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Abordagem da morte na graduação médica: percepções de estudantes à luz de contribuições freudianas

Resumo

Introdução:

Na sociedade ocidental contemporânea, as tentativas de evitar a morte e o sofrimento impulsionam a formação de médicos voltados para lidar majoritariamente com aspectos biológicos do adoecimento e da morte, em detrimento dos aspectos psicossociais relacionados a essas questões.

Objetivo:

Buscou-se identificar a percepção de estudantes de Medicina sobre a abordagem da morte e do morrer na graduação à luz de estudos atuais sobre a formação médica no país e algumas contribuições da teoria freudiana sobre a morte.

Método:

Trata-se de pesquisa qualitativa de caráter exploratório, desenvolvida a partir de seis grupos focais compostos por 55 estudantes de todos os períodos do curso de Medicina de uma universidade federal do interior de Minas Gerais. O material produzido foi analisado a partir do referencial de análise de conteúdo temática ou categorial, e emergiram categorias: 1. a morte na formação médica; 2. o médico diante da morte.

Resultado:

Discutir a morte e o morrer no processo formativo é falar da angústia diante da finitude. Os estudantes identificaram a abordagem da morte e do morrer na graduação, mas de forma limitada e insuficiente. Apontaram a necessidade de ampliar o contato com os temas no currículo, melhorar as metodologias utilizadas e inserir de forma obrigatória os conteúdos de cuidados paliativos. O papel do médico comporta tanto o cuidado com foco na cura quanto a assistência nas situações em que a cura não for possível. A preparação para lidar com a morte ao longo da graduação envolve concepções e experiências pessoais, experiências na graduação, acesso aos conteúdos teóricos, especificidades e aspectos subjetivos relacionados a cada situação. Os recursos mencionados para lidar com a morte, além dos estudos, foram a religiosidade e psicoterapias.

Conclusão:

Abordar a morte nos currículos de graduação em Medicina envolve grande complexidade e desafios. Do ponto de vista da realidade psíquica, os seres humanos tentam negar a morte e evitar os sofrimentos. Dessa forma, os desafios da formação e da prática médica consistem em assumir a articulação indissociável entre aspectos biológicos, culturais e psicossociais. Cuidar da vida é também cuidar da morte, e evitá-la pode desencadear maior sofrimento aos pacientes, familiares, estudantes e médicos.

Palavras-chave:
Morte; Educação Médica; Percepção

Abstract:

Introduction:

In western contemporary society, attempts to prevent death and suffering promote a medical training focused on dealing mostly with the biological aspects of illness and death, to the detriment of the psychosocial aspects related to those issues.

Objective:

The authors intended to identify medical students’ perceptions about the approach to death and dying in the light of Freudian theory about death.

Method:

This was a qualitative study with an exploratory approach, developed based on six focal groups consisting of 55 students from all the undergraduate medical school semesters from a federal university in the interior of the state Minas Gerais. The data produced was analyzed according to the thematic or category-based content analysis, from which the following categories emerged: 1- The death topic in undergraduate medical school; 2- The medical professional facing death.

Results:

To discuss death and dying in the formative process is to talk about the anguish in the face of human finitude. The students identified the approach to death and dying in undergraduate school, but in a limited and insufficient way. They indicated the need to increase contact with the topic in the curriculum, and to include, in a mandatory way, the contents on Palliative Care. The medical role encompasses both the care focused on healing and the assistance in moments when healing is not possible. The preparation to deal with death throughout undergraduate training involves personal conceptions and experiences, undergraduate practice, access to theoretical contents, specificities and subjective aspects related to each situation. The mentioned resources to deal with death, in addition to the studies, were religiosity and psychotherapy.

Conclusion:

To approach death in undergraduate medical curricula involves great complexity and challenges. From the viewpoint of psychological reality, human beings try to deny death and avoid suffering. Thus, the challenges in medical formation and practices consist in assuming the indissociable articulation between the biological, cultural and psychosocial aspects. To take care of life is also to take care of death and avoiding it may cause greater suffering to the patients, family members, students and medical professionals.

Keywords:
Death; Education; Medical; Perception

INTRODUÇÃO

Embora sejam inerentes à condição humana, a morte e o morrer, aqui compreendidos na dimensão do evento e do processo, são considerados tabus em diversas culturas e suscitam questionamentos desde os primórdios da humanidade. As visões sobre a morte passaram por mudanças e ganharam variadas interpretações de acordo com os diferentes contextos históricos e sociais, expressando perspectivas culturais e fatores psicossociais específicos de diferentes povos. Na sociedade ocidental contemporânea, as questões relacionadas à morte são relegadas a um segundo plano, na tentativa de evitar o temor e a angústia diante da finitude. Isso pode ser observado também na história da medicina, em que a morte vai assumindo a conotação de fracasso profissional, e, cada vez mais, os processos a ela vinculados vão sendo direcionados para os hospitais e centros de terapia intensiva a fim de afastá-los da realidade humana11. Alves ÁTLS, Alves FV, Melo EV, Oliva-Costa EF. Evaluation of medical interns’ attitudes towards relevant aspects of medical practice. Rev Assoc Med Bras. 2017;63(6):492-9.)-(55. Ariès P. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro; 2003. p. 15-25..

A modernidade marca uma radical separação entre vivos e mortos, colocando mortos e moribundos cada vez mais distantes do contexto das cidades e do convívio social. Impulsionada pelo processo de industrialização e intensa urbanização e pela revolução higienista, na modernidade o corpo assume valor como instrumento de produção, significando adoecimento e morte como motivos de fracasso, vergonha e improdutividade66. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estud Psicol. 2006;11(2):209-16.,77. Hohendorff JV, Melo WV. Compreensão da morte e desenvolvimento humano: contribuições à psicologia hospitalar. Estud Pesqui Psicol. 2009;9(2):480-92.. Especialmente para as classes trabalhadoras, a saúde é tomada como sinônimo de corpo apto ao trabalho, e muitos avanços científicos e tecnológicos são atrelados às tentativas de evitar a morte, num esforço de negá-la como parte da própria existência66. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estud Psicol. 2006;11(2):209-16.),(77. Hohendorff JV, Melo WV. Compreensão da morte e desenvolvimento humano: contribuições à psicologia hospitalar. Estud Pesqui Psicol. 2009;9(2):480-92..

A partir desse contexto, os profissionais de saúde passam a ser formados para lidar prioritariamente com aspectos técnicos e biológicos circunscritos aos processos de adoecimento e morte. Para além do compromisso de aliviar o sofrimento, a formação e prática dos profissionais de saúde se concentram na cura de doenças, minimizando a importância dos aspectos psicossociais que envolvem o contato mais íntimo com a pessoa que sofre, sua família, os afetos relacionados aos contextos de adoecimento e morte, e os afetos que esta suscita no profissional de saúde66. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estud Psicol. 2006;11(2):209-16.. O médico figura como ator principal da luta contra a morte, a qual deve ser vencida por ele a todo custo88. Kovács MJ. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1992.),(99. Moritz RD. Os profissionais de saúde diante da morte e do morrer. Rev Bioét . 2005;13(2):51-63.. Especialmente nas situações que apontam o final da vida, o cenário médico atual traz uma forte ancoragem aos compromissos de prolongamento da vida, sem, no entanto, uma adequada ponderação a respeito dos limites das práticas e intervenções utilizadas para essa finalidade e que podem muitas vezes resultar em um processo doloroso para o paciente e seus familiares, deixando de lado um conjunto de possibilidades de atuação e decisões relacionadas à morte e ao morrer que envolvem o próprio paciente e sua família88. Kovács MJ. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1992.),(99. Moritz RD. Os profissionais de saúde diante da morte e do morrer. Rev Bioét . 2005;13(2):51-63..

A complexidade de lidar com a morte e o morrer aponta questões históricas e sociais em sua relação indissociável com questões psíquicas e os sentidos que se constroem para a finitude, e, por isso, este estudo recorreu também a algumas proposições freudianas sobre a morte e as atitudes diante desta1010. Freud S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Freud S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 120-41.)-(1212. Freud S, Souza PC. O mal-estar da civilização (1930). São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras; 2011.. Como médico, Freud desenvolveu uma complexa obra que buscou analisar o sofrimento humano e suas manifestações para além do funcionamento biológico do organismo. Suas vastas contribuições marcaram para sempre a compreensão sobre a realidade psíquica, e este estudo se ateve a um recorte pontual vinculado às suas discussões sobre a morte e o sofrimento diante dela.

Para Freud, o processo civilizatório1212. Freud S, Souza PC. O mal-estar da civilização (1930). São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras; 2011.) exigiu dos seres humanos uma renúncia constante de seus desejos, uma vez que as necessidades individuais e as exigências da cultura estarão sempre em um conflito sem possibilidades de conciliação. Em relação à busca de satisfação dos desejos, decorre um tensionamento que Freud nomeou como mal-estar, condição inerente à existência humana. Dessas discussões sobre “o mal-estar na civilização”1212. Freud S, Souza PC. O mal-estar da civilização (1930). São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras; 2011., Freud apontou que os sofrimentos que constantemente ameaçam os seres humanos são provenientes de três fontes: do mundo externo, mais especificamente da força da natureza; da fragilidade do organismo; e dos relacionamentos com outras pessoas, considerando a precariedade das formas como são regulados os vínculos entre as pessoas na família, no Estado e na sociedade. A impossibilidade de dominar a natureza e o organismo humano como parte desta obriga a reconhecer tanto a transitoriedade e os limites deste quanto o inevitável da finitude. No entanto, o conhecimento de que o organismo está fadado ao fracasso, em vez da paralisação, aponta caminhos possíveis. Se não se pode abolir todo sofrimento, é possível abolir parte dele e mitigar outra parte1212. Freud S, Souza PC. O mal-estar da civilização (1930). São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras; 2011.. E sobre o quanto a morte instiga os seres humanos a construir os sentidos para a vida, Freud escreveu: “Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte” (p.229)1010. Freud S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Freud S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 120-41..

Algumas discussões vêm abordando o mal-estar nas novas configurações contemporâneas e sua importância para pensar a formação e as práticas médicas diante do sofrimento humano1313. Gannam SSA. O mal-estar na formação médica: uma análise dos sintomas de ansiedade, depressão e esgotamento profissional e suas relações com resiliência e empatia [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018.),(1414. Fagundes Netto MVR, Kernkraut AM. Contribuições da psicanálise à medicina: grupo com residentes em um programa de cancerologia clínica. Rev SBPH. 2019; 22(esp.):133-56.. Nessa perspectiva, esses sofrimentos1313. Gannam SSA. O mal-estar na formação médica: uma análise dos sintomas de ansiedade, depressão e esgotamento profissional e suas relações com resiliência e empatia [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018.),(1414. Fagundes Netto MVR, Kernkraut AM. Contribuições da psicanálise à medicina: grupo com residentes em um programa de cancerologia clínica. Rev SBPH. 2019; 22(esp.):133-56.) podem ser situados: 1. no encontro com as dores e o sofrimento humano e com sua impotência diante da morte; 2. na competitividade e cultura de uma formação rígida; 3. na quebra das expectativas do que é a medicina, tendo em vista a realidade encontrada no processo de formação, na atuação profissional e na relação com o campo dos saberes médicos.

Nesse sentido, considerando a importância de um processo formativo que explore o encontro do estudante de Medicina com a morte e o sofrimento dele decorrente, este estudo buscou identificar a percepção de discentes de Medicina sobre a abordagem da morte e do morrer na graduação.

MÉTODO

Foi conduzida pesquisa qualitativa de caráter exploratório1515. Minayo MCS, Deslandes SF, Cruz Neto OGR. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 34a ed. Petrópolis: Vozes; 2015.),(1616. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 14a ed. São Paulo: Hucitec; 2014., desenvolvida a partir da realização de grupos focais (GF) com estudantes de Medicina da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), campus Centro-Oeste “Dona Lindu” (CCO), em Divinópolis, em Minas Gerais. No período de setembro a dezembro de 2019, foram realizados seis GF, tendo em média nove participantes do primeiro ao 12º período da graduação. Participaram 55 estudantes, 27 do sexo feminino e 28 do sexo masculino, e cada GF foi composto por estudantes do mesmo ano da graduação, inicialmente selecionados por sorteio e depois convidados para participar do estudo. Os GF duraram, em média, de 90 a 110 minutos. Realizaram-se os encontros em salas disponibilizadas pela universidade, os quais foram gravados e posteriormente transcritos.

A técnica de GF, valiosa na pesquisa qualitativa, produz informações a partir do processo de comunicação e interação entre participantes de grupos, criando condições de ampliar a participação deles no processo de trocas discursivas. Ademais, o GF permite a aproximação, interação e troca de saberes, experiências, percepções e sentimentos acerca das temáticas debatidas, indo além de análises individualizadas dos participantes a respeito do tema1717. Trad LAB. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis. 2009;19(3):777-96.),(1818. Gondim SMG. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia (Ribeirão Preto). 2002;12(24):149-61..

Foi elaborado um roteiro de condução dos GF que abordava aspectos relacionados aos objetivos deste estudo. A análise do material produzido seguiu o referencial da análise de conteúdo, segundo Bardin1919. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011., especificamente a análise temática ou categorial, organizada nas seguintes etapas: 1. pré-exploração, que compreende a organização do material, transcrição das gravações, leituras flutuantes e organização dos relatos; 2. seleção das unidades de análise ou unidades de significados, compreendendo a classificação do material mediante leitura exaustiva, identificação e agrupamento de assuntos que emergiram das falas dos participantes; e 3. análise final, articulando os dados analisados aos referenciais teóricos, com o intuito de responder aos objetivos fixados. Desses processos delinearam-se duas categorias: 1. a morte na formação médica; 2. o médico diante da morte.

As falas apresentadas para ilustrar os resultados foram identificadas a partir de um sistema de codificação alfanumérico, sendo o código GF utilizado para identificar os grupos focais; a numeração que se segue identifica os grupos, por ano de formação, sendo de 1 a 6; e letra M ou F designa sexo: masculino ou feminino. Todos os procedimentos éticos foram resguardados, visando preservar o sigilo dos participantes, e todos manifestaram no TCLE sua livre aceitação em participar.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSJ/CCO no ano de 2019 com CAAE nº 15627119.5.0000.5545.

RESULTADOS

A proposta de desenvolver grupos de discussão para falar da morte e do morrer escancara a complexidade e as dificuldades em torno dessas questões. Em todos os grupos, explicitaram-se essas questões tanto no silêncio e no ritmo mais lento que caracterizava o início de cada tópico de discussão e também na angústia demonstrada em diversos momentos, especialmente aqueles relacionados aos relatos de perda de familiares e pessoas próximas, quanto nos questionamentos acerca de quais seriam as maneiras mais adequadas para lidar com a morte e o processo de morrer durante a graduação e na futura prática profissional. Apesar das dificuldades em torno do tema, os estudantes se mostraram muito interessados em participar. As ricas discussões foram reunidas em categorias, de acordo com a proximidade e similaridade dos temas, e sintetizadas no Quadro 1, que apresenta as categorias e os núcleos de sentido que as compõem.

Quadro 1
Categorias e núcleos de sentido.

A morte na formação médica

Os estudantes identificaram, em diferentes momentos da graduação, conteúdos relacionados à abordagem da morte e do morrer, sendo mencionadas atividades curriculares obrigatórias, como aulas de anatomia e de comunicações de notícias difíceis; e atividades extracurriculares como simpósios; estágios promovidos por ligas acadêmicas e, principalmente a abordagem dos cuidados paliativos em projetos de pesquisa e extensão vinculados a uma disciplina optativa.

Em todos os grupos, foram apontadas dificuldades relacionadas à abordagem desses conteúdos, principalmente vinculadas ao contato limitado com o assunto no currículo, visto que a maioria das atividades que abordava o tema era extracurricular, o que impunha uma busca individual. Nos períodos iniciais do curso, relataram a ausência de aulas introdutórias ou preparatórias em torno do contato com os cadáveres no processo de aprendizagem, causando grande angústia.

A maioria das coisas que a gente citou aqui é optativa, curricular mesmo a gente tem um seminário, sei lá em qual período (GF6F).

A gente não teve uma aula de respeito ao cadáver, a gente só foi jogado no laboratório, e lide com isso sabe (GF4F).

Especialmente os estudantes dos últimos anos destacaram a deficiência no ensino de comunicação de notícias difíceis, tema considerado complexo ao envolver o equilíbrio entre envolvimento pessoal e respeito às singularidades do paciente e da família. Embora previsto no currículo, alguns grupos consideraram a abordagem insatisfatória ou até mesmo ausente: “Para a gente foi um grande improviso [a aula de comunicação de notícias difíceis], praticamente os alunos tiveram que pegar bibliografia do zero, e as aulas foram só para falar: ‘Passem por esse tema nesse período’” (GF4M).

Os estudantes de todos os anos sugeriram formas de ampliar as discussões sobre a morte e o morrer na graduação, especialmente a obrigatoriedade de conteúdos de cuidados paliativos; ampliação da carga horária de comunicação de notícias difíceis; abordagens mais práticas e promoção de rodas de conversas para troca de experiências entre professores, profissionais da saúde e acadêmicos.

Existe uma busca de todo mundo pra tentar ter algum conhecimento, um vai por optativa, outro na prática e acaba estudando. Então assim, todo mundo parece sentir essa necessidade e aí acaba buscando pelas laterais. Talvez seria essencial ter já no currículo, pra ter uma base, né? (GF6M).

Alguns problematizaram que havia um limite para o que poderia ser ofertado pela universidade e que essa preparação não deveria ser restrita ao ambiente acadêmico.

Será que a faculdade já não está oferecendo pra gente o que dá pra oferecer mesmo? (GF3F).

Mesmo que seja um pouco deficiente essa base teórica [...] não existe método de ensino que vá cobrir isso plenamente (GF4M).

O médico diante da morte

As possibilidades e os limites para lidar com a morte e o morrer aparecem relacionados ao papel do médico. Estiveram presentes tanto os posicionamentos que defendiam que o objetivo da profissão seria salvar vidas quanto aqueles que defenderam que o papel do médico seria de dar suporte técnico, auxílio e conforto mesmo quando não houvesse possibilidades de cura.

Eu quero ser médica, eu quero salvar vidas, por enquanto é um instinto primário, ajudar as pessoas que estão doentes a terem mais anos de vida, por enquanto a morte é uma coisa mais negativa (GF1F).

Eu acho que o papel do médico, além do papel de cura, caso seja impossível, você tem que tá lá pra dar algum suporte. Um suporte técnico, porque, às vezes, funciona muito como um conforto pros parentes, você fala: “Olha, infelizmente, não tinha mais o que fazer e tal”, então você tem um embasamento técnico (GF1M).

Em todos os GF, houve discussões sobre o que seria a preparação para lidar com a morte e o morrer e como esse processo dependia de um conjunto de fatores inter-relacionados, envolvendo tanto o acesso a conteúdos teóricos e experiências práticas durante a graduação quanto elementos que compunham os recursos pessoais de cada um para lidar com essas questões. Os estudantes dos últimos anos discutiram que há um processo de amadurecimento na forma de lidar com a morte na graduação, uma vez que as repetidas experiências ajudavam a aprender a lidar com a angústia envolvida na situação.

Então, eu acho que a gente vai amadurecendo a forma de lidar com aquilo. Não que a gente deixe de ficar angustiado, triste, sensibilizado com a situação, mas você aprende a se expressar diante daquilo de uma forma menos angustiante, eu acho (GF5F).

Por mais conhecimento teórico que você tenha, a prática é que vai trazer à tona todos os seus sentimentos, todas suas subjetividades, sabe? (GF6F).

Embora tenham problematizado que o médico nunca estaria completamente preparado para lidar com a morte, perceberam uma maior preparação no decorrer do curso.

Eu acho que falar que tá cem por cento preparada é muita prepotência, né?, porque cada situação é diferente, mas imagino que todo mundo aqui se sinta muito mais preparado do que nas primeiras simulações que a gente teve aqui na faculdade, principalmente por ter vivenciado no internato (GF6F).

Quanto maior sua bagagem teórica, mais segurança você tem e mais você se acha preparado, até a primeira experiência prática que você vai ter, porque nada ensina tão bem quanto a prática (GF6F).

O uso de protocolos de saúde e fontes baseadas em evidências científicas foi apontado como uma maneira de guiar a preparação para lidar com a morte, mas o profissional não deveria se limitar a eles, levando em consideração cada situação e aspectos subjetivos de cada paciente. Apontaram ainda que a conduta profissional nunca estaria dissociada das concepções pessoais, principalmente religiosas, independentemente do conhecimento médico adquirido.

Eu acho que a gente, como médico, tem que seguir protocolos, mas ao mesmo tempo não pode se esconder atrás deles (GF3M).

Então eu acho que independente do que eu aprender aqui, quando tiver que dar uma notícia dessas, primeiro eu tenho que colocar essas convicções minhas na frente, entendeu? (GF3F).

Em todos os grupos, foram discutidos os recursos de que os estudantes lançavam mão para lidar com a morte e preocupações relacionadas à prática futura. A religiosidade, em suas diversas perspectivas, apareceu em todos os GF como forma de obter melhor compreensão e aceitação sobre a morte, trazendo conforto e resignação, mas também como limitação, uma vez que a perda e a dor geravam revolta e levavam a questionamentos em torno da vontade de Deus e da própria fé: “Acho que às vezes a pessoa vê a fé como um conforto, e às vezes como uma revolta, a pessoa se revolta, às vezes até perde um pouco da fé” (GF5F).

O recurso às psicoterapias foi considerado por alguns como importante para a compreensão dos aspectos psicológicos relacionados à morte de um familiar e à própria. Mencionaram ainda que, a partir do ingresso no curso de Medicina, buscavam se concentrar nos processos biológicos do organismo como forma de compreender e justificar a morte e conseguir lidar com ela.

Discutiram sobre as melhores formas de lidar com o envolvimento com pacientes, suas famílias e as situações de terminalidade, bem como as repercussões advindas dessas situações na prática futura. Apontaram que a prática médica poderia fazer com que se acostumassem às experiências de morte e morrer, e alguns nomearam esse acontecimento como frieza, enquanto outros chamaram de tranquilidade, por não significar, necessariamente, uma insensibilidade a essas questões: “Algumas pessoas vão chamar isso de frieza, mas eu acho que é mais tranquilidade do que frieza. Não significa que eu esteja insensível à morte” (GF3F).

Alguns apontaram preocupações com a frequência de contato com a morte na prática futura e uma possível repercussão na capacidade ter contato com aspectos afetivos, temendo, assim, uma perda da própria humanidade. Questionaram ainda se a profissão poderia alterar suas experiências pessoais em torno da morte e do morrer.

Por que, sei lá, daqui 20 anos de trabalho, como que a gente vai estar lidando com isso? Será que já não vai ter ficado, assim, tão, tão banal pra gente? Então eu acho que é um esforço pessoal meu de tentar achar esse equilíbrio entre o distanciamento e sentir, é difícil (GF6F).

Uma pergunta que fico me fazendo é se eu vou me tornar uma pessoa mais fria e se, quando eu perder alguém na minha família, por exemplo, se isso vai ser um pouco menos doloroso, pela minha experiência (GF1F).

Discutiram que o receio de perder pacientes altera a atuação médica futura.

Seria muito difícil como profissional sentir-se responsável pela morte de alguém, mas, fazendo as atitudes baseado no que foi o melhor possível, nas evidências melhores, a gente já vai se sentir mais aliviado pelo menos por pensar que fez o melhor possível (GF4F).

Talvez essa explicação [referindo-se a protocolos e diretrizes sobre terminalidade] ajuda a gente a lidar com o processo de morrer. Se colocar um pouco de lógica naquilo que não tem lógica (GF6M).

As experiências com a morte no processo de graduação e o medo de ter que lidar com a morte de pacientes no futuro foram mencionadas como fatores que poderiam influenciar na futura escolha profissional, fazendo com que alguns considerassem especialidades médicas nas quais não teriam que lidar diretamente com esse processo.

Isso é tão, tão sedimentado em mim [referindo-se ao fato de não querer lidar com a morte no cotidiano da prática médica] que eu não quero trabalhar em hospital, não quero dar plantão, eu quero trabalhar na atenção primária e ter o menor contato com a morte (GF4F).

DISCUSSÃO

Para a discussão proposta aqui, buscou-se empreender um diálogo entre algumas análises atuais sobre a formação médica no Brasil e algumas contribuições de Freud, tanto em relação ao processo civilizatório quanto no que concerne à visão sobre a morte e as atitudes diante dela.

Ao discorrer sobre a morte, considerando os horrores da Primeira Guerra Mundial, em “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, Freud1010. Freud S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Freud S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 120-41. afirmou que não é sincera a atitude diante da morte como algo natural, indiscutível e inevitável, confrontando a ideia de que o homem estaria preparado para pagar essa dívida com a natureza. Na verdade, Freud evidenciou a tendência dos seres humanos em eliminar a morte como parte da vida ao tentarem silenciá-la, sendo inimaginável, portanto, pensar na própria morte. A atitude diante da morte comporta oposições e conflitos, dependendo da proximidade ou do estranhamento em relação aos mortos: se, por um lado, a morte é reconhecida como aniquilação da vida, há, por outro, a tentativa de negá-la como sendo irreal. Freud demonstrou que no inconsciente estão presentes essas duas perspectivas ambivalentes em relação à morte, e, assim como está presente a dificuldade de se admitir a própria morte, também estão presentes os desejos de aniquilação relacionados a tudo e todos que se interponham à conquista por satisfação1010. Freud S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Freud S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 120-41..

Quando se trata da morte dos outros, esse assunto é cuidadosamente evitado e suportado em situações bastante específicas, quando abordada, por exemplo, por médicos ou outros profissionais relacionados. A morte evoca o horror, e a narrativa sobre o morto exclui qualquer crítica sobre ele. No entanto, quando a morte atinge alguém próximo: “Enterramos com ele todas as nossas esperanças, ambições, alegrias, ficamos inconsoláveis e nos recusamos a substituir aquele que perdemos”(p.221)1010. Freud S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Freud S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 120-41.. Assim, Freud analisa como atitudes diante da morte a evitação, a negação, o horror e o desejo.

Freud ressaltou a importância dessas atitudes diante da morte, uma vez que esta é o que cria os sentidos para a vida, empreendimentos, relacionamentos e faz com que se busque evitar os perigos. A morte do outro, estranho ou próximo, faz pensar na nossa própria finitude. A experiência diante da morte inaugura a produção de diferentes significados para a aniquilação da vida ao longo da história, incluindo a dissociação do indivíduo em um corpo e uma alma; as ideias de uma vida após a morte aparente e os diferentes sentidos construídos pelas religiões que também buscaram “tudo com o propósito de roubar à morte seu significado de abolição da vida” (p.225) (1010. Freud S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Freud S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 120-41.. De acordo com Freud, a religião, a arte, as substâncias psicoativas e outros recursos são utilizados como formas de lidar com a angústia do ser humano diante da finitude1212. Freud S, Souza PC. O mal-estar da civilização (1930). São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras; 2011..

Considerar as perspectivas histórica, cultural e psíquica diante da morte amplia a reflexão acerca das dificuldades e dos desafios relacionados à incorporação de discussões voltadas a esse tema quando se pensa na organização de estruturas curriculares dos cursos de Medicina. No cenário da educação médica brasileira, a abordagem insuficiente de temas relacionados à morte e ao morrer ao longo da formação ainda figura como uma realidade geral33. Melo VL, Maia CQ, Alkmim EM, Ravasio AP, Donadeli RL, Paula LOE de, et al. Morte e morrer na formação médica brasileira: revisão integrativa. Rev Bioét. 2022;30(2):300-17.),(2020. Sartori AV, Battistel ALHT. A abordagem da morte na formação de profissionais e acadêmicos da enfermagem, medicina e terapia ocupacional. Cad Bras Ter Ocup. 2017;25(3):497-508., o que faz com que os estudantes recorram a projetos de extensão, ligas acadêmicas e disciplinas optativas para que possam obter o conhecimento que julgam importante e necessário sobre o tema33. Melo VL, Maia CQ, Alkmim EM, Ravasio AP, Donadeli RL, Paula LOE de, et al. Morte e morrer na formação médica brasileira: revisão integrativa. Rev Bioét. 2022;30(2):300-17.),(2020. Sartori AV, Battistel ALHT. A abordagem da morte na formação de profissionais e acadêmicos da enfermagem, medicina e terapia ocupacional. Cad Bras Ter Ocup. 2017;25(3):497-508.. Essa percepção de deficiências da formação médica ligadas aos aspectos que envolvem a morte e o morrer suscita angústia nos estudantes que se sentem despreparados para lidar com tais situações no cotidiano da prática médica, a exemplo da comunicação de más notícias2121. Sadala MLA, Silva MP. Cuidar de pacientes em fase terminal: a experiência de alunos de medicina. Interface Comun Saúde, Educ. 2008;12(24):7-21.)-(2323. Correia DS, Bezerra MES, Lucena TS, Farias MSJA, Freitas DA, Riscado JLS. Cuidados paliativos: importância do tema para discentes de graduação em medicina. Rev Bras Educ Med . 2018;42(3):78-86..

Apesar de as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação de Medicina apresentarem como competência exigida aos graduandos a compreensão da morte, a abordagem desta ainda é tratada com enfoque nos aspectos biológicos e fisiopatológicos, sem levar em consideração componentes psicossociais envolvidos33. Melo VL, Maia CQ, Alkmim EM, Ravasio AP, Donadeli RL, Paula LOE de, et al. Morte e morrer na formação médica brasileira: revisão integrativa. Rev Bioét. 2022;30(2):300-17.),(2424. Brasil. Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União. 23 jun 2014. Seção 1.),(2525. Bifulco VA, Iochida LC. A formação na graduação dos profissionais de saúde e a educação para o cuidado de pacientes fora de recursos terapêuticos de cura. Rev Bras Educ Med . 2009;33(1):92-100.. Diante desse cenário, vários aspectos foram identificados para melhorar a abordagem desses temas nos currículos dos cursos de graduação, como a ampliação da construção de espaços de debate2626. Silva GSN, Ayres JRCM. O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica. Rev Bras Educ Med . 2010;34(4):487-96.; o aumento da carga horária obrigatória; a utilização de metodologias de caráter ativo2727. Figueiredo MGMCA, Stano RDCMT. O estudo da morte e dos cuidados paliativos: uma experiência didática no currículo de medicina. Rev Bras Educ Med . 2013;37(2):298-306. e que retirassem a impessoalidade do tema2626. Silva GSN, Ayres JRCM. O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica. Rev Bras Educ Med . 2010;34(4):487-96.),(2828. Tamada JKT, Dalaneze AS, Bonini LMM, Melo TRC. Relatos de médicos sobre a experiência do processo de morrer e a morte de seus pacientes. Rev Med (São Paulo). 2017;96(2):81-7.; a promoção de rodas de conversa entre estudantes, professores e profissionais de saúde33. Melo VL, Maia CQ, Alkmim EM, Ravasio AP, Donadeli RL, Paula LOE de, et al. Morte e morrer na formação médica brasileira: revisão integrativa. Rev Bioét. 2022;30(2):300-17.),(2626. Silva GSN, Ayres JRCM. O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica. Rev Bras Educ Med . 2010;34(4):487-96.; e a responsabilidade das universidades na adequação curricular e na oferta de suporte psicopedagógico aos estudantes2626. Silva GSN, Ayres JRCM. O encontro com a morte: à procura do mestre Quíron na formação médica. Rev Bras Educ Med . 2010;34(4):487-96..

São grandes os desafios de incorporação das temáticas relacionadas à morte e ao morrer nos currículos de graduação em Medicina, bem como das metodologias e dos recursos necessários para tal empreendimento. A complexidade em lidar com a morte pode ser vislumbrada nas análises empreendidas por Freud11 no texto “Luto e melancolia”, no qual ele procurou examinar a dor nas situações de perda. O luto, considerado uma tristeza profunda diante da perda, pode ser pela morte ou pelo afastamento de uma pessoa ou de algo, como uma determinada situação, uma abstração, um ideal. Ao contrário de que preconizam os atuais manuais de psiquiatria, Freud não considerou o luto um processo patológico, tampouco definiu um período para sua resolução. Ressaltou que o luto é um processo que possui conotação bastante individualizada, mas traz como traço comum o estado de ânimo doloroso e a perda de interesse pelas atividades que não estejam relacionadas à memória da pessoa ou daquilo que se perdeu; desse modo, o luto exige grande dispêndio de tempo e de energia1111. Freud S. Luto e melancolia (1917 [1915]). In: Freud S.Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 97-110.. Do ponto de vista da formação e prática médica, trata-se de assumir o inevitável de lidar com o sofrimento; que o sofrimento tem expressões individualizadas e que as perdas dos outros remetem às nossas próprias.

Além disso, para compreender os desafios da abordagem da morte e do morrer na formação médica, vale retomar as discussões de Freud sobre o mal-estar como condição inerente à existência. Quando Freud discutiu o processo civilizatório, analisou que este se fez à custa de intensa e contínua opressão dos desejos, ou seja, considerando um conjunto de interdições que viabiliza a existência social. Nesse sentido, por mais que seja possível reconhecer a importância e a necessidade de falar da morte, também é preciso admitir o insuportável que esse tema suscita em cada indivíduo e o quanto é desejado evitá-lo. Assim, o mal-estar na formação médica pode ser percebido tanto no encontro do estudante e do médico com as fontes do sofrimento humano, tal como discutido por Freud1212. Freud S, Souza PC. O mal-estar da civilização (1930). São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras; 2011., quanto nas especificidades do processo formativo1313. Gannam SSA. O mal-estar na formação médica: uma análise dos sintomas de ansiedade, depressão e esgotamento profissional e suas relações com resiliência e empatia [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2018.),(1414. Fagundes Netto MVR, Kernkraut AM. Contribuições da psicanálise à medicina: grupo com residentes em um programa de cancerologia clínica. Rev SBPH. 2019; 22(esp.):133-56.) que pouco favorecem que os discentes possam construir formas de lidar com aspectos da existência, que por si sós são geradoras de sofrimento. Nesse sentido, um processo formativo que acolha outra visão da relação entre vida e morte pode trazer importantes contribuições ao futuro médico, criando possibilidades de ampliar o olhar em relação às formas de abordar o medo e a angústia e lidar com eles diante do adoecimento, do sofrimento e da morte1212. Freud S, Souza PC. O mal-estar da civilização (1930). São Paulo: Penguin Classics, Companhia das Letras; 2011..

Freud já havia chamado a atenção para as contribuições que a psicanálise poderia trazer à formação médica ao demonstrar as relações entre vida física e psíquica2929. Freud S. Deve-se ensinar psicanálise nas universidades? (1919). In: Freud S. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras ; 2010. p. 284-87.. Ao longo de sua prática clínica, Freud pôde atestar a presença de um corpo que não correspondia às regras da anatomia e da fisiologia, uma vez que os sintomas relacionados aos quadros de sofrimento narrados por seus pacientes não podiam ser explicados por uma etiologia orgânica1414. Fagundes Netto MVR, Kernkraut AM. Contribuições da psicanálise à medicina: grupo com residentes em um programa de cancerologia clínica. Rev SBPH. 2019; 22(esp.):133-56.. Considerando essas descobertas freudianas, é possível depreender a limitação de uma formação e prática médica que não considere os aspectos psicossociais relacionados à vida e morte, uma vez que a medicina sempre vai lidar com a dimensão biológica da existência humana, em sua relação indissociável com a dimensão psicossocial.

No cenário atual, os avanços de ciência e tecnologia trouxeram possibilidade de tratamento e cura para muitas doenças que antes representavam o anúncio da morte. Tal fato pode levar muitos médicos a esgotar todos os recursos possíveis perante uma doença, desconsiderando, em muitas situações, a necessidade de integralidade no cuidado ao paciente. Uma medicina de alta tecnologia não condiz, necessariamente, com uma boa morte. Uma medicina com esse atributo deve considerar princípios terapêuticos associados a aspectos religiosos e morais, e respeitar crenças e valores, de modo a garantir um cuidado que leve em conta o sentido da vida e da existência. Daí emerge a importância de levar em conta o contexto do paciente para as decisões médicas ante a terminalidade22. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de medicina. Rev Bras Educ Med. 2011;35(1):37-43.),(3030. Mello AAM, Silva LC. A estranheza do médico frente à morte: lidando com a angústia da condição humana. Rev Abordagem Gestalt. 2012;18(1):52-60..

É fundamental que o processo formativo se organize em torno da dualidade constitutiva do cuidado médico: salvar vidas e fornecer suporte ao paciente e a seus familiares no processo de final de vida. Essa dimensão dual do cuidado oportuniza romper com a perspectiva de uma prática com foco exclusivo na cura e também amplia o campo de discussões voltadas para a análise da importância de tempo e qualidade de vida22. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de medicina. Rev Bras Educ Med. 2011;35(1):37-43.),(3030. Mello AAM, Silva LC. A estranheza do médico frente à morte: lidando com a angústia da condição humana. Rev Abordagem Gestalt. 2012;18(1):52-60.. Nesse sentido, cabe destacar que tanto o ensino dos cuidados paliativos, recentemente incorporado como obrigatório nos currículos de Medicina no Brasil3131. Brasil. Resolução CNE/CES, nº 265, de 17 de março de 2022. Alteração da Resolução CNE/CES nº 3, de 20 de junho de 2014, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União ; 17 mar 2022., quanto as discussões sobre a morte e o morrer nos currículos de graduação em Medicina vêm ganhando mais espaço no mundo todo. Essas perspectivas podem auxiliar profissionais e estudantes a discutir os limites das intervenções médicas diante da terminalidade e buscar ampliar a compreensão sobre a importância do cuidado destinado ao paciente terminal3232. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Manual de cuidados paliativos. 2a ed. Porto Alegre: Sulina; 2012. p. 23-31.)-(3434. Correia DS, Taveira MGMM, Marques AMVFA, Chagas RRS, Castro CF, Cavalcanti SL. Percepção e vivência da morte de estudante de Medicina durante a graduação. Rev Bras Educ Med . 2020;44(1). e013..

Apesar de a morte ser uma constante na prática médica, diversos autores apontam que a formação médica atua como um treinamento para excluir resquícios de emoção diante do paciente, já que os sentimentos podem ser vistos como um obstáculo para um bom atendimento22. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de medicina. Rev Bras Educ Med. 2011;35(1):37-43.),(3535. Kovács MJ. Profissionais de saúde diante da morte. In: Kovács MJ. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo ; 1992. p. 226-43.)-(3939. Quintana AM, Cecim PS, Henn CG. O preparo para lidar com a morte na formação do profissional de medicina. Rev Bras Educ Med . 2002;26(3):204-10.. A carente abordagem na graduação, portanto, pode representar uma maneira de preparar o futuro profissional para lidar com essa temática por meio da negação e do distanciamento. Assim, a falta de uma formação que incorpore a necessidade de lidar com situações que evocam diferentes afetos contribui para que o profissional mantenha uma posição de impessoalidade, ancorada nos princípios positivistas de “neutralidade”, e preserve suas convicções de onipotência ante a terminalidade22. Azeredo NSG, Rocha CF, Carvalho PRA. O enfrentamento da morte e do morrer na formação de acadêmicos de medicina. Rev Bras Educ Med. 2011;35(1):37-43.),(3939. Quintana AM, Cecim PS, Henn CG. O preparo para lidar com a morte na formação do profissional de medicina. Rev Bras Educ Med . 2002;26(3):204-10..

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como bem expressaram os participantes deste estudo, falar da morte é um grande desafio, pois trata-se colocar palavras naquilo que causa angústia e buscar formas de tentar lidar com ela, seja pela via da evitação, da negação, do horror ou do desejo. Mas certamente é preciso empenhar palavras nesse processo.

No mundo todo e no Brasil, as transformações na formação médica demonstram o esforço e desafio de uma grande mudança paradigmática. Assumir uma dimensão biopsicossocial na formação médica é um processo de incorporação da complexidade de vários aspectos que tradicionalmente vinham sendo colocados em relação de oposição. Nesse sentido, o cuidado com a vida é também o cuidado com a morte, proposição que precisa ser construída com e entre estudantes e profissionais envolvidos nos processos formativos.

As análises empreendidas por Freud nesses recortes pontuais de sua vasta teoria já trazem um vislumbre do quanto suas proposições podem ajudar a compreender os esforços em negar a morte e tentar evitar o sofrimento. As dificuldades e os desafios em lidar com a morte e o sofrimento humano são aspectos fundamentais da formação e da prática médica, e a negação desses aspectos pode ser percebida tanto nas abordagens exclusivamente biológicas e orgânicas dos processos de adoecimento e morte quanto nas tentativas de excluir ou evitar as dimensões subjetiva e da corporeidade. O sofrimento do outro remete ao nosso próprio; e a morte do outro é o vislumbre do limite que se impõe a todos. Tentar evitar lidar com essas questões pode impulsionar, muitas vezes, a busca por um conhecimento totalizante sobre doenças, práticas e tratamentos que acabam por impor maior sofrimento aos pacientes, a seus familiares e até mesmo aos profissionais médicos.

Por fim, ressalta-se um apontamento feito por Freud em relação às atitudes humanas diante da morte, aqui tomado como recomendação para pensar as possibilidades e os desafios de uma formação médica preocupada com a preparação para lidar com a terminalidade: “Não seria melhor dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos pensamentos, e pôr um pouco mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos cuidadosamente?” (p.229) (1010. Freud S. Considerações atuais sobre a guerra e a morte (1915). In: Freud S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010. p. 120-41..

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  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Mauricio Peixoto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2023
  • Aceito
    30 Ago 2023
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