Acessibilidade / Reportar erro

Os papéis do professor de Medicina: diálogo entre teoria e prática no ensino superior

The roles of the Medicine professor: dialogue between theory and practice in higher education

Resumo:

Introdução:

Professores de Medicina são demandados em atividades complexas. As reformulações curriculares propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Medicina no Brasil trouxeram mudanças nas atividades docentes, com a introdução de inovações na formação dos médicos. Em consequência, os papéis docentes têm sido submetidos a redefinições. Harden e Lilley são autores que se debruçaram sobre o estudo dos papéis dos professores de medicina.

Objetivo:

Este estudo foi realizado com o objetivo de conhecer a percepção de professores de medicina de uma instituição pública federal de ensino superior sobre os papéis que exercem como docentes.

Método:

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, com realização de entrevistas semiestruturadas com dois grupos de professores de medicina, separados pelo tempo de experiência docente: grupo 1: professores com mais de dez anos de docência e grupo 2: docentes com menos de dez anos de carreira docente. As entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo temática.

Resultado:

Os professores de medicina de ambos os grupos identificaram em sua atuação os papéis propostos por Harden e Lilley e foram além ao descreverem papéis adicionais que exercem em sua prática docente. Os do grupo 1 consideraram o papel de gestor e os do grupo 2 salientaram que devem ter disponibilidade emocional para lidar com as necessidades afetivas dos estudantes.

Conclusão:

Essas percepções podem proporcionar às instituições formadoras o conhecimento necessário para mobilizar investimentos institucionais para o desenvolvimento docente e poder contar com todo o potencial da atuação dos professores.

Palavras-chave:
Autopercepção do Professor; Capacitação de Recursos Humanos em Saúde; Ensino; Educação Médica

Abstract:

Introduction:

Medicine professors are required in complex activities. The curricular reforms proposed by the National Curricular Guidelines for medical courses brought changes in teaching activities, with the introduction of innovations in the training of physicians. As a result, teaching roles have been subject to redefinitions.

Objectives:

This study was carried out with the objective of understanding how medicine professors from a federal public higher education institution view their roles as professors, based on the theoretical reference of the eight roles of the professor of medicine proposed by Harden and Lilley in 2018.

Method:

This is a study with a qualitative approach, with semi-structured interviews conducted with two groups of medicine professors, separated by the time of teaching experience: Group 1, composed of professors with more than 10 years of teaching experience; and Group 2, composed of professors with less than 10 years of teaching career. The interviews were subjected to thematic content analysis.

Results:

Medicine professors from both groups identified the roles proposed by Harden and Lilley in their work and went further, describing additional roles they play in their teaching practice. Those in Group 1 attribute the role of manager/administrator to teachers and those in Group 2 consider that teachers must have emotional availability to deal with the affective needs of students.

Conclusion:

These perceptions can provide training institutions with the necessary knowledge to mobilize institutional investments for teacher development and ensure that teachers reach their full potential.

Keywords:
Teacher’s Self-Perception; Training of Human Resources in Health; Teaching; Medical Education

INTRODUÇÃO

A educação médica enfrenta diversos desafios, como a expansão dos cursos, a disponibilidade excessiva de informações, a demanda social por uma formação mais abrangente e relevante, e o processo de substituição dos métodos tradicionais de ensino baseados no método flexneriano por metodologias inovadoras que colocam o aluno como protagonista do próprio aprendizado e atribuem ao professor um papel de facilitador e mediador, como demandam as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)11. Brasil. Resolução n° 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 23 jun 2014. Seção 1, p. 8-11.)-(44. Lima-Gonçalves E. O processo ensino-aprendizagem em medicina. In: Lima-Gonçalves E. Médicos e ensino da medicina no Brasil. São Paulo: Edusp; 2002..

Um dos desafios do ensino médico é formar profissionais de saúde com capacidade de aplicar as ferramentas aprendidas durante a graduação e pós-graduação na prática diária e na resolução dos problemas de saúde da população44. Lima-Gonçalves E. O processo ensino-aprendizagem em medicina. In: Lima-Gonçalves E. Médicos e ensino da medicina no Brasil. São Paulo: Edusp; 2002.. Para alcançar um ensino de qualidade, é fundamental o reconhecimento dos múltiplos papéis que um professor de Medicina pode desempenhar55. Castilla Luna M, López De Mesa C. Los roles del docente en la educación médica. Educación y Educadores. 2007;10(1):105-13 [acesso em 10 jan 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0123-12942007000100009 .
http://www.scielo.org.co/scielo.php?scri...
.

No Brasil, os movimentos de reorientação da formação profissional em saúde estimularam propostas inovadoras para formar profissionais críticos, reflexivos, interdisciplinares, éticos e comprometidos com a produção de práticas de atenção à saúde emancipatórias na perspectiva da integralidade66. Batista SHSS, Jansen B, Assis EQ, Senna MIB, Cury GC. Formação em saúde: reflexões a partir dos Programas Pró-Saúde e PET-Saúde. Interface (Botucatu) [online]. 2015: 19 (1): 743-752..

O professor de Medicina, além de sua formação acadêmica, deve estar atento a uma formação educacional que o prepare para as necessidades do ensino médico77. Stenfors-Hayes T, Hult H, Dahlgren LO. Three ways of understanding development as a teacher. Eur J Dent Educ. 2012:16(1):e151-e157. doi: https://doi.org/10.1111/j.1600-0579.2011.00690.x.
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
, levando em consideração que o docente universitário pode assumir diversos papéis, como os de pesquisador, coordenador, avaliador, entre outros88. Torales J. Los “doce roles del docente de medicina”: un estudio piloto de tres universidades públicas de Paraguay. Mem Inst Invest Cienc Salud. 2018;16(2): 55-64 [acesso em 10 out 2021]. Disponível em: Disponível em: http://scielo.iics.una.py/pdf/iics/v16n2/1812-9528-iics-16-02-55.pdf .
http://scielo.iics.una.py/pdf/iics/v16n2...
. Assim, uma questão fundamental é definir quais seriam os papéis dos professores no contexto das rápidas mudanças que ocorreram e continuam a ocorrer na educação médica99. Costa NMSC, Cardoso CGLV, Costa DC. Conceptions about the good professor of medicine. Rev Bras Educ Med. 2012;36(4):499-505 [acesso em 10 nov. 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/Yhj4TXtfCXZ5mjKrr8TR8Tf/?format=pdf⟨=pt .
https://www.scielo.br/j/rbem/a/Yhj4TXtfC...
.

Essa questão foi abordada no ano 2000, por Harden e Crosby1010. Harden RM, Crosby JO. Amee guide nº 20: The good teacher is more than a lecturer: the twelve roles of the teacher. Med Teach. 2000;22:334-47 [acesso em 10 jan. 2022]. Disponível em: Disponível em: https://njms.rutgers.edu/education/office_education/community_preceptorship/documents/TheGoodTeacher.pdf .
https://njms.rutgers.edu/education/offic...
, no artigo “The good teacher is more than a lecturer: the twelve roles of the teacher”. Para definirem os papéis do professor de Medicina, os autores desenvolveram um modelo por meio de três fontes de dados: 1. análise das tarefas que devem ser cumpridas por um professor na concepção e implementação do currículo; 2. estudo dos diários mantidos por 12 estudantes de Medicina, durante um período de três meses, e análise de seus comentários sobre o papel do professor; 3. análise da teoria e da literatura existentes sobre o tema. Por fim, o modelo de Harden e Crosby foi estabelecido em seis áreas principais de atividades docentes, cada uma com dois papéis: 1. conhecimento teórico e 2. conhecimento prático; 3. produtor de material educacional e 4. provedor de recursos didáticos; 5. organizador do programa e 6. planejador do programa; 7. avaliador do programa e 8. avaliador do aluno; 9. facilitador do aprendizado e 10. mentor do estudante; 11. modelo de educador e 12. modelo de profissional.

Em 2018, Harden e Lilley revisitaram os 12 papéis do professor de Medicina com vistas a atualizá-los. Realizaram entrevistas com 38 docentes do ensino médico do mundo todo, e o resultado foi um novo trabalho, The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018., no qual promoveram uma atualização dos 12 papéis anteriormente pensados, resumindo-os em oito (Quadro 1).

Quadro 1
Os oito papéis do professor de Medicina.

Cada papel pensado por Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018. requer um repertório de habilidades, e não existe a expectativa de que todos os professores dominem totalmente cada um deles, mas é importante que haja a compreensão de todos.

O objetivo deste estudo foi investigar a autopercepção de professores de Medicina de uma instituição federal de ensino superior (Ifes) da Região Centro-Oeste sobre os papéis que exercem como docentes.

Tomou-se como referência a teoria de Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018., por esses autores buscarem explorar o conceito de excelência no ensino por meio de uma melhor compreensão das funções e dos papéis de um professor do século XXI, estabelecendo diretrizes no contexto de desenvolvimentos tecnológicos educacionais e crescentes pressões da sociedade com relação a programas de educação eficazes, eficientes e universais.

MÉTODO

Adotou-se para este estudo a pesquisa social exploratória estratégica de abordagem qualitativa, tipo de investigação que oportuniza analisar os aspectos relevantes à subjetividade do sujeito e as inter-relações entre indivíduo, instituição e processos sociais que compreendem tanto a singularidade quanto a pluralidade dos processos do contexto histórico e das políticas públicas e sociais no qual o sujeito está inserido1212. Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6a ed. São Paulo: Altas, 2008.)-(1414. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2013. p. 61-78..

Para Turato1515. Turato ERT. Tratado da metodologia clínico-qualitativa. Petrópolis: Vozes ; 2003., quando se opta pela abordagem qualitativa de pesquisa, “somente a entrevista de questões abertas, ou seja, marcada por uma relação apenas proposta de tópicos, sem delimitar respostas pré-estabelecidas, é compatível com a própria definição de pesquisa qualitativa” (p. 315-6).

Tomou-se como campo de estudo o curso de Medicina de uma Ifes da Região Centro-Oeste do Brasil, implantado em 1960, e que já participou de vários processos governamentais de reformulação curricular, como o Programa Nacional de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed) em 2003, e o Programa Nacional de Reorientação Profissional em Saúde (Pro Saúde) 1 e 2, nos anos de 2005 e 2008, respectivamente.

Foram convidados a participar da investigação docentes efetivos de todos os departamentos do ciclo profissional do curso de Medicina. Excluíram-se os professores com contratos temporários, os não médicos e aqueles em licença ou férias quando da realização da pesquisa.

O convite foi realizado considerando dois grupos de docentes: o primeiro (G1) foi composto por docentes que ingressaram na instituição há mais de dez anos, e o segundo (G2), pelos contratados há menos de dez anos.

No que concerne ao procedimento inicial para a coleta dos dados, fez-se um sorteio aleatório, e dez professores selecionados de cada grupo foram convidados por e-mail e telefone. Para a obtenção dos dados, o pesquisador realizou entrevistas semiestruturadas por meio do aplicativo Zoom, as quais ocorreram após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Utilizou-se a seguinte pergunta norteadora para a entrevista, com vistas a compreender as percepções de aspectos da atuação docente e identificar correspondências aos papéis propostos por Harden e Lilley:

  • Quais são os papéis/as funções que o professor de Medicina exerce na docência?

Os papéis considerados por Harden e Lilley não foram apresentados aos entrevistados, visto que o objetivo era conhecer a percepção individual dos professores sobre os papéis que desempenham na docência.

Os dados coletados foram gravados e transcritos na íntegra e de forma literal para facilitar a organização e a interpretação dos resultados. Para o exame dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo na modalidade temática1313. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.),(1414. Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2013. p. 61-78.),(1616. Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. 279 p..

A análise temática refere-se a como o material qualitativo se comporta em um feixe de relações, que pode ser compreendida por meio de uma palavra ou frase, que designa determinado tema que compõe uma comunicação expressa por núcleos de sentido que a posteriori torna-se objeto analítico. A análise temática foi realizada em três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos, e intepretação1313. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014..

Por se tratar de uma pesquisa de cunho qualitativo, não houve preocupação com a obtenção de uma amostragem numericamente significativa1717. Bauer MW, Aarts B. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos. In: Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes ; 2002.. A realização das entrevistas foi interrompida quando se passou a perceber a existência da saturação dos dados1818. Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica. 2008;24(1):17-27 [acesso em 10 jan 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 311X2008000100003&lng=en&nrm=iso .
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
. A identidade dos sujeitos foi preservada pelo uso da palavra entrevistado (E) e pelo número de identificação subsequente.

A pesquisa obedeceu a todos os princípios e postulados éticos da Resolução CNS nº 466/20121919. Brasil. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2012.. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição pesquisada, sob o Parecer nº 4.713.432/2021.

RESULTADOS

Foram entrevistados dez participantes, sendo seis docentes do G1, com mais de dez anos de atuação (entrevistados 1 a 6), e quatro do G2, com menos de dez anos (entrevistados 7 a 10), todos do ciclo clínico profissional. Dos participantes do G1, três foram homens (50%) e três mulheres (50%), com idade média de 58 anos. Do G2, foram três homens (75%) e uma mulher (25%) com média de idade de 38 anos.

A inserção em cada papel docente foi organizada com base na percepção de cada professor, para identificar o posicionamento individual para os papéis correspondentes e, assim, entender se há diferenças entre a percepção dos dois grupos pesquisados. Buscou-se compreender se os professores que adentraram na carreira docente após a homologação das DCN22. Dunn KE, Rakes GC. Teaching teachers: an investigation of beliefs in teacher education students. Learn Environ Res. 2011;14(1):39-58 [acesso em 16 nov 2021]. Disponível em: Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10984-011-9083-1 .
https://link.springer.com/article/10.100...
para os cursos de Medicina possuem uma visão diferente dos que já atuavam antes da entrada em vigor das DCN.

Em ambos os grupos, observou-se que os professores entendem que a atuação na docência contempla todos os papéis que Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018. propuseram em 2018. Verificou-se também que o tempo de exercício da docência não interferiu nos resultados obtidos, visto que os dois grupos possuem aproximadamente a mesma percepção sobre os papéis do professor. A única diferença observada entre os grupos foi a percepção do G2 de que “ter disponibilidade emocional” é também um papel do professor. Além disso, os professores investigados consideram também que são responsáveis pelo ensino de valores éticos e humanísticos, conforme pode ser visualizado no Quadro 2.

Quadro 2
Papéis do professor de Medicina segundo os grupos entrevistados, 2022.

Além disso, quando se comparam os papéis docentes elencados pelos professores com os propostos por Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018. (Quadro 3), observa-se que, além dos oito papéis atribuídos aos docentes, os professores do G2 apontaram que ter disponibilidade emocional é também um papel que exercem em sua interação com os estudantes.

Quadro 3
Comparação dos papéis do professor de Medicina, 2022.

Em ambos os grupos, o primeiro papel identificado nas entrevistas foi o de provedor de ensino teórico e prático, uma função tradicional do professor no ensino médico, identificado na obra de Harden e Lilley como “provedor de informações” ou “treinador”.

Foi ressaltada a importância do ensino de atividades práticas por um entrevistado do G1:

O meu ensino é mais prático do que teórico. Eu diria que 30% teórico e 70% prático, porque eu gosto de estar ali na beira do leito, ensinando exame neurológico, no ambulatório, discutindo casos, mostrando exames, discutindo exames, mostrando como se faz uma receita (E4).

Um professor do G2 ponderou sobre o papel de docente e de preceptor: “Eu atuo na sala de aula e também no estágio supervisionado. Então eu acabo assumindo tanto o papel de docente quanto o de preceptor” (E9).

Sobre o ensino de atividades práticas, a realização de atividades de assistência e/ou extensão foi considerada imprescindível para a aprendizagem da prática médica: “Para ensinar a prática, o professor precisa da extensão” (E3). No mesmo sentido, ressaltou-se que os docentes têm “as funções de extensão nas atividades ligadas com os acadêmicos, de ações na comunidade [...]. Papel mais importante, direto com o aluno na atividade prática” (E1).

O segundo papel identificado por ambos os grupos foi o do professor de “valores éticos e humanísticos”. No G1, houve unanimidade na percepção da importância do professor como propagador do ensino voltado para o respeito à ética: “Eu acho que nós temos que passar também a ética da profissão médica. Acho que o professor [...] ensina sobre relacionamento médico paciente, sobre postura ética, técnicas de abordagem do paciente” (E4).

Ao abordar a questão humanística, um docente ressaltou: “Penso que um papel importante dos professores seria o ensino das ações humanísticas. Na forma de contato com o paciente, na forma de entender suas expectativas, de como elaborar os processos de formação” (E1).

Para esse grupo, houve também a percepção de que valores éticos e humanísticos não se vinculam apenas à relação médico-paciente, mas também à valorização do comportamento ético do médico perante as ações praticadas em sociedade.

Um dos professores do G2 demonstrou a preocupação em tornar o médico um profissional com valores humanos de cuidado, respeito e preocupação com a condição do paciente:

Na docência [...] a gente tem uma questão a mais que é o trabalho na humanização, na construção de um profissional que vai atender de uma forma humanizada. [...] A gente trabalha a formação do médico em um ser humano apto a lidar de uma forma afetuosa com a pessoa que está doente (E7).

O papel docente, portanto, vai além de proporcionar aos estudantes os conteúdos teóricos e a forma como deverão exercer as atividades e os comportamentos práticos: “Acho que é nosso papel resgatar a formação humanizada, formar a pessoa para tratar seres humanos e não só capacitar no conteúdo” (E7).

O terceiro papel referido pelos professores foi a competência didática, considerada imprescindível à ação docente, além da necessidade de atualização constante nas questões que envolvem a docência. Foi considerado que o docente “Precisa se qualificar como professor nas estratégias de ensino” (E3) e “Gostar de novas formas de metodologia” (E2).

Também no G2, um professor manifestou-se sobre a necessidade da competência didática: “Todo docente vai ter preocupação com conteúdo, didática, metodologia, é uma condição normal, mas cabe ao docente se preparar”. Ao se posicionar sobre como desenvolver essa capacidade, foi assinalado que o professor deve

Ser didático, trabalhar metodologias ativas que vão instigar a independência do aluno quando estiver sozinho. Procurar adaptar o seu conteúdo ao público - dou aula para o quarto ano -, pensar no que uma pessoa de medicina no quarto ano é capaz de entender (E10).

Houve referência ao incentivo à mudança nas estratégias de ensino: “Já há algum tempo que a gente tenta trabalhar com metodologias ativas com maior participação dos alunos” (E6). E também clareza quanto ao alcance de novas tecnologias que podem potencializar o ensino “se utilizadas de forma planejada e sistemática. Caso contrário, servirão apenas como pirotecnia disfarçada de inovação” (E10).

Outro papel identificado foi o de ser modelo para os discentes. Para os dois grupos, o professor atua sendo um exemplo para o estudante, que vislumbra, nas ações e práticas docentes, formas de ser, comportar e agir: “É na assistência que o aluno vê a atitude do professor enquanto modelo. Então é lá que ele acompanha o atendimento, vê como se conversa com o paciente, como se faz o exame físico” (E2).

Ao considerar o professor como modelo, um docente comparou a relação professor-aluno com a relação pais-filhos: “O professor é um modelo para os estudantes, assim como os pais para os filhos. [...] Não adianta falar para os alunos que o melhor é o parto normal se na prática você faz cesárea” (E3).

Percebe-se que os professores se preocupam não somente com os ensinamentos teóricos transmitidos em aulas, mas também com as ações exercidas na prática cotidiana, pois acreditam que os alunos estão sempre vislumbrando nos docentes exemplos dos quais podem extrair meios e modos de agir.

Os professores com mais de dez anos de atuação (G1) preocupam-se tanto com o modo como os alunos vão vê-los como um modelo para seguir quanto com o seu comportamento como profissional. Sobre esse papel, houve a percepção de que a vivência do professor e o seu comportamento são relevantes para o ensinamento e a construção do aluno: “O papel do professor médico vai além do conhecimento técnico. Ele põe muita vivência dele, como ele se porta na medicina. Exerce um papel de passar para o aluno o sentido de responsabilidade, de empatia com o sofrimento do paciente” (E4).

Os professores mais experientes (G1) mostraram possuir uma visão realista da atuação docente quando consideraram que os modelos podem ser tanto positivos quanto negativos:

Os alunos tendem a se espelhar nos seus professores. É importante que estejamos atentos a isso, e ele vai se espelhar tanto no ponto de vista positivo quanto nas outras situações de negligência que possam acontecer durante as atividades de ensino (E1).

Os alunos vão querer se espelhar. Eu creio que é essa postura de como você atua dentro do curso, da sua profissão, como são seus valores, a postura frente a um paciente, a hierarquias, a responsabilidades. Exemplo de entregar notas, de dar as aulas. [...] Muitas vezes a gente tem falhas, somos humanos, mas creio que, se você for bem verdadeiro, os alunos vão perceber que, apesar das limitações, você é verdadeiro e gosta de ensinar (E4).

Nos professores mais jovens (G2), as respostas seguem o mesmo sentido das apresentadas pelo G1, havendo tanto a visão do professor que sempre é observado pelos alunos quanto a visão dos pontos positivos e negativos do docente que podem existir na docência ou na atuação médica:

Modelos podem ser bons ou ruins. Podem ser ruins porque neles você pode ver algo e não querer ser aquilo. Tipo assim, estou acompanhando um professor no ambulatório, e esse professor não é educado com o paciente, é antiético, então não quero esse tipo de perfil para mim. [...] Esse seria o exemplo negativo (E8).

Um entrevistado ressaltou a importância de o professor colocar a “mão na massa” com os estudantes, ou seja, conduzi-los a agir corretamente. Para tanto, primeiramente o docente deverá realizar o procedimento, e, em seguida, caberá ao discente adotar comportamento semelhante. Dessa forma, o professor servirá de espelho para a ação do estudante, que terá um modelo no qual poderá se estruturar e para entender como deve agir e se comportar perante o paciente:

A gente acaba ensinando [...] eu, por exemplo, tenho sempre uma forma semiestruturada e aí geralmente a primeira vez eu faço o atendimento, e eles me veem atendendo. E depois eles atendem para ter aquela segurança que vão fazer algo que já viram fazer (E9).

O quinto papel identificado pelos dois grupos foi o de “facilitador/mediador da aprendizagem” e de “tutor/mentor”. No G1, identificou-se a existência do papel do tutor, visto que os alunos que têm acesso a determinado professor podem aproveitar a experiência e os ensinamentos dele para definir a própria trajetória após a faculdade. O professor deve “Ser como um tutor, saber apoiar esse aluno, poder se envolver com outras questões e saber se posicionar” (E2).

No G2, houve o entendimento do papel de mentor/tutor como a condição em que o docente pode colaborar quando o aluno o busca para tomar decisões em sua vida estudantil: “Outro dia [...] um aluno falou assim: ‘O que o senhor acha que eu faço para o internato? O que eu faço para os meus estágios profissionais? Foco em estudar? [...] Faço monitoria? Como eu estudo para residência?’. Então, é orientação geral” (E8).

Para um professor do G1, “tem o famoso papel do facilitador” (E6). Um integrante do G2 assinalou que “O docente acaba sendo um facilitador do processo de ensino e aprendizagem” (E9). Outro apontou o papel de facilitador como exercício de mediação pedagógica (E10).

O sexto papel identificado nas respostas dos docentes de ambos os grupos foi o de “pesquisador”: “Um docente tem que trabalhar com pesquisa. Trabalha também com alguns alunos em iniciação científica que é outra coisa importante [...] ter pelo menos uma parte do trabalho dele voltado para a pesquisa” (E2).

Para um entrevistado, o papel do professor pesquisador deveria ser o de considerar a pesquisa em medicina como condição para qualificar e melhorar o ensino: É importante que o professor pesquise ou participe de pesquisa. Porque a pesquisa qualifica o ensino, e o ensino qualifica a pesquisa” (E3).

O sétimo papel foi o de ser um profissional, identificado nas falas como o profissionalismo do professor, um dos papéis pensados por Harden e Lilley. Houve manifestação sobre a construção da imagem pública do professor: “É na assistência, área principalmente prática, que ele vai mostrar a questão do profissionalismo” (E2). Outro docente assim se posicionou:

Um papel importante é ensinar como se relacionar com a própria sociedade, como deve ser a postura de um médico na sociedade, já que existe uma demanda grande de necessidades de opiniões do médico, e ele precisa aprender a se posicionar frente às situações, quer seja com os estudantes, quer seja com os familiares de pacientes, quer seja com a imprensa, entes públicos (E1).

O oitavo e último papel identificado no G1 foi o de “gestor”, também indicado por Harden e Lilley. Para um entrevistado, o professor “Trabalha com essa área administrativa [...] com várias pessoas diferentes”, ou seja, é outra função que os professores possuem dentro da instituição, uma vez que lhes cabe exercer funções administrativas nas Ifes.

O papel de gestor não foi identificado no grupo dos professores menos experientes (G2). Entretanto, nesse grupo identificou-se um papel não descrito por Harden e Lilley: a capacidade de ter disponibilidade emocional para com os estudantes. Esse papel diz respeito ao fato de o professor, além das atividades de ensino, pesquisa e extensão, competência didática etc., ser solicitado pelos estudantes para uma função afetiva:

Eu tive quatro estudantes que quase tentaram suicídio. [...] entraram em contato comigo para conversar. Desabafaram, e eu pensei: “Não dá pra dissociar, pois o professor acaba sendo um profissional terapêutico tipo psicólogo, psiquiatra”. [...]. A gente pode ser agente de transformação e de mudança, até de perspectiva de sobrevivência (E8).

Segundo esse mesmo entrevistado, o professor “acaba tendo uma função de orientador, não só de pesquisa e projetos de extensão e coisas técnicas, mas de vida mesmo” (E8). Seria uma função de apoio para que o estudante possa se sentir seguro e confiante como sujeito da sua própria trajetória no curso de Medicina e até na vida pessoal.

Apesar de os professores, antes de serem entrevistados, não terem sido apresentados aos papéis atribuídos por Harden e Lilley à função docente, quase todos esses papéis foram citados como parte da atividade docente. Apenas o papel de líder não foi citado, e mencionou-se o de avaliador dentro da competência didática, porém sem ênfase. Além desses, acrescentou-se a necessidade de estar disponível emocionalmente para os estudantes como um novo papel docente.

DISCUSSÃO

O objetivo deste trabalho foi identificar os papéis que os professores de Medicina de uma instituição federal de ensino consideram que exercem na prática docente. A partir dos resultados, buscou-se averiguar se os papéis detectados em si próprios pelos entrevistados são compatíveis e correspondem aos oito papéis do professor de Medicina pensados por Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018..

Esta investigação foi realizada em uma universidade fundada em 1960 e que já passou por várias reformulações curriculares e participou de programas governamentais de reestruturação da formação profissional em saúde na primeira década dos anos 2000 (Promed e Pro Saúde), fatos que devem ser levados em consideração quando se discutem os resultados obtidos. As referidas reformulações propiciaram oportunidade de desenvolvimento aos docentes com a realização de atividades com essa finalidade, e, por isso, a percepção que os professores apresentaram sobre seus papéis pode ter tido essa influência. Sabe-se que a participação em processos de reformulação pode contribuir para a ampliação da visão dos professores sobre as questões que afetam o processo ensino-aprendizagem.

Verificou-se que os professores de Medicina investigados conhecem os diversos papéis que desempenham e têm consciência da evolução e importância deles, mesmo sem terem sido apresentados a eles anteriormente. De acordo com Castilla Luna e López De Mesa55. Castilla Luna M, López De Mesa C. Los roles del docente en la educación médica. Educación y Educadores. 2007;10(1):105-13 [acesso em 10 jan 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0123-12942007000100009 .
http://www.scielo.org.co/scielo.php?scri...
, os professores de Medicina exercem vários papéis em seu cotidiano de trabalho, e todos merecem atenção e reconhecimento.

Os papéis apontados pelos docentes coincidem com os de Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018., embora não tenham sido citados exatamente com as mesmas palavras. Os significados das respostas, entretanto, revelaram papéis, características e descrições que se aproximam em muito da proposta dos autores tomados como referência nesta pesquisa.

Os docentes pesquisados têm incorporada a noção de que, para ser um bom professor, não basta apenas dominar o conteúdo a ser ministrado e que o docente de Medicina é mais do que um instrutor de aulas teóricas ou práticas. Pelo contrário, cumpre diversos papéis além do de provedor de conteúdo teórico que não é visto como o mais importante. Os professores ressaltaram o papel docente no ensino prático e clínico como muito significativo, bem como o de modelo e exemplo no local de trabalho e no ensino2020. Kussakawa DHB, Antonio CA. Os eixos estruturantes das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Medicina no Brasil. Revista Docência do Ensino Superior. 2017;7(1):165-84 [acesso em 10 jan 2022]. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/rdes/article /view/2245 .
https://periodicos.ufmg.br/index.php/rde...
. A importância dada às atividades de assistência e extensão, relaciona-se diretamente com o papel de “treinador” pensado por Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018., pelo qual se espera que o professor guie o aluno rumo ao desenvolvimento das habilidades necessárias ao exercício da medicina.

Severino2121. Severino AJ. Preparação técnica e formação ético-política dos professores. In: Barbosa RL. Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Unesp; 2003. p. 71-89. e Souza2222. Souza RCCR. Qualidades epistemológicas e sociais na formação, profissionalização e prática dos professores. In: Magalhães SMO. Poiésis e Práxis: formação, profissionalização, práticas pedagógicas. Goiânia: Kelps; 2014. p. 73-86. discorrem sobre os saberes essenciais aos docentes, como os conteúdos específicos que se referem ao conhecimento relacionado à ciência, ao saber, porém não de forma mecanicamente memorizada e sim no sentido amplo de assimilação e construção do conhecimento.

Quando se compararam os resultados entre os dois grupos entrevistados, não foram encontradas diferenças consideráveis, fato que mostra que tanto professores mais experientes (G1) quanto os com menor tempo de carreira (G2) possuem percepções semelhantes acerca de seus papéis. Essa ausência de descompasso entre os dois grupos é um fator positivo, pois fica claro que os professores mais antigos incorporaram em sua prática os novos papéis incentivados pelas DCN. Verifica-se que as recomendações das DCN vêm sendo observadas pelos docentes entrevistados, a partir da percepção de que o professor de Medicina não foi considerado apenas como detentor de conhecimentos, mas como um modelo que, por meio de múltiplos papéis, auxilia o aluno na construção do próprio aprendizado99. Costa NMSC, Cardoso CGLV, Costa DC. Conceptions about the good professor of medicine. Rev Bras Educ Med. 2012;36(4):499-505 [acesso em 10 nov. 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/Yhj4TXtfCXZ5mjKrr8TR8Tf/?format=pdf⟨=pt .
https://www.scielo.br/j/rbem/a/Yhj4TXtfC...
.

A única diferença averiguada entre os dois grupos foi no oitavo e último papel atribuído aos docentes. O G1 entende que ser gestor é um papel dos professores, o que está de acordo com Harden e Lilley. Tal perspectiva pode ser atribuída ao maior tempo de experiência docente desse grupo de professores. Nas Ifes brasileiras, uma das funções assumidas pelos professores, geralmente por aqueles com mais anos de docência, é a de gestor/administrador, exercida quando se assumem cargos de diretor de unidade acadêmica, de coordenador de curso e de comissões administrativas. Esse papel não foi citado pelos professores do G2, com menos tempo de docência.

Os professores do G2, por sua vez, referiram-se a um papel não citado por Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018. ligado à proximidade afetiva com os estudantes: ter disponibilidade para as questões emocionais que perpassam a vida dos estudantes. Foi considerado um papel docente, reflexo dos tempos atuais. Como os professores desse grupo são os mais jovens, os estudantes podem se sentir mais próximos afetivamente e, identificados com o professor que admiram, aproximam-se em busca de encaminhamentos para a vida acadêmica e até mesmo pessoal.

Essa percepção de professores mais novos na carreira docente remete ao que foi discutido por Severino2121. Severino AJ. Preparação técnica e formação ético-política dos professores. In: Barbosa RL. Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Unesp; 2003. p. 71-89. e Souza2222. Souza RCCR. Qualidades epistemológicas e sociais na formação, profissionalização e prática dos professores. In: Magalhães SMO. Poiésis e Práxis: formação, profissionalização, práticas pedagógicas. Goiânia: Kelps; 2014. p. 73-86. sobre a necessidade da formação docente como uma formação humana em sua integralidade, como processo libertador, quando o professor não deveria somente para dar aulas, mas sobretudo colaborar com a construção de significados educativos de toda situação humana coletiva.

A percepção da necessidade de ter disponibilidade emocional para se relacionar com os estudantes é, na verdade, um processo de ressignificação da atividade docente. Para isso, o professor vai necessitar de tempo e amadurecimento para conseguir exercer uma função docente mediadora, que compreenda a subjetividade individual dos estudantes2323. Arnoni MEB. Mediação dialético-pedagógica e práxis educativa: o aspecto ontológico da aula. Revista Educação e Emancipação. 2012;5(2) 58-82.),(2424. Fernandes S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectiva sobre solidariedade, opressão e revolução. Educação e Sociedade. 2016;37(135):481-96.. Essa percepção dos professores remete ao que foi considerado em estudo sobre mentoria na área da saúde, visto que favorece diálogos, vivências e compartilhamentos além dos acadêmicos e reconhece ambos, estudantes e mentores como protagonistas do processo formativo2525. Santos GM, Batista SHSS. Monitoria acadêmica na formação em/para a saúde: desafios e possibilidades no âmbito de um currículo interprofissional em saúde. ABCS Health Sci. 2015;40 (3):203-7.. Trata-se de um contexto em que o compartilhamento de experiências e de conhecimentos é visto como parte da contribuição individual para o crescimento coletivo2525. Santos GM, Batista SHSS. Monitoria acadêmica na formação em/para a saúde: desafios e possibilidades no âmbito de um currículo interprofissional em saúde. ABCS Health Sci. 2015;40 (3):203-7..

Os docentes pesquisados também se veem como modelos a serem seguidos pelos estudantes, outro papel apregoado por Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018.. Modelo pode ser definido como “o profissional que serve de exemplo aos estudantes pelas suas qualidades positivas, sendo imitado por eles por demonstrar habilidades e características pessoais que os impressionam e inspiram”2626. Silva LC, Colares MFA, Panúncio-Pinto MP, Troncon LEA. O professor como modelo aos seus estudantes: perspectivas da área da saúde. Sci Med. 2019;29(4):e35862..

Os dois grupos entrevistados possuem uma preocupação quanto ao modo como os alunos vão vê-los enquanto modelo para seguir e se espelhar. Assim, entendem que a sua condição dentro da sala de aula pode influenciar positiva ou negativamente os estudantes e, por essa razão, é preciso que tenham consciência da forma como vão agir, seja durante a sua atuação teórica ou prática. O convívio e interação com modelos positivos “inspira os estudantes e contribui de forma decisiva para sua educação e seu desenvolvimento profissional e pessoal”2626. Silva LC, Colares MFA, Panúncio-Pinto MP, Troncon LEA. O professor como modelo aos seus estudantes: perspectivas da área da saúde. Sci Med. 2019;29(4):e35862.) (p.1).

Os modelos positivos podem contribuir para melhorar o aprendizado dos alunos além do conhecimento científico, como na prática de habilidades de comunicação e de questões éticas, o que é imprescindível para o crescimento profissional e pessoal daqueles que pretendem ser médicos, podendo influenciar até na escolha da especialidade e nos rumos da carreira2626. Silva LC, Colares MFA, Panúncio-Pinto MP, Troncon LEA. O professor como modelo aos seus estudantes: perspectivas da área da saúde. Sci Med. 2019;29(4):e35862..

Também foi atribuída importância à competência didática dos professores, outro papel pensado por Harden e Lilley1111. Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018., considerada como condição sine qua non para a função docente por vários autores33. Zabalza MA. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed; 2004.),(2727. Mileder LP, Schmidt A, Dimai HP. Clinicians should be aware of their responsibilities as role models: a case report on the impact of poor role modeling. Med Educ Online. 2014;19:234-79.),(2828. Masetto MT. Docência na universidade. Campinas: Papirus; 1998.. A competência didática se vincula à constante atualização pedagógica, característica ressaltada pela importância dada às novas metodologias e inovações no ensino. O modo como a aplicação da didática vai ocorrer e a sua funcionalidade são importantes condições para o papel do docente, pois podem influenciar na compreensão, na absorção e no entendimento do ensino repassado ao aluno.

Para Zabalza33. Zabalza MA. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed; 2004., a docência deve ser reconhecida como trabalho complexo que exige formação específica, em que o desenvolvimento pessoal e o profissional andem atrelados a um processo de capacitação do indivíduo para as demandas da sociedade complexa.

Outros papéis docentes foram pouco ressaltados, como os de avaliador e líder. O papel de avaliador, embora intrínseco à figura do professor, não foi enfatizado pelos entrevistados, o que também aponta a evolução do ensino hodierno, que tende a se preocupar mais com os processos de construção do ensino. Nessa forma de encarar a avaliação, o docente é uma parte do processo, com suas práticas pedagógicas e o seu acompanhamento durante a construção de conhecimento2424. Fernandes S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectiva sobre solidariedade, opressão e revolução. Educação e Sociedade. 2016;37(135):481-96..

Há professores que assumem ser resistentes à proposta formativa de avaliação por causa de desconhecimento, insegurança na aplicação de outros recursos, autoconfiança em suas estratégias de avaliação, acúmulo de responsabilidades ou, até mesmo, conveniência2929. Nóvoa A. Os professores e a sua formação num tempo de metamorfose da escola. Educação & Realidade. 2019;44:(3): 1-15. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-623684910.
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
. Na perspectiva formativa, a avaliação não foca resultados pontuais, mas o acompanhamento do desenvolvimento do estudante.

Para que as novas necessidades da educação médica se sustentem e haja qualidade no ensino, é necessário revisitar as atitudes dos professores de Medicina em relação às suas atividades, aos processos de ensino e à aprendizagem dos discentes3030. Nawabi S, Khan RA, Yasmin R. Teachers’ perceptions of their roles in medical colleges. AHPE. 2015:1:24-9 [acesso em 10 fev 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Shazia.pdf .
https://www.researchgate.net/profile/Sha...
)-(3232. Roberts M. Producing tomorrow’s doctor: the new challenge for today’s undergraduate medical curriculum. Journal of Vocational Education and Training. 2004;56(4):467-84 [acesso em 17 out 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13636820400200265 .
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1...
. Mudanças de atitude exigem autoavaliação e consciência dos papéis que cada professor exerce e de sua responsabilidade como educador, no desenvolvimento de atitudes de acordo com cada um. O desenvolvimento docente pode ser uma ferramenta relevante na organização da dinâmica pedagógica institucional, tanto em iniciativas oficiais quanto nas informais3333. Steinert Y. Faculty development: from rubies to oak. Med Teach . 2019:26:1-7..

Como uma pesquisa qualitativa, com amostra não randomizada e não representativa, os resultados não podem ser generalizados, o que constitui uma limitação deste estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa pôde determinar o conhecimento que professores de Medicina da instituição em estudo têm sobre os papéis que desempenham em sua prática docente, quais são eles e sua importância em relação ao processo ensino-aprendizagem.

Os dois grupos entrevistados tiveram posicionamentos semelhantes quanto aos papéis do professor, como o de proporcionar ensinamentos teóricos e práticos aos alunos, e também quanto ao papel de apoio para que o discente possa se sentir seguro e confiante como agente da própria trajetória. Ou seja, têm clareza da influência e do papel de modelo que exercem na vida dos estudantes. Além disso, os professores pesquisados têm incorporada a noção de que, para ser um bom professor, não basta apenas dominar o conteúdo a ser ministrado e que o professor de Medicina cumpre diversos papéis além do de provedor de conteúdo teórico e prático. Houve uma diferença averiguada entre os dois grupos: os docentes mais experientes consideraram que ser gestor é um papel dos professores, e, no caso dos mais jovens, houve a percepção da necessidade de disponibilidade emocional para lidar com questões pessoais dos estudantes.

Pode-se afirmar que a presente pesquisa trouxe resultados que demonstram conformidade com outros estudos que vêm sendo desenvolvidos com intuitos semelhantes. Contudo, esta investigação merece uma extensão futura que aborde os desafios para o exercício pleno de todos os papéis desejáveis de um docente e os empecilhos para a construção dessa consciência.

Faz-se necessário que o desenvolvimento do corpo docente das escolas médicas possa ser inserido nos planos de desenvolvimento institucional, para propiciar ambientes educacionais que estimulem e reconheçam a liderança, a inovação e a excelência, de modo que o professor desenvolva suas potencialidades, sua capacidade de criar soluções e respostas adequadas, a partir de sua condição básica de agir, conjugando crenças, valores e conhecimentos.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Brasil. Resolução n° 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 23 jun 2014. Seção 1, p. 8-11.
  • 2
    Dunn KE, Rakes GC. Teaching teachers: an investigation of beliefs in teacher education students. Learn Environ Res. 2011;14(1):39-58 [acesso em 16 nov 2021]. Disponível em: Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10984-011-9083-1
    » https://link.springer.com/article/10.1007/s10984-011-9083-1
  • 3
    Zabalza MA. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed; 2004.
  • 4
    Lima-Gonçalves E. O processo ensino-aprendizagem em medicina. In: Lima-Gonçalves E. Médicos e ensino da medicina no Brasil. São Paulo: Edusp; 2002.
  • 5
    Castilla Luna M, López De Mesa C. Los roles del docente en la educación médica. Educación y Educadores. 2007;10(1):105-13 [acesso em 10 jan 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0123-12942007000100009
    » http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0123-12942007000100009
  • 6
    Batista SHSS, Jansen B, Assis EQ, Senna MIB, Cury GC. Formação em saúde: reflexões a partir dos Programas Pró-Saúde e PET-Saúde. Interface (Botucatu) [online]. 2015: 19 (1): 743-752.
  • 7
    Stenfors-Hayes T, Hult H, Dahlgren LO. Three ways of understanding development as a teacher. Eur J Dent Educ. 2012:16(1):e151-e157. doi: https://doi.org/10.1111/j.1600-0579.2011.00690.x.
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1111/j.1600-0579.2011.00690.x
  • 8
    Torales J. Los “doce roles del docente de medicina”: un estudio piloto de tres universidades públicas de Paraguay. Mem Inst Invest Cienc Salud. 2018;16(2): 55-64 [acesso em 10 out 2021]. Disponível em: Disponível em: http://scielo.iics.una.py/pdf/iics/v16n2/1812-9528-iics-16-02-55.pdf
    » http://scielo.iics.una.py/pdf/iics/v16n2/1812-9528-iics-16-02-55.pdf
  • 9
    Costa NMSC, Cardoso CGLV, Costa DC. Conceptions about the good professor of medicine. Rev Bras Educ Med. 2012;36(4):499-505 [acesso em 10 nov. 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/Yhj4TXtfCXZ5mjKrr8TR8Tf/?format=pdf⟨=pt
    » https://www.scielo.br/j/rbem/a/Yhj4TXtfCXZ5mjKrr8TR8Tf/?format=pdf⟨=pt
  • 10
    Harden RM, Crosby JO. Amee guide nº 20: The good teacher is more than a lecturer: the twelve roles of the teacher. Med Teach. 2000;22:334-47 [acesso em 10 jan. 2022]. Disponível em: Disponível em: https://njms.rutgers.edu/education/office_education/community_preceptorship/documents/TheGoodTeacher.pdf
    » https://njms.rutgers.edu/education/office_education/community_preceptorship/documents/TheGoodTeacher.pdf
  • 11
    Harden RM, Lilley P. The eight roles of the medical teacher: the purpose and function of a teacher in the healthcare professions. Amsterdam: Elsevier Health Sciences; 2018.
  • 12
    Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6a ed. São Paulo: Altas, 2008.
  • 13
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.
  • 14
    Minayo MCS. Trabalho de campo: contexto de observação, interação e descoberta. In: Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2013. p. 61-78.
  • 15
    Turato ERT. Tratado da metodologia clínico-qualitativa. Petrópolis: Vozes ; 2003.
  • 16
    Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. 279 p.
  • 17
    Bauer MW, Aarts B. A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos. In: Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes ; 2002.
  • 18
    Fontanella BJB, Ricas J, Turato ER. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saude Publica. 2008;24(1):17-27 [acesso em 10 jan 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 311X2008000100003&lng=en&nrm=iso
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102 311X2008000100003&lng=en&nrm=iso
  • 19
    Brasil. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2012.
  • 20
    Kussakawa DHB, Antonio CA. Os eixos estruturantes das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Medicina no Brasil. Revista Docência do Ensino Superior. 2017;7(1):165-84 [acesso em 10 jan 2022]. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/rdes/article /view/2245
    » https://periodicos.ufmg.br/index.php/rdes/article /view/2245
  • 21
    Severino AJ. Preparação técnica e formação ético-política dos professores. In: Barbosa RL. Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Unesp; 2003. p. 71-89.
  • 22
    Souza RCCR. Qualidades epistemológicas e sociais na formação, profissionalização e prática dos professores. In: Magalhães SMO. Poiésis e Práxis: formação, profissionalização, práticas pedagógicas. Goiânia: Kelps; 2014. p. 73-86.
  • 23
    Arnoni MEB. Mediação dialético-pedagógica e práxis educativa: o aspecto ontológico da aula. Revista Educação e Emancipação. 2012;5(2) 58-82.
  • 24
    Fernandes S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectiva sobre solidariedade, opressão e revolução. Educação e Sociedade. 2016;37(135):481-96.
  • 25
    Santos GM, Batista SHSS. Monitoria acadêmica na formação em/para a saúde: desafios e possibilidades no âmbito de um currículo interprofissional em saúde. ABCS Health Sci. 2015;40 (3):203-7.
  • 26
    Silva LC, Colares MFA, Panúncio-Pinto MP, Troncon LEA. O professor como modelo aos seus estudantes: perspectivas da área da saúde. Sci Med. 2019;29(4):e35862.
  • 27
    Mileder LP, Schmidt A, Dimai HP. Clinicians should be aware of their responsibilities as role models: a case report on the impact of poor role modeling. Med Educ Online. 2014;19:234-79.
  • 28
    Masetto MT. Docência na universidade. Campinas: Papirus; 1998.
  • 29
    Nóvoa A. Os professores e a sua formação num tempo de metamorfose da escola. Educação & Realidade. 2019;44:(3): 1-15. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-623684910.
    » https://doi.org/http://dx.doi.org/10.1590/2175-623684910
  • 30
    Nawabi S, Khan RA, Yasmin R. Teachers’ perceptions of their roles in medical colleges. AHPE. 2015:1:24-9 [acesso em 10 fev 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Shazia.pdf
    » https://www.researchgate.net/profile/Shazia.pdf
  • 31
    Steinert Y, Cruess S, Cruess R, Snell L. Faculty development for teaching and evaluating professionalism: from programme design to curriculum change. Med Educ. 2005:39(2):127-36.
  • 32
    Roberts M. Producing tomorrow’s doctor: the new challenge for today’s undergraduate medical curriculum. Journal of Vocational Education and Training. 2004;56(4):467-84 [acesso em 17 out 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13636820400200265
    » https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13636820400200265
  • 33
    Steinert Y. Faculty development: from rubies to oak. Med Teach . 2019:26:1-7.
  • 2
    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Kristopherson Lustosa Augusto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2022
  • Aceito
    25 Ago 2023
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com