    Botti SHO, Rego S. Preceptor, supervisor, tutor e mentor: quais são seus papéis? Rev Bras Educ Med. 2008;32(3):363-73.
  • 7
    Rhodes J. Stand by me: the risks and rewards of mentoring today’s youth. Cambridge: Harvard University Press; 2002.
  • 8
    Delors J. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. São Paulo: Cortez; 1998. p. 89-101.
  • FINANCIAMENTO

    As autoras declaram não haver financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2021
  • Aceito
    07 Maio 2021
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