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Estudantes do curso de Medicina na pandemia da Covid-19: experiências por meio de narrativas

Resumo:

Introdução:

A pandemia causada pelo Sars-CoV-2 tem provocado repercussões econômicas, sociais e na saúde mental dos indivíduos com a instauração do distanciamento social. Consequentemente, as escolas médicas suspenderam atividades e readaptaram a estrutura da formação acadêmica, atingindo com maior intensidade os estudantes do quinto e sexto anos.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo compreender as repercussões emocionais, sociais e na formação acadêmica e profissional, a partir do distanciamento social decorrente da pandemia da Covid-19, na perspectiva do estudante de Medicina dos dois últimos anos de uma escola médica, após paralisação de atividades presenciais.

Método:

Trata-se de pesquisa qualitativa realizada em uma faculdade do interior paulista, com estudantes dos dois últimos anos do curso de Medicina, por meio de narrativas e com posterior análise de conteúdo temática, conforme Bardin e Minayo.

Resultado:

Foram analisadas 11 narrativas, sendo sete escritas por acadêmicos do quinto ano e quatro do sexto. Nelas, evidenciaram-se medo da pandemia e de suas repercussões, descrença com a situação do país e crítica ao comportamento de conhecidos. No âmbito acadêmico, houve a preocupação com a paralisação das atividades práticas em um momento próximo do final da graduação e a reflexão sobre a condição de ser um estudante de Medicina no internato durante a pandemia. Além disso, emergiu um sentimento de incapacidade no auxílio ao enfrentamento da crise sanitária e receio do contágio de si próprio e de familiares. Todavia, também foram relatadas necessidades de descanso, de reforço de vínculos familiares e de oportunidade para novos aprendizados.

Conclusão:

Em suma, a pandemia gerou inquietações a respeito das incertezas nos campos social, econômico, político e científico, as quais, somadas ao momento da formação dos acadêmicos de Medicina, contribuíram para dificuldades em relação à saúde mental. Não obstante, houve também a avaliação do período como positivo, pois propiciou tempo livre para aumento no rendimento dos estudos, além de oportunidade para realizar atividades extracurriculares.

Palavras-chave:
Covid-19; Quarentena; Internato e Residência; Educação Médica

Abstract:

Introduction:

The pandemic caused by the new coronavirus (Sars-cov-2) has resulted in economic, social and mental health consequences for individuals with the establishment of social distancing. Consequently, medical schools suspended their activities, with the need to rethink the structure of academic education, affecting students in the fifth and sixth years with greater intensity.

Objective:

To understand the emotional, social and academic and professional training consequences of social distancing resulting from the COVID-19 pandemic, from the perspective of the medical student in the last two years of medical school, after the interruption of in-person activities.

Method:

Study conducted at a medical school in the interior of São Paulo, with students from the last two years of the medical course. This is a qualitative field research, carried out through narratives with thematic content analysis, according to Bardin and Minayo.

Results:

Eleven narratives were analyzed, seven written by fifth-year students and four by sixth-year students. In them, fear of the pandemic and its consequences, disbelief with the country’s situation and criticism of the behavior of acquaintances were evident. In the academic setting, there was concern about the interruption of practical activities close to the end of the undergraduate course, thoughts about being a medical student on clinical clerkship during the pandemic, with a feeling of incapacity in helping to cope with the health crisis, as well as fear of getting infected or infecting family members. However, the need for rest, reinforcement of family bonds and opportunities for new learning were also reported.

Conclusions:

In short, the pandemic generated concerns about uncertainties in the social, economic, political and scientific fields, which, added to the moment of these medical students’ education, contributed to difficulties in relation to mental health. However, the period was also evaluated as a positive one, as it provided free time to increase study performance, in addition to the opportunity to carry out extracurricular activities.

Keywords:
Covid-19; Quarantine; Internship and Residency; Medical Education

INTRODUÇÃO

O mundo está passando por um momento histórico desde o início da pandemia da Covid-19. Conhecido como Sars-CoV-2, esse vírus surgiu na província chinesa de Wuhan, em meados de dezembro de 201911. Tang X, Wu C, Li X, Song Y, Yao X, Wu X, et al. On the origin and continuing evolution of Sars-CoV-2. Natl Sci Rev. 2020 Mar 3:nwaa036., e se disseminou para outros países. Em 20 de agosto de 2021, o número de casos confirmados no mundo totalizava 209.876.613 e 4.400.284 mortes, demonstrando o grau de disseminação da doença22. World Health Organization. Coronavirus disease situation dashboard. WHO; c2021 [acesso em 20 ago 2021]. Disponível em: Disponível em: https://covid19.who.int .
https://covid19.who.int...
.

O novo coronavírus tem provocado repercussões econômicas, sociais e na saúde mental dos indivíduos com a instauração do distanciamento social. Medidas de prevenção e controle foram tomadas pelas autoridades sanitárias, de modo a limitar a mobilidade dos indivíduos com o fechamento de setores comerciais não essenciais, como escolas, universidades e espaços públicos de lazer33. Bezerra ACV, Silva CEM, Soares FRG, Silva JAM. Fatores associados ao comportamento da população durante o isolamento social na pandemia de Covid-19. Cien Saude Colet. 2020;25(supl 1):2411-21..

O âmbito universitário da área da saúde sofreu grande impacto e teve que ser repensado em toda sua estrutura, inclusive em relação ao curso de Medicina. De acordo com os resultados preliminares de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Educação Médica, com dados de início de abril de 2020, referente a 82,4% das escolas médicas do Brasil, 57% delas tiveram suas atividades suspensas completamente, e 40%, parcialmente. Foi necessário reestruturar a integração ensino-serviço, as atividades em cenários de prática, os processos seletivos de residência médica44. Medeiros EAS. Desafios para o enfrentamento da Covid-19 em hospitais universitários. Rev Paul Pediatr. 2020;38:e2020086. e até mesmo a data de formatura daqueles que estavam em fase final da graduação55. Oliveira SS, Postal EA, Afonso DH. As escolas médicas e os desafios da formação médica diante da epidemia brasileira da Covid-19: das (in)certezas acadêmicas ao compromisso social. APS. 2020;2(1):56-60..

Como alternativa, desenvolveram-se atividades a distância e remotas em substituição às presenciais. Essa modalidade foi implementada em 80% das graduações médicas66. Associação Brasileira de Educação Médica. Resultados preliminares da análise dos questionários de estudantes, professores e gestores de escolas médicas. Brasília: Abem; 4 abr 2020. p. 1-9., já que o Ministério da Educação permitiu, em caráter de excepcionalidade, atividades teórico-cognitivas em meios digitais para o curso de Medicina77. Brasil. Portaria nº 544, de 16 de junho de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus - Covid-19, e revoga as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 de março de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020. Brasília: Ministério da Educação, Gabinete do Ministro; 2014 [acesso em 19 set 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-544-de-16-de-junho-de-2020-261924872 .
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
. No entanto, essa modalidade necessitou de adaptações no meio acadêmico88. Almarzooq ZI, Lopes M, Kochar A. Virtual learning during the Covid-19 pandemic: a disruptive technology in graduate medical education. J Am Coll Cardiol. 2020;75(20):2635-8., capacitações para todos os usuários das plataformas virtuais, considerando os seus diferentes contextos99. Barbosa AM, Viegas MAS, Batista RLNFF. Aulas presenciais em tempos de pandemia: relatos de experiências de professores do nível superior sobre aulas remotas. Revista Augustus. 2020;25(51):255-80.),(1010. Seymour-Walsh AE, Bell A, Weber A, Smith T. Adapting to a new reality: Covid-19 coronavirus and online education in the health professions. Rural Remote Health. 2020;20(2):6000..

Na perspectiva de alguns estudos, é discutida a ambiguidade do papel dos estudantes no enfrentamento da pandemia: os dos últimos anos podem apresentar maior habilidade para atuar como apoio aos serviços de saúde, ao mesmo tempo que são vistos como potenciais vetores de contaminação, com necessidade de uso dos escassos equipamentos de proteção individual (EPI) e de supervisão profissional1111. Wang JHS, Tan S, Raubenheimer K. Rethinking the role of senior medical students in the Covid-19 response. Med J Aust. 2020 June;212(10):490-490.)-(1313. Kalet AL, Jotterand F, Muntz M, Thapa B, Campbell B. Hearing the call of duty: what we must do to allow medical students to respond to the Covid-19 Pandemic. WMJ. 2020 Mar;119(1):6-7..

Com base em dados de diagnóstico situacional na fase inicial da pandemia no Brasil, afirmava-se que o retorno integral às atividades universitárias seria um processo lento e gradual66. Associação Brasileira de Educação Médica. Resultados preliminares da análise dos questionários de estudantes, professores e gestores de escolas médicas. Brasília: Abem; 4 abr 2020. p. 1-9.. No começo do ano letivo de 2020, o vírus espalhou-se com rapidez inesperada, e, no Brasil, a emergência sanitária foi questionada e politizada. Nesse cenário, as escolas médicas tentaram se preparar para um segundo semestre realizado de forma integralmente remota. Em 2021, as escolas médicas esforçaram-se para organizar a aprendizagem em um modelo híbrido1414. Dias EP, Ferreira MA. Desenvolvimento docente pós-Covid-19: mudanças ou troca de cenário? Rev Bras Educ Med. 2021;45(3):e139..

Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo compreender as repercussões emocionais, sociais e na formação acadêmica e profissional, na perspectiva do estudante de Medicina do internato de uma faculdade do interior paulista, durante os seis meses de suspensão das atividades práticas imposta pelo distanciamento social causado pela pandemia da Covid-19.

MÉTODO

Tipo de estudo

Trata-se de pesquisa qualitativa, ou seja, que se utiliza do universo de significados, além de crenças, motivos, aspirações, atitudes e valores como material de trabalho. Atém-se a um nível da realidade que não é passível de ser quantificado, já que o espaço profundo de relações, processos e fenômenos não pode ser reduzido à operacionalização de variáveis1515. Minayo MCS. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In: Minayo MCS, organizador. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2002. p. 9-29...

Local e participantes da pesquisa

Os participantes foram graduandos dos dois últimos anos do curso de Medicina de uma faculdade localizada no interior do estado de São Paulo, que contempla os cursos de Medicina e Enfermagem, em regime integral, com estrutura seriada e currículo integrado e orientado por competência dialógica, estruturada a partir de metodologias ativas de ensino e aprendizagem1616. Faculdade de Medicina de Marília. Projeto pedagógico do curso de medicina. FAMEMA: Faculdade de Medicina de Marília; 2014. 46 p..

Define-se competência dialógica como a capacidade de mobilizar diversos recursos e atributos para que possam ser aplicados em contextos distintos e mutáveis. A competência dialógica tem como objetivo a integração de teoria e prática, contextualizando o conhecimento adquirido na prática profissional, sem deixar de considerar as inconsistências do mundo real. Tal processo tem como resultado o desenvolvimento de habilidades críticas, reflexivas e questionadoras nos estudantes1717. Lima VVR, Otero EC. Abordagem dialógica de competência: pressupostos e percurso metodológico para a construção de perfis na área da Saúde. Interface Comun Saúde Educ. 2022; 26:e210737:1-18..

Tal escola médica, como instituição de ensino, tem seu currículo integrado a partir das metodologias de ensino: aprendizagem baseada em problemas (ABP) e problematização. Os acadêmicos partem da identificação de problemas acerca da realidade objetiva os quais estão circunscritos e constroem questões norteadoras para o estudo e posterior solidificação do conhecimento1818. Vieira MNCM, Panúncio-Pinto MP. A metodologia da problematização (MP) como estratégia de integração ensino-serviço em cursos de graduação na área da saúde. Medicina (Ribeirão Preto). 2015;48(3):241-8.),(1919. Macedo KDS, Acosta BS, Silva EB, Souza NS, Beck CLC, Silva KKD. Metodologias ativas de aprendizagem: caminhos possíveis para inovação no ensino em saúde. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170435..

O número de participantes foi definido por meio de saturação, ferramenta utilizada para estabelecer o fechamento da amostra analisada, quando os dados obtidos passam a apresentar repetição de ideias e redundância de fatos pela avaliação do pesquisador2020. Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica. 2008;24(1):17-27..

Estratégia de coleta de dados: narrativas

A escolha das narrativas como parte da metodologia desta pesquisa deu-se por conta de seu processo formativo e pelo fato de elas enaltecerem as experiências singulares.

As narrativas valorizam os sentidos dados pelo indivíduo por meio das palavras para descrever a experiência2121. Larrosa JB. Notas sobre experiência e o saber de experiência. Rev Bras Educ. 2002;19:20-8., possuindo como característica uma sequência finita e longitudinal de tempo, na qual o narrador conta as histórias dentro de sua própria perspectiva, de modo a permitir a reflexão sobre si mesmo e uma autocompreensão2222. Grossman E, Cardoso MHCA. As narrativas em medicina: contribuições à prática clínica e ao ensino médico. Rev Bras Educ Med . 2006;30(1):6-14..

Dessa forma, as produções dos participantes auxiliam na construção de novos saberes, concomitantemente à análise realizada2323. Prado GVT. Narrativas pedagógicas: indícios de conhecimentos docentes e desenvolvimento pessoal e profissional. Interfaces da Educação. 2013;4(10):149-65., com a oportunidade de cada participante refletir, por meio de sua escrita, sobre as particularidades da experiência.

Aspectos éticos e de coleta de dados

O trabalho foi submetido à aprovação do CEP sob Parecer Consubstanciado nº 4325.470 e CAAE nº 36803720.0.0000.5413. Adotaram-se as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde2424. Brasil. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União; 2012..

Realizaram-se sorteios aleatórios para envio do convite aos acadêmicos do quinto e do sexto ano do curso de Medicina por meio do aplicativo WhatsApp. Após a aceitação, cada participante recebeu o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participação na pesquisa. Foi disponibilizado por e-mail um documento contendo um pequeno texto com instruções para o preenchimento do formulário e para a construção da narrativa, orientando um desenvolvimento de um texto com a descrição de experiências pessoais, de sentimentos mobilizados e de pensamentos relacionados às repercussões sociais e à formação do participante como estudante de Medicina do internato, sem limite mínimo ou máximo de palavras e sem a necessidade de encadeamento histórico ou citação de datas. Também se disponibilizou um questionário para caracterização do participante, contemplando ano da graduação, gênero, idade, os locais onde passou o período de distanciamento das atividades práticas e com quem passou esse período. Tanto as narrativas quanto os questionários não continham dados que identificavam os participantes. Para apresentação dos participantes no estudo, foram utilizados nomes fictícios escolhidos aleatoriamente, levando em conta apenas o gênero autorreferido.

Entre os estudantes convidados, incluíram-se aqueles que concordaram em participar da pesquisa, com envio posterior do material solicitado. Excluíram-se aqueles que não responderam às mensagens e/ou não enviaram o material dentro de um prazo de 15 dias.

A coleta das narrativas deu-se no período de novembro de 2020 a fevereiro de 2021, e o retorno às atividades práticas ocorreu em agosto de 2020 para o sexto ano de Medicina e setembro do mesmo ano para o quinto ano. Portanto, as narrativas foram elaboradas retrospectivamente no que se refere ao período de distanciamento social vivenciado pelos acadêmicos e, além disso, trouxeram informações sobre o início do regresso aos campos de prática.

O processo de coleta em si cursou com algumas dificuldades, principalmente a falta de aceitação do convite por parte dos estudantes que haviam sido sorteados. Porém, a coleta concomitante à análise nos permitiu chegar à saturação teórica, com dados significativos para discussão do estudo.

Análise dos resultados

Para a análise das narrativas, adotou-se a análise de conteúdo, modalidade temática, seguindo critérios de Bardin2525. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977. e Minayo2626. Minayo, MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade . Petrópolis: Vozes , 2009.. Para apresentação dos participantes no estudo, foram utilizados nomes fictícios escolhidos aleatoriamente, levando em conta apenas o gênero autorreferido, seguido do ano em que estavam no curso.

Dessa maneira, realizaram-se as seguintes fases: leitura exaustiva das narrativas, levantamento das ideias, dos núcleos de sentido e construção dos temas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Analisaram-se 11 narrativas, das quais sete foram escritas por acadêmicos do quinto ano e quatro por acadêmicos do sexto ano. Dentre os participantes, seis eram do sexo feminino e cinco do masculino. As idades dos participantes variaram de 22 a 32 anos, que declararam, quase em sua totalidade, ter passado o período na casa dos pais acompanhados do núcleo familiar mais próximo ou do parceiro afetivo, tal como encontrado por Teixeira et al.2727. Teixeira LAC, Costa RA, Mattos RMPR, Pimentel D. Saúde mental dos estudantes de Medicina do Brasil durante a pandemia da coronavirus disease 2019. J Bras Psiquiatr. 2021;70(1):21-9.. Entretanto, para os sextanistas, o afastamento das atividades acadêmicas foi de quatro meses, enquanto para os quintanistas, de cinco meses. A extensão das narrativas variou de 13 a 70 linhas. Ademais, a maior parte das narrativas foi recebida após o retorno das atividades práticas, sendo construídas de maneira retrospectiva, considerando as memórias afetivas significativas do período de afastamento.

Foram originados quatro temas: 1. “Aspectos socioculturais desencadeados pela pandemia”; 2. “Implicações psicológicas e interpessoais da pandemia na vida”; 3. “Experiências no âmbito acadêmico perante a pandemia”; e 4. “Avaliação do distanciamento social e mecanismos de enfrentamento”. Essas temáticas e seus respectivos núcleos de sentido estão descritos no Quadro 1 e são comentados a seguir.

Quadro 1
Principais temáticas coletadas reunidas em núcleos de sentido

Aspectos socioculturais desencadeados pela pandemia

Inicialmente há uma descrição do início da pandemia, com relatos da falta de percepção da gravidade da doença e, posteriormente, um entendimento de que ela não seria tão passageira como alguns imaginavam, trazendo reflexões a respeito de problemas sociais que surgiram ou se agravaram.

Observou-se a preocupação com a situação econômica, porém houve maior ênfase na angústia com as vidas que estavam em constantes riscos. O contexto pandêmico refletiu negativamente na economia do país, com perda de empregos e incertezas que consequentemente reduziram o consumo de bens de serviço. Concomitantemente, destacou-se a importância da correlação entre a crise econômica e uma deterioração da saúde mental, corroborando diversos estudos2828. Brodeur A, Gray D, Islam A, Bhuiyan S. A literature review of the economics of Covid-19. J Econ Surv. 2021 Apr;35(4):1-38.),(2929. Davis EJ, Amorim G, Dahn B, Moon TD. Perceived ability to comply with national Covid-19 mitigation strategies and their impact on household finances, food security, and mental well-being of medical and pharmacy students in Liberia. PLoS One. 2021 July;16(7):e0254446.. Os estudantes demonstraram como a pandemia impactou a vida deles:

Pensava que ficaríamos isolados em quarentena por duas ou três semanas no máximo. Só depois de alguns dias que tive noção da proporção dos fatos. Com o passar dos meses, um sentimento de ansiedade, impaciência e preocupação tomou lugar. Não acreditava que a pandemia se prolongaria tanto (Ricardo, sexto ano).

Notícias assustadoras de mortes pelo mundo, famílias perdendo empregos e casas, descaso e medidas imprudentes de governantes e de parcela da população (Sara, quinto ano).

Houve também reflexões sobre posicionamentos de negação ou minimização da gravidade da pandemia, com críticas à condução da pandemia pelo governo federal e ao comportamento de familiares e colegas que ignoravam as medidas de segurança adotadas pela ciência e as repercussões na condição de vida das pessoas.

Esse aspecto corrobora estudos que revelam que situações de emergência em saúde pública trazem consequências individuais e comunitárias, resultando em estresse emocional, angústia e transtornos mentais, hábitos de vida não saudáveis, como abuso de substâncias, e inconformidade com as diretrizes de saúde pública, como o descumprimento do distanciamento social e os movimentos antivacina3030. Pfefferbaum B, North CS. Mental health and the Covid-19 pandemic. N Engl J Med. 2020;383:510-2..

Vi amigos, colegas de turma, familiares que [...] preferiram minimizar ou adotar uma visão negacionista, tal qual o presidente da República. [...] Percebi inúmeros colegas preocupados exclusivamente com sua formação acadêmica em 2020, sequer se preocupando com as condições de segurança deles mesmos, de seus familiares, dos pacientes. Pior, muitos deles indo a encontros com aglomerações entre estudantes (Carlos, sexto ano).

As principais reflexões na perspectiva de aspectos socioculturais apresentadas nas narrativas tinham um foco no início da pandemia, momento de pouco conhecimento sobre a doença e suas repercussões. Esse fato é descrito também na literatura, segundo a qual, no início de uma crise, afloram ideias contrastantes com emoções negativas e otimismo irrealista3131. Faro A, Bahiano MA, Nakano TC, Reis C, Silva BFP, Vitti LS. Covid-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estud Psicol. 2020;37:e200074..

Implicações psicológicas e interpessoais da pandemia na vida

Os estudantes demonstraram sentimentos de insegurança conforme se estendia o período do afastamento das atividades curriculares, corroborando os estudos que revelam que a suspensão das atividades educacionais afetou mais de 90% da população estudantil mundial3232. Silva SM, Rosa AR. O impacto da Covid-19 na saúde mental dos estudantes e o papel das instituições de ensino como fator de promoção e proteção. Revista Prâksis. 2021;2:189-206. e trouxe infelicidade e angústia quanto à incerteza da concretização de planos pessoais e profissionais3333. Xiao H, Shu W, Li M, Li Z, Tao F, Wu X, et al. Social distancing among medical students during the 2019 coronavirus disease pandemic in China: disease awareness, anxiety disorder, depression, and behavioral activities. Int J Environ Res Public Health. 2020 July 14;17(14):5047.),(3434. Liu J, Zhu Q, Fan W, Makamure J, Zheng C, Wang J. online mental health survey in a medical college in China during the Covid-19 outbreak. Front Psychiatry. 2020 Aug;11:459.: “Foi quase como se eu estivesse num limbo, numa realidade virtual, sem saber como seria a sucessão dos eventos, sem saber a proporção que a pandemia poderia tomar, sem nenhuma resposta da faculdade sobre retorno de atividades (Kátia, quinto ano). Conforme o distanciamento social e as medidas de biossegurança foram implementados, essa ruptura da rotina gerou não só sentimentos de incerteza e estresse, mas também propiciou o surgimento e/ou agravamento de distúrbios psiquiátricos3535. Silva AC, Martins DS, Santiago AT, Santos OS, Paes CJO, Silva AC, et al. O impacto psicológico da pandemia de Covid-19 nos acadêmicos de medicina da região de Carajás. Braz J Hea Rev. 2020;3(6):19731-47.. Segundo a vivência dos estudantes nesse período, muitos problemas de saúde se intensificaram.

Antes do afastamento, fazia quase oito meses que eu não tinha crises de enxaqueca e o médico que me acompanha estava começando a pensar em descontinuar a minha medicação profilática; apenas durante o primeiro mês de quarentena, tive três crises (sendo uma delas uma das piores que já tive). Antes do isolamento, fazia cinco anos que eu não tinha crises de pânico; durante toda a quarentena, tive quatro (Miguel, sexto ano).

Atrelada à remodelação do ensino no contexto da pandemia, a vivência familiar teve uma série de mudanças com o aumento de conflitos paterno-filiais3636. Nahas LF, Antunes APO. Pandemia, fraternidade e família: a convivência e a importância da manutenção dos laços familiares. Revista IBDFAM - Famílias e Sucessões. 2020 [acesso em 19 set 2021].Disponível em: Disponível em: https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/1567/Pandemia,+fraternidade+ .
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. Consoante com esse estudo, alguns estudantes também trouxeram problemas em relação à dinâmica familiar no período da pandemia: “De resto apenas tentava não surtar e ter uma boa convivência com a minha família, que, no geral, é extremamente difícil. Entre muitas discussões e brigas e estresse (Kátia, quinto ano).

Em contrapartida, outros mencionaram que o período de afastamento contribuiu para a melhora nos vínculos familiares:

A convivência familiar mais próxima e duradoura que antes foi meu porto seguro, e garantiu que passasse a maior parte dos meses amparando-nos mutuamente (Rodrigo, quinto ano).

Outro fator que impactou também a saúde mental dos indivíduos, gerando ansiedade e estresse, foi a intensa propagação de notícias falsas e de conteúdo duvidoso pela mídia3131. Faro A, Bahiano MA, Nakano TC, Reis C, Silva BFP, Vitti LS. Covid-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estud Psicol. 2020;37:e200074.: “A raiva era quase diária ao observar a disseminação de fake news e a irresponsabilidade de figuras públicas diante da situação, prestando um desserviço social”(Olívia, quinto ano).

Apesar do grande impacto negativo que a pandemia gerou na saúde mental do indivíduo, muitos estudantes trouxeram o período como um momento de mudança de perspectiva em relação à vida.

O distanciamento social obrigou-me a repensar meus valores e os objetivos de vida. Se há alguns meses gastaria tempo com futilidades, agora penso como a vida pode virar de ponta-cabeça em um instante sem o menor aviso (Sara, quinto ano).

[...] passei a aproveitar minha família, a curtir mais as conversas, coisa que já não fazia antes, e às vezes evitava. [...] Aceitei esse ritmo de vida novo, todo mundo se adaptou de uma forma ou de outra, as pessoas estavam seguindo a vida delas, e eu também queria (Rodrigo, quinto ano).

Experiências no âmbito acadêmico perante a pandemia

De maneira geral, as experiências relatadas pelos estudantes que enviaram suas narrativas foram marcadas pela suspensão das atividades presenciais. Tal fato levou muitos a desenvolver preocupações quanto às repercussões acadêmicas desse afastamento dos cenários de prática, especialmente no período de internato, além de observações a respeito das atividades remotas:

Quando voltaríamos? Como voltaríamos? Qual seria o impacto dessa pausa na minha formação? [...] Enfim, várias perguntas e respostas incertas. Sobre o impacto da quarentena na formação, ainda ecoa na minha mente, pois não me sinto segura para me formar de tal modo (Joana, quinto ano).

Por mais que as aulas fossem importantes e agregavam conhecimento à nossa formação, nada substitui a prática tão presente nos quinto e sexto anos da Faculdade de Medicina. É nesse momento que realmente aprendemos a ser profissionais, a agir e pensar como tal. A pandemia nos privou em grande parte disso (Ricardo, sexto ano).

O questionário aplicado nesta pesquisa encontrou respaldo em um estudo realizado em abril de 2020, no Peru3737. Albitres-Flores L, Pisfil-Farroña, Y, Guillen-Macedo K, Niño-Garcia R, Alarcon-Ruiz C. Percepción de los internos sobre la suspensión del internado médico durante la cuarentena por la Covid-19. Rev Peru Med Exp Salud Publica. 2020 Nov;37(3):504-9.. No estudo peruano, aplicou-se um questionário a internos do curso de Medicina, no qual 91,5% dos estudantes relataram sentir muita ou moderada incerteza em relação ao reinício do internato.

Além disso, considerando que os estudantes sentem-se despreparados para iniciar seu trabalho como profissionais, tais apreensões destacam a necessidade de diretrizes robustas focadas no desenvolvimento educacional continuado durante tempos de crise e possíveis pandemias futuras, já que a prioridade dos acadêmicos é que atinjam os objetivos necessários para que possam obter a graduação de médicos3838. Choi B, Jegatheeswaran L, Minocha A, Alhilani M, Nakhoul M, Mutengesa E. The impact of the Covid-19 pandemic on final year medical students in the United Kingdom: a national survey. BMC Med Educ. 2020 June;20(206)..

Apesar de estarem enfrentando preocupações e incertezas, nas narrativas aparece a perspectiva de que, diante da maior quantidade de tempo livre, o período de suspensão de atividades presenciais poderia constituir-se como uma oportunidade de aprimoramento acadêmico, principalmente por meio do estudo teórico:

Apesar das limitações e postergação das atividades a distância para os estudantes do quinto e sexto anos, resolvi aproveitar a oportunidade para me dedicar ao estudo (sanar lacunas do saber, aprimorar alguns conhecimentos através de cursos on-line e gratuitos, muitos, inclusive, oferecidos pelo SUS) [...] (Olívia, quinto ano).

De maneira análoga, em um estudo com acadêmicos de Medicina da Líbia, os estudantes comentam que se engajaram em múltiplas atividades, enquanto as escolas médicas permaneceram fechadas, como o estudo individual e atividades de pesquisa e de voluntariado3939. Alsoufi A, Alsuyihili A, Msherghi A, Elhadi A, Atiyah H, Ashini A, et al. Impact of the Covid-19 pandemic on medical education: medical students’ knowledge, attitudes, and practices regarding electronic learning. PLoS One . 2020 Nov;15(11):e0242905..

Outro aspecto relevante refere-se ao papel de um estudante cursar Medicina e estar inserido num momento de pandemia:

É engraçado como seus amigos e conhecidos mandam mensagens para tirar dúvidas com você sobre o que está acontecendo, esperando uma resposta esclarecedora, mas num momento em que nem os infectologistas têm muita certeza sobre nada [...] (Miguel, sexto ano).

Senti-me completamente inútil por não poder ajudar: não possuía diploma ou conhecimento necessário para atuar em hospitais (Sara, quinto ano).

Essas inseguranças podem estar associadas às incertezas quanto à função dos estudantes de Medicina durante a pandemia da Covid-19, já que os acadêmicos ocupam não apenas a posição de aprendizes, mas também a de “médicos em treinamento”. Ou seja, apesar de seu papel primário ser o aprendizado da prática médica, os estudantes também fornecem cuidado aos pacientes por meio de entrevistas, comunicações com suas famílias e assistência em procedimentos e na coordenação do cuidado4040. Miller DG, Pierson L, Doernberg S. The role of medical students during the Covid-19 pandemic. Ann Intern Med. 2020 July;173(2):145-6.. Além disso, há uma expectativa de familiares e conhecidos de que saibam sobre todos os assuntos da saúde humana.

Ademais, o afastamento das atividades presenciais suscitou nos acadêmicos reflexões sobre a estruturação do processo de aprendizado, incluindo críticas a como se dava a organização dos estágios anteriormente à pandemia e às propostas formuladas pelo corpo docente diante da suspensão dos campos de prática:

Senti um alívio nos primeiros dias de descanso. Foi um respiro em meio à rotina exaustiva dos estágios que havia passado. Hoje, penso que, se não houvesse a pandemia, não teria suportado terminar 2020. Ou, se o terminasse, com certeza minha saúde (mental, física e emocional) estaria completamente comprometida. Isso me fez refletir muito sobre a organização atual do internato (Olívia, quinto ano).

Foram três meses sem qualquer proposta de organização. Houve mobilização do corpo estudantil frente ao abandono, e só depois de infinitas reuniões pouco produtivas, foi iniciada a programação de ensino a distância (Ricardo, sexto ano).

Como pode-se perceber, a pandemia da Covid-19 levanta questionamentos a respeito de quando e como os internatos podem continuar, ainda mais diante das previsões extensamente variáveis no que se refere à duração da crise sanitária. Por isso, as escolas médicas, independentemente de sua organização curricular, poderiam considerar novas medidas para dar continuidade à sua missão de formar futuros profissionais, com soluções tecnológicas, como as iniciativas de telemedicina4141. Iancu AM, Kemp MT, Alam HB. Unmuting medical students’ education: utilizing telemedicine during the Covid-19 pandemic and beyond. J Med Internet Res. 2020;22(7):e19667..

Contudo, à medida que foram se passando os meses de distanciamento social e começaram a ser anunciadas as primeiras perspectivas de retorno aos estágios de prática, os estudantes relataram um misto de sentimentos:

Quando voltaram as atividades, estava ansioso e feliz, não sabia como iria ser os primeiros dias. A retomada foi suave, com a carga de trabalho diminuída nas enfermarias, o hospital bem mais organizado e limpo, e os EPIs foram distribuídos. Senti-me mais seguro (Rodrigo, quinto ano).

Eventualmente retornamos, e um pouco de animação tomou conta de mim, além da esperança de um retorno e normalização da vida pré-pandemia. Não foi o que aconteceu. Mas o mindsetting do momento foi: tirar o máximo dessa situação ruim! (Kátia, quinto ano).

É possível que a ansiedade, felicidade e esperança referidas pelos acadêmicos estejam associadas ao conceito de pós-crise que, como explicado por Faro et al.3131. Faro A, Bahiano MA, Nakano TC, Reis C, Silva BFP, Vitti LS. Covid-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estud Psicol. 2020;37:e200074., é um momento de reconstrução social após o período agudo em que se instala um problema de saúde pública. Nessa fase pós-crise, segundo os autores, há um declínio da transmissão comunitária e uma redução das medidas de distanciamento social. Com isso, as pessoas tendem a retomar suas atividades habituais, assim como as instituições gradualmente retornam ao funcionamento.

Avaliação do distanciamento social e mecanismos de enfrentamento

O período de distanciamento social foi descrito como permeado por várias dificuldades intra e interpessoais, no entanto também foi vivenciado como uma oportunidade para realizar atividades que não seriam possíveis em um período habitual de atividades curriculares. Com maior disponibilidade de tempo, os participantes citaram que aproveitaram o período para se dedicar ao lazer, descobrindo e desenvolvendo novas habilidades, ou retomando atividades do cotidiano que haviam sido abandonadas.

Me descobri boa em fazer novos doces. Redescobri um hábito que havia abandonado há tempos, como correr. [...] Alimentei novos sonhos. Descobri uma nova língua, como o italiano. Estudei astrocartografia. [...] Aos poucos e à sua maneira, a vida vai voltando, vamos aos poucos se adaptando com o que dá (Alice, quinto ano).

Considerei um período importante de reflexão, de fazer atividades extracurriculares, como pintar quadros, tocar violão, ler livros, organizar documentos, atividades que eu não tinha tempo durante o período letivo. [...] Tentava aproveitar ao máximo esse período, pois sabia que uma hora ele ia acabar e não teria o mesmo tempo livre que tive (Fernando, quinto ano).

O contato com a arte, por exemplo, que foi descrito em algumas narrativas, permitiu a expressão dos sentimentos mobilizados durante o distanciamento social, assim como ocorre na pesquisa de Medeiros et al.4242. Medeiros MS, Barreto DMS, Sampaio R, Alves BCFB, Albino DCM, Fernandes IL. A arte como estratégia de coping em tempos de pandemia. Rev Bras Educ Med . 2020;44(sup. 01):e0130., em que atividades como pintura e escrita foram desenvolvidas como maneira de conviver com as mudanças da pandemia.

A mudança na rotina de lazer descrita nas narrativas também é encontrada na literatura4343. Clemente ACF, Stoppa EA. Lazer doméstico em tempos de pandemia da Covid-19. Licere. 2020;23(3):460-84.),(4444. Morris ME, Kuehn KS, Brown J, Nurius PS, Zhang H, Sefidgar YS, et al. College from home during Covid-19: A mixed-methods study of heterogeneous experiences. PLoS One . 2021 June;16(6):e0251580., em que novas habilidades foram desenvolvidas, ao mesmo tempo que outras tiveram que ser adaptadas para o meio virtual, como apresentações culturais e encontros com amigos. É importante ressaltar que o lazer é reconhecido como fator protetor da saúde mental, sendo uma expressão de resiliência diante de toda a mudança atual de rotina4545. Vieira JL, Romera LA, Lima MCP. Lazer entre universitários da área da saúde: revisão de literatura. Cienc Saude Colet. 2018;23(12):4221-9.),(4646. Tahara M, Mashizume Y, Takahashi K. Mental health crisis and stress coping among healthcare college students momentarily displaced from their campus community because of Covid-19 restrictions in Japan. Int J Environ Res Public Health . 2021 July;18(14):7245.:

Passei a caminhar no bairro, para ver o céu e sentir o ar fresco, me sentir mais vivo (Rodrigo, quinto ano).

A ressignificação do período de distanciamento social como uma oportunidade única de desenvolvimento pessoal corresponde a uma estratégia de enfrentamento que apresenta proteção contra sintomas depressivos e transtornos de estresse agudo4444. Morris ME, Kuehn KS, Brown J, Nurius PS, Zhang H, Sefidgar YS, et al. College from home during Covid-19: A mixed-methods study of heterogeneous experiences. PLoS One . 2021 June;16(6):e0251580.),(4747. Ye Z, Yang X, Zeng C, Wang Y, Shen Z, Li X, et al. Resilience, social support, and coping as mediators between Covid-19: related stressful experiences and acute stress disorder among college students in China. Appl Psychol Health Well Being. 2020 July;12(4):1074-94..

Nesse contexto, a internet foi o instrumento que possibilitou também a permanência de contato com o círculo social dos participantes desta pesquisa, auxiliando na busca de suporte social enquanto o presencial estava restrito. Essa adaptação também é encontrada na literatura4444. Morris ME, Kuehn KS, Brown J, Nurius PS, Zhang H, Sefidgar YS, et al. College from home during Covid-19: A mixed-methods study of heterogeneous experiences. PLoS One . 2021 June;16(6):e0251580., que descreve a internet como espaço para propagação de apoio emocional e social ao indivíduo.

Houve também a valorização do acompanhamento psicológico profissional como um dos fatores que auxiliaram a lidar melhor com a situação:

Inclusive, um ponto de virada definitivo para o meu bem-estar mental foi finalmente entender o que estava ou não no meu controle e o que eu deveria fazer para manter esse controle (algo que atribuo quase integralmente à minha psicóloga [...]) (Miguel, sexto ano).

Esse aspecto é também demonstrado em um estudo que revela um aumento expressivo de atendimento profissional em saúde mental durante a pandemia, tornando o acompanhamento psicológico uma estratégia importante de enfrentamento4848. Pereira MD, Oliveira LC, Costa CFT, Bezerra CMO, Santos CKA, Dantas EHM. A pandemia de Covid-19, o isolamento social, consequências na saúde mental e estratégias de enfrentamento: uma revisão integrativa. Res Soc Dev. 2020;9(7)..

Observa-se que as medidas mencionadas anteriormente são congruentes com as orientações de proteção à saúde mental durante a pandemia, publicadas pelo Ministério da Saúde: realizar atividades (físicas, cognitivas, de relaxamento, entre outros) que diminuam o estresse agudo, manter a rede socioafetiva ativa e buscar atendimento profissional em saúde mental se necessário4949. Ministério da Saúde. Recomendações e orientações em saúde mental e atenção psicossocial na Covid-19. 23a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020. 342 p.. Assim, apesar do sofrimento psíquico, alguns participantes da pesquisa encontraram novas possibilidades de atividades de lazer e de momentos de reflexão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio das narrativas, obteve-se a expressão de sentimentos, pensamentos e ações de estudantes dos dois últimos anos de um curso de Medicina, que vivenciaram o distanciamento social decorrente da pandemia da Covid-19.

Contextualizou-se o enfrentamento da pandemia nos cenários mundial e nacional, em que se retrataram ações governamentais, institucionais e acadêmicas, além das repercussões socioculturais, psicológicas e interpessoais do distanciamento social. Expressaram-se preocupações com a crise de saúde pública, o que levou a reflexões sobre a situação política e econômica do país e suas consequências na assistência à saúde. Ademais, os participantes relataram o impacto negativo na saúde mental e física, com sentimentos de angústia, ansiedade e estresse, surgimento e/ou agravamento de transtornos psiquiátricos e físicos, além de aumento de conflitos familiares.

O cenário acadêmico foi um dos grandes disparadores de uma gama de sentimentos, reflexões e incertezas. Gerou estresse, preocupações acerca de prejuízos para a formação acadêmica, com a paralisação das atividades presenciais, com o ensino remoto e o retorno híbrido. Expressaram-se inseguranças diante da ausência e das possibilidades de retorno das atividades práticas. Houve ainda a angústia relacionada aos impactos na formação profissional.

No entanto, o período de suspensão de atividades foi também visto como uma oportunidade de vivenciar momentos que não seriam possíveis fora do contexto da pandemia. Relataram-se estudos teóricos focados na formação profissional, na maior vivência e no desenvolvimento do vínculo familiar, em atividades de lazer e reflexões individuais acerca de muitos aspectos da vida cotidiana.

Dessa maneira, o período de distanciamento social causado pela pandemia da Covid-19 gerou dificuldades na saúde mental dos estudantes, muitas vezes associadas às alterações no âmbito acadêmico, o que exigiu cuidados. Esse período também foi vivenciado por outros como uma época em que as relações familiares e os desenvolvimentos individuais nos estudos contribuíram para outros aprofundamentos.

Cabe ressaltar que, por conta de todas as alterações existentes no período da pandemia da Covid-19, este estudo teve a limitação no número de participantes, considerando as mudanças na rotina e as fragilidades relacionadas ao acesso aos estudantes. Mesmo assim, em razão dos resultados encontrados no presente trabalho, tornam-se relevantes novos estudos que possam ampliar o olhar das repercussões desse momento histórico aos profissionais em formação.

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    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Mauricio Peixoto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2021
  • Aceito
    12 Jan 2023
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