Acessibilidade / Reportar erro

Violência sexual contra mulheres estudantes em escolas médicas

Sexual violence against female students in medical schools

Resumo:

Introdução:

No mundo todo, a violência sexual é um evento prevalente contra mulheres estudantes de Medicina. A exposição ao toque, o contato físico e as incitações sexuais inoportunas podem ocorrer em vários ambientes da educação e da prática médica.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo analisar a violência sexual contra mulheres estudantes em escolas médicas.

Método:

Trata-se de estudo transversal realizado com 211 alunas de oito escolas médicas do Piauí, entrevistadas entre maio e novembro de 2021. Utilizou-se questionário on-line com perguntas sobre características sociodemográficas, informações da instituição e do curso, e aspectos relacionados à violência sexual no âmbito universitário. Realizou-se análise multivariada por regressão logística múltipla, com cálculo de odds ratios ajustadas (ORaj) e intervalos de confiança de 95% (IC95%).

Resultado:

Mais da metade (55%) das estudantes relatou algum tipo de violência sexual durante o curso de Medicina, mais frequentemente como evento único (69,3%). Comentários sexistas ou sexualmente degradantes (87,8%), ocorridos em ambientes de prática (55,3%), no primeiro e segundo anos do curso (65,8%) e em disciplinas do ciclo básico (63,0%) foram mais frequentes. O perfil majoritário dos agressores é representado por homens (99,0%), com mais de 40 anos (60,4%) e professores (59,3%). A violência sexual resultou em sofrimento emocional (47,3%) e queda da produtividade/qualidade do estudo (25%), porém a maioria não realizou denúncia (92,9%). Houve maior chance de violência sexual contra estudantes que se autodeclararam bissexuais (ORaj =3,87; IC95% 1,20-12,48) e de instituições de ensino públicas (ORaj = 3,12; IC95% 1,67-5,82).

Conclusão:

A prevalência de violência sexual durante o ensino médico foi elevada, revelada principalmente sob a forma de assédio sexual. Orientação sexual e características da instituição de ensino se associaram com a violência sexual. Os achados estimulam ações para prevenir e mitigar essa grave questão durante o ensino médico.

Palavras-chave:
Violência Sexual; Assédio Sexual; Violência de Gênero; Estudantes de Medicina

Abstract:

Introduction:

Sexual violence is a prevalent event against female medical students around the world. Exposure to touch, physical contact, and unwelcome sexual incitements can occur in a variety of educational and medical practice settings.

Objective:

To analyze sexual violence against female students in medical schools.

Method:

Cross-sectional study with 211 students from 8 medical schools in Piauí, interviewed between May and November 2021. An online questionnaire was used with questions about sociodemographic characteristics, information about the institution and the course, and aspects related to sexual violence at the university level. Multivariate analysis was performed using multiple logistic regression, with calculation of adjusted odds ratios (AOR) and 95% confidence intervals (95%CI).

Result:

More than half (55.0%) of the students reported some type of sexual violence during the medical course, more often as a single event (69.3%). Sexist or sexually degrading comments (87.8%), occurring in practice environments (55.3%), in the 1st and 2nd years of the course (65.8%) and in basic cycle subjects (63.0%) were more frequently. The profile of the majority of aggressors is represented by men (99.0%), over 40 years old (60.4%) and teachers (59.3%). Sexual violence resulted in emotional distress (47.3%) and reduced productivity/quality of study (25%), but the majority failed to report it (92.9%). There was a greater chance of sexual violence against students who self-reported as bisexual (AOR=3.87; 95%CI 1.20-12.48) and at public educational institutions (AOR=3.12; 95%CI 1.67-5.82).

Conclusion:

The prevalence of sexual violence during medical education was high, mainly revealed in the form of sexual harassment. Sexual orientation and educational institution characteristics were associated with sexual violence. The findings stimulate actions to prevent and mitigate this serious issue during medical education.

Key words:
Sexual Violence; Sexual Harassment; Gender Violence; Medical Students

INTRODUÇÃO

A violência contra as mulheres é um fenômeno multidimensional que afeta todas as classes sociais, raças, etnias e orientações sexuais. Além disso, é uma das principais formas de violação dos direitos humanos, pois atinge as mulheres no seu direito à vida, à saúde e à integridade física11. World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence. Geneva: WHO; 2013.. Trata-se de problema de proporções epidêmicas com várias formas de expressão, como a sexual. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), define-se violência sexual como

[...] qualquer ato sexual ou tentativas de obtê-lo, comentários ou insinuações sexuais não desejados, atos de tráfico ou dirigidos contra a sexualidade de uma pessoa, em que o agressor se utiliza da coerção, independentemente de sua relação com a vítima, para obter aquilo que deseja da vítima. A violência sexual não se limita à penetração da vulva ou do ânus com o pênis, outra parte do corpo ou objeto. A definição de estupro pode variar de acordo com cada país (p. 11) 2 2. World Health Organization. Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence. Geneva: WHO ; 2010. .

Tanto ambientes públicos como privados podem ser cenários de violência sexual, e um dos lugares apontados como de alto risco é a universidade33. Pugh B, Becker P. Exploring definitions and prevalence of verbal sexual coercion and its relationship to consent to unwanted sex: implications for affirmative consent standards on college campuses. Behav Sci. 2018;8(8):69.),(44. Moore J, Mennicke A. Empathy deficits and perceived permissive environments: sexual harassment perpetration on college campuses. J Sex Aggress. 2020;26(3):372-84.. Apesar de ser um espaço privilegiado para aprendizagem, esse tipo de instituição de ensino nem sempre representa ambiente seguro para as mulheres55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(66. Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019;10(1):56-68.. Sabe-se que a violência sexual na universidade acarreta impacto negativo no desempenho acadêmico das mulheres e na saúde, com maior frequência de depressão, tentativas de suicídio, abuso de álcool e substâncias ilícitas, e problemas de saúde reprodutiva66. Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019;10(1):56-68.. Salas de aula, laboratórios, festas, trotes, clubes esportivos e repúblicas são alguns dos diversos cenários dessa particular expressão de violência de gênero55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650..

A maior exposição ao toque e o aumento do contato físico na maioria dos ambientes acadêmicos tornam o ensino médico um cenário que coloca as estudantes em situações mais suscetíveis a uma maior proporção de violência sexual7. Além disso, o trabalho acadêmico desenvolvido em pequenos grupos e durante longas horas pode contribuir para a quebra de barreiras sociais77. Hu YY, Ellis RJ, Hewitt DB, Yang AD, Cheung EO, Moskowitz JT, et al. Discrimination, abuse, harassment, and burnout in surgical residency training. N Engl J Med. 2019;381(18):1741-52.),(88. Jagsi R, Griffith KA, Jone R, Perumalswani CR, Ubel P, Stewart A. Sexual harassment and discrimination experiences of academic medical faculty. JAMA. 2016;315(19):2120-1.. Nos últimos anos, sobretudo em decorrência de ampla cobertura na mídia por movimentos como o #MeToo, a questão da violência sexual contra mulheres nas universidades tem merecido renovada atenção99. Walsh MN, Gates CC. Zero tolerance for sexual harassment in cardiology: moving to #MeToo to #MeNeither. J Am Coll Cardiol. 2018;71(10):1176-7.. Evidências recentes mostram que de 30% a 50% das estudantes já relataram alguma experiência de violência sexual durante o treinamento médico77. Hu YY, Ellis RJ, Hewitt DB, Yang AD, Cheung EO, Moskowitz JT, et al. Discrimination, abuse, harassment, and burnout in surgical residency training. N Engl J Med. 2019;381(18):1741-52.),(1010. Dzau VJ, Johnson PA. Ending sexual harassment in academic medicine. N Engl J Med . 2018;379(17):1589-91.),(1111. Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.. Apesar desses dados, há a expectativa de que esse fenômeno ainda seja subnotificado por vergonha, culpa ou medo de retaliação por parte dos assediadores1212. Brasil. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, Casa Civil; 2001..

Caracterizado pela lei brasileira como o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”1212. Brasil. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, Casa Civil; 2001., o assédio sexual é a forma predominante de violência sexual no contexto universitário66. Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019;10(1):56-68.)-(88. Jagsi R, Griffith KA, Jone R, Perumalswani CR, Ubel P, Stewart A. Sexual harassment and discrimination experiences of academic medical faculty. JAMA. 2016;315(19):2120-1.),(1313. Geldolf M, Tijtgat J, Dewulf L, Haezeleer M, Degryse N, Pouliart N, et al. Sexual violence in medical students and specialty registrars in Flanders, Belgium: a population survey. BMC Med Educ. 2021;21:130.. Nesse tipo de discriminação de gênero, há a supremacia de uma pessoa em posição de poder, como empregadores e professores homens, que assedia um subordinado, comumente mulheres33. Pugh B, Becker P. Exploring definitions and prevalence of verbal sexual coercion and its relationship to consent to unwanted sex: implications for affirmative consent standards on college campuses. Behav Sci. 2018;8(8):69.),(1414. Aguilar SJ, Baek C. Sexual harassment in academe is underreported, especially by students in the life and physical sciences. PLoS One. 2020;15(3):e0230312.. Na maioria dos países, é ilegal em todos os ambientes educacionais e de trabalho1515. Brown MEL, Hunt GEG, Hughes F, Finn GM. “Too male, too pale, too stale”: a qualitative exploration of student experiences of gender bias within medical education. BMJ Open . 2020;10(8):e039092., mas, por se apresentar por meio de comentários, verbalizações e toques com conotação sexual obscena ou ofensiva geralmente difíceis de ser provados, existe ainda insuficiência de dados palpáveis, o que pode levar ao descrédito da denúncia55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(1414. Aguilar SJ, Baek C. Sexual harassment in academe is underreported, especially by students in the life and physical sciences. PLoS One. 2020;15(3):e0230312..

No Brasil, a visibilidade da violência sexual no contexto universitário é escassa. Dados de um estudo que estimou a prevalência de abusos e maus-tratos entre estudantes de Medicina durante a graduação em São Paulo, em 2013, mostraram que 92,3% deles relataram ter sofrido pelo menos um tipo de agressão, com destaque para humilhação/depreciação (73,1%) e agressão verbal (59,7%). A prevalência de violência sexual também foi alta (43,3%), tendo como principais perpetradores outros estudantes (37,8%) e professores (23,8%)1616. Barreto ADAL, Babler F, Quaresma IYV, Arakari JNL, Peres MFT. Projeto QUARA - prevalência de abusos, maus-tratos e outras agressões durante a formação médica: um estudo de corte transversal em São Paulo, Brasil, 2013. Rev Med. 2015;94(1):6-14.. Levando em consideração o risco elevado de as estudantes de Medicina serem vítimas de violência sexual no ambiente universitário, são necessárias pesquisas continuadas para avaliar o contexto em que esse fato acontece e fomentar ações para evitar sua ocorrência. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi caracterizar a prevalência da violência sexual contra mulheres estudantes de Medicina no ambiente universitário e os fatores associados.

MÉTODO

Trata-se de estudo transversal e analítico, do qual participaram mulheres estudantes das oito escolas médicas do estado do Piauí, quatro públicas e quatro privadas, distribuídas em três cidades (Teresina, Parnaíba e Picos). Os critérios de inclusão foram ser mulher matriculada no curso de Medicina do Piauí e possuir idade igual ou superior a 18 anos. Excluíram-se do estudo as alunas que responderam a menos de 50% das questões autoaplicadas.

O tamanho amostral foi calculado pela técnica de amostragem aleatória simples sem reposição, considerando-se população de 3.786 estudantes de Medicina no estado, dos quais 46,6% são do sexo feminino (1.765). Assim, após a adoção de intervalo de confiança (IC) de 95%, variância com base na prevalência de 34% de violência sexual1717. Bates CK, Jagsi R, Gordon LK, Travis E, Chatterjee A, Gillis M, et al. It is time for zero tolerance for sexual harassment in academic medicine. Acad Med. 2018;92(2):163-5. e erro de 5% nos parâmetros, estabeleceu-se amostra de 210 participantes.

Entre maio e novembro de 2021, as estudantes foram contactadas com a ajuda de intermediárias (alunas dos centros acadêmicos) para o convite à participação no estudo por meio de telefone, e-mail e redes sociais como WhatsApp de todas as turmas dos cursos de Medicina em cada escola médica. Ofereceu-se o endereço eletrônico para permitir o acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e ao questionário. Foi solicitado que aquelas que respondessem ao questionário indicassem outras para participar da pesquisa, caracterizando a técnica de bola de neve (snowball sampling). Além disso, outra forma de divulgação consistiu em chamadas para a participação no estudo, publicizadas pelas coordenações dos cursos de Medicina.

O instrumento de pesquisa foi desenvolvido pelos pesquisadores, tendo como base estudos prévios sobre o tema33. Pugh B, Becker P. Exploring definitions and prevalence of verbal sexual coercion and its relationship to consent to unwanted sex: implications for affirmative consent standards on college campuses. Behav Sci. 2018;8(8):69.),(88. Jagsi R, Griffith KA, Jone R, Perumalswani CR, Ubel P, Stewart A. Sexual harassment and discrimination experiences of academic medical faculty. JAMA. 2016;315(19):2120-1.),(1010. Dzau VJ, Johnson PA. Ending sexual harassment in academic medicine. N Engl J Med . 2018;379(17):1589-91.),(1111. Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.),(1313. Geldolf M, Tijtgat J, Dewulf L, Haezeleer M, Degryse N, Pouliart N, et al. Sexual violence in medical students and specialty registrars in Flanders, Belgium: a population survey. BMC Med Educ. 2021;21:130.. Realizou-se pré-teste do instrumento (com especialistas no tema e mulheres estudantes de Medicina), com o intuito de verificar a clareza dos enunciados, a pertinência das perguntas e a adequação aos objetivos. O questionário anônimo e estruturado foi disponibilizado em endereço eletrônico específico (enviado por e-mail ou por aplicativo de mensagens - WhatsApp), composto por perguntas fechadas (incluindo perguntas de múltipla resposta) sobre: 1. características sociodemográficas (faixa etária; cor da pele; ocupação profissional; parceria conjugal; moradia; identidade de gênero; orientação sexual); 2. dados de identificação do curso (tipo de instituição de ensino; período da graduação); 3. informações sobre a violência sexual (ocorrência da violência; recidiva da violência; local da ocorrência; disciplina de ocorrência; tipo de agressor; gênero do agressor; faixa etária do agressor; consequências da violência; denúncia).

A ocorrência de violência sexual foi baseada na definição da OMS11. World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence. Geneva: WHO; 2013., com a seguinte classificação: 1. comentários sexistas ou sexualmente degradantes (abuso verbal ou comentário sexista sobre a aparência física; frases ofensivas ou de duplo sentido; elogios atrevidos); 2. gestos sexuais degradantes (alusões grosseiras, humilhantes ou embaraçosas; insinuações sexuais inconvenientes e ofensivas); 3. toque ou contato físico sexuais indesejados (toque sexualizado sem penetração; tentativa de agressão penetrativa; execução de ato penetrativo, seja oral, vaginal, anal ou outro tipo de penetração); 4. exibição de material pornográfico (envio de e-mail, mensagens telefônicas ou uso de redes sociais para condução de imagens de cunho pornográfico); 5. suborno sexual (solicitação de relações íntimas ou outro tipo de conduta de natureza sexual, mediante promessas de benefícios e recompensas; pedidos de favores sexuais com promessa de tratamento diferenciado em caso de aceitação); 6. agressão sexual (apalpadelas, fricções ou beliscões deliberados e ofensivos).

Os dados foram organizados em planilhas do programa Microsoft Excel e, posteriormente, analisados pelo Statistical Package for the Social Sciences (SPSS/versão 20.0) e R-Project (versão 3.6.0). Para a análise univariada, utilizou-se estatística descritiva com frequências absolutas e percentuais. Na análise bivariada, empregou-se o teste do qui-quadrado de Pearson para associar as variáveis independentes com a violência sexual. Realizou-se regressão logística múltipla para a análise multivariada, tendo como critério para inclusão de variáveis no modelo logístico a associação de 5% (p < 0,05) na análise bivariada. O critério de significância ou permanência das variáveis no modelo de regressão logística, por sua vez, foi a associação em nível de 5% (p < 0,05).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (CAAE nº 38711420.9.0000.5214/Parecer nº 4.380.276).

RESULTADOS

Foram entrevistadas 211 mulheres estudantes de Medicina. A Tabela 1 mostra que a maioria delas se autoidentificou como mulher cisgênero (98,6%) e heterossexual (85,8%), na faixa etária de 21 a 25 anos (60,2%), sem vínculo trabalhista (81,0%) e que reside com os pais (61,6%). Houve predominância de estudantes de cor da pele branca (50,2%), com renda familiar acima de dez salários mínimos (45,5%) e com parceria conjugal (52,1%). A maior parte estudava em instituições públicas (55,5%) e estava entre o quinto e o oitavo período da graduação (56,9%).

Tabela 1
Perfil das estudantes de Medicina, segundo as variáveis sociodemográficas.

A Tabela 2 evidencia as características da violência sexual sofrida pelas estudantes. A ocorrência da violência sexual foi relatada por metade delas (55%) como um evento único (69,3%), caracterizado na sua maioria por comentários sexistas ou sexualmente degradantes (87,8%). A violência sexual ocorreu principalmente durante os dois primeiros anos do curso (65,8%), em ambientes de prática, como local de estágio, laboratório, unidade básica de saúde e hospital, (55,3%) e disciplinas do ciclo básico (63,0%). Os agressores foram majoritariamente homens (99%), com idade acima de 40 anos (60,4%) e professores (59,3%). Os eventos de violência sexual resultaram em consequências como sofrimento emocional (47,3%) e queda de produtividade/qualidade do estudo (25,0%). A denúncia foi realizada por uma minoria de estudantes (7,1%).

Tabela 2
Caracterização da violência sexual contra estudantes.

Na análise bivariada, estudantes entre 21 e 25 anos (ORbr = 1,90; IC95% 1,04-3,49) e entre 26 e 30 anos (ORbr = 15,48; IC95% 1,88-127,15) apresentaram maior chance de sofrer violência sexual durante a graduação em Medicina quando comparadas àquelas com 20 anos ou menos. Além disso, houve maior prevalência de violência sexual entre as estudantes de instituições públicas (ORbr = 1,82; IC95% 1,05-3,15), entre as que cursavam entre o nono e o 12º período de graduação (ORbr = 3,76; IC95% 1,45-9,75) e entre as bissexuais (ORbr = 4,89; IC95% 1,61-14,87) (Tabela 3).

Tabela 3
Análise bivariada entre a ocorrência de violência sexual e as características demográficas das estudantes.

A Tabela 4 exibe os resultados da análise multivariada. A chance de sofrer violência sexual foi maior entre alunas que se autoidentificaram como bissexuais (ORaj = 3,87; IC95% 1,20-12,48) e que estudam em instituição de ensino pública (ORaj = 3,12; IC95% 1,67-5,82).

Tabela 4
Análise multivariada entre a ocorrência de violência sexual e as características demográficas das estudantes.

DISCUSSÃO

O presente estudo é o primeiro a pesquisar no Piauí a violência sexual contra mulheres estudantes de Medicina no ambiente universitário. O estudo evidenciou relatos de violência sexual por mais da metade das estudantes em algum momento do curso médico, com maior chance de ocorrência entre aquelas de instituições públicas e entre pessoas bissexuais. Além disso, a violência se expressou mais comumente com comentários sexistas ou sexualmente degradantes, cometida por homens, professores e durante as aulas. À semelhança de outros estudos33. Pugh B, Becker P. Exploring definitions and prevalence of verbal sexual coercion and its relationship to consent to unwanted sex: implications for affirmative consent standards on college campuses. Behav Sci. 2018;8(8):69.),(44. Moore J, Mennicke A. Empathy deficits and perceived permissive environments: sexual harassment perpetration on college campuses. J Sex Aggress. 2020;26(3):372-84.),(1111. Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.),(1313. Geldolf M, Tijtgat J, Dewulf L, Haezeleer M, Degryse N, Pouliart N, et al. Sexual violence in medical students and specialty registrars in Flanders, Belgium: a population survey. BMC Med Educ. 2021;21:130.,(1414. Aguilar SJ, Baek C. Sexual harassment in academe is underreported, especially by students in the life and physical sciences. PLoS One. 2020;15(3):e0230312., esses dados demonstram como o fenômeno é frequente e que as estudantes não estão protegidas contra violência sexual no ambiente universitário.

Os resultados do atual estudo são semelhantes aos de uma pesquisa alemã de 2020 realizada com 343 alunos de Medicina que apontou que mais de 50% de estudantes informaram ter experimentado ou ter testemunhado violência sexual do tipo assédio sexual na educação médica1818. Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.. Já no Brasil, um estudo com 175 estudantes de uma instituição pública revelou que 40% das universitárias já sofreram violência sexual no contexto universitário1919. Souza TMC, Rocha IA. Investigando o assédio sexual em universitárias: a violência de gênero na Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí. Rev Educ Cult Contemp. 2020;17(47):165-84.. Sabe-se, contudo, que parte das alunas pode mostrar dificuldade na identificação da violência sexual, favorecendo a suposição sobre um número maior de vitimizações sexuais1919. Souza TMC, Rocha IA. Investigando o assédio sexual em universitárias: a violência de gênero na Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí. Rev Educ Cult Contemp. 2020;17(47):165-84.),(2020. Rosenberg M, Townes A, Taylor S, Luetke V, Herbenick D. Quantifying the magnitude and potential influence of missing data in campus sexual assault surveys: a systematic review of surveys, 2010-2016. J Am Coll Health. 2019;67(1):42-50., o que também pode ter ocorrido na atual pesquisa. Dados de uma revisão sistemática de 2010-2016 sobre a magnitude da violência sexual contra universitários norte-americanos revelaram que a prevalência da agressão sexual contra estudantes do sexo feminino pode variar de 5% a 80,4%2020. Rosenberg M, Townes A, Taylor S, Luetke V, Herbenick D. Quantifying the magnitude and potential influence of missing data in campus sexual assault surveys: a systematic review of surveys, 2010-2016. J Am Coll Health. 2019;67(1):42-50..

A vivência da violência sexual no contexto universitário está associada à recidiva desse evento. Tanto para universitários homens como para mulheres, a exposição à violência sexual aumenta a chance de evento de revitimização sexual, principalmente para aqueles que sofreram a agressão antes da universidade2121. Cusack SE, Bourdon JL, Bouentress K, Saunders TR, Kendler KS, Dick DM, et al. Prospective predictors of sexual revictimization among college students. J Interpers Violence. 2021;36(17-18):8494-518.),(2222. McGingley M, Wolff JM, Rospenda KM, Liu L, Richman JA. Risk factors and outcomes of chronic sexual harassment during the transition to college: examination of a two-part growth mixture model. Soc Sci Res. 2016;60:297-310.. Angústia, depressão e sofrimento decorrentes do estresse pós-violência sexual, mediados em geral pelo consumo abusivo de álcool e outras substâncias, explicam em parte a maior vulnerabilidade que favorece a recidiva desse tipo de evento2121. Cusack SE, Bourdon JL, Bouentress K, Saunders TR, Kendler KS, Dick DM, et al. Prospective predictors of sexual revictimization among college students. J Interpers Violence. 2021;36(17-18):8494-518.. Além do imprescindível acolhimento multidisciplinar das vítimas e do processamento das denúncias, tais dados apontam a necessidade de estratégias para prevenção de novas ocorrências. Embora com resultados conflitantes, programas institucionais voltados para a conscientização e o treinamento de toda a comunidade universitária parecem diminuir novas ocorrências1313. Geldolf M, Tijtgat J, Dewulf L, Haezeleer M, Degryse N, Pouliart N, et al. Sexual violence in medical students and specialty registrars in Flanders, Belgium: a population survey. BMC Med Educ. 2021;21:130.),(2121. Cusack SE, Bourdon JL, Bouentress K, Saunders TR, Kendler KS, Dick DM, et al. Prospective predictors of sexual revictimization among college students. J Interpers Violence. 2021;36(17-18):8494-518.),(2222. McGingley M, Wolff JM, Rospenda KM, Liu L, Richman JA. Risk factors and outcomes of chronic sexual harassment during the transition to college: examination of a two-part growth mixture model. Soc Sci Res. 2016;60:297-310..

Constatou-se que a violência sexual ocorreu por meio de comentários sexistas ou sexualmente degradantes na maior parte das vezes. Outros estudos também demostraram que o assédio é o tipo mais frequente de violência sexual77. Hu YY, Ellis RJ, Hewitt DB, Yang AD, Cheung EO, Moskowitz JT, et al. Discrimination, abuse, harassment, and burnout in surgical residency training. N Engl J Med. 2019;381(18):1741-52.),(1111. Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.),(1313. Geldolf M, Tijtgat J, Dewulf L, Haezeleer M, Degryse N, Pouliart N, et al. Sexual violence in medical students and specialty registrars in Flanders, Belgium: a population survey. BMC Med Educ. 2021;21:130.),(1818. Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.. Pelo fato de esse tipo de assédio ser visto como parte integrante de normas sociais mais amplas33. Pugh B, Becker P. Exploring definitions and prevalence of verbal sexual coercion and its relationship to consent to unwanted sex: implications for affirmative consent standards on college campuses. Behav Sci. 2018;8(8):69.),(1515. Brown MEL, Hunt GEG, Hughes F, Finn GM. “Too male, too pale, too stale”: a qualitative exploration of student experiences of gender bias within medical education. BMJ Open . 2020;10(8):e039092., presume-se que a aceitação ou não identificação desse tipo de violência ocorra porque são eventos sutis, considerados episódios sem importância, que podem passar despercebidos e ser aceitos sem questionamentos1111. Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.),(1414. Aguilar SJ, Baek C. Sexual harassment in academe is underreported, especially by students in the life and physical sciences. PLoS One. 2020;15(3):e0230312.),(2020. Rosenberg M, Townes A, Taylor S, Luetke V, Herbenick D. Quantifying the magnitude and potential influence of missing data in campus sexual assault surveys: a systematic review of surveys, 2010-2016. J Am Coll Health. 2019;67(1):42-50.. No entanto, é importante que sua definição seja ampla e clara para que condutas como expressões sexualmente sugestivas, piadas e abuso verbal de natureza sexual sejam identificadas como comportamentos que ameaçam a integridade e os direitos fundamentais das estudantes33. Pugh B, Becker P. Exploring definitions and prevalence of verbal sexual coercion and its relationship to consent to unwanted sex: implications for affirmative consent standards on college campuses. Behav Sci. 2018;8(8):69.),(55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(2020. Rosenberg M, Townes A, Taylor S, Luetke V, Herbenick D. Quantifying the magnitude and potential influence of missing data in campus sexual assault surveys: a systematic review of surveys, 2010-2016. J Am Coll Health. 2019;67(1):42-50..

Nesta pesquisa, a violência sexual apresentou maior prevalência entre alunas do primeiro ao quarto período de Medicina. Esse achado apresentou concordância com a literatura que mostrou que as estudantes recentemente ingressas são as mais afetadas pela violência sexual no âmbito universitário2323. Cranney S. The relationship between sexual victimization and year in school in U.S. colleges: investigating the parameters of the “red zone”. J Interpers Violence . 2015;30(17):3133-45.)-(2525. Mellins CA, Walsh K, Sarvet AL, Wall M, Gilbert L, Santelli JS, et al. Sexual assault incidents among college undergraduates: prevalence and factors associated with risk. PLoS One . 2017;12(11):e0186471.. Em um estudo norte-americano de 2015, as alunas do primeiro ano tinham de duas a 4,6 vezes mais probabilidade de sofrer violência sexual, quando comparadas a outras de anos mais avançados na graduação em Medicina2323. Cranney S. The relationship between sexual victimization and year in school in U.S. colleges: investigating the parameters of the “red zone”. J Interpers Violence . 2015;30(17):3133-45.. Conhecido como “zona vermelha”, o período inicial do curso apresenta maior concentração de festas e trotes2323. Cranney S. The relationship between sexual victimization and year in school in U.S. colleges: investigating the parameters of the “red zone”. J Interpers Violence . 2015;30(17):3133-45.),(2424. Caamano-Isorna F, Adkins A, Moure-Rodríguez L, Conley AH, Dick D. Alcohol use and sexual and physical assault victimization among university students: three years of follow-up. J Interpers Violence . 2021;36(7-8):3574-95., o que favorece, muitas vezes, a agressão sexual relacionada ao consumo de bebidas alcoólicas pela vítima e/ou pelo agressor2323. Cranney S. The relationship between sexual victimization and year in school in U.S. colleges: investigating the parameters of the “red zone”. J Interpers Violence . 2015;30(17):3133-45.),(2525. Mellins CA, Walsh K, Sarvet AL, Wall M, Gilbert L, Santelli JS, et al. Sexual assault incidents among college undergraduates: prevalence and factors associated with risk. PLoS One . 2017;12(11):e0186471.. Mesmo entre estudantes de idade mais elevada, o desconhecimento das regras do novo ambiente e a vulnerabilidade social das calouras ou recém-chegadas favorecem uma variedade de formas de vitimização sexual2323. Cranney S. The relationship between sexual victimization and year in school in U.S. colleges: investigating the parameters of the “red zone”. J Interpers Violence . 2015;30(17):3133-45..

Quanto ao local de ocorrência da violência sexual, as estudantes indicaram os ambientes de prática (locais de estágio, laboratórios, unidades básicas de saúde e hospitais) como aqueles onde os eventos de violência foram mais frequentes. Mesmo que alguns dos cenários descritos, como hospitais e outros serviços de saúde para aquisição de habilidades práticas, por vezes não pertençam ao âmbito da instituição de ensino propriamente dita, são territórios significativos do ponto de vista acadêmico. É importante considerar que a esfera de domínio da universidade não se restringe ao limite geográfico do campus, mas inclui todos os locais em que estudantes, professores e funcionários estejam reunidos em nome da universidade, sejam seminários, palestras, atividades de pesquisa de campo ou viagens em função de atividades da instituição2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653..

De forma semelhante aos resultados de uma pesquisa com estudantes de medicina canadenses2727. Phillips SP, Webber J, Imbeau S, Quaife T, Hagan D, Maar M, et al. Sexual harassment of Canadian medical students: a national survey. EClinicalMedicine. 2019;7:15-20., as discentes do atual estudo indicaram que os agressores em quase sua totalidade foram homens. Essa revelação com maior proporção de casos cometidos por homens contra estudantes mulheres pode caracterizar violência de gênero, considerada como discriminação sexual e simbolizando sexismo no contexto das escolas médicas. Como em outros espaços sociais, a violência de gênero reproduz as relações históricas e culturais de subjugação da mulher à figura masculina22. World Health Organization. Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence. Geneva: WHO ; 2010.),(1111. Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.),(1515. Brown MEL, Hunt GEG, Hughes F, Finn GM. “Too male, too pale, too stale”: a qualitative exploration of student experiences of gender bias within medical education. BMJ Open . 2020;10(8):e039092.),(1818. Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.),(2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653.. A violência de gênero é, sobretudo, uma consequência da desigualdade motivada pelo sexo, da expressão do patriarcado e do machismo, que faz referência às diversas formas de ameaças, imposições ou pretensão de subordinação e controle do gênero feminino pelo masculino. As ações de dominação pertencem a uma construção social expressa pelos homens em múltiplos espaços, incluindo os públicos de educação, trabalho e política22. World Health Organization. Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence. Geneva: WHO ; 2010.),(1818. Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.),(2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653.. Dessa forma, na universidade é comum que ocorram replicações de expressões de superioridade do homem diante da mulher nas relações entre professores e alunas1818. Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.),(2828. Sá BS, Folriani MD, Rampazo AV. Assédio sexual: o poder do macho na universidade. Est Admin Soc. 2017;3(2):22-31..

Como ocorre em outras formas de violência contra as mulheres, o agressor das estudantes no contexto universitário é comumente alguém conhecido pela vítima77. Hu YY, Ellis RJ, Hewitt DB, Yang AD, Cheung EO, Moskowitz JT, et al. Discrimination, abuse, harassment, and burnout in surgical residency training. N Engl J Med. 2019;381(18):1741-52.),(88. Jagsi R, Griffith KA, Jone R, Perumalswani CR, Ubel P, Stewart A. Sexual harassment and discrimination experiences of academic medical faculty. JAMA. 2016;315(19):2120-1.),(1111. Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.),(1818. Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.),(2525. Mellins CA, Walsh K, Sarvet AL, Wall M, Gilbert L, Santelli JS, et al. Sexual assault incidents among college undergraduates: prevalence and factors associated with risk. PLoS One . 2017;12(11):e0186471.),(2727. Phillips SP, Webber J, Imbeau S, Quaife T, Hagan D, Maar M, et al. Sexual harassment of Canadian medical students: a national survey. EClinicalMedicine. 2019;7:15-20.. Os resultados deste estudo identificaram o professor da instituição como o agressor mais prevalente nas escolas médicas, como também observado no Sul do Brasil em 2019, com graduandas de Medicina, Odontologia e Psicologia, que classificaram o docente como o principal infrator de violências emocional, física e sexual2929. Magrin JV, Franco A, Makeeva I, Paranhos LR, Rigo L. Emotional, physical and sexual violence against female students undergoing medical, dental and psychology courses in South Brazil. Eur J Dent Educ. 2019;23(4):455-60.. Provavelmente isso acontece em decorrência de os professores possuírem duplo poder (sexo masculino e maior posição hierárquica) socialmente naturalizado em relação às estudantes, o que lhes confere maior desinibição para a prática de violência sexual55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(1919. Souza TMC, Rocha IA. Investigando o assédio sexual em universitárias: a violência de gênero na Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí. Rev Educ Cult Contemp. 2020;17(47):165-84.. Assim, o assédio sexual na associação professor-aluna se expressa tanto em uma relação de poder institucionalizada, como entre o indivíduo que avalia e o outro que é avaliado, quanto nas demais que envolvam a internalização dos papéis de gênero, muitas vezes produzidos por padrões repetidos de dominância masculina22. World Health Organization. Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence. Geneva: WHO ; 2010.),(55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(1818. Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.),(2828. Sá BS, Folriani MD, Rampazo AV. Assédio sexual: o poder do macho na universidade. Est Admin Soc. 2017;3(2):22-31..

Esta pesquisa demonstrou que as consequências da violência sexual incluíram principalmente sofrimento emocional e queda de produtividade/qualidade do estudo, em consonância com dados que evidenciam que mulheres vítimas de violência sexual em geral têm 2,6 vezes mais propensão de manifestar depressão e ansiedade11. World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence. Geneva: WHO; 2013.),(1212. Brasil. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, Casa Civil; 2001.. Esses resultados colocam a saúde mental em foco, sobretudo no que concerne a problemas de curto e longo prazos que podem levar a uma maior procura dos serviços de saúde e às queixas feitas pelas universitárias55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(66. Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019;10(1):56-68.),(2121. Cusack SE, Bourdon JL, Bouentress K, Saunders TR, Kendler KS, Dick DM, et al. Prospective predictors of sexual revictimization among college students. J Interpers Violence. 2021;36(17-18):8494-518.),(2222. McGingley M, Wolff JM, Rospenda KM, Liu L, Richman JA. Risk factors and outcomes of chronic sexual harassment during the transition to college: examination of a two-part growth mixture model. Soc Sci Res. 2016;60:297-310.. Ademais, precaução ainda maior deve ser ofertada quanto aos sintomas de depressão e ansiedade, visto que são transtornos que podem prever a revitimização sexual3030. Howard RM, Potter SJ, Guedj CE, Moynihan MM. Sexual violence victimization among community college students. J Am Coll Health . 2019;67(7):674-87. e a suposição de relações causais recíprocas entre sofrimento mental e assédio sexual2222. McGingley M, Wolff JM, Rospenda KM, Liu L, Richman JA. Risk factors and outcomes of chronic sexual harassment during the transition to college: examination of a two-part growth mixture model. Soc Sci Res. 2016;60:297-310.. Além disso, o baixo desempenho acadêmico da estudante e a interferência no processo de aprendizagem estão frequentemente associados ao aumento da evasão escolar55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.. A violência sexual nas universidades tem impacto negativo mais forte sobre o desempenho acadêmico das alunas, com maior taxa de abandono do curso, do que as violências física e verbal3131. Mengo C, Black BM. Violence victimization on a college campus: impact on GPA and school dropout. J Coll Stud Ret. 2016;18(2):234-48..

Os dados do atual estudo são condizentes com a literatura ao revelarem que apenas uma minoria de estudantes de Medicina denunciou os episódios1414. Aguilar SJ, Baek C. Sexual harassment in academe is underreported, especially by students in the life and physical sciences. PLoS One. 2020;15(3):e0230312.),(1717. Bates CK, Jagsi R, Gordon LK, Travis E, Chatterjee A, Gillis M, et al. It is time for zero tolerance for sexual harassment in academic medicine. Acad Med. 2018;92(2):163-5.. Os motivos para as poucas taxas de delação podem ser diversos e incluem desde a ausência de canais de denúncia, de acolhimento e de adoção de medidas administrativas disciplinares nas universidades até o estigma e o medo, por parte das vítimas, de descrédito e de retaliação2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653.),(2828. Sá BS, Folriani MD, Rampazo AV. Assédio sexual: o poder do macho na universidade. Est Admin Soc. 2017;3(2):22-31.. A não denúncia pode ainda ser justificada pela ausência de definição formal de violência sexual das universidades, pela dificuldade da vítima em reconhecer a violência e pela naturalização dos episódios1313. Geldolf M, Tijtgat J, Dewulf L, Haezeleer M, Degryse N, Pouliart N, et al. Sexual violence in medical students and specialty registrars in Flanders, Belgium: a population survey. BMC Med Educ. 2021;21:130.),(2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653.. Piadas, cantadas e brincadeiras de cunho sexual são frequentemente consideradas comportamentos sexuais inofensivos, próprios do fenômeno da conquista2828. Sá BS, Folriani MD, Rampazo AV. Assédio sexual: o poder do macho na universidade. Est Admin Soc. 2017;3(2):22-31.. A formalização da denúncia se torna mais difícil quando o agressor é o professor, principalmente quando ocupa cargo de autoridade intelectual e/ou possui carreira acadêmica de destaque55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.. Espera-se, contudo, que a universidade garanta segurança e bem-estar físico e psicológico das estudantes, além de assegurar a intimidade e a privacidade necessárias em situações de violência, tratando as diligências com discrição e respeito a todos os envolvidos2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653..

Muitas discentes ainda percebem a universidade como ambiente hostil, seja pela pouca solidariedade para com as vítimas de violência sexual, pela culpabilização da estudante ou por exemplos de denúncias com resultados desfavoráveis às vítimas55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(3232. Valls R, Puigvert L, Melgar P, Garcia-Yeste C. Breaking the silence at Spanish universities: findings from the first study of violence against women on campuses in Spain. Violence Against Women. 2016;22(13):1519-39.. Observou-se essa realidade entre universitários mexicanos, segundo os quais, em 44% dos casos, o responsável não foi punido e não houve medidas para reparar os danos às vítimas, e, em 3% das situações, ocorreu humilhação3333. Echeverria RE, Guerrero LP, Evia NM, Carillo CD, Kantún MD, Batún JL, et al. Caracterización del hostigamiento y acoso sexual, denuncia y atención recibida por estudiantes universitarios mexicanos. Rev Psicol. 2018;27(2):49-60.. Entretanto, pode haver a existência de uma rede informal de apoio às vítimas, o que inclui parceiros conjugais, mães, pais, irmãos/outros membros da família, colegas do sexo masculino, colegas do sexo feminino, colegas de quarto e amigos/familiares combinados3434. Halstead V, Williams JR, Gonzalez-Guarda R. Sexual violence in the college population: a systematic review of disclosure and campus resources and services. J Clin Nurs. 2017;26(15-16):2137-53.. Sugere-se que esse amparo por pessoas confiáveis e próximas às vítimas seja imprescindível e as ajude a lidar com os sentimentos e anseios advindos da vitimização3333. Echeverria RE, Guerrero LP, Evia NM, Carillo CD, Kantún MD, Batún JL, et al. Caracterización del hostigamiento y acoso sexual, denuncia y atención recibida por estudiantes universitarios mexicanos. Rev Psicol. 2018;27(2):49-60..

Fatores associados à boa percepção da estudante sobre a universidade tendem a aumentar a probabilidade de denúncia da violência sexual às autoridades institucionais. Isso ocorrerá se a estudante se sentir apoiada, cuidada e valorizada, como parte integrante da universidade, com bons relacionamentos com o corpo docente e um vínculo fortalecido com a instituição de ensino3535. Spencer C, Stith S, Durtschi J, Toews ML. Factors related to college students’ decisions to report sexual assault. J Interpers Violence . 2020;35(21-22):4666-85.. Mesmo que para muitas vítimas seja árduo denunciar formalmente a violência sexual às autoridades da instituição de ensino, a denunciação e a boa qualidade dos serviços de apoio e acompanhamento têm potencial para evitar consequências negativas no longo prazo66. Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019;10(1):56-68.),(1414. Aguilar SJ, Baek C. Sexual harassment in academe is underreported, especially by students in the life and physical sciences. PLoS One. 2020;15(3):e0230312.),(3333. Echeverria RE, Guerrero LP, Evia NM, Carillo CD, Kantún MD, Batún JL, et al. Caracterización del hostigamiento y acoso sexual, denuncia y atención recibida por estudiantes universitarios mexicanos. Rev Psicol. 2018;27(2):49-60.. Além disso, não denunciar permite que os agressores fiquem impunes, reforça a possibilidade de vitimizações futuras e tende a normalizar atos violentos, transformando-os em parte da cultura da universidade2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653.),(3232. Valls R, Puigvert L, Melgar P, Garcia-Yeste C. Breaking the silence at Spanish universities: findings from the first study of violence against women on campuses in Spain. Violence Against Women. 2016;22(13):1519-39..

Sabe-se que algumas características sociodemográficas podem atuar como fatores de proteção contra a violência sexual na população de estudantes universitários em geral. A cisgeneridade, a heterossexualidade, a raça branca, a vivência de relacionamentos íntimos estáveis ou monogâmicos e morar com a família estão associados à menor probabilidade de sofrer violência2525. Mellins CA, Walsh K, Sarvet AL, Wall M, Gilbert L, Santelli JS, et al. Sexual assault incidents among college undergraduates: prevalence and factors associated with risk. PLoS One . 2017;12(11):e0186471.),(3030. Howard RM, Potter SJ, Guedj CE, Moynihan MM. Sexual violence victimization among community college students. J Am Coll Health . 2019;67(7):674-87.),(3636. Martin-Storey A, Paquette G, Bergeron M, Dion J, Daigneault I, Hèbert M, et al. Sexual violence on campus: differences across gender and sexual minority status. J Adolesc Health. 2018;62(6):701-7.. Contudo, outras características são fatores agravantes que aumentam o risco de agressão sexual no contexto universitário, como a idade menor de 26 anos3030. Howard RM, Potter SJ, Guedj CE, Moynihan MM. Sexual violence victimization among community college students. J Am Coll Health . 2019;67(7):674-87. e a precariedade econômica2525. Mellins CA, Walsh K, Sarvet AL, Wall M, Gilbert L, Santelli JS, et al. Sexual assault incidents among college undergraduates: prevalence and factors associated with risk. PLoS One . 2017;12(11):e0186471.. No atual estudo, dois aspectos foram associados à violência sexual no âmbito universitário: o fato de a instituição de ensino ser pública e a bissexualidade das estudantes.

Não há consenso sobre o tipo de instituição de ensino influenciar ou não a violência sexual. Existem dados conflitantes evidenciando que não há associação significativa entre perpetração de violência sexual, características de nível institucional3737. Porta CM, Mathiason MA, Lust K, Eisenberg ME. Sexual violence among college students: an examination of individual and institutional level factors associated with perpetration. J Forensic Nurs. 2017;13(3):109-17.) e maior frequência de relatos entre as públicas3838. Espinoza M, Hsiehchen D. Characteristics of faculty accused of academic sexual misconduct in the biomedical and health sciences. JAMA . 2020;323(15):1503-5.. É possível que as instituições de ensino públicas possam ser cenários mais passíveis a manifestações de atos de violência sexual por aparentemente apresentarem menos segurança e fiscalização3737. Porta CM, Mathiason MA, Lust K, Eisenberg ME. Sexual violence among college students: an examination of individual and institutional level factors associated with perpetration. J Forensic Nurs. 2017;13(3):109-17., pela inexistência de documentos que normatizem os procedimentos a serem tomados por elas55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.) ou, talvez, pela estabilidade dos docentes no emprego. Nos últimos anos, porém, algumas iniciativas de universidades públicas brasileiras, com construção de protocolos contra a violência sexual, têm ganhado corpo e favorecido o enfrentamento da violência55. D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.),(2626. Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653.),(3939. Linhares Y, Fontana J, Laurenti C. Protocolos de prevenção e enfrentamento da violência sexual no contexto universitário: uma análise do cenário latino-americano. Saude Soc. 2021;30(1):e200180..

A ocorrência de violência sexual foi mais frequente entre estudantes não heterossexuais, com associação significativa entre aquelas que se autoidentificaram como bissexuais. Esse dado está em concordância com outros estudos que evidenciam taxas de violência sexual nas universidades maiores entre lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, intersexuais, queer, assexuais e outras identidades de gênero e orientações sexuais (LGBTQIA+), quando comparados aos alunos heterossexuais cisgênero2222. McGingley M, Wolff JM, Rospenda KM, Liu L, Richman JA. Risk factors and outcomes of chronic sexual harassment during the transition to college: examination of a two-part growth mixture model. Soc Sci Res. 2016;60:297-310.),(2525. Mellins CA, Walsh K, Sarvet AL, Wall M, Gilbert L, Santelli JS, et al. Sexual assault incidents among college undergraduates: prevalence and factors associated with risk. PLoS One . 2017;12(11):e0186471.. Ambientes sociais homofóbicos, bifóbicos, transfóbicos ou sexistas podem criar normas que desvalorizam pessoas LGBTQIA+, resultando em maior violência contra elas4040. Martin SL, Fisher BS, Warner TD, Krebs CP, Lindowist CH. Women’s sexual orientations and their experiences of sexual assault before and during university. Womens Health Issues. 2011;21(3):199-205.. Por sua vez, alunos de escolas com currículos mais inclusivos relataram menor propensão a testemunhar comentários homofóbicos ou transfóbicos e maior possibilidade de se sentirem seguros41. A criação de ambientes seguros, acolhedores e de apoio para esses indivíduos é considerado ponto central para reduzir a violência sexual nas universidades4040. Martin SL, Fisher BS, Warner TD, Krebs CP, Lindowist CH. Women’s sexual orientations and their experiences of sexual assault before and during university. Womens Health Issues. 2011;21(3):199-205.),(4141. Coulter RWS, Rankin SR. College sexual assault and campus climate for sexual- and gender-minority undergraduate students. J Interpers Violence . 2020;35(5-6):1351-66..

Este estudo apresenta algumas limitações que merecem ser consideradas. Primeiro, o desenho transversal do estudo não permite o estabelecimento de causalidade entre violência sexual e fatores de risco potenciais. Segundo, o tipo de seleção empregado pode ter contribuído para a participação de estudantes vítimas de violência sexual e que tinham necessidade de falar sobre isso ou, ao contrário, discentes que foram vítimas não responderam à pesquisa porque não queriam reviver o trauma. Por fim, alguns dados ausentes no questionário, como o uso de álcool pela vítima/agressor ou o relato de violência sexual prévia à universidade, poderiam melhor esclarecer o fenômeno. No entanto, tendo em vista a escassez de estudos brasileiros sobre o tema, a atual pesquisa preenche lacunas ao evidenciar taxas inaceitáveis de violência sexual contra mulheres no ensino médico. Torna-se importante, portanto, desenvolver abordagens das práticas de violência em contextos diversos para criar mudanças efetivas e sustentáveis com todos os interessados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os achados encontrados fornecem evidências de que essa violência é de fato um problema substancial a ser enfrentado por todos aqueles envolvidos na educação médica. A violência se caracterizou principalmente como assédio sexual, por meio de comentários sexistas ou sexualmente degradantes em ambientes de prática, nos primeiros anos dos cursos. O professor universitário, homem e com idade acima de 40 anos, foi o autor mais recorrente. Fatores como estudar em instituição de ensino pública e ser bissexual aumentaram as chances de sofrer violência sexual no curso médico. De um lado, as denúncias às autoridades da instituição foram mínimas, de outro, as consequências dos atos violentos parecem ter favorecido sofrimento mental e problemas educacionais significativos.

Tais resultados sustentam a necessidade de políticas e programas institucionais que reconheçam a intersecção dos múltiplos fatores envolvidos na violência sexual contra a mulher e enfatizem discussões na universidade acerca das disparidades de gênero e atitudes sobre sexualidade e sexo, determinando estratégias de prevenção e intervenção. Estudos adicionais são necessários para reforçar a magnitude do problema e esclarecer outras lacunas. É urgente que ocorram mudanças na cultura médica para estabelecer um ambiente de tolerância zero contra o assédio e outras formas de violência sexual durante o ensino médico.

REFERÊNCIAS

  • 1
    World Health Organization. Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence. Geneva: WHO; 2013.
  • 2
    World Health Organization. Preventing intimate partner and sexual violence against women: taking action and generating evidence. Geneva: WHO ; 2010.
  • 3
    Pugh B, Becker P. Exploring definitions and prevalence of verbal sexual coercion and its relationship to consent to unwanted sex: implications for affirmative consent standards on college campuses. Behav Sci. 2018;8(8):69.
  • 4
    Moore J, Mennicke A. Empathy deficits and perceived permissive environments: sexual harassment perpetration on college campuses. J Sex Aggress. 2020;26(3):372-84.
  • 5
    D’Oliveira AF. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface. 2019;23:e190650.
  • 6
    Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019;10(1):56-68.
  • 7
    Hu YY, Ellis RJ, Hewitt DB, Yang AD, Cheung EO, Moskowitz JT, et al. Discrimination, abuse, harassment, and burnout in surgical residency training. N Engl J Med. 2019;381(18):1741-52.
  • 8
    Jagsi R, Griffith KA, Jone R, Perumalswani CR, Ubel P, Stewart A. Sexual harassment and discrimination experiences of academic medical faculty. JAMA. 2016;315(19):2120-1.
  • 9
    Walsh MN, Gates CC. Zero tolerance for sexual harassment in cardiology: moving to #MeToo to #MeNeither. J Am Coll Cardiol. 2018;71(10):1176-7.
  • 10
    Dzau VJ, Johnson PA. Ending sexual harassment in academic medicine. N Engl J Med . 2018;379(17):1589-91.
  • 11
    Najjar I, Socquet J, Gayet-Ageron A, Ricon B, Le Breton J, Rossel A, et al. Prevalence and forms of gender discrimination and sexual harassment among medical students and physicians in French-speaking Switzerland: a survey. BMJ Open. 2022;12(1):e049520.
  • 12
    Brasil. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, Casa Civil; 2001.
  • 13
    Geldolf M, Tijtgat J, Dewulf L, Haezeleer M, Degryse N, Pouliart N, et al. Sexual violence in medical students and specialty registrars in Flanders, Belgium: a population survey. BMC Med Educ. 2021;21:130.
  • 14
    Aguilar SJ, Baek C. Sexual harassment in academe is underreported, especially by students in the life and physical sciences. PLoS One. 2020;15(3):e0230312.
  • 15
    Brown MEL, Hunt GEG, Hughes F, Finn GM. “Too male, too pale, too stale”: a qualitative exploration of student experiences of gender bias within medical education. BMJ Open . 2020;10(8):e039092.
  • 16
    Barreto ADAL, Babler F, Quaresma IYV, Arakari JNL, Peres MFT. Projeto QUARA - prevalência de abusos, maus-tratos e outras agressões durante a formação médica: um estudo de corte transversal em São Paulo, Brasil, 2013. Rev Med. 2015;94(1):6-14.
  • 17
    Bates CK, Jagsi R, Gordon LK, Travis E, Chatterjee A, Gillis M, et al. It is time for zero tolerance for sexual harassment in academic medicine. Acad Med. 2018;92(2):163-5.
  • 18
    Jendretzky K, Boll L, Steffens S, Paulmann V. Medical students’ experiences with sexual discrimination and perceptions of equal opportunity: a pilot study in Germany. BMC Med Educ . 2020;20(1):56.
  • 19
    Souza TMC, Rocha IA. Investigando o assédio sexual em universitárias: a violência de gênero na Universidade Federal de Goiás/Regional Jataí. Rev Educ Cult Contemp. 2020;17(47):165-84.
  • 20
    Rosenberg M, Townes A, Taylor S, Luetke V, Herbenick D. Quantifying the magnitude and potential influence of missing data in campus sexual assault surveys: a systematic review of surveys, 2010-2016. J Am Coll Health. 2019;67(1):42-50.
  • 21
    Cusack SE, Bourdon JL, Bouentress K, Saunders TR, Kendler KS, Dick DM, et al. Prospective predictors of sexual revictimization among college students. J Interpers Violence. 2021;36(17-18):8494-518.
  • 22
    McGingley M, Wolff JM, Rospenda KM, Liu L, Richman JA. Risk factors and outcomes of chronic sexual harassment during the transition to college: examination of a two-part growth mixture model. Soc Sci Res. 2016;60:297-310.
  • 23
    Cranney S. The relationship between sexual victimization and year in school in U.S. colleges: investigating the parameters of the “red zone”. J Interpers Violence . 2015;30(17):3133-45.
  • 24
    Caamano-Isorna F, Adkins A, Moure-Rodríguez L, Conley AH, Dick D. Alcohol use and sexual and physical assault victimization among university students: three years of follow-up. J Interpers Violence . 2021;36(7-8):3574-95.
  • 25
    Mellins CA, Walsh K, Sarvet AL, Wall M, Gilbert L, Santelli JS, et al. Sexual assault incidents among college undergraduates: prevalence and factors associated with risk. PLoS One . 2017;12(11):e0186471.
  • 26
    Maito DC, Panúncio-Pinto MP, Severi FC, Vieira EM. Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade. Interface . 2019;23:e180653.
  • 27
    Phillips SP, Webber J, Imbeau S, Quaife T, Hagan D, Maar M, et al. Sexual harassment of Canadian medical students: a national survey. EClinicalMedicine. 2019;7:15-20.
  • 28
    Sá BS, Folriani MD, Rampazo AV. Assédio sexual: o poder do macho na universidade. Est Admin Soc. 2017;3(2):22-31.
  • 29
    Magrin JV, Franco A, Makeeva I, Paranhos LR, Rigo L. Emotional, physical and sexual violence against female students undergoing medical, dental and psychology courses in South Brazil. Eur J Dent Educ. 2019;23(4):455-60.
  • 30
    Howard RM, Potter SJ, Guedj CE, Moynihan MM. Sexual violence victimization among community college students. J Am Coll Health . 2019;67(7):674-87.
  • 31
    Mengo C, Black BM. Violence victimization on a college campus: impact on GPA and school dropout. J Coll Stud Ret. 2016;18(2):234-48.
  • 32
    Valls R, Puigvert L, Melgar P, Garcia-Yeste C. Breaking the silence at Spanish universities: findings from the first study of violence against women on campuses in Spain. Violence Against Women. 2016;22(13):1519-39.
  • 33
    Echeverria RE, Guerrero LP, Evia NM, Carillo CD, Kantún MD, Batún JL, et al. Caracterización del hostigamiento y acoso sexual, denuncia y atención recibida por estudiantes universitarios mexicanos. Rev Psicol. 2018;27(2):49-60.
  • 34
    Halstead V, Williams JR, Gonzalez-Guarda R. Sexual violence in the college population: a systematic review of disclosure and campus resources and services. J Clin Nurs. 2017;26(15-16):2137-53.
  • 35
    Spencer C, Stith S, Durtschi J, Toews ML. Factors related to college students’ decisions to report sexual assault. J Interpers Violence . 2020;35(21-22):4666-85.
  • 36
    Martin-Storey A, Paquette G, Bergeron M, Dion J, Daigneault I, Hèbert M, et al. Sexual violence on campus: differences across gender and sexual minority status. J Adolesc Health. 2018;62(6):701-7.
  • 37
    Porta CM, Mathiason MA, Lust K, Eisenberg ME. Sexual violence among college students: an examination of individual and institutional level factors associated with perpetration. J Forensic Nurs. 2017;13(3):109-17.
  • 38
    Espinoza M, Hsiehchen D. Characteristics of faculty accused of academic sexual misconduct in the biomedical and health sciences. JAMA . 2020;323(15):1503-5.
  • 39
    Linhares Y, Fontana J, Laurenti C. Protocolos de prevenção e enfrentamento da violência sexual no contexto universitário: uma análise do cenário latino-americano. Saude Soc. 2021;30(1):e200180.
  • 40
    Martin SL, Fisher BS, Warner TD, Krebs CP, Lindowist CH. Women’s sexual orientations and their experiences of sexual assault before and during university. Womens Health Issues. 2011;21(3):199-205.
  • 41
    Coulter RWS, Rankin SR. College sexual assault and campus climate for sexual- and gender-minority undergraduate students. J Interpers Violence . 2020;35(5-6):1351-66.
  • 2
    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Gustavo Antônio Raimondi.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2022
  • Aceito
    09 Ago 2023
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com