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Identidade médica: o impacto do primeiro contato com pacientes na empatia do estudante de Medicina

Resumo:

Introdução:

Empatia é definida como a capacidade de ouvir e compreender o outro, e, portanto, é um componente essencial na relação médico-paciente. Estudos apontam que proporcionar aos alunos a oportunidade de contato com o paciente logo no início do curso desperta a consciência da importância da empatia nas relações. Dessa forma, tal contato, nos primeiros semestres da Faculdade de Medicina, permite que os estudantes potencializem suas habilidades empáticas, oportunizando a construção de uma identidade profissional mais ampla e completa.

Objetivo:

O estudo tem como objetivo avaliar a influência do contato com o paciente na disciplina de Semiologia I, durante o segundo ano da graduação, sobre a empatia de estudantes de Medicina.

Método:

Trata-se de um estudo observacional e prospectivo, realizado com estudantes de Medicina de uma faculdade privada em Vitória, no Espírito Santo, matriculados na disciplina teórico-prática Semiologia I em 2019/2 e 2020/1, por meio de aplicação de questionários antes da primeira atividade prática em enfermaria e após a última. Analisaram-se as variáveis sociodemográficas e o escore de empatia. Diferenças entre os semestres foram avaliadas pelos testes qui-quadrado, exato de Fisher e de Mann-Whitney. Com os testes de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis, investigou-se a relação entre as variáveis sociodemográficas e a empatia. A influência do contato com o paciente na empatia foi averiguada pelo teste de Wilcoxon, todos com 95% de significância.

Resultado:

Participaram do estudo 38 alunos em 2019/2 e 60 em 2020/1. Foram significativas somente as associações entre o contato com o paciente nas enfermarias e o escore de empatia (p = 0,008), e entre o sexo e o escore de empatia (p = 0,000), sendo esta maior para mulheres e ao final da experiência da disciplina.

Conclusão:

A disciplina Semiologia I se mostrou capaz de afetar positivamente a empatia, que se apresentou maior no sexo feminino, corroborando a literatura. Os resultados obtidos refletem somente um semestre específico do curso, não o perfil global de empatia dos estudantes, os níveis de empatia em momentos distintos da graduação ou o comportamento dos discentes.

Palavras-chave:
Empatia; Educação Médica; Relações Médico-Paciente; Assistência Centrada no Paciente

Abstract:

Introduction:

Empathy is defined as the ability to listen and understand the other, thus becoming an essential component in the doctor-patient relationship. Studies indicate that the opportunity to make contact with the patient early in the course raises awareness of the importance of empathy in the relationships. Thus, such contact, in the first semesters of medical school, enables students to enhance their empathic skills, permitting the construction of a broader and more complete professional identity.

Objective:

The study aims to evaluate the influence on the empathy of medical students through the interaction with patients in the discipline of Semiology I, during the second year of undergraduate school.

Method:

Observational and prospective study with medical students from a private medical school in Vitória (ES), enrolled in the theoretical-practical discipline of Semiology I in 2019/2 and 2020/1, through the application of questionnaires, before the first practical activity in the ward and after the last one. Sociodemographic variables and empathy score were analyzed. The differences between the semesters were evaluated by Chi-square, Fisher’s exact or Mann-Whitney tests. The relationship between sociodemographic variables and empathy was assessed by the Mann-Whitney and Kruskal-Wallis tests. The influence of contact with patients on students’ empathy was analyzed by the Wilcoxon test, all with 95% significance.

Results:

The sample consisted of 38 students in 2019/2 and 60 in 2020/1. Only the associations between contact with the patients in the wards and the empathy score (p=0.008) and gender and the empathy score (p=0.000) were significant; empathy was greater among women and at the end of the discipline experience.

Conclusion:

The interaction between medical students and patients during the discipline of Semiology I was able to positively affect empathy, corroborating the literature. The higher levels of empathy among women also corroborate the literature. The obtained results reflect only a specific semester of the course, not the students’ overall empathy profile, levels of empathy at different moments of undergraduate school, or their behavior.

Keywords:
Empathy; Medical Education; Physician-Patient Relationship; Patient-Centered Care

INTRODUÇÃO

Empatia deriva do grego empatheia (em = dentro e pathos = sofrimento ou sentimento) e é definida como uma disposição genuína de ser capaz de ouvir e compreender o outro11. Thomazi L, Moreira FG, Marco MA. Avaliação da empatia em alunos do 4º ano da graduação em Medicina da Unifesp em 2012. Rev Bras Educ Med. 2014;38(1):87-93., tornando-se, assim, um componente essencial da comunicação interpessoal. Estudos propõem que a empatia engloba atributos cognitivos e emocionais, o que a torna multidimensional em um contexto permeado por aspectos culturais, afetivos, comportamentais e morais22. Eikeland H, Ørnes K, Finset A, Pedersen R. The physician’s role and empathy: a qualitative study of third year medical students. BMC Med Educ. 2014 Aug;14(165):[about 8 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/1472-6920-14-165.
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.

Na prática médica, o desenvolvimento da empatia está relacionado à competência clínica e à diminuição de erros médicos33. Park KH, Kim D, Kim SK, Yi YH, Jeong JH, Chae J, et al. The relationships between empathy, stress and social support among medical students. Int J Med Educ. 2015 Sept;6:103-8.. Uma vez inserida como componente da interação médico-paciente44. Mahoney S, Sladek RM, Neild T. A longitudinal study of empathy in preclinical and clinical medical students and clinical supervisors. BMC Med Educ . 2016 Oct;16(270):[about 8 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-016-0777-z.
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, a empatia mostrou-se benéfica para o aumento da adesão do tratamento pelo paciente, para a diminuição das queixas de negligência médica e para o aumento de desfechos favoráveis acerca do processo de adoecimento. Além disso, verificou-se que a relação empática entre médico e paciente tem impacto positivo na saúde, no bem-estar e na satisfação dos profissionais da saúde, por promover vivências mais construtivas, solidificadas e íntegras entre as partes. Entretanto, o panorama atual nas faculdades de Medicina sugere que, ao longo da graduação, os estudantes referem um declínio na própria empatia, fato alarmante para o futuro da prática médica55. Smith KE, Norman GJ, Decety J. The complexity of empathy during medical school training: evidence for positive changes. Med Educ. 2017 Nov;51(11):1146-59..

Em meados do século XX, houve abertura de espaço, em nível global, para o desenvolvimento de uma visão cientificista, resultando em um novo modelo para o conceito de saúde e de doença. Tal efeito contribuiu significativamente para afastar a prática médica do cuidado clínico, dificultando ao médico enxergar a doença como um conjunto de fatores66. Nascimento HCF, Ferreira Júnior WA, Silva AMTC, Carvalho IGM, Bastos GCFC, Anchieta RJ. Análise dos níveis de empatia de estudantes de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2018;42(1):150-8.. As faculdades de Medicina podem ter contribuído para a desumanização médica, tendo em vista que a aplicação de atitudes e comportamentos vinculados à humanização era atribuída apenas a experiências pessoais e à educação familiar vivenciadas pelo estudante, sem que houvesse abordagem durante o curso77. Dell Amore Filho E, Dias RB, Toledo Jr ACC. Ações para a retomada do ensino da humanização nas escolas de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2018;42(4):14-28..

Sob essa óptica, atualmente há uma preocupação geral com a diminuição dos níveis de empatia nos discentes de Medicina. Em países como Irã, Nova Zelândia e Estados Unidos, o declínio da empatia é um problema comum nos cursos de graduação médica44. Mahoney S, Sladek RM, Neild T. A longitudinal study of empathy in preclinical and clinical medical students and clinical supervisors. BMC Med Educ . 2016 Oct;16(270):[about 8 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-016-0777-z.
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. A visão crítica sobre os níveis de empatia nos cursos de Medicina também demonstrou que, em países ocidentais, os escores de empatia se apresentaram maiores quando comparados aos escores de empatia orientais. Um dos motivos para o declínio global e para a diferença de escores de empatia entre diversos países é a baixa integração de habilidades comunicativas e humanistas nos currículos de Medicina88. Tariq N, Rasheed T, Tavakol M. A quantitative study of empathy in Pakistani Medical students: a multicentered approach. J Prim Care Community Health. 2017 Oct;8(4):294-9.. A fim de reverter o quadro atual, conselhos e associações, como o Conselho Médico Geral do Reino Unido e a Associação de Faculdades Médicas Americanas, passaram a incorporar o desenvolvimento da empatia para diretrizes e para recomendações dos cursos de Medicina e da prática médica99. O’Tuathaigh CMP, Idris AN, Duggan E, Costa P, Costa MJ. Medical students’ empathy and attitudes towards professionalism: Relationship with personality, specialty preference and medical programme. PLoS One. 2019;14(5):[about 15 p.]. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0215675.
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.

No Brasil, a preocupação e a adoção de medidas de enfrentamento perante a diminuição da empatia nos estudantes não foram diferentes. Sendo assim, desde 2001, com a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Medicina e sua atualização em 2014, há a tentativa de priorizar uma formação médica generalista, humanista, crítica e reflexiva, demandando do aluno habilidades que possibilitem uma maior compreensão e uma maior abrangência da relação médico-paciente, tal como empatia66. Nascimento HCF, Ferreira Júnior WA, Silva AMTC, Carvalho IGM, Bastos GCFC, Anchieta RJ. Análise dos níveis de empatia de estudantes de Medicina. Rev Bras Educ Med . 2018;42(1):150-8.. Entretanto, a iniciativa enfrenta desafios que se relacionam intimamente à formação da identidade profissional médica e, consequentemente, à empatia dos estudantes: a logística dos planejamentos do currículo acadêmico, a relação dos discentes com os docentes e com os pacientes ao longo da graduação, e fatores sociodemográficos pessoais de cada graduando33. Park KH, Kim D, Kim SK, Yi YH, Jeong JH, Chae J, et al. The relationships between empathy, stress and social support among medical students. Int J Med Educ. 2015 Sept;6:103-8..

Para aferir a empatia em estudantes de Medicina, vem sendo utilizada a Escala Jefferson de Empatia para Estudantes de Medicina (Jefferson Scale of Empathy - JSE). Esse instrumento de medida psicométrica é validado, sendo composto por 20 perguntas, as quais analisam três principais fatores da empatia cognitiva: “tomada de perspectiva”, “cuidado compassivo” e “estar no lugar dos pacientes” (99. O’Tuathaigh CMP, Idris AN, Duggan E, Costa P, Costa MJ. Medical students’ empathy and attitudes towards professionalism: Relationship with personality, specialty preference and medical programme. PLoS One. 2019;14(5):[about 15 p.]. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0215675.
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. Amplamente difundida em pesquisas científicas, a ferramenta em questão se tornou uma grande aliada na avaliação da empatia na interação médico-paciente. Contudo, sabe-se que, por avaliar apenas o aspecto cognitivo da empatia, uma pesquisa para além da JSE é necessária para abarcar os diversos âmbitos envolvidos na construção da empatia1010. Zanetti ML, Dinh A, Hunter L, Godkin MA, Ferguson W. A longitudinal study of multicultural curriculum in medical education. Int J Med Educ . 2014 Feb;5:37-44..

Nesse contexto, a exposição precoce e frequente dos estudantes de Medicina aos conhecimentos e às habilidades relacionados a competências imprescindíveis a um profissional da saúde é essencial para que haja um melhor entendimento e um melhor desempenho no que tange à interação com os pacientes1010. Zanetti ML, Dinh A, Hunter L, Godkin MA, Ferguson W. A longitudinal study of multicultural curriculum in medical education. Int J Med Educ . 2014 Feb;5:37-44.. Dessa forma, oportunizar o contato com o paciente logo no início do curso desperta a consciência da importância da empatia nas relações, dando a possibilidade aos futuros médicos de desenvolver ainda mais suas habilidades empáticas, de modo a compor uma identidade profissional mais ampla e completa11. Thomazi L, Moreira FG, Marco MA. Avaliação da empatia em alunos do 4º ano da graduação em Medicina da Unifesp em 2012. Rev Bras Educ Med. 2014;38(1):87-93..

O objetivo desta pesquisa é avaliar a influência do contato com o paciente sobre a empatia do estudante de Medicina, em uma faculdade privada em Vitória, no Espírito Santo, no terceiro semestre da graduação.

MÉTODO

Trata-se de um estudo observacional e prospectivo realizado por meio da aplicação de um questionário a estudantes de Medicina de uma faculdade privada em Vitória, matriculados regularmente na disciplina Semiologia I, nos semestres letivos de 2019/2 e 2020/1.

A disciplina é semestral e inclui aulas teóricas e teórico-práticas, nas quais os estudantes aprendem a executar exames físicos e construir anamneses. As aulas práticas envolvem a participação de pacientes internados nas enfermarias do hospital-escola. Na grade curricular do curso, a disciplina Semiologia I proporciona o primeiro contato efetivo dos estudantes com pacientes.

A população-alvo foi de 60 estudantes no semestre 2019/2 e de 88 estudantes no semestre 2020/1, totalizando 148 estudantes. Incluíram-se os alunos que concordaram em participar da pesquisa, e excluíram-se aqueles que apresentaram erro ou omissão no preenchimento dos formulários de pesquisa. Ao final do processo de seleção, 98 estudantes constituíram a população de estudo.

O questionário com variáveis sociodemográficas (idade, sexo, renda média familiar mensal, estado civil, religião, escolaridade do aluno, escolaridade do pai, escolaridade da mãe, trabalho remunerado, participação em atividade extracurricular, moradia com os pais, familiar próximo profissional da saúde, incentivador para cursar Medicina, experiência prévia significativa com doença na família e especialidade pretendida) e a versão para estudantes da JSE foram aplicados no início de cada semestre letivo.

A referida escala avalia o nível de empatia em estudantes de Medicina e é composta por três eixos de análise: cuidado compassivo, capacidade de se colocar no lugar do paciente e tomada de perspectiva. Os eixos são divididos em 20 perguntas, que são respondidas por meio de uma escala Likert. Essa escala é composta por sete itens graduados de 1 a 7. Existem perguntas afirmativas, em que 1 significa “discordo fortemente”, e 7, “concordo fortemente”; e há perguntas negativas, em que essa lógica é a oposta. As alternativas 2, 3, 5 e 6 correspondem a níveis de concordância crescentes, no caso das perguntas afirmativas, e a níveis de concordância decrescentes, no caso das perguntas negativas. O número 4 refere-se à indiferença ao que é perguntado. Os três eixos citados, em sequência, podem ter pontuações mínimas e máximas entre 11 e 77, entre 2 e 14 e entre 7 e 49. Isso totaliza um escore global entre 20 e 140 pontos. A escala não compreende ponto de corte, e uma maior pontuação se refere a uma maior empatia.

No final do semestre letivo 2019/2, aplicou-se novamente a JSE. No entanto, devido à pandemia do severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (Sars-CoV-2), a aplicação da escala no final do semestre letivo 2020/1 ficou comprometida com a suspensão de todas as aulas teórico-práticas da instituição.

Descrição da amostra no segundo semestre letivo foi efetuada por meio de distribuição de frequências para variáveis qualitativas e da média e do desvio padrão para idade e escore no início do semestre. Diferenças entres os semestres letivos foram avaliadas ao nível de significância de 95% utilizando o qui-quadrado de Pearson ou o teste exato de Fisher para as variáveis qualitativas, e o teste U de Mann-Whitney para amostras independentes para as quantitativas.

A normalidade das variáveis idade e escore de empatia foi avaliada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov, com 95% de significância.

Para definir o perfil de empatia dos estudantes, categorizaram-se, de acordo com os dados sociodemográficos, a média e o desvio padrão dos escores de empatia observados em todos os participantes da pesquisa que preencheram o questionário no início dos dois semestres letivos. Na análise de associações, adotou-se o teste de Mann-Whitney de amostras independentes para variáveis qualitativas dicotômicas. Utilizou-se o teste de Kruskal-Wallis para variáveis qualitativas ordinais, com significância de 95%.

A influência do contato com o paciente na empatia dos estudantes foi estudada apenas com aqueles que participaram no início e no final do semestre letivo 2019/2, avaliada pelo teste de Wilcoxon Signed Rank para amostras pareadas, com 95% de significância.

O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 09706919.7.0000.5065.

RESULTADOS

No semestre letivo 2019/2, foram aplicados 60 questionários no começo e término do semestre. Dos possíveis participantes, 15 não preencheram um dos questionários, um não respondeu às perguntas da JSE, e seis não preencheram nenhum dos questionários. Por fim, participaram efetivamente da pesquisa 38 discentes. No semestre letivo de 2020/1, aplicaram-se 88 questionários, dos quais 60 foram corretamente preenchidos. No total, 98 discentes foram incluídos na pesquisa.

Os estudantes dos semestres letivos 2019/2 e 2020/1 mostraram-se semelhantes quanto às características sociodemográficas e ao escore inicial na JSE (Tabela 1). No conjunto dos semestres, observaram-se escore inicial com mínimo e máximo de 83 e 138, respectivamente, e média e desvio padrão de 119,84 e 10,73, respectivamente. A mediana, o primeiro e terceiro quartis foram, respectivamente, de 122, 114 e 127.

Tabela 1
Características da amostra segundo semestre letivo

De acordo com a Tabela 1, a amostra foi composta predominantemente por estudantes de 20 anos ± 2,54, por mulheres e por discentes que declararam ter religião, estar solteiros, não ter cursado o ensino superior e não participar de atividades extracurriculares. Esses estudantes, em sua maioria, moram com os pais, e pelo menos um dos progenitores possui ensino superior com-pleto ou incompleto, com renda maior que R$ 10.000,00 e menor que R$ 40.000,00. Os discentes também têm familiares profissionais na área da saúde, foram incentivados por alguém a cursar Medicina, passaram por alguma experiência significativa pessoal ou na família com doença e ainda não possuem especialidade médica pretendida após o término do curso.

A Tabela 2 apresenta os resultados do escore inicial na JSE segundo as variáveis estuda-das. Houve diferença estatisticamente significativa do escore entre os sexos (p = 0,000), com os homens apresentando média e desvio padrão de 115,2 e 11,2, respectivamente. As mulheres obti-veram média e desvio padrão de 122,6 e 9,5, respectivamente.

Tabela 2
Escore na JSE no início dos semestres letivos 2019/2 e 2020/1, segundo variáveis sociodemográficas

Fonte: Elaborada pelos autores.A despeito da significância estatística, quando se observam as variáveis sociodemográficas da Tabela 2, constata-se que os estudantes que afirmaram possuir uma religião, morar com os pais, ter sido incentivados por alguém a cursar Medicina e ter tido experiência relevante com doen-ça na família tiveram maior média do escore. Os estudantes solteiros apresentaram maior média do escore. O envolvimento em atividades extracurriculares, a definição de uma especialidade ao término do curso e a escolaridade do aluno e de ambos os pais, aqui abordada como tendo ensino superior completo ou incompleto, não tiveram médias de escore de empatia maiores.

Não foi possível observar relação aparente entre os níveis médios alcançados na JSE e os estratos de renda média familiar, sendo a menor média de escore observado para a faixa de renda entre R$ 10.000,00 e R$ 19.999,00 e o maior escore para a faixa de renda menor que R$ 5.000,00. A associação entre idade e escore de empatia também não foi estatisticamente significativa (p = 0,066). Em relação à idade, como apresentado na Figura 1, também não foi possível observar re-lação aparente entre as médias de escore de empatia e as diferentes idades.

Figura 1
Histograma com a distribuição de idades dos discentes nos semestres letivos 2019/2 e 2020/1. No topo das barras, respectivamente, encontram-se as médias de escore de empatia e as frequências absolutas para cada idade.

Também foi observada associação entre contato com o paciente nas enfermarias e escore de empatia (p = 0,008) quando se estudou a evolução dessa variável entre o início e o final do se-mestre letivo 2019/2. Os resultados descritivos das aplicações inicial e final da JSE no referido se-mestre letivo estão na Tabela 3.

Tabela 3
Estatísticas do escore na JSE no início e final do semestre letivo 2019/2

DISCUSSÃO

Após análise dos resultados, percebeu-se que o estímulo do contato com o paciente no módulo Semiologia I foi significativamente efetivo para aumentar o escore de empatia dos estudantes de 2019/2. Apesar de trabalhos anteriores não explorarem o primeiro contato dos discentes com pacientes em um contexto hospitalar, os resultados desta pesquisa corroboram os estudos sobre a temática, os quais indicam que a experiência prática e o exercício da comunicação são fatores cruciais para o desenvolvimento da empatia. Tais fatores proporcionam condições de aprendizado sem a cobrança e sem a pressão inerentes à profissão, e, concomitantemente, permitem o aperfeiçoamento do aluno no manejo dos pacientes e na reflexão sobre experiências vivenciadas1111. Pohontsch NJ, Stark A, Ehrhardt M, Kötter T, Scherer M. Influences on students’ empathy in medical education: an exploratory interview study with medical students in their third and last year. BMC Med Educ . 2018 Oct;18(231):[about 9 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-018-1335-7.
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. Dessa forma, a exposição contínua e precoce dos estudantes de Medicina aos ambientes de atividades práticas solidifica não apenas a vivência acadêmica, mas também o entendimento discente sobre os próprios comportamentos e sobre o impacto das ações nas relações entre médicos e pacientes1010. Zanetti ML, Dinh A, Hunter L, Godkin MA, Ferguson W. A longitudinal study of multicultural curriculum in medical education. Int J Med Educ . 2014 Feb;5:37-44..

Entretanto, sabe-se que o desenvolvimento da empatia compreende uma complexa interlocução5 entre aspectos individuais, ambientais e acadêmicos1111. Pohontsch NJ, Stark A, Ehrhardt M, Kötter T, Scherer M. Influences on students’ empathy in medical education: an exploratory interview study with medical students in their third and last year. BMC Med Educ . 2018 Oct;18(231):[about 9 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-018-1335-7.
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, não podendo ser resumida somente ao contexto de atividades práticas realizadas durante a graduação. Pesquisas sugerem que o nível de empatia em estudantes de Medicina está intimamente relacionado ao aspecto cultural e às características sociodemográficas que permeiam toda a vivência do aluno1212. Dehning S, Gasperi S, Tesfaye M, Girma E, Meyer S, Krahl W, et al. Empathy without borders? Cross-cultural heart and mind-reading in first-year medical students. Ethiop J Health Sci. 2013 July;23(2):113-22..

Sob essa óptica, no que tange ao aspecto cultural, ressaltam-se estudos que compararam os níveis de empatia entre os países1313. Wen D, Ma X, Li H, Liu Z, Xian B, Liu Y. Empathy in Chinese medical students: psychometric characteristics and differences by gender and year of medical education. BMC Med Educ . 2013 Sept;13(130):[about 6 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/1472-6920-13-130.
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e até mesmo entre os hemisférios ocidental e oriental88. Tariq N, Rasheed T, Tavakol M. A quantitative study of empathy in Pakistani Medical students: a multicentered approach. J Prim Care Community Health. 2017 Oct;8(4):294-9., revelando, a partir da diferença de resultados em cada região, que há influência cultural na construção da concepção de empatia nos indivíduos.

Já em relação às características sociodemográficas, nosso estudo se propôs a analisá-las, revelando apenas a variável sexo como fator de influência no escore de empatia. A respeito de tal variável, os resultados ratificam a informação científica difundida mundialmente de que as mulheres detêm níveis significativamente mais altos de empatia, pela JSE, quando comparadas aos homens1414. Valente AF, Costa P, Elorduy M, Virumbrales M, Costa MJ, Palés J. Psychometric properties of the Spanish version of the Jefferson Scale of Empathy: making sense of the total score through a second order confirmatory factor analysis. BMC Med Educ . 2016 Sept;16(242):[about 12 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-016-0763-5.
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. Acredita-se que os altos níveis de empatia entre as mulheres se devem à maior sensibilidade perante os estados emocionais, conforme apontam as pesquisas33. Park KH, Kim D, Kim SK, Yi YH, Jeong JH, Chae J, et al. The relationships between empathy, stress and social support among medical students. Int J Med Educ. 2015 Sept;6:103-8..

Especialmente, a hipótese inicial deste estudo acerca das variáveis sociodemográficas apontava, além do sexo, a religião, a experiência prévia de doença pessoal e/ou na família, a idade e a especialização como variáveis potenciais de influência no desenvolvimento da empatia em estudantes de Medicina. Porém, as quatro últimas não se revelaram significantes estatisticamente.

Nosso achado difere de outros estudos, os quais concluíram que as variáveis religião (ter religião), idade (estudantes com idade superior à média) e escolha da especialização (discentes que cogitam clínica médica em detrimento de cirurgia) também possuem influência positiva significativa sobre a empatia1212. Dehning S, Gasperi S, Tesfaye M, Girma E, Meyer S, Krahl W, et al. Empathy without borders? Cross-cultural heart and mind-reading in first-year medical students. Ethiop J Health Sci. 2013 July;23(2):113-22.. A diferença em questão pode ser levantada tanto pelos aspectos culturais, amplamente explorados como influenciadores na empatia, como pela diferença entre as amostras das pesquisas, seja pelo número de participantes, seja pelo contexto em que estavam inseridos na graduação, como a diferença entre períodos.

A variável experiência prévia de doença, por sua vez, não foi explorada em pesquisas anteriores, não permitindo, pois, a comparação. Todavia, acreditamos que deva ser explorada em estudos posteriores, tendo em vista sua possível relevância na construção da empatia subjetiva, face da empatia que não é explorada pela JSE (explora somente a empatia denominada cognitiva).

Ao longo do nosso estudo, a empatia se mostrou um tema de extrema relevância e abrangência em todo o mundo. Sendo assim, mesmo com muitas frentes de pesquisas sendo realizadas, diversas searas ainda não foram exploradas. Um desafio é relacionar uma complexa virtude que se relaciona tanto ao âmbito cognitivo, podendo este ser quantificado pela JSE1414. Valente AF, Costa P, Elorduy M, Virumbrales M, Costa MJ, Palés J. Psychometric properties of the Spanish version of the Jefferson Scale of Empathy: making sense of the total score through a second order confirmatory factor analysis. BMC Med Educ . 2016 Sept;16(242):[about 12 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-016-0763-5.
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, quanto ao âmbito subjetivo, podendo, portanto, variar de acordo com diversos pontos e contextos a serem avaliados99. O’Tuathaigh CMP, Idris AN, Duggan E, Costa P, Costa MJ. Medical students’ empathy and attitudes towards professionalism: Relationship with personality, specialty preference and medical programme. PLoS One. 2019;14(5):[about 15 p.]. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0215675.
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. No contexto subjetivo, pesquisas vêm revelando, por exemplo, que a pressão, a falta de apoio e o esgotamento gerados pela graduação em Medicina desempenham um papel importante na diminuição da empatia entre os estudantes55. Smith KE, Norman GJ, Decety J. The complexity of empathy during medical school training: evidence for positive changes. Med Educ. 2017 Nov;51(11):1146-59., fato que justifica os resultados científicos de seu declínio ao longo do curso de Medicina.

As DCN balizam os cursos de graduação e, na Medicina, também preconizam a empatia como característica inerente a um profissional médico1515. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília; 23 jun 2014. Seção 1, p. 8-11.. Portanto, elas direcionam as instituições de ensino a considerar a sua abordagem durante a graduação. Neste estudo, foi possível constatar que essa competência é tratada academicamente de forma indireta na disciplina abordada, permeando as condutas dos alunos durante a execução do exame físico e elaboração da anamnese por meio da entrevista com o paciente.

Dessa forma, há a necessidade de se evidenciar a empatia nos programas das disciplinas, observando a prerrogativa das DCN, a fim de potencializar as competências dos profissionais em formação.

Estudos que se propõem a inovar o entendimento sobre a empatia e promover mudanças acadêmicas, que elevem o conhecimento humanístico até a real relevância na formação da identidade profissional médica de um estudante22. Eikeland H, Ørnes K, Finset A, Pedersen R. The physician’s role and empathy: a qualitative study of third year medical students. BMC Med Educ. 2014 Aug;14(165):[about 8 p.]. doi: https://doi.org/10.1186/1472-6920-14-165.
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, são e serão importantes ferramentas de suporte, tanto para os discentes quanto para as instituições de ensino, na tentativa de implantar e potencializar habilidades empáticas no meio médico e, consequentemente, otimizar a prática médica.

Durante a aplicação dos questionários sociodemográficos e da JSE, houve deficiência no preenchimento por parte dos discentes, o que culminou na exclusão de participantes em 2019/2. Além disso, durante o semestre letivo 2020/1, iniciou-se no mundo a pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19). No início do semestre letivo, ainda havia aulas presenciais no Brasil, dado que o vírus não estava em circulação, porém, no dia 16 de março, a instituição participante da pesquisa, de acordo com a orientação do Ministério da Educação, decidiu adiar as aulas presenciais até posteriores informações. Com o avanço da pandemia, foi instituído o modelo de aulas a distância. Isso impossibilitou a avaliação do efeito do contato com os pacientes sobre a empatia dos estudantes da turma desse período, uma vez que as idas às enfermarias estavam suspensas. Além disso, os escores de empatia obtidos refletem apenas um semestre (terceiro período) da graduação em Medicina de uma faculdade privada no Brasil e não o perfil global dos estudantes de Medicina, independentemente do período cursado.

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos corroboram a literatura em relação à maior empatia entre as mulheres e no sentido de que uma experiência prática, no caso a disciplina de Semiologia I, é capaz de afetar positivamente a empatia dos estudantes de Medicina, construindo o profissional cada vez mais em consonância com as DCN. A empatia ainda não é abordada de forma objetiva nessa disciplina, e fazê-lo pode potencializar o aprendizado dessa competência.

Espera-se que novos estudos consigam abranger comparações dos escores entre turmas distintas ou acompanhar o decorrer de determinada turma, em diferentes instituições, a fim de inferir o real efeito do contato com o paciente sobre o desenvolvimento da empatia dos estudantes, ao longo do curso de Medicina e nos vários contextos pedagógicos, bem como quais seriam as possíveis variáveis que influenciam positiva ou negativamente o nível de empatia.

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  • 2
    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Rosiane Viana Zuza Diniz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2021
  • Aceito
    28 Maio 2022
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