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Photovoice como ferramenta de ensino e aprendizado sobre cuidados paliativos

Photovoice as a tool for teaching and learning about palliative care

Resumo:

Introdução:

O cuidado paliativo foi recentemente incluído no currículo da graduação em Medicina no Brasil, mas a colocação do seu ensino em prática representa um grande desafio. Ensinar cuidado paliativo envolve abordar o sofrimento e o cuidado de questões que vão além dos sintomas físicos, aspectos com os quais os alunos de Medicina estão geralmente pouco acostumados. O Photovoice (PV) é uma ferramenta multifacetada que pode servir ao propósito do trinômio ensino, pesquisa e extensão. Na sua aplicação como instrumento pedagógico, os alunos atuam geralmente como participantes e o docente como facilitador. Os alunos são convidados a tirar fotografias (photo) e narrar essas imagens (voice) atribuindo significado e interpretação dentro de um contexto.

Relato de experiência:

Um grupo de alunos foi convidado a produzir um trabalho com o tema “Cuidados paliativos na visão de um estudante do terceiro ano de Medicina”. O trabalho foi desenvolvido ao longo de 12 encontros semanais sob a forma de rodas de conversa, que versavam sobre materiais previamente enviados aos alunos, como música, vídeos e textos. Cada aluno produziu um PV individual. Os PV preparados pelos alunos se dividiram espontaneamente em três grupos: experiências familiares de cuidados paliativos, experiências profissionais vivenciadas nos cenários de prática da faculdade e desenvolvimento do tema de maneira mais conceitual.

Discussão:

A despeito das limitações e dificuldades do tema e da metodologia utilizada, o saldo final da experiência foi muito positivo não só pelo aprendizado dos alunos, mas também pela criação de um grande vínculo no grupo, que manifestou profunda gratidão pelo trabalho desenvolvido ao longo do semestre.

Conclusão:

Diante dos nove PV produzidos, fruto da reflexão individual de cada aluno, percebe-se que cada integrante do grupo foi tocado de uma forma diferente pelo assunto, ainda que todas as reflexões tenham sido realizadas de forma coletiva durante os nossos encontros. A produção dos PV permitiu a externalização de visões diferentes sobre o mesmo assunto de maneira pessoal e humanística, ou seja, percepção do que é cuidado paliativo na visão de um estudante de Medicina do terceiro ano.

Palavras-chave:
Cuidados Paliativos; Educação Médica; Metodologia

Abstract:

Introduction:

Palliative care was recently included in the undergraduate medical curriculum in Brazil, but putting its teaching into practice represents a major challenge. Palliative care involves intimate contact with suffering and caring for issues that go beyond physical symptoms, aspects generally unfamiliar to medical students. Photovoice (PV) is a multifaceted tool that can support the teaching, research and extension trinomial. In its application as a pedagogical tool, students generally act as participants and the teacher as facilitator. Students are invited to take photographs (photo) and narrate these images (voice) ascribing meaning and interpretation within a context.

Experience Report:

A group of students was invited to produce a manuscript with the theme “Palliative care from the point of view of a third-year medical student”. The work was developed over 12 weekly meetings in the form of conversation circles that dealt with materials previously sent to students such as music, videos and texts. Each student produced an individual PV. Photovoices prepared by the students were spontaneously divided into three groups: family experiences of palliative care, professional experiences in practice scenarios and development of the theme in a more conceptual manner.

Discussion:

Despite the limitations and difficulties of the theme and the methodology used, the final balance of the experience was very positive, not only in relation to student learning, but also to the creation of a strong bond within the group, which expressed deep gratitude for the work developed over the course of the semester.

Conclusion:

In view of the nine PVs produced, as a result of each student’s individual reflection, it is clear that each member of the group was touched in a different way by the subject, even though all the reflections were presented collectively during our meetings. The production of a PV allowed the externalization of different views on the same subject in a personal and humanistic way, in other words, the perception of palliative care in the view of a third-year medical student.

Keywords:
Palliative care; Medical education; Methodology

INTRODUÇÃO

Em novembro de 2022, no Brasil, foi publicada pelo Conselho Nacional de Educação uma resolução que incluiu os cuidados paliativos nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina11. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, de 3 de novembro de 2022. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Diário Oficial da União; 7 nov 2022. Seção 1.. Esse foi sem dúvida um grande avanço em direção a uma formação mais abrangente e humanizada, além de contribuir para a divulgação desse aspecto da prática médica, muitas vezes marginalizado. Essa resolução vem ao encontro de outra publicada pelo Ministério da Saúde em 2018, que normatiza a oferta de cuidados paliativos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), determinando que eles devem estar disponíveis em todos os pontos da rede22. Brasil. Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018. Diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União ; 23 nov 2018. Seção 1.. Dessa forma, fica claro que o cuidado paliativo não deve ficar restrito às especialidades nas quais é mais premente, como a oncologia ou a geriatria. O cuidado paliativo, finalmente, é entendido como parte do cuidado integral do indivíduo em todos os níveis de atenção à saúde e, portanto, deve ser elemento integrante da formação do médico generalista. Ainda que a inclusão do ensino do cuidado paliativo no currículo da graduação em Medicina seja uma grande conquista, colocá-lo em prática representa provavelmente um desafio ainda maior. Ensinar cuidado paliativo envolve abordar o sofrimento e o cuidado de questões que vão além dos sintomas físicos33. World Health Organization. Newsroom. Fact sheets. Palliative care. Geneva: WHO; 2020 [acesso em 5 ago 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care .
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
, aspectos com os quais os alunos de Medicina estão geralmente pouco acostumados. Compreender o cuidado paliativo para além das questões técnicas relacionadas ao controle de sintomas envolve necessariamente o contato com as humanidades médicas, cujo ensino carece de metodologias bem estabelecidas44. Rios IC. Humanidades médicas como campo de conhecimento em medicina. Rev Bras Educ Med. 2016;40(1):21-9. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v40n1e01032015.
http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v...
. O Photovoice (PV) é uma ferramenta multifacetada que pode servir ao propósito do trinômio ensino, pesquisa e extensão55. Wang C, Burris MA. Empowerment through photo novella: portraits of participation. Health Educ Q. 1994;21(2):171-86. doi: http://doi.org/10.1177/109019819402100204.
http://doi.org/10.1177/10901981940210020...
),(66. Latz AO, Phelps-Ward R, Royer D, Peters T. Photovoice as methodology, pedagogy, and partnership-building tool: a graduate and community college student collaboration. J Publ Scholarship in Higher Educ. 2016;6:124-42.. Na sua aplicação como instrumento pedagógico, os alunos atuam geralmente como participantes e o docente como facilitador66. Latz AO, Phelps-Ward R, Royer D, Peters T. Photovoice as methodology, pedagogy, and partnership-building tool: a graduate and community college student collaboration. J Publ Scholarship in Higher Educ. 2016;6:124-42..

Os alunos são convidados a tirar fotografias (photo) e narrar essas imagens (voice) atribuindo significado e interpretação dentro de um contexto. Dessa forma, os alunos elaboram e analisam experiências significativas da própria vida, o que pode promover não só o aprendizado, mas também uma compreensão mais ampla de determinado assunto, incluindo empatia66. Latz AO, Phelps-Ward R, Royer D, Peters T. Photovoice as methodology, pedagogy, and partnership-building tool: a graduate and community college student collaboration. J Publ Scholarship in Higher Educ. 2016;6:124-42.. Essas características fazem do PV uma metodologia potencialmente efetiva para o ensino dos aspectos não técnicos relacionados ao cuidado paliativo, objeto do presente relato de experiência.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Dispomos em nosso curso de Medicina de um eixo de integração acadêmica ao longo de todo o pré-internato composto por disciplinas denominadas Seminários Integrados (SI I - VIII). Entre outros objetivos, ao longo do semestre é produzido um trabalho em grupo orientado por professores do período sobre tema escolhido previamente. Deve ser produzido um trabalho escrito com estrutura de artigo científico (introdução, objetivos, métodos, resultados, discussão e conclusões), além de uma apresentação oral. A apresentação oral dos trabalhos é feita pelos grupos ao final do semestre letivo e conta com a participação de todos os professores da disciplina, compondo uma banca avaliadora, além dos demais alunos na audiência. No SI VI, o eixo de integração visa abordar doenças prevalentes e Políticas Nacionais de Saúde, e o tema central escolhido no segundo semestre de 2022 foi “Cuidados paliativos”. Cada grupo desenvolveu um tema específico, e o tema proposto ao grupo que faz o presente relato foi “Cuidados paliativos na visão de um estudante do terceiro ano de Medicina”. O trabalho teve como objetivos principais explorar e compreender o cuidado paliativo. Já os objetivos secundários foram promover uma reflexão coletiva e individual sobre cuidado paliativo, e produzir um PV por aluno sobre cuidado paliativo.

O trabalho foi desenvolvido ao longo de 12 encontros semanais. No primeiro encontro, a professora e os alunos se apresentaram e falaram um pouco sobre sua história e suas atividades de lazer, e mencionaram experiências pessoais prévias de cuidados paliativos e luto. Nesse primeiro encontro, elaborou-se um pacto de convivência, e estabeleceu-se que, caso algum material enviado para estudo prévio tivesse conteúdo muito sensível para algum dos componentes do grupo, isso seria sinalizado e haveria a substituição do material por outro. Ao longo das seis semanas seguintes foram disponibilizados música77. Gil G. Não tenho medo da morte [música]. Rio de Janeiro: Sony; 2012 [acesso em 29 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://open.spotify.com/track/6rUnyAcbJMENor0erV75ly?si=f2aID0sITpq3ncnbc1E7-A&nd=1 .
https://open.spotify.com/track/6rUnyAcbJ...
, vídeos88. Arantes ACQ. A morte é um dia que vale a pena viver [vídeo]. São Paulo: TED, 2012 [acesso em 29 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ep354ZXKBEs .
https://www.youtube.com/watch?v=ep354ZXK...
),(99. Miller BJ. O que realmente importa no final da vida [vídeo]. Vancouver: TED; 2015 [acesso em 29 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.ted.com/talks/bj_miller_what_really_matters_at_the_end_of_life/transcript .
https://www.ted.com/talks/bj_miller_what...
e textos1010. Tomley S. O que Freud faria? Como os grandes psicoterapeutas podem ajudar a resolver problemas cotidianos. Tradução de Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Sextante; 2020.)-(1212. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos seus próprios parentes. Tradução de Paulo Menezes. 9a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2008. pela orientadora e pelos próprios alunos. Esse material era estudado antes dos encontros semanais, nos quais se promovia uma roda de conversa para o compartilhamento de impressões e sentimentos sobre o material, além de eventuais relatos de experiências pessoais e profissionais dos alunos do grupo.

Nas quatro semanas subsequentes, foram mantidos os encontros semanais, e os alunos começaram a elaborar suas reflexões individuais sobre o tema proposto para elaboração da produção textual e fotográfica para montagem dos PV.

Cabe ressaltar que os encontros eram preferencialmente realizados em espaços de convivência do campus, buscando transpor os muros da sala de aula e transcender a hierarquia docente-aluno. A professora atuou como facilitadora, incentivando a exploração de sentimentos e a manifestação de medos e angústias, e provocando uma reflexão profunda sobre o cuidado paliativo. Pela natureza dos encontros e pela relação de confiança estabelecida com a docente e entre os integrantes do grupo, era bastante frequente que uns ou outros ficassem emocionados. Esse foi um “efeito colateral” previsto e bem-vindo, uma vez que evidenciou que a dimensão das humanidades do ensino do cuidado paliativo foi alcançada.

Os PV preparados pelos alunos se dividiram espontaneamente em três grupos: duas alunas (BR e BCF) abordaram experiências familiares de cuidados paliativos, três alunos (IR, MF e PN) trataram de experiências profissionais vivenciadas nos cenários de prática da faculdade, e quatro alunos (AM, MP, RVN e VR) versaram sobre o tema de maneira mais conceitual.

O trabalho escrito teve estrutura de artigo conforme determinação pela disciplina. A introdução versou sobre os conceitos básicos de cuidados paliativos. Os objetivos foram descritos no início deste relato de experiência, e adotaram-se como metodologia a realização das rodas de conversa e a produção dos PV. Os resultados e a discussão foram os PV per se, e a conclusão segue transcrita como conclusão final deste manuscrito. Durante a preparação da apresentação oral do trabalho, o grupo concluiu que a leitura de todos os PV ficaria cansativa para a audiência e tiraria o “brilho individual” de cada um. Foi então decidido escolher para leitura um PV por meio de votação prévia do grupo (PV número 7 no arquivo acessado pelo QR Code da Figura 1) e outro por votação interativa da audiência no dia da apresentação (PV número 5 no QR Code da Figura 1). Todos os PV foram então impressos em papel fotográfico para exposição no dia da apresentação oral e posteriormente, com a anuência dos componentes do grupo, ficaram expostos em um saguão com grande circulação de pessoas no campus.

Figura 1
QR Code - PV dos alunos com o tema “Cuidados paliativos na visão de um estudante do terceiro ano de Medicina”.

DISCUSSÃO

A definição de cuidado paliativo foi recentemente revisitada e prevê que sejam oferecidos cuidados holísticos ativos com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de pacientes, familiares e cuidadores1313. Radbruch L, De Lima L, Knaul F, Wenk R, Ali Z, Bhatnaghar S, et al. Redefining palliative care: a new consensus-based definition. J Pain Symptom Manage. 2020 Oct;60(4):754-64. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.04.027.
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. Além disso, devem ser promovidos o controle de sintomas e integrados aspectos clínicos, psicológicos, espirituais e sociais do indivíduo, os quais devem ser incluídos no planejamento e nas decisões sobre o seu cuidado1414. Ministério da Saúde. A avaliação do paciente em cuidados paliativos: cuidados paliativos na prática clínica. Rio de Janeiro: Inca; 2022. v. 1.. Entre as habilidades a serem desenvolvidas no aprendizado sobre cuidados paliativos, destaca-se a aplicação do conhecimento das trajetórias da doença para ajustar o plano de cuidados de acordo não só com a evolução da doença, mas sobretudo com as prioridades do paciente, suas preocupações, receios e valores11. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, de 3 de novembro de 2022. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Diário Oficial da União; 7 nov 2022. Seção 1.. A pergunta que se impõe imediatamente é:

  • Como desenvolver essas habilidades que implicam escuta ativa e compaixão, e capacitar para uma atuação profissional que transita nos limites da ética e versa sobre um dos dilemas mais profundos da humanidade como a finitude da vida?

Durante a formação, o aluno de Medicina deve adquirir um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que o capacitam para a atividade profissional como generalista. Idealmente devem ser utilizadas diversas estratégias de ensino ao longo do curso a fim de contemplar os diferentes estilos de aprendizado1515. Mello C de CB, Alves RO, Lemos SMA. Metodologias de ensino e formação na área da saúde: revisão de literatura. Rev CEFAC. 2014;16(6):2015-28. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0216201416012.
https://doi.org/10.1590/1982-02162014160...
. O cuidado paliativo se apresenta como um tema que pode se beneficiar dessas estratégias diversificadas com potencial de despertar o interesse do aluno e auxiliá-lo a perceber seu senso de propósito na formação profissional.

Ao longo do semestre letivo, as rodas de conversa foram momentos descontraídos de um grupo de alunos inicialmente sem maiores afinidades. A discussão de tema tão contundente e a troca de impressões e de experiências pessoais e profissionais funcionaram para aproximar os alunos entre si e com a docente. Latz et al.66. Latz AO, Phelps-Ward R, Royer D, Peters T. Photovoice as methodology, pedagogy, and partnership-building tool: a graduate and community college student collaboration. J Publ Scholarship in Higher Educ. 2016;6:124-42. já haviam descrito que a utilização do PV como ferramenta pedagógica pode funcionar também como estratégia de construção de parceria. Além de textos, a utilização de imagens enriquece a produção e é capaz de produzir respostas viscerais ao material66. Latz AO, Phelps-Ward R, Royer D, Peters T. Photovoice as methodology, pedagogy, and partnership-building tool: a graduate and community college student collaboration. J Publ Scholarship in Higher Educ. 2016;6:124-42., o que foi claramente percebido pelos componentes do grupo, que se emocionavam ao verem os trabalhos dos colegas. Pela dinâmica da disciplina, esse projeto envolveu a apresentação oral de dois PV e a exposição dos demais, concluindo então seu curso completo, uma vez que tipicamente projetos de PV terminam com uma exposição na qual os trabalhos alcançam seu público-alvo, para divulgação e conscientização sobre determinado tema66. Latz AO, Phelps-Ward R, Royer D, Peters T. Photovoice as methodology, pedagogy, and partnership-building tool: a graduate and community college student collaboration. J Publ Scholarship in Higher Educ. 2016;6:124-42..

Quanto às limitações do uso do PV no ensino sobre cuidados paliativos, esse método dificilmente pode servir para o aprendizado de conhecimento técnico-científico, como manejo da dor ou da falta de ar, entre tantos outros conhecimentos necessários ao controle de sintomas físicos, importantes para as boas práticas em cuidados paliativos1414. Ministério da Saúde. A avaliação do paciente em cuidados paliativos: cuidados paliativos na prática clínica. Rio de Janeiro: Inca; 2022. v. 1.. Fica claro, então, seu potencial papel complementar às metodologias mais “tradicionais” de ensino, para provocar no aluno uma reflexão mais ampla e profunda sobre o cuidado sem intuito de curar.

Entre as dificuldades da estratégia descrita neste relato, destaca-se a importância de trabalhar com grupos pequenos para o seu adequado desenvolvimento, permitindo a participação ativa de todos os alunos nas rodas de conversa. Além disso, o tamanho do grupo também é crítico para o necessário estabelecimento de um círculo de confiança envolvendo o facilitador e os próprios alunos.

Preparar um PV envolve os mais altos níveis hierárquicos da taxonomia de Bloom1616. Benjamin S, Krathwohl DK, Masia BB. Taxonomy of education objectives: the classification of education goals. 2nd ed. New York: Longmans; 1956.: compreender, analisar e criar. Isso evidencia que se trata de uma robusta ferramenta pedagógica, mas sua execução pode ser um grande desafio para os alunos. De fato, foi constatado que alguns alunos tiveram mais dificuldade do que outros em transpor da compreensão e análise para a organização de ideias e criação. Ainda que o próprio aluno seja o protagonista do seu aprendizado com essa ferramenta, o facilitador pode precisar intervir durante as rodas de conversa para auxiliar o discente a organizar um raciocínio a partir de suas ideias para que ele possa produzir seu PV.

Outra dificuldade encontrada é o próprio tema do cuidado paliativo que envolve temas sensíveis, como sofrimento e finitude. O ensino do cuidado paliativo permite expor ao aluno de forma pungente os princípios da bioética e a essência do compromisso do médico, como autonomia, beneficência e não maleficência. O contato com esses temas sensíveis e com a necessidade de elaboração de medos e revisão de crenças pode ser um percalço, mas é uma grande oportunidade de construção de conhecimento e desenvolvimento de habilidades, muitas vezes, a partir de experiências prévias dos alunos.

A despeito das limitações e dificuldades do tema e da metodologia utilizada, o saldo final da experiência foi muito positivo não só pelo aprendizado dos alunos, mas também pela criação de um grande vínculo no grupo, que manifestou profunda gratidão pelo trabalho desenvolvido ao longo do semestre. A conclusão - transcrita a seguir - que os alunos elaboraram para o trabalho escrito fala por si só.

CONCLUSÃO

Tão importante quanto o tema é a reflexão que o acompanha. Por meio dos encontros e das conversas realizados durante todo o período de construção desse trabalho, pudemos compreender o cuidado paliativo de uma forma ampla e concluir que envolve colocar o paciente como protagonista das suas ações. Suas urgências são prioridades, e seus desejos devem ser respeitados. O entendimento sobre cuidado paliativo culmina em uma compreensão maior sobre conforto, qualidade de vida, acolhimento, trabalho multiprofissional, amparo, família e respeito à vida, à dignidade alheia e, principalmente, à terminalidade da vida.

Diante dos nove PV produzidos, frutos da reflexão individual dos alunos, percebe-se que cada integrante do grupo foi tocado de uma forma diferente pelo assunto, ainda que todas as reflexões tenham sido realizadas de forma coletiva durante os nossos encontros. A produção dos PV permitiu a externalização de visões diferentes sobre o mesmo assunto de maneira pessoal e humanística, ou seja, a percepção do que é cuidado paliativo na visão de um estudante do terceiro ano de Medicina.

REFERÊNCIAS

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  • 2
    Avaliado pelo processu de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Antônio Menezes Junior.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2023
  • Aceito
    25 Abr 2023
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