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O trauma como modelo de doença

EDITORIAL

O trauma como modelo de doença

TCBC Samir RasslanI; TCBC Dario BiroliniII

IProfessor Titular - Disciplina de Cirurgia de Emergência - do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo

IIProfessor Titular - Disciplina de Cirurgia Geral e do Trauma - do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

A era industrial, o desenvolvimento tecnológico, o aumento da velocidade de veículos; as condições sócioeconômicas, pobreza, miséria e a própria natureza humana são fatores que contribuíram para o crescimento progressivo dos mais diferentes tipos de trauma.

Na história natural do mundo, a violência tem sido um mecanismo de defesa. Indivíduos, povos e nações se degladiaram na luta pela sobrevivência. Na realidade, o trauma é um reflexo da história da humanidade.

O trauma tem sido rotulado como a doença neglicenciada do mundo moderno, tanto que os investimentos feitos, visando ao seu controle, prevenção e tratamento, são inversamente proporcionais à rápida progressão da violência e ocorrência dos traumatismos. O trauma, mais do que uma grave doença, tem sido considerado um sério problema social e comunitário. Sem dúvida, constitui-se, hoje, num dos mais significativos problemas de toda área da saúde.

Embora os aspectos relacionados à epidemiologia do trauma - seu significado e importância - tenham ganho maior destaque nos últimos anos, e em especial em nosso meio, eles não são valorizados pela própria comunidade médica. Na verdade, o trauma é uma doença comumente ignorada como problema de saúde da comunidade.

Os números justificam porque o trauma é um complexo problema de saúde pública no Brasil dos anos 90: a) constitui a segunda causa geral de morte; b) é a primeira causa de morte abaixo dos 45 anos; c) é responsável por mais de 90 mil mortes anuais; d) deixa mais de 200 mil vítimas por ano, definitivamente seqüeladas; e) consome mais anos de vida útil que as doenças cardiovasculares e o câncer; f) implica custos diretos e indiretos de bilhões de reais, superiores ao valor da dívida externa do país.

Cerca de 90 mil mortes por ano decorrentes do trauma correspondem a 7.500 mortes por mês e 250 por dia. É como se ocorresse diariamente a queda de um avião a jato, equipamento 767, sendo os corpos esparramados por todo o país. Morrem dez brasileiros por hora vítimas de trauma. Os acidentes normalmente não ocorrem por acaso ou são produtos da fatalidade. Existe sempre uni fator de risco sobre o qual é possível atuar, modificando assim a ocorrência de eventos traumáticos. Inúmeras estratégias neste sentido podem e têm sido propostas. Entre elas, como evitar, reduzir o número e/ou modificar a forma de atuação dos agentes ou fatores de risco.

A prevenção é o mais importante parâmetro no controle do trauma: a) é a única forma de evitar as mortes que ocorrem no local do acidente; b) é o meio mais eficiente e barato de reduzir os custos (mortes, sofrimento, despesas, perdas de produtividade, etc.), da doença trauma; c) e, na maioria dos casos, é possível.

Algumas medidas são de fundamental importância na prevenção do trauma: educação, adoção de leis e atuação na área tecnológica. As duas primeiras visam mudar o comportamento das pessoas através de orientação, regras administrativas ou penalidades. A terceira medida atua sobre os agentes ou fatores envolvidos no acidente. Basicamente, todos visam à proteção de eventual vítima do trauma (Maull et al - Advances in trauma and critical care. St. Louis, Mosby, Year Book Inc., 1994).

O desenvolvimento de "sistemas" integrados de atendimento ao traumatizado reduz significativamente as taxas de mortalidade nas primeiras horas após o acidente. Um sistema de trauma deve abranger uma região geográfica (cidade, distrito) com eficiente mecanismo de comunicação, resgate e transporte, proporcionando uma remoção rápida da vítima para hospitais específicos, os chamados "centros de trauma". Os "sistemas de trauma" salvam vidas e evitam seqüelas definitivas pois favorecem: a) o reconhecimento da gravidade das lesões e adoção imediata de cuidados adequados; b) o atendimento correto para as vítimas que exigem atendimento "especializado"; c) a programação de reabilitação para permitir retomo rápido à vida produtiva; d) a concentração de recursos evitando duplicações e racionalizando investimentos.

A vítima deve ser encaminhada não para o local mais próximo do acidente, mas para o serviço que tenha condições de atender às suas necessidades terapêuticas. No Brasil não existem centros de trauma, mas alguns hospitais gerais têm um serviço de emergência que atende vítimas de trauma. São os hospitais ditos "terciários" ou de referência, teoricamente mais bem equipados e com equipe multidisciplinar preparada e conscientizada para o problema trauma.

A integração do sistema de atendimento pré-hospitalar com o hospital capaz de proporcionar tratamento definitivo resulta em redução significativa das mortes consideradas preveníveis ou evitáveis. A implantação de um serviço de resgate e atendimento pré-hospitalar mais efetivo tem mudado o perfil da população de traumatizados que chega aos serviços de emergência. Hoje, os serviços recebem doentes cada vez mais graves e que no passado morriam no local do acidente ou durante o transporte.

Quando se avaliam o controle de qualidade e a eficiência do atendimento do traumatizado, verifica-se que eles não estão apoiados somente na redução da taxa de mortalidade, mas também na diminuição da morbidade - particularmente aquele contingente que decorre dos erros e iatrogenias - e a recuperação completa sem seqüelas, da vítima. Assim, é fundamental o ensino e treinamento de equipes especializadas, monitorando através de reuniões, protocolos, banco de dados e uma auditoria permanente os resultados e a qualidade do tratamento.

O trauma como modelo de doença é representado por uma vítima jovem, previamente sadia e submetida a uma agressão súbita, mensurável, sem anestesia uni ou multicompartimental e, na maioria das vezes, prevenível. O sistema de atendimento ao trauma tem como objetivos assegurar a esta vítima um tratamento rápido e definitivo das múltiplas lesões e o seu retomo à sociedade como elemento produtivo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Out 1998
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