Sentidos e significados de profissionalismo médico para residentes de ginecologia e obstetrícia

Resumo:

Introdução:

Profissionalismo é condição essencial para a atuação do médico. A especialidade de ginecologia e obstetrícia (GO) tem sido marcada por uma demanda crescente de processos disciplinares. Diante dessa realidade, o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia (ACOG) recomendou registrar comportamentos destrutivos ou hostis que afetem a segurança do paciente e a qualidade do cuidado, remediá-los e educar o corpo clínico de instituições sobre isso. Apesar da importância do profissionalismo para a formação dos futuros profissionais, a ausência de consenso sobre a definição e os modos de mensuração desse aspecto dificulta a implementação de ações direcionadas voltadas a esse fim.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo conhecer os sentidos e significados atribuídos pelos residentes de GO ao profissionalismo médico.

Método:

Realizou-se estudo exploratório, qualitativo, por meio de grupos focais, com 21 residentes de GO de Fortaleza, no Ceará, no Brasil. A análise de conteúdo na modalidade temática respaldou a análise dos dados, e a interpretação amparou-se no interacionismo simbólico.

Resultado:

Os sentidos e significados atribuídos pelos residentes ao profissionalismo expressaram-se em quatro temáticas: conjunto de condutas em benefício do paciente; relação médico-paciente e com a equipe de trabalho; conjunto de atributos profissionais; e exercício moral e ético da profissão.

Conclusão:

O profissionalismo é entendido como um conjunto de características que incluem a formação integral do médico, a partir de competências, conhecimentos científicos, valores, habilidades técnicas e raciocínio clínico, possibilitando o exercício da medicina com respeito, moral e ética.

Palavras-chave:
Profissionalismo Médico; Residência Médica; Ginecologia; Obstetrícia; Educação Médica

Abstract:

Introduction:

Professionalism is an essential condition for the doctor’s performance. The specialty of Gynecology and Obstetrics (GO) has been marked by a growing demand for disciplinary proceedings. Faced with this reality, the American College of Gynecology and Obstetrics (ACOG) recommended recording destructive or hostile behaviors that affect patient safety and the quality of care, remediate them and educate the clinical staff of institutions about it. Despite its importance for the training of future professionals, the lack of consensus about its definition and measurement methods make it difficult to implement targeted actions aimed at this purpose.

Objective:

This study´s objective was to know the senses and meanings attributed by Gynecology and Obstetrics (GO) residents to medical professionalism.

Method:

An exploratory, qualitative study was carried out through focal groups with 21 GO residents from Fortaleza, Ceará, Brazil. The analysis of content in the thematic modality supported the data analysis and the interpretation was supported by Symbolic Interactionism.

Results:

The senses and meanings attributed to professionalism by the residents were expressed in four topics: set of conducts for the benefit of the patient; doctor-patient relationship and relationship with the work team; set of professional attributes; and moral and ethical exercise of the profession.

Conclusion:

Professionalism is understood as a set of characteristics that include the comprehensive training of the physician, based on skills, scientific knowledge, values, technical skills, clinical reasoning, enabling the exercise of Medicine with respect, morals and ethics.

Keywords:
Medical Professionalism; Medical Residency; Gynecology; Obstetrics; Medical Education

INTRODUÇÃO

A especialidade de ginecologia e obstetrícia (GO) tem sido marcada por uma demanda crescente de processos disciplinares¹. Diante dessa realidade, o Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia (American College of Gynecology and Obstetrics - ACOG) recomendou registrar comportamentos destrutivos ou hostis que afetem a segurança do paciente e a qualidade do cuidado, remediá-los e educar o corpo clínico de instituições sobre isso². Torna-se, portanto, imperativo refletir sobre os significados e ensino do profissionalismo nos programas de residência médica (RM), incluindo os de GO.

Profissionalismo é um constructo multidimensional³ cujo entendimento não se esgota em questões técnicas e tampouco se limita ao Código de Ética. Seu ensino na formação profissional durante os programas de RM contribui na formação da identidade médica dos residentes⁴. Essas ações, contudo, demandam tempo e planejamento. Nesse campo de interesse, a indagação vai além de valores, regras e normas da profissão médica para o século XXI, envolvendo, sobretudo, a percepção dos residentes acerca dos significados na sua prática diária³.

Apesar da importância do profissionalismo para a formação dos futuros profissionais, a ausência de consenso sobre a definição e os modos de mensuração desse aspecto dificulta a implementação de ações direcionadas voltadas a esse fim⁵. Nessa perspectiva, torna-se relevante compreender a percepção que os residentes de GO possuem sobre o profissionalismo. Mais especificamente, se apreendem o seu significado nas múltiplas dimensões e reflexos na formação acadêmica. Isso reforça a necessidade de caracterizar o profissionalismo médico, identificar as causas dos problemas nesse âmbito, além de propor intervenções e estratégias de ensino sobre o tema que qualifiquem os especialistas e favoreçam a promoção da saúde.

Acredita-se que a pesquisa sobre profissionalismo e sua relação com a formação médica, ao se fundamentar no ponto de vista do investigado, promove uma significação do seu valor e o reconhecimento desse conceito como uma meta a ser almejada para o atendimento das necessidades e demandas dos usuários do sistema de saúde.

Objetivou-se, portanto, conhecer os sentidos e significados atribuídos pelos residentes de GO ao profissionalismo médico.

MÉTODOS

Abordagem e tipologia do estudo

Trata-se de um estudo exploratório de abordagem qualitativa. A abordagem qualitativa justifica-se por ser a mais indicada para descrever, categorizar, interpretar e compreender os fatos que trabalham com significados, motivos, aspirações, crenças, valores, percepções e atitudes, determinantes das relações sociais, dos processos e dos fenômenos⁶.

Universo e amostra da pesquisa

A amostra foi constituída por conveniência, tendo sido convidados todos os 95 residentes que compunham os programas de RM em GO do município de Fortaleza em 2019. A pesquisadora realizou os convites mediante comunicações eletrônicas (WhatsApp e e-mail) e ligações telefônicas. Destes, 21 aceitaram participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ao comparecerem ao grupo focal.

Há quatro programas de RM em GO do município de Fortaleza, compreendendo os 95 residentes no total, público-alvo deste estudo. Adotou-se o seguinte critério de inclusão: todos os residentes do primeiro ao quarto ano de RM. Excluíram-se os residentes que estavam afastados por licença médica.

Instrumentos e técnicas de coleta de dados

A coleta de dados ocorreu por meio de grupos focais (GF), o que possibilitou a apreensão da realidade a partir da interação grupal e uma ampla problematização do fenômeno em estudo^7),(8. Essa técnica baseia-se na tendência humana de formar opiniões e agir em sociedade, explorando as concepções e as experiências dos participantes.

Realizaram-se dois GF, em setembro de 2019, com duração média de uma hora, conduzidos por duas pesquisadoras, autoras da pesquisa e preceptoras de um dos programas de RM, dois relatores e dois observadores, dividindo-se em duas salas da Sociedade Cearense de Ginecologia e Obstetrícia (SOCEGO), em Fortaleza, no Ceará, no Brasil. Para reduzir o viés das respostas, uma das preceptoras conduziu o grupo com maior número de residentes de outros programas, e a outra facilitou a condução do grupo de residentes do mesmo programa com o qual havia mantido pouco contato. Os GF integraram 21 residentes dos quatro programas de RM em GO do referido município, com dez participantes no GF1 e 11 no GF2.

Inicialmente, as pesquisadoras entregaram aos presentes o TCLE e um formulário para preenchimento dos dados sociodemográficos (sexo, idade, procedência e tempo no programa de RM). Em seguida, o debate foi conduzido a partir das seguintes questões norteadoras:

• O que significa profissionalismo para você?

• Na sua visão, como acontece o ensino do profissionalismo na formação do residente?

• Como acontece o processo de formação em profissionalismo na sua residência?

• Como você busca o aperfeiçoamento em profissionalismo?

• De que modo estão inseridas as estratégias de ensino de profissionalismo na matriz de competências?

• Como você percebe as contribuições do ensino de profissionalismo na mudança de atitude profissional? O que pode ser feito para aprimorar o ensino do profissionalismo na residência em ginecologia e obstetrícia?

Neste artigo, abordaremos os significados de profissionalismo.

Gravaram-se as falas dos participantes, e os detalhes complementares foram registrados por escrito pelos relatores e observadores. Adotou-se o critério de saturação das respostas ao longo da entrevista.

Método de análise dos dados

Após a coleta, transcreveram-se os dados na íntegra, e adotou-se a análise de conteúdo na modalidade temática⁹ para a identificação das temáticas e a compreensão do objeto de estudo¹⁰. Para isso, percorreram-se as seguintes etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Após a transcrição das falas, realizou-se a pré-análise, quando o material coletado foi lido em profundidade, buscando uma maior familiarização das pesquisadoras com as ideias e percepções dos participantes. A exploração do material foi a etapa seguinte, levando à identificação dos núcleos de sentido (NS) que se deu a partir da associação de ideias que emergiram dos relatos orais e das expressões corporais dos participantes. Por fim, o tratamento dos resultados e a interpretação, sob a lupa do interacionismo simbólico¹¹, levou à síntese dos achados, mantendo um diálogo entre as quatro temáticas identificadas, o objetivo, os pressupostos do estudo e o alinhamento com a literatura.

A interpretação dos achados que abordam os significados e sentidos atribuídos ao profissionalismo médico pelos residentes de GO fundamentam-se no interacionismo simbólico¹¹, uma abordagem sociológica que trata das relações humanas e considera fundamental a influência dos significados e sentidos construídos pelos indivíduos na interação social. Para Blumer^11),(12, os significados e sentidos atribuídos pelos indivíduos aos fenômenos sociais obtêm, a partir dessa interação, grande relevância.

Para facilitar a compreensão da lupa interpretativa utilizada neste estudo, é importante mencionar as considerações que envolvem as palavras “sentido” e “significado” na perspectiva do interacionismo simbólico¹.

Segundo George Mead, um dos precursores do interacionismo simbólico¹¹, a relação da pessoa com uma determinada situação ocorre mediante uma diversidade de símbolos. Assim, os gestos de um indivíduo estão revestidos de ideias que levam os outros a reagir. Isso consiste em um símbolo significante. Quando esse gesto causa reação no outro, correspondendo à intenção do primeiro, esse símbolo coaduna-se com um significado, mostrando que foi compreendido. Dessa forma, o significado baseia-se na interação social e nas suas articulações, o que faz emergir os símbolos significantes. Os significados somente são conscientizados a partir do momento em que a pessoa é capaz de identificar tais símbolos^13),(14.

O “sentido” das coisas é verificado a partir da perspectiva do “valor” que as pessoas atribuem a um determinado fato ou situação. Já o “significado” relaciona-se às representações atribuídas pelo sujeito à sua realidade e também ao valor correspondente¹⁵.

Conforme Blumer¹¹, as relações sociais exercem papel preponderante na formação de conceitos e na modelagem de atitudes, a partir dos sentidos e significados provenientes dessas conexões, o que pode ser verificado nas premissas do interacionismo simbólico:

O ser humano age em relação às coisas, na base dos sentidos que elas têm para ele. O sentido dessas coisas é derivado, ou surge, da interação social. Esses sentidos são manipulados e modificados por meio de um processo interpretativo usado pela pessoa ao tratar as coisas que ela encontra nas inter-relações sociais (p. 2) ¹² .

Dessa forma, observa-se que a vida em sociedade, os grupos e as organizações pressupõem interações sociais contínuas cujas ações resultam de respostas de um em relação ao outro. Os sentidos atribuídos, as definições e as interpretações dos objetos e fatos são produtos das relações sociais. Essa perspectiva interpretativa apoiou, neste estudo, a compreensão dos sentidos e significados atribuídos pelos residentes de GO ao profissionalismo médico, levando-se em consideração ainda que o ambiente de aprendizagem influencia o modo de pensar e agir das pessoas.

Para preservar o anonimato dos participantes, utilizou-se a letra “R”, que significa “residente”, seguida de números cardinais. Dessa forma, R1 significa “residente 1” e assim sucessivamente.

Princípios éticos

O estudo foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos (COÉTICA) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e aprovado com Parecer nº 2.038.755. Este estudo está em conformidade com princípios éticos, de acordo com as determinações da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que regula a avaliação da ética em pesquisa nas ciências humanas e sociais.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os participantes, em sua maioria (76,19%), eram do sexo feminino, com idades de 25 a 30 anos (66,67%), procedentes de Fortaleza e cursavam o segundo ano de residência, com mais de um ano e seis meses no programa (57,14%).

Os sentidos e significados de profissionalismo médico atribuídos pelos residentes de GO são expressos nas seguintes temáticas: conjunto de condutas em benefício do paciente; relação médico-paciente e com a equipe de trabalho; conjunto de atributos profissionais; e exercício moral e ético da profissão.

Conjunto de condutas em benefício do paciente

Quando se considera o profissionalismo como um conjunto de condutas que ajudam a tratar o paciente, os sentidos atribuídos pelos residentes remetem à “padronização de condutas”. Verifica-se que os participantes atribuem ao profissionalismo um significado próprio e um sentido baseado naquilo que pensam, a partir das suas crenças, valores, percepções, visões de mundo e conhecimentos teóricos. Tudo isso mediado pelas interações sociais^11),(16.

Assim, o profissionalismo é descrito da seguinte forma:

[...] ter um conjunto de condutas uniformizados que ajudam a colaborar para tratar o paciente de uma forma melhor e mais profissional possível (R1).

[...] atitudes que devem ser consideradas corretas, tanto da parte de relacionamento quanto da parte das condutas que você vai tomar (R14).

Verifica-se, a partir dos depoimentos, a necessidade de uma compreensão mais abrangente, consciente e explícita sobre profissionalismo médico. Nessa perspectiva, o conceito de medicina baseada em evidências (MBE) amplia essa visão e oferece subsídios para o entendimento do profissionalismo médico em sua integralidade.

Segundo Lopes¹⁷, a MBE consiste na implementação da melhor evidência científica, por considerar a experiência clínica e os desejos individuais do paciente, baseando-se em três premissas: “evidência”, “experiência clínica” e “desejos do paciente” incluindo o entendimento e o reconhecimento da individualidade do ser humano, o que compreende as preferências e expectativas únicas que o indivíduo leva à consulta médica e que devem ser integradas e respeitadas na decisão clínica¹⁷.

Nessa perspectiva, o ginecologista atua na porta de entrada para os cuidados destinados à saúde da mulher. Para ser um bom profissional, é necessário ter a visão do todo, de forma integrada e consciente, utilizando a experiência pessoal e as melhores evidências científicas, teóricas e metodológicas disponíveis, sem perder a humanização e o bom senso¹⁸.

Em outras palavras, nenhuma dessas premissas funciona sozinha nem é suficiente; elas têm que funcionar como um sistema, de forma articulada, considerando as demandas biopsíquicas e sociais que o paciente traz consigo.

Nessa assertiva, os significados de profissionalismo para os residentes apoiam-se em um conjunto uniformizado de condutas que favorecem a melhor assistência ao paciente.

Relação médico-paciente e com a equipe de trabalho

Ao traduzirem o profissionalismo como elemento da relação médico-paciente e com a equipe de trabalho, os participantes apontam os sentidos e significados desse conceito, a partir das suas vivências cotidianas. Para os participantes, esses elementos refletem-se nas interações sociais, no pensar e no agir dos residentes, internos, preceptores e demais membros da equipe de saúde. Nessa perspectiva, emerge a relevância do estabelecimento de um “relacionamento interpessoal amparado pelo conhecimento profissional”, como mostram os relatos a seguir:

[...] ninguém trabalha só, um depende do outro. (R2)

[...] acho que o profissionalismo depende da relação entre os médicos e também entre a equipe em geral (R3).

[...] você é profissional e você tem que ter um bom relacionamento com todos da equipe, todo mundo que você tem contato, com o paciente e com toda a equipe (R14).

[...] O bom profissional é aquele que alinha o conhecimento técnico à boa relação com o paciente (R17).

[...] o profissionalismo também está ligado ao nosso relacionamento não só com o paciente, mas também com a equipe (R18).

Os residentes revelam a compreensão sobre a importância de cultivar a boa relação médico-paciente, sendo notório o reforço dado à relevância da vinculação estabelecida pela equipe de trabalho.

A American Board of Internal Medicine (ABIM), na definição de profissionalismo médico, considera o bom relacionamento com o paciente, os familiares e a equipe profissional como integrante do constructo¹⁹. Nessa mesma direção, Bandini et al.²⁰ enfatizam a importância das relações interpessoais no aprendizado do aluno. A observação diária de comportamentos, conhecida como currículo oculto, apresenta grande relevância na educação médica, pois contribui no desempenho profissional. Além disso, vale salientar que o trabalho em equipe entre os profissionais envolvidos contribui para a qualidade da atenção à saúde a usuários e população, e promove maior satisfação no trabalho²¹.

Na essência dos significados para os residentes, são preponderantes o trabalho em equipe e as relações interpessoais, considerados essenciais na lida diária. Os participantes deste estudo têm a percepção da importância de manter um bom relacionamento com a equipe multiprofissional e reconhecem essa condição como básica e desafiadora na prática médica:

[...] o que eu acho mais difícil, principalmente no meu serviço, é a dificuldade de relacionamento. Muitas vezes, porque, como todo mundo aqui falou, o profissionalismo também está ligado ao nosso relacionamento não só com o paciente, mas também com a equipe. [...] Muitas vezes, o que a gente vê é que existe uma certa disputa de quem é que manda, quem é que ordena. Então, eu acho que essa é uma parte importante que a gente tem que tentar mudar, que precisa ser melhorada (R18).

[...] a multidisciplinaridade no papel é muito bonita, mas, na prática, é difícil acontecer (R16).

Os depoimentos de R18 e R16 trazem uma discussão importante para a compreensão mais ampla sobre profissionalismo médico que remete à interação com outros residentes, profissionais das áreas da saúde, internos e preceptores. Enquanto as teorias funcionalistas concebem as relações e ações sociais como derivadas de regras e normas sociais preestabelecidas por outros, em contraposição, o interacionismo simbólico defende as relações e ações sociais como derivadas das normas estabelecidas socialmente²².

Confirmando a ênfase dada pelos residentes, compreende-se que as interações sociais no ambiente de trabalho, com diferentes atores, são processos que demandam uma discussão e reflexão crítica sobre o seu significado. A perspectiva é compreender que as interações interpessoais são processos socialmente construídos a partir das relações estabelecidas com outras pessoas, mesclando visões, valores, interesses, culturas, vivências, sentimentos, experiências e pontos de vista¹³.

Com base nos pressupostos teórico-metodológicos, a RM é um curso de qualificação cujo processo ensino-aprendizagem tem como objetivo proporcionar ao residente médico a oportunidade de aprofundar conhecimentos teórico-metodológicos e experiências em especialidades específicas, tendo em vista uma formação com excelência em função das exigências do mundo trabalho na área da saúde. Para Velho et al.²³, a RM é qualificada como um processo de aprendizagem e treinamento baseado em teorias e habilidades práticas em saúde que são fundamentais para a formação médica.

Com base nessas considerações, verifica-se, a partir das premissas do interacionismo simbólico, que as ações dos sujeitos são derivadas das significações, as quais derivam das interações sociais, e, por fim, as significações são empregadas pelos atores sociais nas interações grupais, que, por sua vez, modificam as próprias significações¹¹. A partir desse contexto e das análises realizadas, o profissionalismo médico é descrito como um constructo complexo, dinâmico e multidimensional que compreende fatores individuais, aprendizagem de comportamentos e normas socioculturais, apresentando dimensões interpessoais e contextuais, o que se manifesta por meio de comportamentos no âmbito das relações interpessoais²⁴.

Conjunto de atributos profissionais

O sentido de profissionalismo como formação ampliada do médico associa-se ao “saber para agir”, que remete a habilidades, competências e compromisso, como expressa R4: “eu acho que o profissionalismo vai desde as habilidades do médico, passa pelas competências e chega ao compromisso com o que faz”.

O depoimento mostra que o profissionalismo constitui um conjunto de características que envolve competências e compromisso com o que se faz. Isso significa que não basta ser médico, espera-se dele competência. Nessa perspectiva, apesar de os sujeitos aproximarem-se da apreensão do conceito, o constructo inclui outros aspectos que lhe dão maior significação.

Profissionalismo é, portanto, entendido neste estudo como um conjunto de características que compõem um profissional, formado por suas competências, responsabilidades, ética, conhecimentos, valores, habilidades técnicas, raciocínio clínico, que regem o seu campo de trabalho, convergindo para o conceito de Zink et al.²⁵, e que fazem do profissionalismo a base do contrato do médico com a sociedade²⁶. Somando-se a isso, o Accreditation Council on Graduate Medical Education (ACGME)²⁷⁾ enfatiza os atributos compaixão, sensibilidade, honestidade e compromisso com o paciente para a boa atuação do médico residente: “eu acho que o profissionalismo vai desde as habilidades do médico, das competências ao compromisso com o que faz” (R4).

Dessa forma, o conceito de competência e a sua evolução ao longo da história da prática da medicina abrangem a necessidade de “atualização clínica” e da construção do conhecimento a partir de boas “bases científicas”, conforme ilustram os seguintes depoimentos:

[...] acredito que a busca pelo saber, pelo conhecimento, pelas novidades também faz parte do profissionalismo para se atualizar (R4).

[...] o profissionalismo está, principalmente, em seguir as bases científicas (R16).

Os residentes consideraram o saber, o conhecimento e a fundamentação, a partir de bases científicas acreditadas, como componentes indispensáveis para o profissionalismo. Esses elementos são tão relevantes para a atualização clínica do médico que chegam a ser confundidos com o próprio conceito de profissionalismo. Para Silva²⁸, o profissionalismo e a competência profissional demandam a aquisição de conhecimentos científicos e a correta aplicação na prática médica, fundamentando-se em bases científicas. Essa definição encontra respaldo na Resolução do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Pleno (CNE/CP) nº 3, de 18 de dezembro de 2002, que define competência profissional como a “capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação conhecimentos, habilidades, atitudes e valores necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho e pelo desenvolvimento tecnológico”²⁹.

A importância do conhecimento científico para a atualização do profissional constitui um dos dez compromissos da “Carta de profissionalismo médico” publicada em 2002, tendo sido redigida sob a égide das seguintes instituições: American Board of Internal Medicine Foundation, American College of Physicians Foundation e European Federation of Internal Medicine³⁰.

Corroborando essa perspectiva, o estudo realizado por Jauregui et al.³¹ com residentes de medicina de emergência evidenciou que eles consideraram profissionalismo como um constructo dinâmico, cultural e específico, cuja concepção ocorre no processo ensino-aprendizagem, assim como outros atributos, valorizando o conhecimento científico como elemento fundamental para o exercício competente da profissão.

No contexto do profissionalismo, a compreensão do conceito de competência profissional trata dos critérios esperados dos profissionais de saúde para alcançar as exigências do exercício da função. Nessa perspectiva, é um conceito amplamente discutido e aplicado a uma variedade enorme de disciplinas científicas como uma nova perspectiva para formação de profissionais em diferentes áreas, inclusive em saúde, tendo em vista incentivar a reflexão crítica e responder às exigências impostas pelo atual cenário social, político e de desenvolvimento da cidadania, considerando a saúde como direito de todos.

Exercício moral e ético da profissão

A submissão ao código de ética profissional, a obediência às regras do serviço e o respeito aos princípios morais e éticos também emergiram como significados atribuídos pelos residentes ao profissionalismo médico.

Na perspectiva do profissionalismo médico, o respeito às leis e normas que regem a atuação profissional trouxe subsídios para as reflexões deste estudo. É válido destacar que, além dos valores, as regras da profissão e a submissão ao código de ética profissional são significados que se encontram imbricados e articulados, coexistindo em simbiose nas percepções dos residentes.

É importante tratar o exercício profissional do médico e sua autorregulação de acordo com a Constituição e as leis que regem sua atuação de forma hierárquica. Incialmente, é importante mencionar a lei que valida o exercício profissional segundo os ditames da Constituição Federal, que estabelece em seu artigo 5º, inciso XIII, ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer³². Nessa concepção, pode-se entender a garantia do exercício profissional mediante a prerrogativa da qualificação profissional. Na formação do especialista, há, porém, uma lacuna nos esclarecimentos em relação aos amparos legais para o exercício da profissão, o que resulta no desconhecimento sobre essa questão.

Quanto ao exercício da atuação médica, a Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013, trata de profissionalismo³³, em seu artigo 2º, nos seguintes termos: “O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza”.

O Código de Ética Médica aprovado por meio da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n^º 2.217, de 1º de novembro de 2018, contempla um conjunto de princípios e normas alinhados à Constituição Federal, que devem ser seguidos pelos médicos no exercício profissional³⁴.

Esse Código de Ética reitera como princípio fundamental o profissionalismo médico, no capítulo I, inciso II, nos seguintes termos: “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”³⁴. Nesse aspecto, os residentes demonstram a necessidade de submissão ao Código de Ética Médica e ao conjunto de leis que regem a atuação profissional. Para que isso aconteça de forma plena, é necessário haver um processo formativo que leve à significação desses conceitos e processos.

A análise dos significados atribuídos pelos residentes reflete um entendimento sobre profissionalismo que vai além do exercício da profissão. Para eles, é necessário cumprir exigências que regem a atuação do médico no ambiente profissional, incluindo leis, normas, regras do serviço e ética médica. Ademais, chamam a atenção para a boa convivência, as relações interpessoais com o paciente e a equipe de trabalho, como relatam R15 e R12:

[...] [o profissionalismo envolve] a conduta adequada perante as regras de boa convivência, as relações sociais e a ética médica que a gente é submetido e também as leis e normas (R15).

[...] eu acho que profissionalismo envolve não só as leis, mas a legislação, mas também as regras do próprio serviço que a gente tem que cumprir (R12).

Verifica-se, nesse contexto, que os sujeitos fazem uma certa confusão no que concerne ao entendimento de leis, normas, regras e ética. Em um certo ponto do GF, alguns residentes manifestaram dúvidas, mesmo sobre aspectos importantes para a sua atuação profissional.

[...]Porque às vezes uma coisa que a gente julga que é correto não é perante a lei, entendeu? Aí, a gente cai naquela de será que eu estou sendo realmente profissional? [...] Isso aqui eu posso fazer, entendeu? Isso aqui é ético, mas perante a lei eu posso e não posso, e a gente, às vezes, cai nessa dúvida. Mas eu acho que é isso a conduta adequada perante as regras de boa convivência, a ética que a gente é submetida, a ética médica, as leis (R15).

[...]Eu acho que não só as leis, a legislação, mas também a regra do próprio serviço. Uma conduta legal para lei, mas, se o serviço não permite [realizar alguma ação], então eu devo, dentro do meu serviço, me adaptar, ser profissional cumprindo as regras deles. Acho que é também um pouco do raciocínio (R12).

Os residentes mencionam uma incompatibilidade entre as regras do serviço e os ditames dos códigos que regem a atuação profissional em determinadas situações, havendo a “opção” pelas normatizações dos serviços como forma de adaptação ao meio em que estão inseridos.

As normas do serviço em que o médico atua não são de hierarquia superior ao estabelecido no Código de Ética Médica, não sendo suficiente para revogar ou contrariar quaisquer de seus dispositivos. Outrossim, tanto as normas do serviço como o Código de Ética Médica possuem natureza infralegal e devem estar subordinados à Constituição e às leis, que conferem fundamento de validade à referida legislação. Ademais, considerando que o ordenamento jurídico deve ser harmônico e inadmitir antinomias, qualquer discordância entre as normas deve ser solucionada pelas regras prescritas na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro³⁵. Nesse aspecto, verifica-se a importância de discutir essa temática na formação do residente, esclarecendo as diferenças na hierarquia entre as normas do serviço regidas pelo Sistema Único de Saúde e o Código de Ética Médica, não podendo haver oposição entre elas.

É conveniente esclarecer que também foram verificadas incertezas nas falas dos residentes sobre os conceitos de ética e moral, os quais se inter-relacionam.

Assim, o profissionalismo perpassa pelo conceito de ética profissional (R12).

Acho que o profissionalismo está entrelaçado tanto no conceito de ética quanto no conceito de moral (R13).

Monte³⁶ relata que a evolução teórico-conceitual dos estudos sobre ética médica e profissionalismo levou à revisão de elementos que se entrecruzam. Nesse processo, ética, direito e moral têm seus próprios rumos. Apesar de emergirem da mesma fonte (a moral), esses conceitos correm paralelamente e exercem influências entre si, sendo interdisciplinares.

A compreensão teórica e prática sobre a ética médica não é algo restrito às conferências ou aos seminários; pelo contrário, é uma base fundamentada necessária, útil e produtiva para a ação e atuação profissional³⁷. Essa análise talvez explique as carências conceituais dos residentes sobre as diferentes categorias de análise deste estudo, as quais fundamentam o profissionalismo médico.

Etimologicamente, o termo ética deriva de éthos (do grego, singular) e traduz a ideia de hábito, fruto da ação repetida do homem. Éthe (grego, plural) significa um conjunto de comportamentos, hábitos ou costumes. A tradução latina de éthos é mos (moral), que significa hábito³⁸. Conforme Nalini³⁹, a dimensão ética está associada ao agir profissional, influenciando o comportamento moral. Percebe-se, nos depoimentos, a preocupação dos residentes de pautar sua atuação de acordo com a ética, na acepção de agir conforme uma regra tácita profissional.

Conforme Salloch⁴⁰, o profissionalismo é uma ideologia ou sistema de crenças que se utiliza para defender os valores inerentes ao éthos dos médicos (p. 1). A autora ressalva que a distinção entre ética e profissionalismo não é clara na educação médica, pois, na maioria das vezes, “a base ética está associada ‘à moralidade interna’ da prática médica, aos objetivos inerentes à medicina, como prevenir, curar e aliviar a dor, e à incapacidade de ajudar o paciente a conviver com sua doença” (p. 1)⁴⁰.

Outra dimensão associada ao agir do profissional da saúde que deve pautar a formação do especialista é o respeito aos princípios bioéticos. A GO é uma especialidade que enfrenta dilemas éticos na vivência da assistência obstétrica ou em outras situações de vulnerabilidade da mulher, do nascimento ao envelhecimento⁴¹. Por isso, é essencial que a formação do especialista contemple o conhecimento dos princípios bioéticos e o respeito a eles, quais sejam: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça⁴².

Nessa mesma direção e mais especificamente em relação ao agir do especialista em GO, a Federação Internacional de Ginecologia-Obstetrícia (FIGO) recomendou a prática do profissional em GO baseada na ética, na moral, na integridade, na compaixão e no respeito à autonomia, colocando os interesses das pacientes acima dos seus⁴³.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se, na perspectiva dos residentes de GO, que o profissionalismo médico tem uma multiplicidade de significados e sentidos diretamente relacionados às interações sociais, aos valores, às visões de mundo, às concepções e às vivências dos participantes.

Com base nos relatos, afirma-se que os significados e sentidos do profissionalismo na RM remetem-no à boa relação com o paciente e a equipe de trabalho, na interação social com pacientes, residentes, profissionais da saúde, internos e preceptores, o que respalda o interacionismo simbólico como teoria que defende as relações e ações sociais como derivadas das normas preestabelecidas socialmente.

Outra linha de significação relacionada a esse constructo remete ao conjunto de atributos profissionais, que incluem competência profissional, atualização clínica e compromisso no exercício profissional aplicados na prática médica. Ademais, os sentidos de profissionalismo também remetem ao conjunto de condutas em benefício do paciente e ao respeito às normas do serviço e às leis que regulam o exercício ético da profissão.

O profissionalismo médico é entendido pelos residentes de GO como um conjunto amplo de características que compõem um profissional integral, associando competências, conhecimentos científicos, valores, habilidades técnicas e raciocínio clínico para o exercício ético e moral da medicina. Assim, a percepção dos residentes evidenciada neste estudo contribui para a melhoria das estratégias de ensino desse tema nos programas de residência, aprimorando o “ser” e o “fazer” desses profissionais.

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  Avaliado pelo processo de double blind review process.

• FINANCIAMENTO

  Financiado pelo Programa de Apoio a Equipes de Pesquisa da Universidade de Fortaleza, conforme Edital nº 49/2019.

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Fernando Antonio de Almeida.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  01 Abr 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  04 Set 2021
• Aceito
  09 Jan 2022