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Cartas a um jovem mentor - aprendendo mentoria com os clássicos

Letters to a young mentor - learning mentoring through classics

Resumo:

Introdução:

Como ser mentor para alguém? Como fazer acontecer a mentoria? Qual é o caminho a seguir? Podemos aprender sobre mentoria no cotidiano, em programas estruturados e, desde a sua origem, nos clássicos literários. Neste ensaio, a partir de releitura pessoal do livro Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, busco identificar e apresentar elementos que possam aprofundar a compreensão do ser mentor e do fazer mentoria.

Desenvolvimento:

A troca de correspondências entre o poeta experiente e o iniciante mostra a importância da generosidade e da humildade como atributos de um mentor. Mesmo a distância e mediada por cartas, a relação é sustentada pelos três vértices da mentoria que promovem desenvolvimento: o acolhimento, a reflexão e a visão.

Conclusão:

Mentores modernos podem encontrar, nessa e em outras narrativas clássicas, novas inspirações para o seu fazer. Rilke e o jovem Kappus, tal como Mentor e Telêmaco, na Odisseia, caminham juntos e nos contam uma história que vale a pena ler e reler.

Palavras-chave:
Mentoria; Mentores; Mentorados

Abstract:

Introduction:

How should one be a mentor to someone else? How should one make mentoring happen? Which is the correct path to take? We can learn about mentoring in everyday life, in structured programs, and, since its origins, in literary classics. In this essay, taking as a starting point Letters to a Young Poet, by Rainer Maria Rilke, I sought to identify and present elements that can further our understanding of what it means to be a mentor and to make mentoring happen.

Development:

The letters exchanged between the experienced poet and the beginner show the importance of generosity and humility as a mentor’s attributes. Even if through letters, the relationship is established on three vertices of mentoring that promote development: support, reflection, and vision.

Conclusion:

In the classic narratives, modern mentors can find new inspiration for their practice. Rilke and the young Kappus, as Mentor and Telemachus, walk together and tell us a story that is worth reading and rereading.

Keywords:
Mentoring; Mentors; Mentees

INTRODUÇÃO

“Deixe que tudo aconteça a você Beleza e terror Apenas continue seguindo Nenhum sentimento é definitivo” (Rainer Maria Rilke)11. Rilke RM. O livro de horas. Lisboa: Assírio & Alvim; 2020..

Um jovem, uma travessia, um experiente viajante, uma companhia no caminho.

Na essência da mentoria, não podem faltar esses elementos: na jornada para um novo lugar, um iniciante (o mentorado) e um viajante experiente (o mentor) se encontram e caminham juntos. Com a conversa generosa, numa relação de colaboração, o mentor compartilha conhecimentos práticos, é uma força de suporte pessoal e estimula o jovem a conquistar sua independência22. Awaya A, McEwan H, Heyler D, Linsky S, Lum D, Wakukawa P. Mentoring as a journey. Teach Educ. 2003;19(1):45-56..

Nessa relação aprendem um com o outro, aprendem sobre si mesmos e aprendem mais sobre o caminho - o já feito, pelo mentor, ou o a fazer, pelo mentorado. Como se importam um com o outro, como significam um para o outro, ressignificam o próprio caminho. Não necessariamente de modo mais fácil, mas de modo menos solitário e mais significativo, assim pode ele ser vivido.

Mentores, por sua experiência, conhecem algumas das “pedras do caminho”, os pontos que merecem atenção redobrada e até mesmo possíveis atalhos. Compartilham a vivência do viajar mesmo que o trajeto já tenho sido alterado. E, o mais importante, acreditam que vale a pena seguir em frente33. Daloz LA. Mentor: guiding the journey of adult learners. San Francisco: Jossey-Bass Higher and Adult Education Series; 1986..

Na Odisseia, enquanto Mentor oferece orientação prática para Telêmaco buscar notícias do pai, Atena se faz presente inspirando o jovem a prosseguir com coragem: “por ti próprio encontrarás certas palavras em teu espírito; uma divindade te inspirará outras; pois não acredito que tenhas nascido e crescido contra a vontade dos deuses”44. Homero. Odisseia. Tradução Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural; 2002. (p. 28).

Desenvolver e inspirar força e coragem para prosseguir no caminho, apesar das vicissitudes, com os encontros (a beleza) e desencontros (horror) de toda jornada, talvez seja o propósito mais especial da atividade de mentoria.

Ser e fazer mentoria

Como ser mentor para alguém? Como fazer acontecer a mentoria? Quem pode inspirar o mentor em seu fazer?

Sem dúvida, para responder a essas perguntas, manuais e diretrizes podem ser encontrados, listas de habilidades e características pessoais podem ser recomendadas. Mas para fazer acontecer uma relação de mentoria, de forma efetiva e afetiva, é preciso mais do que saber, é preciso compreender e viver a experiência.

Jean Rhodes55. Rhodes J. Stand by me: the risks and rewards of mentoring today’s youth. Cambridge: Harvard University Press; 2002., importante estudiosa de programas de mentoria e de seus efeitos, já disse: “Nenhuma diretriz rígida deve substituir o julgamento, a experiência e a flexibilidade que seres humanos reais trazem para essa atividade muito humana” (p. 5).

A mentoria é feita do explícito e do implícito. Daquilo que acontece na superfície da relação e conseguimos reconhecer, ao vivo ou por meio de relatos. Podemos assistir aos mentores acolhendo, orientando, desafiando e desenvolvendo o jovem. Mas é feita também daquilo que está submerso e que, embora não observado, sustenta o encontro: o vínculo emocional, o exercício da empatia, o estímulo ao pensar mais e além, o compartilhamento da comum humanidade.

Para além de técnicas ou de um método, para fazer a mentoria acontecer é preciso haver disposição para ser e estar de um certo jeito com um outro que, por ser iniciante, traz perguntas e ansiedades sobre o que virá. Não de um jeito perfeito, que afasta, mas de um jeito suficientemente bom, que aproxima. A mentoria é feita de um cuidar com diversas faces, em presença implicada e em reserva66. Figueiredo LC. A metapsicologia do cuidado. In: Figueiredo LC. As diversas faces do cuidar. São Paulo: Escuta; 2009. p. 131-51.. Um cuidado que se faz com palavras, do contar e ouvir histórias. E, às vezes, de silêncio, estando simplesmente ali, dando ao outro tempo e espaço para ser e se desenvolver.

Aprender com os clássicos

É possível aprender sobre mentoria de diferentes maneiras. Relações de mentoria são vividas informalmente, no cotidiano, e também de forma organizada, em programas estruturados. Podemos identificá-las nas nossas lembranças de vida, assistir a elas em filmes e séries, e, especialmente, encontrá-las nos “clássicos”, aqueles livros “que nunca terminam de contar a sua história”, como bem descreveu Italo Calvino77. Calvino I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso; 2007..

A Odisseia de Homero, sem dúvida, é o clássico, por excelência, no qual encontramos a origem da mentoria. Mas essa arquetípica relação entre um velho sábio e um jovem está retratada em vários outros clássicos da literatura, e mentores modernos podem neles encontrar novas e diferentes inspirações para o seu fazer.

Este pequeno ensaio nasce de minhas vivências como coordenadora do Programa de Mentoria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, desde seu início em 200188. Bellodi PL, Martins MA, organizadores. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.. Nasce também da releitura pessoal de um clássico em especial, Cartas a um jovem poeta99. Rilke RM. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L± 2020., em que Rainer Maria Rilke acolhe e ajuda o jovem Franz Xaver Kappus a olhar não apenas para seus poemas, mas também para si mesmo e para a vida.

Há mentoria ali. Há um jovem, um caminho, um mentor, a experiência e a troca. Há mentoria ali. Das melhores. De verdade.

Este ensaio é para você que aprecia, acha bonita e importante essa relação.

Para você que já a viveu, como mentor ou mentorado, e para você que se ocupa de fazê-la acontecer para muitos outros. É também, especialmente, para você que, tendo sido já um jovem iniciante, deseja vivê-la agora, no lugar do caminhante experiente.

SER MENTOR

Para Laurent Daloz33. Daloz LA. Mentor: guiding the journey of adult learners. San Francisco: Jossey-Bass Higher and Adult Education Series; 1986., autor também de um “clássico”, no campo próprio da mentoria, Mentor: guiding the journey of adult learners, mentores são guias que nos conduzem ao longo da jornada das nossas vidas. Acreditamos neles, diz ele, porque estiveram nesse caminho anteriormente.

Esse é o ponto de partida que leva o jovem Kappus, em 1903, a enviar a Rainer Maria Rilke suas tentativas poéticas e pedir sua avaliação. Além da poesia, descobre que Rilke havia sido aluno de uma escola militar, condição idêntica de Kappus naquele momento.

Ao longo das cartas trocadas, numa correspondência que durou até 1908, Rilke acompanha a jornada de Kappus na escrita dos versos e na carreira militar. Como diria Daloz33. Daloz LA. Mentor: guiding the journey of adult learners. San Francisco: Jossey-Bass Higher and Adult Education Series; 1986., ele buscava iluminar o caminho que o jovem estava a percorrer, interpretava sinais, prevenia de perigos e mostrava as satisfações do amadurecimento. Como mentor, Rilke dava suporte ao sonho do jovem poeta, “preparando de alguma maneira para aquilo que virá, como aquele que traz nossos sonhos à luz” (p. 17).

Sabemos que as relações de mentoria são únicas e complexas e que vários elementos, internos e externos, contribuem para seu desenrolar ao longo tempo. Mas, sem dúvida, certos atributos do mentor mostram-se especialmente importantes para que elas produzam seus efeitos1010. Bellodi PL. Tutor. In: Bellodi PL, Martins MA, organizadores. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo ; 2005..

A generosidade, isto é, ser alguém capaz de compartilhar suas experiências de vida e, ao mesmo tempo, demonstrar um interesse genuíno pelo outro, é essencial. Ser disponível, investir tempo e energia para estabelecer uma relação de longo prazo também fundamental. Valorizar a mentoria como parte importante de sua vida, mostrar entusiasmo com as realizações do jovem e, em especial, não negar sua própria ignorância completam, embora não esgotem, esse retrato.

Algumas características pessoais de Rilke, nesse sentido, se fazem notar desde o início da relação com Kappus.

Sua gratidão e alegria por ser procurado pelo jovem eram genuínas:

Sua carta só me alcançou há poucos dias. Quero lhe agradecer por sua grande e amável confiança. Mas é só isso o que posso fazer (p. 23).

Foi uma alegria para mim ler muitas vezes esse soneto e sua carta; portanto agradeço pelos dois (p. 64).

Sua disponibilidade em manter o vínculo, mesmo em momentos difíceis, estava sempre presente:

Quero conversar de novo com o senhor por um momento, meu caro Kappus, embora não possa dizer quase nada que o ajude, quase nada de útil (p. 73).

Penso com frequência no senhor, e com tal concentração em meus votos, que isso certamente o ajudaria de alguma maneira (p. 85).

E, especialmente, sua humildade em relação àquilo que podia oferecer, mesmo sendo um poeta reconhecido:

Deve ter certeza de que sempre me alegrará com cada carta, só tem de ser indulgente em relação à resposta, que talvez venha a deixá-lo muitas vezes de mãos vazias (p. 29).

Mas duvido muito que minhas cartas possam servir de auxílio. Não me diga que sim, que elas são uma ajuda. Receba-as com tranquilidade, sem muitos agradecimentos, e permita-nos esperar o que está por vir (p. 85).

Daniel Levinson1111. Levinson DJ. The seasons of a man’s life. New York: Ballantine Books; 1978., em seu livro The seasons of a man life, destinou um capítulo especial para as relações de mentoria. Para ele, ser mentor para alguém é uma das mais importantes tarefas do homem adulto.

Erik Erikson1212. Erikson E. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: LTC; 1987., psicanalista, ao descrever as “8 idades do homem”, com suas respectivas tarefas e tensões, também refere a importância da “generatividade” na vida adulta madura, isto é, a necessidade de orientar a geração seguinte.

A alegria e a gratidão expressas por Rilke podem ser compreendidas pela satisfação em atender a essa necessidade da maturidade. Fase da vida, vale dizer, em que o desejo de contribuir é acompanhado por frequente avaliação de tudo aquilo que pode ser feito e sua real importância.

Reflexão que Rilke não deixa de fazer também: “muita coisa precisa acontecer para que um de nós seja capaz de aconselhar ou mesmo ajudar o outro, muitos êxitos são necessários, toda uma constelação de acontecimentos tem de se alinhar para que isso dê certo alguma vez” (p. 30).

FAZER MENTORIA

Diferentes fazeres compõem o “mosaico” da mentoria, e eles se fazem presente de acordo com as necessidades do jovem, de seu momento de vida e da relação de mentoria.

São muitos os “chapéus” que um mentor pode usar para dar apoio à “realização do sonho do jovem”1111. Levinson DJ. The seasons of a man’s life. New York: Ballantine Books; 1978., e esses diferentes autores “clássicos” tentam compreender de que maneira, em essência, esse fazer influencia o desenvolvimento e promove mudanças.

Daloz33. Daloz LA. Mentor: guiding the journey of adult learners. San Francisco: Jossey-Bass Higher and Adult Education Series; 1986., ao buscar compreender o poder transformador da mentoria, diz que seus efeitos acontecem quando os mentores oferecem três coisas distintas: oferecem suporte, desafiam e proveem visão. Rhodes55. Rhodes J. Stand by me: the risks and rewards of mentoring today’s youth. Cambridge: Harvard University Press; 2002., por meio de uma metanálise rigorosa de vários programas de mentoria, também considera que as mudanças acontecem por conta de três elementos: o acolhimento, a reflexão e a perspectiva de futuro.

É possível reconhecer esses três vértices promotores de desenvolvimento ao longo de toda a troca de cartas entre o experiente Rilke e o jovem poeta Kappus.

Acolhimento

Rilke acolhia o jovem poeta e dava suporte a ele afirmando a validade da sua experiência, fosse ela de alegrias e sucesso:

O senhor deve saber, caro senhor Kappus, como estou alegre por ter em mãos esta sua bela carta. As notícias que me dá, reais e explícitas como são desta vez, parecem-me boas, e quanto mais considero o assunto, mais as percebo como sendo boas de fato (p. 89).

Ou de temores e insucesso:

Assim, não é preciso se assustar, meu caro Kappus, quando uma tristeza se ergue à sua frente, tão grande como o senhor nunca viu [...]. É preciso pensar que acontece algo com o senhor, que a vida não o esqueceu, que ela segura sua mão e não o deixará cair (p. 80).

Oferecia um espaço seguro, de não julgamento, em que o jovem podia confiar: “Teria sido um prazer receber esse livro (como tudo aquilo que vem do senhor); e quanto aos versos que venham a ser escritos enquanto isso, sempre os lerei (caso o senhor me confie os poemas) e acolherei da melhor maneira que puder” (p. 54).

Lembrava ao jovem que ele poderia sobreviver aos momentos mais difíceis da jornada e passar pela transformação, mesmo que temeroso:

Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los (p. 79).

Coragem e confiança caminham juntas, e, como ressalta Erikson1212. Erikson E. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: LTC; 1987., ao falar sobre o início da vida, sem uma razoável confiança básica no mundo, é difícil se mover para frente, ter iniciativa e explorar o ambiente. E dizia Rilke: “No fundo é esta a única coragem que se exige de nós: sermos corajosos diante do que é mais estranho, mais maravilhoso e mais inexplicável entre tudo com que nos deparamos” (p. 78).

Reflexão

Rilke desafiava Kappus a pensar, introduzia novas ideias, questionava hipóteses e até mesmo se recusava a responder de imediato às dúvidas do jovem. Muitas vezes trazia observações e percepções que questionavam a visão de mundo do jovem poeta.

Segundo Lev Vygotsky1313. Vygotsky LS. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes; 2000., psicólogo russo especialista em desenvolvimento e linguagem, temos uma espécie de “elasticidade psicológica” na nossa capacidade de aprender, que, quando sob a orientação de alguém mais experiente, podemos fazer e pensar mais e diferente. Quando, por meio de conversas significativas e continuadas, um jovem é estimulado por seu mentor a ir além, a capacidade mental e emocional do mentorado aumenta e cresce.

Ao longo das correspondências, Rilke “esticava” o jovem poeta de diferentes maneiras.

Desafiava-o a se questionar:

Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração [...]. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? (p. 25).

Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos em uma língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Viva agora as perguntas (p. 43).

A pensar a partir de outras perspectivas:

As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil (p. 64).

Pois, se pensamos a existência do indivíduo como um cômodo de dimensões maiores ou menores, revela-se que a maioria de nós só chega a conhecer um canto de seu quarto, um local perto da janela, uma faixa na qual se anda para lá e para cá (p. 79).

Também confrontava algumas de suas percepções e atitudes:

Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas (p. 26).

Eu sei, a sua profissão é dura e cheia de contradições que o afetam, e eu previa as suas queixas, já sabia que elas viriam um dia. Agora que vieram, não posso tranquilizá-lo, posso apenas aconselhar que pondere se todas as profissões não são assim, cheias de exigências (p. 57).

E, sem dúvida, momentos de feedback estavam presentes na relação:

Feita essa observação prévia, posso lhe dizer ainda que seus versos não possuem uma forma própria, mas apenas indicações silenciosas e veladas de personalidade (p. 24).

O senhor pode notar que copiei seu soneto, porque achei que ele é belo e simples, nascido em uma forma na qual se desenrola com tão tranquila sobriedade. São os melhores versos que cheguei a ler de sua parte (p. 63).

Visão

O que significa prover visão? Rilke buscava, em vários momentos, aproximar o jovem poeta da “realidade” da vida e do fazer profissional no cotidiano.

Apresentava as dificuldades de sua própria “vida de poeta”, mostrando-se como um exemplo concreto e menos idealizado:

Se ainda posso acrescentar algo, é o seguinte: não acredite que quem procura consolá-lo vive sem esforço, em meio às palavras simples e tranquilas que às vezes lhe fazem bem. A vida dele tem muita labuta e muita tristeza e permanece muito atrás dessas coisas. Se fosse de outra maneira, nunca teria encontrado aquelas palavras (p. 83).

Buscava criar certa “dissonância cognitiva”, um espaço entre a percepção e a expectativa, ao fazer pensar sobre o significado dos desafios e das conquistas no caminho:

[...] o senhor superestima a vitória; não é ela a “grandiosa” realização que o senhor pretende ter conseguido, embora tenha razão com relação a seu modo de sentir; o grandioso é o fato de haver algo ali que o senhor pôde colocar no lugar daquele engano, algo de verdadeiro e real (p. 82).

Em outros momentos, Rilke apresentava a Kappus uma nova perspectiva sobre o mundo, possibilitando que ele fosse visto de modo mais amplo, mesmo que mais misterioso: “As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou” (p. 23).

CONCLUSÃO

Ser seu próprio cuidador

Na introdução deste ensaio, ao prometer refletir sobre a mentoria a partir da leitura dos clássicos, disse também que o resultado desse caminho seria oferecido para todo aquele que aprecia a mentoria. Espero ter conseguido...

Agora, desejo conversar mais de perto com aqueles que vivenciam, ou desejam vivenciar, a mentoria no cenário da formação médica e da educação em saúde. A medicina, e o campo das profissões em saúde em geral, é um fazer buscado por aqueles que, por diferentes razões, conscientes e inconscientes, desejam se aproximar das doenças, dos doentes e do adoecer. Esses, por vezes, também adoecem nesse caminho.

Rilke, ao acolher e orientar o jovem poeta, leva Kappus a uma verdadeira jornada interior e o faz olhar para algo muito temido por todos, a solidão. Busca ressignificá-la e o estimula a encontrar “no que é difícil” a verdade e a força necessárias para seguir em frente.

Numa das cartas, o adoecer é usado por Rilke como metáfora para a transformação. Transcrevo aqui esse trecho mais extenso, que, por ser tão significativo, merece espaço ao final do ensaio.

[...] o senhor sabe que está em meio a transições e não desejaria nada mais do que se transformar. Se algum dos seus procedimentos for doentio, considere que a doença é um meio com o qual o organismo se liberta de corpos estranhos; por isso é apenas preciso ajudá-lo a estar doente, a assumir e ter sua doença por completo, pois é esse o seu curso natural. Agora acontece tanta coisa em seu íntimo, meu caro Kappus. É preciso ter paciência como um doente e ter confiança como um convalescente, pois talvez o senhor seja ambas as coisas. Mais ainda: o senhor também é o médico que tem de tratar de si mesmo. Mas em toda doença há muitos dias em que o médico não pode fazer nada além de esperar. E é isso, mais do que qualquer outra coisa, que o senhor, por ser seu próprio médico, precisa fazer agora (p. 81).

A paciência é virtude muitas vezes valorizada e estimulada por Rilke em seu contato com Kappus. Ele sabe o quão difícil é ser jovem e paciente ao mesmo tempo. Ser paciente, como aquele que consegue esperar. Ser paciente, como aquele que precisa de cuidados. Ser paciente consigo mesmo: “Não se observe demais. Não tire conclusões demasiado apressadas daquilo que lhe acontece; deixe simplesmente as coisas acontecerem” (p. 81).

Rilke convida o jovem poeta, insistentemente, a olhar para dentro e encontrar ali as respostas.

O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes [...]. Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir de tudo isso. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora (p. 24).

[...] eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida; nessa fonte o senhor encontrará a resposta (p. 27).

Encerro, pois, este escrito convidando mentores e futuros mentores a pensar “nessa fonte” de respostas: o mundo que levamos dentro de nós. Acredito ser esse “aconselhamento” o mais especial “presente” deixado por esse clássico:

E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos [...]. [...] pois verá neles seu querido patrimônio natural, um pedaço e uma voz de sua vida (p. 26).

[...] apenas preste atenção no que surge a partir de dentro e eleve-o acima de tudo o que o senhor percebe em torno (p. 57).

Sua,

Como se fecha o ciclo da mentoria? Como se encerra essa relação, ao final de cada encontro ou de um período? É preciso pensar sobre os “até breve” ou os términos, como tudo debaixo do sol...

No final de todas as cartas, ao se despedir, Rilke expressava sempre, e de forma intensa, o desejo de que tudo caminhasse bem para o jovem em seu caminho.

Alguns poderão dizer que era apenas uma forma típica, até mesmo formal, de se relacionar e se corresponder numa certa época. Mas acredito, pessoalmente, ter sido muito mais que uma formalidade.

Vi, nas despedidas em cada carta, uma manifestação explícita de afeto e de compromisso com o outro. Uma ponte para o continuar da relação. Um oferecimento de energia de vida para seguir com o sonho até o próximo encontro. Uma declaração de intenções que mostrava ao jovem poeta que ele, assim como Telêmaco acompanhado por Mentor e Atena, não estava sozinho na caminhada.

Com toda devoção e toda simpatia (p. 28).

Que tudo dê certo em seus caminhos! (p. 32).

Com felicitações e cumprimentos (p. 54).

Fique alegre e seja confiante (p. 61).

Tudo de bom, caro senhor Kappus! Seu, Rainer Maria Rilke (p. 71).

Dizem que um escrito não pertence mais a seu autor depois de compartilhado. Tomo então esses desejos de Rilke como meus. E os ofereço a vocês que me acompanharam, com paciência, no caminho deste ensaio.

Sua, Patrícia.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Rilke RM. O livro de horas. Lisboa: Assírio & Alvim; 2020.
  • 2
    Awaya A, McEwan H, Heyler D, Linsky S, Lum D, Wakukawa P. Mentoring as a journey. Teach Educ. 2003;19(1):45-56.
  • 3
    Daloz LA. Mentor: guiding the journey of adult learners. San Francisco: Jossey-Bass Higher and Adult Education Series; 1986.
  • 4
    Homero. Odisseia. Tradução Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural; 2002.
  • 5
    Rhodes J. Stand by me: the risks and rewards of mentoring today’s youth. Cambridge: Harvard University Press; 2002.
  • 6
    Figueiredo LC. A metapsicologia do cuidado. In: Figueiredo LC. As diversas faces do cuidar. São Paulo: Escuta; 2009. p. 131-51.
  • 7
    Calvino I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso; 2007.
  • 8
    Bellodi PL, Martins MA, organizadores. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.
  • 9
    Rilke RM. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L± 2020.
  • 10
    Bellodi PL. Tutor. In: Bellodi PL, Martins MA, organizadores. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo ; 2005.
  • 11
    Levinson DJ. The seasons of a man’s life. New York: Ballantine Books; 1978.
  • 12
    Erikson E. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: LTC; 1987.
  • 13
    Vygotsky LS. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes; 2000.
  • 2
    Avaliado pelo processo de double blind review
  • FINANCIAMENTO

    Declaro não haver financiamento.

Editado por

Editora: Lia Marcia Cruz da Silveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2021
  • Aceito
    07 Abr 2021
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