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Tradução, adaptação e validação da escala MICA-4 no Brasil com aplicação para acadêmicos de Medicina

Resumo

Introdução:

As doenças psiquiátricas estão em crescente prevalência nas últimas décadas, sendo também as patologias nas quais mais se observam atitudes estigmatizantes.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivos traduzir a escala MICA-4 em língua portuguesa com adaptação de forma transcultural para uso no Brasil e verificar a possibilidade de a ferramenta contribuir para avaliações de melhorias na formação médica por meio da aplicação em estudantes de Medicina.

Método:

Foram sete etapas para sua tradução e validação. Além disso, o trabalho consistiu na aplicação do teste em dois momentos em um grupo de 60 estudantes de Medicina que participaram de um rodízio de estágio em um hospital psiquiátrico do Brasil.

Resultado:

A validação da escala MICA-4 consistiu nas etapas de tradução, síntese, back-translation, comitê de experts, pré-teste, averiguação textual e aplicação, que foram executadas com sucesso. A escala obteve concordância entre os experts, e não houve dificuldade entre os estudantes durante a aplicação do teste. Na análise dos dados após aplicação do questionário durante os dois momentos, dentre os 16 itens da escala, o item 9 obteve relevância estatística (p < 0,05).

Conclusão:

Este estudo analisou a percepção dos estudantes em relação a situações estigmatizantes, e a maioria das respostas foi condizente com ações menos preconceituosas antes mesmo da experiência do estágio, sendo corroboradas após esse período. As questões que ainda expressaram atitudes estigmatizantes demonstram a necessidade de aprimoramento de ferramentas de ensino que possam diminuir essas atitudes negativas e contribuir para a formação de bons profissionais e, consequentemente, melhor qualidade de atendimento.

Palavras-chave:
Transtornos Mentais; Estudantes de Medicina; Estigma Social

Abstract

Introduction:

Psychiatric diseases are increasing in prevalence in recent decades, being also the pathologies in which stigmatizing attitudes are most often observed.

Objective:

To translate the MICA-4 scale into Portuguese with cross-cultural adaptation for use in Brazil and to verify the possibility for the contribution of the tool to assess improvements in medical training through its application to medical students.

Method:

Seven steps were required for its translation and validation. Moreover, the work consisted of applying the test in two moments to a group of 60 medical students who participated in an internship rotation in a psychiatric hospital in a Brazilian city.

Result:

The validation of the MICA-4 scale consisted of the steps of translation, synthesis, back-translation, expert committee, pre-test, textual verification and application, which were successfully performed. The scale achieved an agreement among the experts and there was no difficulty among the students during the test application. In the data analysis after application of the questionnaire during the two moments, of the 16 items of the scale, item 9 obtained statistical relevance (p<0.05).

Conclusion:

This study analyzed the students’ perception of stigmatizing situations, and most of the answers were consistent with less prejudiced actions even before the internship experience, being corroborated after this period. The issues that still showed stigmatizing attitudes demonstrate the need to improve teaching tools that can reduce these negative attitudes and contribute to the training of good professionals and, consequently, better quality of care.

Key words:
Mental Disorders; Medical students; Social Stigma

INTRODUÇÃO

Por tratar-se de um fenômeno social muito presente em nossa sociedade, o estigma resulta em marginalização de um determinado membro ou grupo da comunidade e leva à discriminação e, muitas vezes, à perda da dignidade em decorrência do preconceito de outros indivíduos11. Pingani L, Catellani S, Del Vecchio V, Sampogna G, Ellefson SE, Rigatelli M, et al. Stigma in the context of schools: analysis of the phenomenon of stigma in a population of university students. BMC Psychiatry. 2016 Feb 9;16(1) [acesso em]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4748532/.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
. Entre as mais variadas formas de estigma, destaca-se aquele presente na área da saúde que compromete não só a cidadania, mas também o direito à saúde, pois a falta de qualidade e bem-estar em atendimentos médicos por causa de visões preconcebidas fragiliza a relação médico-paciente.

Sendo assim, procuramos uma escala que correspondesse ao objetivo de avaliar se o contato de estudantes de Medicina com pacientes psiquiátricos reduz ações e pensamentos estigmatizantes, e a Mental Illness: Clinicians’ Attitudes Scale 4 (MICA-4) se mostrou a mais adequada. A segunda versão da MICA-2 foi desenvolvida em 2010 como pesquisa entre estudantes de Medicina para avaliar o estigma em relação aos transtornos psiquiátricos. Posteriormente, outras modificações foram feitas para que a escala pudesse ser direcionada a todos os profissionais de saúde, na qual se apresenta a versão modificada (MICA-4). Esse instrumento foi validado com uma amostra de estudantes de Enfermagem, mas pode ser aplicado a todos os profissionais/estudantes de saúde. Trata-se de uma importante ferramenta para avaliar situações estigmatizantes, pois é capaz de modificar o ensino dos futuros profissionais de saúde e, assim, transformar a forma de cuidar1111. Papish A, Kassam A, Modgill G, Vaz G, Zanussi L, Patten S. Reducing the stigma of mental illness in undergraduate medical education: a randomized controlled trial. BMC Med Educ. 2013 Oct 24;13(1)..

A epidemia do vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida (HIV/Aids) ilustra bem esse contexto, em que a origem de seu estigma se espelhou na população mais afetada na década de 1990, como prostitutas, gays e usuários de drogas injetáveis, tendo em vista suas formas de transmissão. O afastamento desses indivíduos do meio social dificulta a busca por unidades de saúde e hospitais, o que aumenta sua vulnerabilidade à doença22. Villela WV, Monteiro S. Gênero, estigma e saúde: reflexões a partir da prostituição, do aborto e do HIV/Aids entre mulheres. Epidemiol Serv Saúde. 2015;24(3):531-40..

Indivíduos com transtornos mentais são diagnosticados como pessoas que vivem com um transtorno comportamental e/ou emocional que causa déficits e limitações em suas funções habituais de vida. Além do grande impacto negativo gerado por essas doenças, mais de 40% dos países negligenciam a saúde mental, e menos de 1% de seus recursos totais é destinado a tais morbidades, gerando diagnósticos de baixa qualidade e altos custos33. Goldman ML, Spaeth-Rublee B, Pincus HA. The case for severe mental illness as a disparities category. Psychiatr Serv. 2018 June;69(6):726-8..

A literatura nos mostra uma maior taxa de morbimortalidade nos grupos com doença mental em comparação com a população geral. Adultos com esquizofrenia apresentam riscos significativamente maiores de morte prematura em comparação a outros adultos em uma amostra da população norte-americana44. Olfson M, Gerhard T, Huang C, Crystal S, Stroup TS. Premature mortality among adults with schizophrenia in the United States. JAMA Psychiatry. 2015 Dec 1º;72(12):1172.),(55. Walker ER, McGee RE, Druss BG. Mortality in mental disorders and global disease burden implications. JAMA Psychiatry . 2015 Apr 1º;72(4):334., além da maior probabilidade de suicídios nessa classe psiquiátrica66. Saha S, Chant D, McGrath J. A systematic review of mortality in schizophrenia. Arch Gen Psychiatry. 2007 Oct 1º;64(10):1123 [acesso em]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17909124/.
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. Isso decorre, em parte, da acentuada exclusão, da discriminação, da criminalização e, por fim, do estigma generalizado em relação a esses indivíduos77. Morris E, Hippman C, Murray G, Michalak EE, Boyd JE, Livingston J, et al. Self-Stigma in Relatives of People with Mental Illness scale: development and validation. Br J Psychiatr. 2018 Feb 5;212(3):169-74 [acesso em 25 nov 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/view/E8683F286C03E0DF1EADED1DBE271E60/S000712501700023Xa.pdf/div-class-title-self-stigma-in-relatives-of-people-with-mental-illness-scale-development-and-validation-div.pdf .
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.

A mídia, os grupos sociais, os relatos pessoais e a comunidade científica têm mostrado que parcelas significativas da população, incluindo profissionais de saúde e acadêmicos, têm uma visão altamente estigmatizada das pessoas com transtornos mentais, o que pode contribuir para a baixa qualidade da assistência88. Pereira A. Efeito de estratégias educacionais sobre o estigma de alunos de Medicina frente ao portador de doença mental [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2016 [acesso em 10 mar 2022]. Disponível em: Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUBD-AM8MFV .
http://hdl.handle.net/1843/BUBD-AM8MFV...
. Estudantes de Medicina, médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde, apesar de terem mais contato com pessoas com transtornos mentais, muitas vezes são influenciados pelo “viés médico”, no qual buscam fundamentar suas atitudes em experiências clínicas ruins no tratamento de pessoas com transtornos psiquiátricos99. Chang S, Ong HL, Seow E, Chua BY, Abdin E, Samari E, et al. Stigma towards mental illness among medical and nursing students in Singapore: a cross-sectional study. BMJ Open. 2017 Dec;7(12):e018099 [acesso em]. Disponível em: https://bmjopen.bmj.com/content/7/12/e018099.
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. Thornicroft et al.1010. Thornicroft G, Rose D, Kassam A. Discrimination in health care against people with mental illness. Int Rev Psychiatry. 2007 Jan;19(2):113-22. relatam que os profissionais de saúde são mais pessimistas quanto à recuperação ou mesmo à cura completa desses pacientes, o que os torna disseminadores do estigma relacionado ao transtorno psiquiátrico1010. Thornicroft G, Rose D, Kassam A. Discrimination in health care against people with mental illness. Int Rev Psychiatry. 2007 Jan;19(2):113-22..

No entanto, apesar do crescente interesse em estudar o estigma, não há nenhum estudo brasileiro publicado com estudantes de Medicina utilizando a escala MICA-4 como instrumento de pesquisa. Dessa forma, os objetivos principais deste estudo foram descrever as etapas do processo de tradução, testar e aprovar a adaptação cultural da escala MICA-4 para o português brasileiro. Além disso, objetivamos avaliar o grau de estigma entre estudantes de Medicina que participaram de rodízio em um hospital psiquiátrico no Brasil, realizado em dois momentos: antes do contato com o serviço de saúde mental e após o contato com o serviço e pacientes com transtornos psiquiátricos. E também, por meio dessas aplicações da escala MICA-4, avaliar se o contato de estudantes de Medicina com pacientes psiquiátricos é capaz de reduzir ações e pensamentos estigmatizantes, uma vez que se faz necessário diminuir o preconceito dos profissionais de saúde em relação à população psiquiátrica. Portanto, realizaram-se a tradução e a adaptação da escala de forma criteriosa, pois é imprescindível garantir uma adaptação linguística e cultural adequada do instrumento original de forma que satisfaça a rigorosidade quantitativa e qualitativa necessária e exigida no sistema de saúde.

MÉTODOS

Utilizou-se a escala MICA-4, que contempla uma lista de questões subjetivas por meio de situações hipotéticas, composta por 16 itens com a escala Likert (1-6), que já fora descrita em outros projetos científicos com objetivos semelhantes. A escala traduzida e validada MICA-4 para o português brasileiro está disponível no Quadro 1. Os alunos respondem às perguntas assinalando, numa escala de 1 a 6: “concordo plenamente”, “concordo”, “concordo parcialmente”, “discordo parcialmente”, “discordo” ou “discordo plenamente”. A tradução e a adaptação do instrumento tiveram como base a estrutura proposta pela literatura, a qual consiste em uma ordem de etapas, apresentadas no Quadro 2. As primeiras quatro etapas referentes à tradução e à validação da escala MICA-4 contaram com a participação de diversos especialistas linguísticos. Durante a síntese, a versão inicial traduzida do instrumento teve como objetivo a adaptação semântica, de expressões e de equivalências culturais. Posteriormente, no back-translation, realizou-se um encontro dos autores do trabalho com um especialista linguístico nativo da língua de origem da escala (inglês). Em conjunto, interpretou-se o contexto de cada situação, em que se associaram expressões culturais corretas e checaram-se idioma e compatibilidade de conceitos e semântica. Como resultado dessa fase, alguns termos da versão adaptada foram modificados, como preposições e verbos.

Quadro 1
Questionário traduzido e validado para o português do Brasil: Mental Illness: Clinicians’ Attitudes Scale - versão 4 (MICA-4).
Quadro 2
Etapas da tradução e validação da escala MICA-4 para o português do Brasil.

A versão adaptada da escala MICA-4 foi aplicada 118 vezes, divididas entre pré-teste (com 60 alunos) e pós-teste (com 58 alunos e dois alunos excluídos - faltosos) durante um período de três meses, de novembro de 2017 a janeiro de 2018, que correspondeu ao período de prática dos estudantes de Medicina. Esse período em que os estudantes de Medicina estão mais próximos de sua real experiência profissional é o internato (período de estágio/prática). No Brasil, esse período corresponde aos dois últimos anos da graduação, em que o aluno passa por diversos rodízios em serviços com diferentes e importantes especialidades para seu currículo. Dessa forma, tornou-se imprescindível aplicar a escala MICA-4 antes e depois da vivência do estágio em um hospital psiquiátrico, onde há predominância de situações estigmatizantes no sistema de saúde, a fim de obter informações genuínas. Durante as atividades pré e pós-teste, asseguramos aos participantes o anonimato e a confidencialidade das informações cedidas. A pesquisa foi avaliada e aceita pelo Comitê de Ética (Plataforma Brasil - 2.068.462 - 17 de maio de 2017). Os dados foram expressos em frequência absoluta e percentual, e analisados pelo teste exato de Fisher ou teste do qui-quadrado de Pearson, adotando um nível de confiança de 95% no software IBM® SPSS® Statistics versão 20.0 para Windows.

A versão traduzida e sintetizada da escala MICA-4 foi avaliada por um comitê de quatro psiquiatras com mestrado e/ou doutorado. No quesito adequação, a maioria das questões foram consideradas úteis ou essenciais, sendo apenas uma delas considerada inútil. Quanto à relevância, metade das questões (oito) receberam a nota máxima (4), e apenas uma questão recebeu nota mínima (1). No quesito clareza, a maioria das notas foram acima de 3 do total de quatro pontos, e no último critério, simplicidade, todas as questões receberam notas acima de 3 do total de quatro pontos.

Etapas da tradução e validação da escala MICA-4:

  • Tradução: o instrumento original foi traduzido por dois professores independentes de língua inglesa da Universidade de Cambridge.

  • Síntese: quatro autores pesquisadores nativos de língua portuguesa, com fluência em inglês, incorporaram as duas traduções a uma versão inicial traduzida do instrumento, agregando adaptação de semântica, de expressões e de equivalências culturais a esta.

  • Back-translation ou tradução reversa: a tradução reversa para o idioma de origem (inglês) foi realizada por um tradutor profissional nativo do idioma da escala original, sem conhecimento do documento original.

  • Comitê de especialistas: a versão traduzida da escala foi enviada a quatro especialistas no âmbito do questionário utilizado (psiquiatria), no qual cada profissional avaliou todos os itens da escala nos seguintes termos: adequação ao instrumento (essencial; útil, mas não essencial; ou inútil), relevância, clareza e simplicidade com pontuações de 1 a 4: 1 = pontuação mínima para o item e 4 = pontuação máxima.

  • Pré-teste: a versão final traduzida foi aplicada a uma amostra de 60 alunos do curso de Medicina.

  • Averiguação textual: verificação textual do questionário por professor especialista em português: não houve necessidade de modificação do questionário apresentado no pré-teste.

  • Aplicação: o questionário foi aplicado em um hospital psiquiátrico com estudantes de Medicina de duas universidades cearenses que estavam alocados para estágio nesse serviço.

Durante o pré-teste, o questionário foi aplicado no primeiro dia útil de cada mês, em um hospital de saúde mental, por um psiquiatra, em auditório, individualmente, antes que os alunos tivessem contato com qualquer atividade nesse hospital. O estágio consistia em um período de um mês, no qual os alunos participavam de algumas atividades. A rotina do estudante era composta por evoluir, com média de três pacientes, diariamente nas enfermarias masculinas e femininas, sempre com supervisão de residentes de psiquiatria, de preceptores e da equipe multidisciplinar (enfermeiros, psicólogos, terapeuta ocupacional, entre outros). Esses pacientes poderiam ter qualquer patologia psiquiátrica, como esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar, transtorno depressivo, entre outras. No período da tarde, os alunos participavam de ambulatórios especializados da psiquiatria, também com supervisão de um preceptor médico psiquiatra. Além disso, os estudantes compareciam em plantões noturnos, em média dois plantões durante o mês na emergência psiquiátrica, nos quais havia contato com pacientes em surto psicótico e/ou outras demandas urgentes.

Após o final do mês, no último dia útil, os mesmos alunos foram convidados a responder novamente ao questionário individualmente, o mesmo aplicado sob supervisão de um psiquiatra, em auditório, porém dessa vez considerando suas respostas com base em suas experiências durante o estágio. Os participantes foram alunos que fizeram estágio de novembro de 2017 a janeiro de 2018 em um hospital de saúde mental. O critério de inclusão abrangeu todos os alunos presentes (60), matriculados no curso de Medicina. Os critérios de exclusão foram aplicados aos alunos que não concordaram em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou não compareceram (dois alunos não compareceram ao pós-teste realizado em janeiro de 2018).

RESULTADOS

Na análise pré-teste, 50% eram do sexo feminino (30 mulheres), e 50%, do sexo masculino (30 homens), sendo 68,3% com menos de 25 anos e 95% de não casados. Apenas dois participantes possuíam filhos. Dos entrevistados no primeiro momento, 41,6% responderam sofrer ou já ter sofrido de algum transtorno psiquiátrico. Além disso, 73,3% afirmaram ter parente com transtorno psiquiátrico, e os mais citados em ordem decrescente foram: tios, mães, primos e avós (os dois últimos tiveram o mesmo número de citações durante a realização do questionário).

No pré-teste, a versão adaptada final da escala MICA-4 foi aplicada a estudantes de Medicina com o intuito de avaliar clareza, compreensão e aceitabilidade do instrumento traduzido para seu público-alvo. Avaliou-se a compreensão do questionário por meio do coeficiente alfa de Cronbach. Como não houve necessidade de modificação do instrumento, finalizou-se a versão traduzida. Dessa forma, deu-se continuidade à aplicação do instrumento para as mesmas pessoas após a participação no período de um mês (pós-teste), com o objetivo de analisar se o período de internato modificaria condutas estigmatizantes nos acadêmicos de Medicina.

Das 16 perguntas analisadas, apenas a questão 9 apresentou significância estatística (p < 0,05), conforme registrado na Tabela 1. Quando se avaliaram as respostas para essa questão, a grande maioria dos entrevistados no momento pré-teste já havia recusado a orientação de tratar desrespeitosamente pacientes com doença psiquiátrica. Posteriormente, no pós-teste, mais de 80% dos participantes tiveram uma resposta que concordou plenamente em recusar a orientação.

Tabela 1
Análise das respostas em diferentes momentos (pré-teste e pós-teste).

Quando se analisou a questão 10 em um momento de pré-teste, apenas 31,7% dos entrevistados se sentiram à vontade para conversar com uma pessoa com doença mental; após o estágio, 63,8% passaram a se sentir à vontade (p = 0,087). Quando se avaliaram as questões de acordo com as variáveis sexo, idade, estado civil, ter filhos, ter doença mental e contato com familiar com doença mental e o momento de preenchimento do questionário (pré-teste e pós-teste), foram evidenciados resultados interessantes e com significância (p < 0,05), conforme apresentado na Tabela 2.

Tabela 2
Análise das respostas em diferentes momentos, em cruzamento com as variáveis.

A respeito das variáveis “estado civil” e “ter filhos”, elas foram as mais significativas. O estudo mostrou uma proporção equivalente entre homens e mulheres; porém, em relação a outras variáveis como “ser casado” e “ter mais de 25 anos”, houve um número bem menor, demonstrando pouca heterogeneidade com um grupo com características muito semelhantes, o que dificultou a análise do estudo.

A questão 13 foi a que mostrou mais significância em relação às seguintes variáveis: sexo, estado civil e ter contato com familiar com doença mental.

Quando se avaliou a resposta entre os gêneros feminino e masculino em relação ao item 8 do questionário, constatou-se que as mulheres em sua maioria discordam com 96,7% da amostra. Em relação aos estudantes do gênero masculino, a maioria também discorda da afirmação. Entretanto, 13,3% concordam totalmente, concordam ou concordam parcialmente com essa questão. Isso evidencia que uma parcela dos homens potencializa pensamentos estigmatizantes.

Outro tópico notabiliza uma discrepante diferença de atitude entre os gêneros masculino e feminino. A questão 13 revela que os homens (17,9%) concordam ou concordam plenamente em atribuir sintomas físicos à própria doença mental, mesmo após o estágio, contra 3,3% das mulheres. Ainda sobre o item 13, no momento pós-teste, também há diferença nas respostas em relação ao fato de ser casado ou não. Os participantes casados evidenciaram que 50% concordam ou concordam parcialmente; na grande maioria dos participantes que não são casados, 92,6% da amostra discorda parcialmente, discorda e discorda totalmente da questão 13.

Continuando com a análise do item 13, observou-se que no momento do pré-teste, em relação aos participantes que não têm contato com familiar com transtorno mental, 12% concordam parcialmente e 50% discordam parcialmente da afirmação. No grupo com familiares com doença mental, a maioria discorda (40,9%) ou discorda totalmente (36,4%) mesmo antes da intervenção do estágio (Gráfico 1).

Gráfico 1
Questão 13: “Se uma pessoa com doença mental reclamasse de sintomas físicos (como dor no peito), eu atribuiria isso à doença mental” (p = 0,022).

Em relação à questão 6, que consiste em afirmar que profissionais de saúde conhecem mais a vida das pessoas tratadas por doença mental do que familiares ou amigos, os participantes com mais de 25 anos apresentaram menos estigma em relação aos participantes mais jovens, mesmo antes do estágio.

Em relação à questão 12, os casados, mesmo após o estágio, em sua maioria relataram discordar do fato de que a sociedade não precisa ser protegida de pessoas com doença mental. Enquanto isso, os solteiros concordam com essa afirmação, o que deduz um comportamento menos estigmatizante. No entanto, é importante destacar a diferença no número de participantes casados (amostra inferior a 10% dos alunos) e de solteiros. Quando se analisou essa questão referente aos entrevistados que têm filhos e aos que não têm, constatou-se que ambos os grupos discordam da afirmação supracitada.

Ainda em referência à questão, quando se avaliou a variável “sofrer de doença mental em um momento anterior à experiência de estágio”, verificou-se que a maioria do grupo de alunos que não possuíam doença mental respondeu “concordo totalmente, concordo ou concordo parcialmente” com a afirmação (74,3%), ou seja, a maior parte desse grupo corrobora uma atitude menos estigmatizante. Quando se avaliaram os alunos que têm ou tiveram uma patologia psiquiátrica, eles apresentaram respostas majoritariamente estigmatizantes, pois apenas 48% afirmaram “concordar totalmente, concordar ou concordar parcialmente” com o enunciado da questão.

Apenas dois entrevistados relataram ter filhos. Dessa pequena amostra, na questão 1, após o rodízio, a maioria dos entrevistados que não têm filhos só lê sobre saúde mental quando precisa. Aqueles com filhos discordaram dessa afirmação, o que pode demonstrar mais interesse pela saúde mental.

DISCUSSÃO

Os transtornos psiquiátricos estão cada vez mais prevalentes em todo o mundo. Acredita-se que cerca de 40% dos adultos em todo o mundo apresentem critérios diagnósticos para algum transtorno mental1212. Lopes C de S. Como está a saúde mental dos brasileiros? A importância das coortes de nascimento para melhor compreensão do problema. Cad Saude Publica. 2020;36(2).. Ao longo dos anos, ocorreram diversas mudanças em relação ao conhecimento psiquiátrico, visando a um cuidado integral e humanizado destinado aos pacientes psiquiátricos. No entanto, é de grande importância verificar a efetividade dessas ações em ambientes de trabalho (hospitais psiquiátricos) e centros de ensino superior1313. Costa TNM, Pedrosa BLK, De Araújo AVS, Pacheco KR, Furlaneto IP, Caldato MCF. Saúde mental: visão e atitudes dos formandos de medicina. Revista Eletrônica Acervo Científico. 2020;15:e4091.. A partir do pensamento pessimista analisado por Thornicroft et al.1010. Thornicroft G, Rose D, Kassam A. Discrimination in health care against people with mental illness. Int Rev Psychiatry. 2007 Jan;19(2):113-22., muitos profissionais de saúde promovem ações estigmatizantes quanto à recuperação e/ou cura de pacientes psiquiátricos.

Em duas questões (8 e 13), o gênero apresentou diferença com significância estatística. Nessas questões, o sexo masculino apresentou ações mais preconceituosas em relação ao sexo feminino. Observou-se que não houve mudança na percepção do estigma pelos estudantes do sexo masculino, mesmo após o estágio, pois ainda “concordam ou concordam plenamente” em atribuir sintomas físicos à própria doença mental. A questão a ser considerada é se ser mulher se traduz em atitudes mais empáticas para com a população psiquiátrica.

Quando se avaliaram as respostas da questão 13, mesmo antes de participar do rodízio de internação em saúde mental, constatou-se que os alunos que tinham um familiar com transtorno psiquiátrico já apresentavam menos estigmas em relação aos pacientes psiquiátricos (p < 0,05). Ou seja, um contato prévio com pessoas com doença mental pode influenciar em uma atitude menos preconceituosa em relação a outros pacientes desse perfil.

Outro resultado do estudo que se revelou importante nessa discussão é o contato com um familiar com transtorno psiquiátrico, pois mais de 70% da amostra relatou ter um familiar com doença mental. Isso mostra que muitos participantes já possuem, de alguma forma, uma experiência com transtornos psiquiátricos.

Em relação às demais variáveis discutidas no estudo, é interessante destacar o percentual de estudantes de Medicina que têm ou tiveram algum transtorno psiquiátrico; é um número que se assemelha com várias pesquisas. Um estudo brasileiro1414. Grether EO, Becker MC, Menezes HM, Nunes CR de O. Prevalência de transtornos mentais comuns entre estudantes de Medicina da Universidade Regional de Blumenau (SC). Rev Bras Educ Med. 2019;43(1 supl 1):276-85. publicado em 2019 mostrou prevalência de transtorno mental comum em estudantes de Medicina de 50,9%, sendo mulheres e estudantes mais jovens os mais prevalentes.

Em comparação com a amostra analisada neste estudo, observou-se a taxa de prevalência de transtorno psiquiátrico um pouco semelhante entre os estudantes de Medicina, com quase 42% dos entrevistados afirmando sofrer ou ter sofrido de alguma doença mental.

Em outro estudo, os Estados Unidos revelaram uma taxa de 46% de estudantes de Medicina apresentando pelo menos um sintoma sugestivo de transtorno psiquiátrico1515. Fiorotti KP, Rossoni RR, Borges LH, Miranda AE. Transtornos mentais comuns entre os estudantes do curso de medicina: prevalência e fatores associados. J Bras Psiquiatr. 2010;59(1):17-23.. Entre os fatores desencadeantes, destacam-se o estresse do curso e a alta carga horária.

Quando se explorou a análise estatística entre as diversas variáveis do estudo em conjunto com os itens da escala MICA-4 traduzida e adaptada para o português brasileiro, a questão 12 trouxe à tona uma questão importante, pois, quando se verificaram os dados desse cruzamento, os alunos que têm ou tiveram alguma patologia psiquiátrica manifestaram mais rejeição em relação aos pacientes psiquiátricos do que aqueles que nunca sofreram de uma doença mental. Isso destaca a presença de autoestigma em pacientes com transtornos psiquiátricos. O estigma atua em um círculo vicioso, no qual participam o indivíduo com transtorno psiquiátrico, sua família e os serviços de saúde mental. Esses pacientes rotulados apropriam-se de visões estigmatizantes da população em geral, promovendo o autoestigma, e, como consequência, visualizam-se uma baixa autoestima, um elevado grau de incapacidade e uma maior sensibilidade ao estresse. Esses fatores de fragilidade, muitas vezes, podem causar uma piora clínica e reiniciar o círculo1616. Rocha FL, Hara C, Paprocki J. Mental illness and stigma. Rev Méd Minas Gerais. 2015;25(4)..

O estudo avaliou a percepção dos alunos por meio de 16 questões, cujas respostas foram condizentes com ações menos preconceituosas antes do estágio. Essas atitudes menos estigmatizantes foram a maioria entre as respostas referentes ao questionário e se fortaleceram após o período de contato próximo com a rotina de um hospital psiquiátrico, mas não houve uma significância estatística na maioria das perguntas. Seria interessante ter uma amostra maior e mais heterogênea para concluir a questão de que a experiência de estágio em um hospital psiquiátrico pode modificar e/ou fortificar a perspectiva dos alunos, de modo a torná-los profissionais de saúde mais humanizados e empáticos.

CONCLUSÃO

Para evitar a perpetuação do estigma nas futuras gerações médicas, uma vez que ele impede que as pessoas busquem ajuda oportuna, foi realizada a tradução e adaptação transcultural da escala MICA-4.

O primeiro objetivo deste trabalho foi validar a escala MICA-4 para aplicação no Brasil, e isso ocorreu com sucesso, pois se cumpriram todas as seis etapas (Quadro 2). Ademais, o questionário (Quadro 1) foi avaliado por quatro especialistas que julgaram a escala MICA-4 como um instrumento de boa adequação, relevância, clareza e simplicidade. Posteriormente, quando se aplicou o questionário, constatou-se que os alunos não tiveram dificuldade em compreender a escala. Dessa forma, a escala MICA-4 foi adequadamente traduzida e culturalmente adaptada para a realidade brasileira.

O segundo objetivo foi avaliar o estigma dos estudantes de Medicina em relação aos pacientes com transtorno psiquiátrico a partir dos dados coletados com a aplicação da escala MICA-4 validada, incluindo dois momentos do estágio.

Aparentemente, não houve grandes mudanças nas respostas dos estudantes de Medicina nos diferentes momentos de aplicação. Das 16 questões avaliadas no estudo, 11 apresentaram, na maioria das respostas, um comportamento não estigmatizante, em que após o estágio foram reforçadas essas atitudes não preconceituosas, porém sem significância estatística (p > 0,01).

Embora a maioria das respostas tenha contribuído para ações menos estigmatizantes, ainda houve situações de rejeição, envolvendo, por exemplo, homens e estudantes com transtornos psiquiátricos. Dessa forma, torna-se importante promover novos estudos e fortalecer avaliações em estudantes e profissionais de saúde. Estudantes preparados tornam-se médicos mais humanizados, contribuindo assim, em diferentes ambientes de serviço, para a redução do estigma em relação a pacientes psiquiátricos. E isso possibilita a quebra do círculo vicioso e promove uma maior adesão ao tratamento e a redução das barreiras à recuperação e reabilitação dos pacientes necessitados.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Pingani L, Catellani S, Del Vecchio V, Sampogna G, Ellefson SE, Rigatelli M, et al. Stigma in the context of schools: analysis of the phenomenon of stigma in a population of university students. BMC Psychiatry. 2016 Feb 9;16(1) [acesso em]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4748532/
    » https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4748532/
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  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Antonio Menezes Junior.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2023
  • Aceito
    01 Out 2023
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