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Itinerários terapêuticos na formação médica: dispositivo para o ensino da Saúde Coletiva

Resumo:

Introdução:

A implementação de estratégias pedagógicas inovadoras na formação médica é o tema deste relato de experiência. O objetivo deste relato é apresentar a sistematização de itinerários terapêuticos (IT) e a produção de projetos terapêuticos singulares (PTS) de usuários do Sistema Único de Saúde como dispositivo de aprendizagem para o ensino da saúde coletiva.

Relato de experiência:

Este relato foi produzido com base na vivência dos docentes e monitores implicados com essa formação na graduação em Medicina da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no Brasil, entre os anos de 2017 e 2019. Os IT foram considerados inicialmente numa perspectiva restrita à descrição e análise da organização da rede de atenção à saúde (RAS), do acesso e dos fluxos nos serviços. A partir dos debates, dos conteúdos e da produção dos PTS, os IT foram revisitados com o intuito de contribuir para a compreensão dos estudantes sobre a relação entre a estrutura social mais ampla e a singularidade das pessoas, de suas necessidades e dos processos de cuidado voltado à saúde.

Discussão:

A experiência, como proposto na sua formulação, viabilizou a articulação dos campos teóricos e práticos, e foi uma ferramenta que articulou os diferentes conteúdos programáticos propostos na disciplina de Saúde Coletiva II. Tornou-se, também, uma estratégia pedagógica viável nas condições reais da oferta da disciplina, num contexto em que a saúde coletiva pode estar mais presente na formação profissional.

Conclusão:

O processo de ação-reflexão-ação possibilitou, num primeiro momento, o reconhecimento da RAS, componente estrutural do sistema. A partir da construção do PTS e do debate sobre as linhas de cuidado integral, foi possível qualificar a análise. A sistematização de IT é uma abordagem teórico-metodológica consolidada na pesquisa em saúde e foi um dispositivo que se mostrou potente para ensino da saúde coletiva e para o aprendizado sobre as práticas e a reconfiguração do trabalho dos docentes e monitores da disciplina; portanto, trata-se de uma estratégia de educação permanente tanto para os estudantes quanto para os responsáveis pela formação.

Palavras-chave:
Integralidade em Saúde; Educação Médica; Saúde Coletiva; Acesso aos Serviços de Saúde; Sistemas de Saúde

Abstract:

Introduction:

The implementation of innovative pedagogical strategies in medical training is the discipline of this experience report. It aims to present the systematization of Therapeutic Itineraries (TI) and the production of Singular Therapeutic Projects (STP) for users of the Brazilian Unified Health System as a learning tool for the teaching of Public Health.

Experience report:

created based on the experience of teachers and monitors involved with this training in the undergraduate Medical School of Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brazil, between the years 2017 and 2019. The TIs were initially considered from a perspective restricted to the description and analysis of the organization of the health care network (HCN), the access and flows in the services. Based on the debates, contents and production of the STPs, the TIs were revisited in order to contribute to students’ understanding of the relationship between the broader social structure and the individuality of people, their needs and the health care processes.

Discussion:

The experience, as proposed in its formulation, allowed the articulation of theoretical and practical fields and was a tool that articulated the different programmatic contents proposed in the Discipline of Public Health II. It has also become a viable pedagogical strategy in the real circumstances of offering the discipline, in a context in which Public Health can be more present in professional training.

Conclusion:

The action-reflection-action process allowed, at first, to recognize the Health Care Network, a structural component of the system. Based on the construction of the STP and the debate on the lines of comprehensive care, it was possible to qualify the analysis. The systematization of TI is a theoretical-methodological approach consolidated in health research and was a tool that showed to be effective for the teaching of Public Health and for learning about the practices and reconfiguration of the work of teachers and monitors on the discipline and, therefore, a permanent education strategy for both students and those responsible for their training.

Keywords:
Integrality in health; Medical education; Public health; Access to health services; Health systems

INTRODUÇÃO

O objeto deste relato foi a experiência da sistematização de itinerários terapêuticos (IT) e produção de projetos terapêuticos singulares (PTS) de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) pelos alunos, como dispositivo pedagógico da disciplina de Saúde Coletiva II (DSCII), do segundo ano do curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul (RS). É uma produção dos docentes e dos monitores da disciplina, autores deste trabalho e envolvidos com a formulação e a implementação da proposta durante os anos de 2017 a 2019.

As mudanças da formação dos profissionais de saúde, em geral, e do ensino médico, em particular, compõem a agenda do sistema de saúde brasileiro, com mais ênfase a partir da Constituição Federal de 1988, que instituiu o SUS. A proposição legal que estabelece ao SUS a tarefa de ordenar a formação profissional em saúde e o reconhecimento de determinações sociais como orientadoras de políticas e práticas de cuidado são marcadores das propostas de transformação da formação médica11. Azevedo BMS, Ferigato S, Souza TP, Carvalho SR. A formação médica em debate: perspectivas a partir do encontro entre instituição de ensino e rede pública de saúde. Interface (Botucatu). 2013;17(44):187-200 [acesso em 21 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832013000100015&lng=en .
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),(22. Rocha VM. Reformas na educação médica no Brasil: estudo comparativo entre as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em medicina de 2001 e 2014 [dissertação]. Santos: Universidade Católica de Santos; 2017..

As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais de Medicina22. Rocha VM. Reformas na educação médica no Brasil: estudo comparativo entre as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em medicina de 2001 e 2014 [dissertação]. Santos: Universidade Católica de Santos; 2017. apontam para maior coerência da formação médica com o modelo de atenção à saúde proposto para o SUS e suas necessidades22. Rocha VM. Reformas na educação médica no Brasil: estudo comparativo entre as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em medicina de 2001 e 2014 [dissertação]. Santos: Universidade Católica de Santos; 2017.),(33. Maranhão EA, Gomes AP, Siqueira-Bastista R. O que mudou na educação médica a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais: sob o olhar do Jano de duas faces. In: Streit DS, Barabosa Neto F, Lampert JB, Lemos JMC, Batista NA, organizadores. Educação médica: 10 anos de Diretrizes Curriculares Nacionais. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação Médica; 2012.. No entanto, as transformações propostas na formação médica encontram-se em disputa e em construção no cotidiano das instituições de ensino44. Carneiro JN. Ensino da saúde coletiva na Faculdade de Medicina do ABC: alguns apontamentos sobre os desafios da saúde coletiva na formação médica. ABCS Health Sci. 2015; 40(3):348-51.. Produzir inovações em direção das mudanças desejadas é um desafio para docentes e estudantes. Nesta experiência, a proposição foi articular os conteúdos da disciplina, em especial os estudos de IT, a construção e reflexão sobre os PTS, as redes de atenção à saúde (RAS) e as linhas de cuidado integral (LCI).

Para o trabalho proposto na disciplina, os IT expressam os percursos dos usuários em busca de respostas às suas necessidades em saúde55. Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. Cien Saude Colet. 2016;21(3): 843-52 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000300843&lng=en .
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, mais especificamente os trajetos em busca do tratamento para identificar “(a) [...] condutas passadas (ações já realizadas); e (b) [...] percalços pelos quais os indivíduos e grupos sociais chegaram a uma modalidade terapêutica (‘situações problemáticas’)” (p.134)66. Alves PC. Itinerário terapêutico, cuidados à saúde e a experiência de adoecimento. In: Gerhardt TE, Pinheiro R, Ruiz ENF, Silva Junior AG, et al., organizadores. Itinerários terapêuticos: integralidade no cuidado, avaliação e formação em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, IMS, Uerj, Abrasco; 2016.. No caso desta experiência, o primeiro exercício de sistematização considera o IT como um instrumento para a análise prática da organização das RAS, do acesso e dos fluxos dos usuários pelos serviços de saúde. Posteriormente, quando se revisita a sistematização inicial do IT, procura-se reforçá-lo como dispositivo para interpretar a relação entre a estrutura social, a singularidade da experiência dos usuários e as concepções de saúde que as atravessam. A compreensão dessa relação é considerada basilar para a construção de PTS e LCI55. Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. Cien Saude Colet. 2016;21(3): 843-52 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000300843&lng=en .
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O PTS foi proposto não apenas como uma ferramenta de cuidado que considera as dimensões econômicas, sociais, familiares, culturais, geográficas, entre outras, ou seja, as existências singulares dos indivíduos77. Oliveira GN. Projeto terapêutico e a mudança nos modos de produzir saúde. São Paulo: Hucitec; 2010., mas também como um dispositivo cuja centralidade é o cuidado que “ajuda para continuar a viver do modo mais potente e prazeroso possível, apesar do problema/doença/sofrimento”, ou seja, que amplie “a potência de vida, realmente a serviço do melhor enfrentamento das situações”(p.78)88. Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde Debate. 2019;43:70-83..

As LCI, cuja intencionalidade pedagógica é refletir sobre a funcionalidade dos processos e o sucesso prático do cuidado, foram abordadas como arranjos, estratégias e dispositivos que reorganizam os processos de trabalhos das equipes e dos serviços que são marcados pela dinamicidade, pelos contextos e pelas decisões que são produzidos a partir dos encontros que envolvem os gestores, trabalhadores e usuários. Trata-se de uma imagem que expressa os fluxos e processos de trabalho cuja centralidade é a garantia de percursos seguros e qualificados em resposta às necessidades de saúde dos indivíduos e coletivos55. Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. Cien Saude Colet. 2016;21(3): 843-52 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000300843&lng=en .
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),(99. Possa LB, Padilla M, Plentz LM, Gosch CS, Ferla AA. Linha de cuidado em Covid-19: dispositivo para organização do trabalho, gestão e educação centrado no cuidado das pessoas nos territórios. Saúde Redes. 2020;6(2). 7-29. doi: 10.18310/2446-48132020v6n2Suplem.3365g566.
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Este relato apresenta, inicialmente, a descrição da vivência e, na sequência, reflexões e análises acerca das perguntas iniciais que orientaram a sistematização da experiência:

  • Qual é o efeito dos dispositivos IT e o PTS para a conexão dos momentos teóricos e práticos previstos na disciplina de Saúde Coletiva II?

  • São ferramentas que possibilitam responder ao objetivo da disciplina e aos conteúdos programáticos propostos?

  • São estratégias pedagógicas viáveis para as condições reais de oferta da disciplina?

RELATO DE EXPERIÊNCIA

A UFSM se localiza no município de Santa Maria, onde residem 283.677 habitantes, e situa-se na região central do estado do RS. Possuía, em 2018, aproximadamente 40% de cobertura populacional de atenção primária à saúde (APS), seja Estratégia Saúde da Família ou unidades básicas de saúde tradicionais1010. E-gestor Atenção Básica. Cobertura da atenção básica. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [acesso em 10 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessopublico/relatorios/relhistoricocoberturaab.xhtm .
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. Quase a totalidade das atividades práticas do curso de Medicina, seja nos ciclos básico, clínico ou no internato, tem como orientação os serviços hospitalares, em especial o Hospital Universitário de Santa Maria/Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (HUSM/Ebserh), um hospital 100% SUS, terciário, de grande porte e referência para aproximadamente um milhão e cem mil habitantes da macrorregião centro-oeste do RS.

A formação médica em Santa Maria teve início em 1954 e antecede a fundação da UFSM1111. Universidade Federal de Santa Maria. Conexão UFSM. Cronologia UFSM - parte 1. Os fatos que antecederam a criação. UFSM; 2010 [acesso em 10 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://coral.ufsm.br/revista/numero05/cronologia1.html .
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. Trata-se de um curso tradicional, fortemente influenciado pelo modelo biomédico e hospitalocêntrico. A Saúde Coletiva, que inclui epidemiologia, políticas, planejamento e gestão, ciências sociais em saúde, saúde ocupacional e internato em saúde coletiva, conta com 390 horas das 8.815 previstas no curso de Medicina, o que representa 4,4% da carga horária total. Tais números de horas e percentual da carga horária total do curso são menores que a mediana nacional, que foram, respectivamente, 440 e 5,4%1212. Oliveira SR, Martini APS, Grosseman S. Carga horária de saúde coletiva antes do internato em escolas médicas brasileiras. Rev Bras Educ Med. 2021;45(1):e028 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/5dgV8wDwk6cg3tBBbC8XxRg/?lang=pt .
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. As disciplinas e o internato de APS totalizam 855 horas, 9,7% da carga horária total. Portanto, o somatório dessas duas áreas não atinge sequer 15% da carga horária ofertada, explicitando a ênfase tradicional da formação nas especialidades e serviços hospitalares1313. Universidade Federal de Santa Maria. Curso de Medicina. Estrutura Curricular. UFSM; 2016 [acesso em 10 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.ufsm.br/cursos/graduacao/santa-maria/medicina/informacoes-do-curriculo .
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A DSCII tem 45 horas programadas, e sua oferta ocorre no quarto semestre da graduação em Medicina, momento em que também inicia o contato dos alunos com usuários, na perspectiva da “clínica individual”, a partir da inserção no ambiente hospitalar, por meio da disciplina Semiologia Médica. Os conteúdos programáticos previstos na ementa da DSCII são: governança do setor saúde; regionalização da saúde; instrumentos e ferramentas para gestão do SUS; trabalho colaborativo em equipes de saúde; gestão do cuidado em saúde; e saúde e meio ambiente1414. Universidade Federal de Santa Maria. Curso de Medicina. Ementa da Disciplina de Saúde Coletiva II. UFSM; 2019 [acesso em 10 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: https://portal.ufsm.br/documentos/publico/documento.html?id=12835237 .
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.

Nos primeiros encontros, apresentava-se o plano de ensino da disciplina, abordava-se a proposta teórico-metodológica que orientava os alunos a descrever, refletir e produzir análises sobre o IT dos usuários entrevistados e os conteúdos relativos à RAS, à gestão do SUS e à regionalização da saúde. Esse primeiro exercício de sistematização do IT considerava “as possibilidades de articulação entre o conhecimento acerca dos IT e a gestão do cuidado em saúde, seja na organização dos serviços, nas interações entre profissionais e pacientes ou mesmo no acesso à atenção à saúde”(p.848)55. Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. Cien Saude Colet. 2016;21(3): 843-52 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000300843&lng=en .
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. Com base em um roteiro semiestruturado inicial (Quadro 1) os alunos, organizados em trios, realizavam as entrevistas e produziam um primeiro relatório do IT, que era apresentado para o grande grupo, em duas aulas.

Quadro 1
Roteiro semiestruturado para entrevista de descrição do itinerário terapêutico.

A partir das apresentações dos grupos, a estratégia adotada pelos docentes era conectá-los com os relatos das experiências reais dos usuários, problematizando a existência de espaços, iniciativas e condições para experimentações de projetos terapêuticos nas perspectivas singular, interdisciplinar e de gestão do cuidado. Na sequência, eram abordados os conteúdos previstos na disciplina relativos ao trabalho interprofissional (em equipe), à relação horizontal (compartilhada), às LCI e ao desenvolvimento de PTS. A produção do PTS pelo grupo de alunos e para o mesmo usuário entrevistado foi proposta como um exercício de aproximação para identificar os contextos social, econômico e familiar, e as relações dinâmicas para a construção do cuidado como sucesso prático que não se restringe à clínica com finalidade técnica55. Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. Cien Saude Colet. 2016;21(3): 843-52 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000300843&lng=en .
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),(88. Merhy EE, Feuerwerker LCM, Santos MLM, Bertussi DC, Baduy RS. Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde. Saúde Debate. 2019;43:70-83..

Orientados pelas temáticas abordadas ao longo do semestre na Saúde Coletiva II, em especial as LCI e o PTS, os estudantes realizavam uma segunda entrevista nas semanas finais do semestre letivo, que era a base para que pudessem formular o trabalho de conclusão da disciplina, no formato de artigo científico. Essa segunda sistematização de IT era qualificada a partir da reflexão oportunizada pelo debate sobre os arranjos das LCI, os PTS e, sobretudo, a dimensão dialógica e intersubjetiva que conferem a dinamicidade dos processos de cuidado55. Silva NEK, Sancho LG, Figueiredo WS. Entre fluxos e projetos terapêuticos: revisitando as noções de linha do cuidado em saúde e itinerários terapêuticos. Cien Saude Colet. 2016;21(3): 843-52 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000300843&lng=en .
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. Por fim, os artigos eram apresentados ao grande grupo e debatidos entre os alunos, docentes e monitores.

O entrevistado era um usuário, internado no HUSM, preferencialmente o mesmo que seria convidado para a realização da anamnese e do exame físico, previsto para a disciplina Semiologia Médica. Eram ofertadas duas turmas por semestre, cada uma com 30 vagas e um professor. Esse desenho, mesmo que possibilite a divisão das turmas para a apresentação do IT, ainda é insuficiente para que haja tempo para o debate, bem como dificulta a singularização dos percursos formativos dos discentes. No entanto, possibilita ao docente se apropriar das informações dos itinerários descritos que são disparadores para o debate dos conteúdos apresentados. De 2017 a 2019, foram sistematizados em torno de 160 IT pelos estudantes.

DISCUSSÃO

A articulação entre prática e teoria foi possível a partir da realização da entrevista, da sistematização do IT, da produção dos PTS e da correlação dessas atividades com os “conceitos-ferramenta” teóricos1515. Abrahão AL, Merhy EE. Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar. Interface (Botucatu) . 2014;18(49):313-24 [acesso em 12 abr 2021]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832014000200313&lng=en .
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, previstos nos conteúdos, em especial sobre as RAS, o trabalho em equipe e as LCI. No primeiro exercício de sistematização dos IT, foi possível refletir sobre as redes de atenção que “remetem às estruturas e [aos] serviços institucionalizados e, em geral, fortemente normatizados”(p.11)99. Possa LB, Padilla M, Plentz LM, Gosch CS, Ferla AA. Linha de cuidado em Covid-19: dispositivo para organização do trabalho, gestão e educação centrado no cuidado das pessoas nos territórios. Saúde Redes. 2020;6(2). 7-29. doi: 10.18310/2446-48132020v6n2Suplem.3365g566.
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. O segundo IT sistematizado foi qualificado a partir da formulação do PTS e dos debates sobre as LCI como arranjos que “são imanentes, produzidas em cada contexto e instituintes de práticas e articulações entre serviços e trabalhadores que permitem trajetos de cuidado possíveis e viáveis, pactuados e potentes para responder às necessidades de saúde”(p.11)99. Possa LB, Padilla M, Plentz LM, Gosch CS, Ferla AA. Linha de cuidado em Covid-19: dispositivo para organização do trabalho, gestão e educação centrado no cuidado das pessoas nos territórios. Saúde Redes. 2020;6(2). 7-29. doi: 10.18310/2446-48132020v6n2Suplem.3365g566.
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A socialização dos IT e dos PTS de vários usuários, de municípios diferentes que acessam o HUSM, com sofrimentos distintos e história de vida e de cuidado diversa, possibilitou a reflexão sobre a particularidade dos territórios e das RAS, a imanência das LCI e a singularidade do cuidado individual. As experiências “bem-sucedidas” também estavam correlacionadas a regiões e RAS mais estruturadas, linhas de cuidado produzidas na e pela relação entre trabalhadores e usuários, projetos terapêuticos singularizados, trabalho em equipe, protagonismo dos usuários, redes de apoio e estratégias variadas para enfrentar o sofrimento, assim como o oposto era evidenciado nas experiências em que o acesso, a integralidade, a qualidade e a resolutividade estiveram comprometidos.

Como supracitado, a experiência ocorreu em uma universidade federal com currículo tradicional e biomédico, e em um hospital universitário de grande porte, localizado em uma cidade com baixa cobertura populacional de APS. Isso possibilitou que os discentes identificassem as consequências de uma RAS fragmentada e sem intensa presença de APS, em contraste com IT de pessoas em que os territórios têm fortalecida a atenção primária e, portanto, o vínculo entre trabalhadores e usuários. As diferenças e semelhanças dos IT apresentados, o debate e a reflexão realizados nos encontros tornaram possível reconhecer a diversidade do SUS, das práticas de cuidado e dos processos de trabalho em saúde.

Dessa forma, quando o foco para a construção da aprendizagem foi o itinerário vivido pelo usuário em busca de cuidado e o exercício de propor um PTS, tornou-se possível a articulação dos diferentes temas propostos e a abordagem dos conteúdos que mobilizavam tanto a aprendizagem prévia quanto o interesse em aprender, condição central para a aprendizagem significativa.

A partir dessa experiência, pôde-se identificar que a lógica biomédica e conteudista ainda é predominante na perspectiva dos alunos, pois foi o “recurso inicial” acionado por eles para a sistematização dos IT. Quanto mais a produção dos estudantes e os debates possibilitaram um olhar sensível sobre as relações que implicam as estruturas - tanto das redes de atenção quanto das dimensões sociais, econômicas e familiares - as concepções de saúde e as singularidades das experiências de vida dos indivíduos, mais era possível articular os conhecimentos dos IT com a construção dos PTS e das LCI5.

Desenvolver competências e habilidades para a análise crítica da realidade e para a ação emancipadora dos limites do tecnicismo, do burocratismo, das normatizações e das padronizações foi o objetivo da estratégia de ação-reflexão-ação (primeira versão do IT - o debate, conteúdos e a produção do PTS - a segunda versão do IT) que reconhece os contextos históricos e de vida dos atores implicados e estimula a curiosidade, a postura ativa e a experimentação em que todos aprendem, ensinam e se transformam a partir do diálogo1616. Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.),(1717. Freire P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra; 2011..

Uma questão premente para o ensino de saúde coletiva na formação da saúde, em geral e da medicina especificamente, é o quanto ele é periférico e marginalizado como área de conhecimento e em recursos. Os tempos disponíveis para ensino, as condições para a realização das práticas e a disponibilização de docentes correspondentes são, com frequência, insuficientes, o que também se observa na experiência relatada (considerando que, para as demais atividades práticas dos cursos de Medicina, é atribuído, em geral, um professor para até dez alunos). Cabe destacar que, mesmo sendo possível a invenção de estratégias que potencializem a saúde coletiva, como é o caso desta experiência, as condições da oferta das disciplinas comprometem a possibilidade de problematizar e apoiar a produção de significado dos alunos e, portanto, a aprendizagem. Esse contexto contribui para a avaliação crítica dos estudantes sobre a área de saúde coletiva e seus docentes.

No entanto, considerando as condições disponíveis, os dispositivos de IT e PTS oportunizaram que, a partir dos casos reais do cotidiano vivido, fosse possível percorrer o sistema de saúde da região, os diferentes pontos de atenção, sejam ou não do setor saúde, as práticas de cuidado no interior dos serviços, as histórias de vida e as redes de afeto dos usuários que contextualizam as procuras e as entregas de cuidado quanto desenhados a partir das singularidades das suas existências.

A sistematização e análise dos IT permitiram experimentar a potência do encontro entre usuários, estudantes e docentes na produção do conhecimento. Reconhecendo a aprendizagem como “algo que se experimenta, algo que se prova, que vem do encontro e não aquele sujeito mais experiente passando ensinamentos para o menos experiente”(p.19)1818. Bondía J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002;19: 20-8.) valorizou-se a escuta de como os usuários constroem seus percursos de cuidado e das experimentações dos estudantes, monitores e docentes.

REFERENCES

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  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.
Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Danilo Borges Paulino.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2021
  • Aceito
    07 Dez 2021
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