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Ascaridíase biliar complicada: espectro de problemas e táticas cirúrgicas

Biliary ascariasis: spectrum of surgical problems and tactics

Resumos

OBJETIVO: Discutir as variantes clínicas e táticas para tratamento cirúrgico da ascaridíase biliar complicada. MÉTODO: Trabalho retrospectivo de pacientes operados por complicações de ascaridíase biliar num período de cinco anos. RESULTADOS: São descritos quatro casos de ascaridíase biliar complicada em crianças (três pré escolares e um escolar), expressos através de pseudocisto pancreático, icterícia obstrutiva, colangite e múltiplos abscessos hepáticos, todos tratados cirurgicamente. Descrevemos detalhes técnicos da abordagem operatória para cada um dos casos. CONCLUSÕES: O espectro das afecções biliares secundárias à ascaridíase é variável e é necessário um arsenal de táticas operatórias para a abordagem de cada caso. É desaconselhável o uso de anti-helmínticos antes da resolução clínica da invasão da via biliar. A afecção preferencial de crianças jovens exige o uso de técnicas e materiais adequadamente delicados para a manipulação das vias biliares.

Ascaris lumbricoides; Doenças parasitárias; Trato biliar; Complicações


BACKGROUND: To discuss the clinical expression and technical variations involved in the surgical treatment of complicated biliary ascariasis. METHODS: Retrospective study of patients operated on to treat complicated biliopancreatic ascariasis in a five year period. RESULTS: We describe four cases of complicated biliary ascariasis affecting children (three pre-schoolers and one school-aged child), clinically expressed as pancreatic pseudocyst, obstructive icterus, cholangitis and multiple hepatic abscesses, all surgically treated. We discuss aspects of operative treatment for each one of these patients. CONCLUSION: There are many variations concerning clinical and surgical presentations of biliary ascariasis, and a number of surgical tactics are necessary to solve those cases. We are against the use of anti-helmintics before the clearance of biliary passages. Preferential compromise of young children makes it necessary to use adequate and miniaturized techniques and materials to operate on those small patients biliary passages.

Ascaris lumbricoides; Parasitic diseases; Biliary tract; Complications


ARTIGO ORIGINAL

Ascaridíase biliar complicada – Espectro de problemas e táticas cirúrgicas

Biliary ascariasis – Spectrum of surgical problems and tactics

Lisieux Eyer de Jesus, TCBC-RJI; Ricardo Pecoraro Raposo,ACBC-RJII; Alexandre Guazelli,ACBC-RJII

ICirurgiã Pediátrica do Hospital Municipal Jesus e Hospital Universitário Antônio Pedro, UFF; Supervisora de Residência Médica em cirurgia pediátrica do Hospital Municipal Jesus.

IIMédico Residente em Cirurgia Pediátrica do Hospital Municipal Jesus.

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Recebido em 19/05/2003 Aceito para publicação em 02/09/2003

RESUMO

OBJETIVO: Discutir as variantes clínicas e táticas para tratamento cirúrgico da ascaridíase biliar complicada.

MÉTODO: Trabalho retrospectivo de pacientes operados por complicações de ascaridíase biliar num período de cinco anos.

RESULTADOS: São descritos quatro casos de ascaridíase biliar complicada em crianças (três pré escolares e um escolar), expressos através de pseudocisto pancreático, icterícia obstrutiva, colangite e múltiplos abscessos hepáticos, todos tratados cirurgicamente. Descrevemos detalhes técnicos da abordagem operatória para cada um dos casos.

CONCLUSÕES: O espectro das afecções biliares secundárias à ascaridíase é variável e é necessário um arsenal de táticas operatórias para a abordagem de cada caso. É desaconselhável o uso de anti-helmínticos antes da resolução clínica da invasão da via biliar. A afecção preferencial de crianças jovens exige o uso de técnicas e materiais adequadamente delicados para a manipulação das vias biliares.

Descritores: Ascaris lumbricoides; Doenças parasitárias; Trato biliar; Complicações.

ABSTRACT

BACKGROUND: To discuss the clinical expression and technical variations involved in the surgical treatment of complicated biliary ascariasis.

METHODS: Retrospective study of patients operated on to treat complicated biliopancreatic ascariasis in a five year period.

RESULTS: We describe four cases of complicated biliary ascariasis affecting children (three pre-schoolers and one school-aged child), clinically expressed as pancreatic pseudocyst, obstructive icterus, cholangitis and multiple hepatic abscesses, all surgically treated. We discuss aspects of operative treatment for each one of these patients.

CONCLUSION: There are many variations concerning clinical and surgical presentations of biliary ascariasis, and a number of surgical tactics are necessary to solve those cases. We are against the use of anti-helmintics before the clearance of biliary passages. Preferential compromise of young children makes it necessary to use adequate and miniaturized techniques and materials to operate on those small patients biliary passages.

Key words: Ascaris lumbricoides; Parasitic diseases; Biliary tract; Complications.

INTRODUÇÃO

Apesar da alta prevalência da ascaridíase em nosso meio (as estimativas são de ¼ da população mundial e 39% da população brasileira infestadas) 1 e da alta freqüência das formas complicadas da ascaridíase como problemas emergenciais na população pediátrica, os dados presentes em literatura são escassos e quase exclusivamente empíricos. Não estão disponíveis quaisquer dados randomizados ou prospectivos sistemáticos, muitos estudos são relatos de casos expostos como raridades em países avançados ou referem casos pediátricos misturados a casos em adultos. Uma análise detalhada esclarece que muitas condutas traçadas são destoantes de caso a caso. Com base nestas dificuldades as dúvidas proliferam.

Os casos de ascaridíase biliar em sua maioria (>90%) se resolvem espontaneamente 2-4, porém o espectro de problemas superpostos que tornam um caso em particular cirúrgico é amplo. Neste artigo pretendemos definir aspectos da abordagem cirúrgica nos casos de ascaridíase biliar (AB) complicada com evolução para cirurgia, descrevendo quatro pacientes afetados pela doença de forma diversificada e revisando a conduta adotada e preconizada para o tratamento, buscando encontrar um algoritmo apropriado para o tratamento das ascaridíases biliares pediátricas.

MÉTODO

O Hospital Municipal Jesus é um Hospital Pediátrico de referência para atendimento em cirurgia pediátrica no Rio de Janeiro, atendendo crianças até os 12 anos de idade. Num período de cinco anos (1997 a 2002) foram atendidos quatro pacientes portadores de ascaridíase biliar complicada que necessitaram de tratamento cirúrgico e serão descritos adiante.

RESULTADOS

Caso 1: JNC, nove anos, sexo feminino, internada por dor abdominal e massa tumoral visível em mesogástrio surgida cinco dias após laparotomia para tratamento de obstrução intestinal por Ascaris lumbricoides (Al) há cinco meses em outra instituição, em que foi feita apenas ordenha de vermes para o cólon. Ao exame desnutrição moderada, massa volumosa, indolor e imóvel em mesogástrio e hipocôndrio esquerdo. Exames de ultra-som (US) e tomografia computadorizada (TC) mostraram massa cística compatível com pseudocisto de pâncreas com 16 cm de diâmetro. Na cirurgia foi verificado volumoso pseudocisto de pâncreas centrado em corpo pancreático, drenado através de alça intestinal exclusa em Y Roux. Evolução pós-operatória sem problemas, assintomática após seguimento de três meses (Tabela 1).

Caso 2: EBS, três anos, sexo feminino, internada por dor abdominal, febre alta e vômitos há um mês, com vários atendimentos em emergência, após tratamento empírico para verminose com mebendazol e metronidazol. US mostrou Al no colédoco distal e 2a porção do duodeno. Foi tratada com óleo mineral e piperazina oral. Novo US após cinco dias não mostrou anormalidades e a criança recebeu alta hospitalar. Retornou após 15 dias com dor abdominal em quadrante superior direito e hepatomegalia. Novo US mostrou dilatação de vias biliares intra e extra-hepáticas e espessamento parietal da vesícula biliar. Após 10 dias apresentou hemograma com leucocitose e desvio para a esquerda (18600 leucócitos, 28 bastonetes), grande aumento de trasaminases (ALT 414 UI/dL, AST 570 UI/dL) e fosfatase alcalina (1151 UI/dL). Foi tratada com antibióticos (cefotaxime). Recebeu alta hospitalar após 15 dias apesar de persistirem as alterações biliares em exames de imagem e retornou após 40 dias com febre, dor abdominal e vômitos, aumento de fosfatase alcalina (925 UI/dL) e transaminases (AST 297 UI/dL e ALT 219 UI/dL). Em nenhum dos episódios foi detectada icterícia. Novamente tratada com antibioticoterapia (Cefazidime), foi transferida para o serviço de cirurgia, após cinco meses de evolução de doença. A exploração de vias biliares demonstrou colecistite com bloqueio epiplóico, dilatação acentuada de colédoco e hepático comum e obstrução completa do colédoco distal, com fístula colédoco-duodenal distal espontânea de pequeno calibre, responsável pela drenagem biliar. Optamos por realizar colecistectomia e coledocoduodenostomia ampla. A criança foi reinternada com quadro clínico de suboclusão intestinal por bridas após três meses, tratado clinicamente, e episódio de jejunite proximal após dois anos, tratado para estrongiloidíase com desaparecimento dos sintomas. US seriados e TC com quatro meses e 2,5 anos de pós-operatório demonstram vias biliares de calibre normal e sem falhas de enchimento (Tabela 1).

Caso 3: ECR, um ano, sexo masculino. Internado após 15 dias de dor abdominal, diarréia, febre, vômitos e icterícia colestática. US demonstrou dilatação moderada de vias biliares extra-hepáticas com Al em colédoco distal. Não foi possível obter CPRE e optamos pelo tratamento cirúrgico, em que foi visualizada vesícula biliar muito distendida e colédoco dilatado. Optamos por colecistectomia, coledocotomia longitudinal distal com exploração biliar com cateter de Fogarty, obtendo grande quantidade de debris e um Al vivo. A colangiografia transoperatória demonstrou vias biliares dilatadas e tortuosas com boa passagem do contraste para o duodeno. O paciente foi submetido a drenagem coledociana com dreno de Kehr durante 10 dias e curso completo de mebendazol com evolução satisfatória. Após sete meses de pós operatório reinternação com queixa de hipocolia fecal, dor abdominal em cólica e diarréia mucóide, aumento de fosfatase alcalina e eosinofilia. O US mostrava dilatação de vias biliares intra-hepáticas e colédoco com 8 mm de diâmetro. Evoluiu com melhora espontânea e resolução de alterações ultra-sonográficas, mas houve perda de seguimento enquanto aguardava colangiografia por ressonância magnética nuclear (Tabela 1).

Caso 4: GAS, um ano, sexo feminino. Internada com quadro clínico há uma semana de tosse e eliminação de secreção respiratória mucóide (questionada síndrome de Loeffler) e eliminação de Al por via oral e anal, acompanhados de hiporexia, febre e dor abdominal. Desnutrição protéico-calórica severa.O US mostrava dilatação de vias biliares intra e extrahepáticas e presença de Al na vesícula biliar, com mobilidade preservada. Feita antibioticoterapia parenteral e piperazina oral com eliminação fecal de grande quantidade de parasitos. Novos US após quatro e 14 dias, demonstraram enovelados de Al em fígado e após 14 dias, múltiplas lesões focais contendo Al em ambos os lobos hepáticos e colédoco. Encaminhada para a cirurgia após 19 dias de evolução, havia múltiplos abscessos hepáticos contendo Al mortos e debris, com colédoco dilatado. Feita colecistectomia e coledocotomia longitudinal distal, exploração das vias biliares através de cateter de Fogarty e obtenção de grande volume de debris e vermes adultos mortos. Feita drenagem coledociana com dreno de Kehr, desbridamento e drenagem de abscessos hepáticos retirando debris, secreção purulenta e restos de vermes mortos. Evolução satisfatória até um mês de seguimento, colangiografia pós-operatória normal (Tabela 1).

DISCUSSÃO

Nossa casuística confirma uma incidência máxima de ascaridíase complicada nos pré-escolares (3/4 casos), crianças em condições sociais precárias e do meio rural, já sugerida em literatura 5-6. A despeito da melhora recente no acesso da população ao tratamento e diagnóstico das verminoses na infância, inclusive mediante prescrição empírica de antihelmínticos (AH), em nossos pacientes os únicos atendimentos médicos foram em serviços de emergência e a medicação anti-helmíntica foi prescrita na vigência de ascaridíase complicada. Em três crianças havia falhas no esquema de vacinação de rotina, fazendo supor acesso inadequado ao atendimento pediátrico rotineiro, atribuível a condições sócio-culturais ruins, dificultando o seguimento sistemático dos pacientes em pós-operatório. A disponibilidade precária dos sistemas públicos de saúde primária, ligada ao difícil acesso (mais grave no meio rural), disponibilidade pequena de profissionais e dependência do sistema na busca voluntária pelos usuários complementa a cultura inadequada dos responsáveis com relação à necessidade de cuidados profiláticos de saúde em suas crianças.

A maior susceptibilidade dos pré-escolares às complicações da ascaridíase vem sendo explicada pelas menores dimensões da luz intestinal e coledociana frente ao diâmetro habitual dos vermes e pelas infestações mais graves nesta população com relação aos lactentes e escolares 6. Sugere-se que a população de pré-escolares é particularmente prejudicada pelas más condições sanitárias no ambiente de moradia (esgoto sem tratamento, pequena disponibilidade de água para higiene, adubo humano em plantações domésticas) porque nesta faixa etária as crianças têm mobilidade ampla, permanecem no ambiente doméstico e não são capazes de discernir cuidados próprios de higiene no que concerne à contaminação fecal-oral. Costa-Macedo e colaboradores6 encontraram entre crianças maiores de dois anos provenientes de população urbana de baixa renda no Rio de Janeiro 3% de ascaridíase entre menores de um ano (6,3% entre seis meses e um ano de idade) e 31% em crianças entre um e dois anos (infestação moderada em 33% dos casos e severa em 5%), índice semelhante ao das mães e ao índice geral da população. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a presença de mais de seis vermes/ paciente prevê um alto risco de complicações, o que está de acordo com o fato de que pacientes que eliminam vermes por via oral ou anal, sinalizando a presença destes em grande número, mostram um alto índice de problemas secundários à verminose.

Em área endêmica a ascaridíase é responsável por 13% dos quadros de dor abdominal aguda, 27% das obstruções intestinais e 77% das biliopancreatopatias em pediatria 3. As formas complicadas da ascaridíase são responsáveis mundialmente por 60000 mortes/ ano, a maioria absoluta em crianças e pacientes atingidos por complicações cirúrgicas 7,8. Dados recentes sugerem que a ascaridíase biliar é responsável por 30% das complicações de ascaridíase na criança: em 6% dos casos serão necessárias medidas cirúrgicas ou endoscópicas, com uma incidência de 1% de abscesso hepático por Al 9.

Na ascaridíase biliar as lesões são causadas diretamente pela presença do verme nas vias biliares (obstrução mecânica) ou induzindo espasmo esfinctérico e reação inflamatória, granulomas do tipo corpo estranho, fibrose e estenose (Figura 1). Desta forma pode se apresentar como dor abdominal autolimitada em quadrante abdominal direito superior, semelhante às cólicas biliares (formas não complidadas) ou, raramente, evoluir a partir daí, pela deflagração de uma resposta endógena auto-perpetuante, pela instituição de lesão irreversível ou pela persistência do verme na via biliar, com quadros de colangite aguda ou subaguda (paciente 2), colecistite acalculosa (paciente 2), icterícia obstrutiva (paciente 3), abscessos hepáticos (paciente 4), litíase biliar sobre reliquat de vermes mortos, pancreatite ou suas seqüelas (paciente 1) e, raramente, massa hepática (forma crônica de reação à presença de vermes intra-hepáticos).

Existe a hipótese de que o uso de antihelmínticos pode deflagrar complicações da ascaridíase. Tal afirmação não pode ser provada até o momento, já que não há informação comparativa quanto à ausência de complicações em grupos não tratados. Há dados que desaconselham o uso de antihelmínticos após deflagrado o quadro de ascaridíase complicada, baseados em estudo clínico que comprova a maior freqüência de problemas cirúrgicos e pior prognóstico após o uso de pamoato de pirantel (agente que causa paralisia espástica do verme) em casos de obstrução intestinal por Al 10 . O uso de piperazina (agente que causa paralisia flácida e óbito do verme) durante episódio de ascaridíase biliar, embora aconselhado por alguns autores 11-13 não nos parece lógico, porque exclui a possibilidade de migração ativa do verme para fora da via biliar, passando o doente a depender apenas da peristalse dos canais biliares para eliminá-lo, o que, presumivelmente, aumenta as chances de persistência de verme morto no interior da via biliar 4, 11,12. A mesma lógica parece dizer respeito ao uso de derivados imidazólicos, que atuam impedindo o metabolismo de glicídeos do helminto. Em dois de nossos casos (casos 2 e 4) as crianças receberam antihelmínticos durante o quadro agudo de doença biliar e num terceiro (caso 1) este uso pode ser suposto, em face de episódio de obstrução intestinal por Al em curso anteriormente ao atendimento. No caso 4 foram detectados vermes mortos no interior das vias biliares como causa da complicação. Em outra criança (caso 2) foi encontrada reação inflamatória e fístula espontânea envolvendo o colédoco, talvez atribuível a reação inflamatória grave à presença de debris de vermes na via biliar. Apenas no caso 3, em quem comprovadamente não foram usados anti-helmínticos pré-operatórios foi encontrado verme vivo invadindo a via biliar: o doente não mostrava problemas além de dilatação e obstrução mecânica. Cabe dizer que é freqüente prescrever empiricamente anti-helmínticos para crianças portadoras de dor abdominal sem etiologia óbvia, porque verminose em nosso meio é considerada a causa mais freqüente de dor abdominal infantil. Se houver a possibilidade de uma complicação de ascaridíase em curso tal conduta é desaconselhada até o esclarecimento do quadro, o que no caso da ascaridíase biliar pode ser obtido através de US.

A presença de colangite clínica, icterícia ou vesícula palpável é incomum entre os portadores de ascaridíase biliar (1% de icterícia obstrutiva e 16% de colangite 14), mesmo nas formas complicadas, tornando o quadro pouco característico, apenas com dor abdominal em quadrante superior do abdome, vômitos persistentes e, em alguns casos, eliminação de vermes por via oral ou anal. Talvez seja esta a justificativa para que nossos pacientes tenham sido encaminhados de forma tardia para atendimento cirúrgico (15d, 19d, 5 m). Apenas em um de nossos pacientes (caso 3) tinha icterícia colestática, só em uma das crianças (caso 2) houve crise de colangite e nenhuma apresentava vesícula palpável. A US é muito eficaz para o diagnóstico da ascaridíase biliar, detectando os vermes (imagens curvas ou lineares ecogênicas sem sombra acústica contendo um tubo anecóico em seu interior, eventualmente dotadas de movimento), complicações secundárias e aglomerados de vermes na 2ª porção de duodeno, que fazem suspeitar fortemente de ascaridíase biliar em casos clinicamente compatíveis. A endoscopia biliar, de uso preferencial em adultos, não é, ao menos em nosso meio, de fácil execução em crianças pequenas, e não temos experiência com seu uso. Tomografia computadorizada e ressonância magnética nuclear podem ser úteis para detectar complicações.

O tratamento dos casos não complicados envolve somente suporte clínico e anti-espasmódicos (Figura 2) e a melhora clínica ocorre na maioria das vezes em 48 horas, sendo possível aguardar o restabelecimento espontâneo durante três semanas em casos pediátricos sem complicações, porque mais de 90% dos casos em crianças têm resolução espontânea 2-4. Para alguns autores, anti-helmínticos são usados ainda durante o quadro clínico (piperazina 11 ou mebendazol 13-15). Como comentamos anteriormente, não concordamos com esta conduta e utilizamos tais drogas apenas após comprovação de melhora clínica e clareamento completo da via biliar. A indicação de antibióticos está presente para a maioria dos autores, embasados na potencial contaminação do interior das vias biliares pelos vermes advindos do intestino delgado colonizado por bactérias. O tempo de uso é controverso e provavelmente não são mais necessários a partir de 48 h após a cessação do quadro clínico e clareamento completo das vias biliares. A dieta oral pode ser retomada de acordo com a progressão do quadro clínico conforme a tolerância do paciente e na maioria dos casos não é necessário cateter nasogástrico. Quando for possível a execução de extração endoscópica este será o tratamento de escolha para casos protraídos ou complicações decorrentes apenas da presença dos vermes na via biliar 16, devendo ser evitada a papiloesfincterotomia, porque facilita a recorrência do quadro 4. Em casos de abscesso hepático, casos em que os vermes persistem no interior das vias biliares além de três semanas sem possibilidade ou sem sucesso do tratamento endoscópico e casos de complicações específicas (colecistite, obstruções, fístulas e perfuração de vias biliares) deve-se proceder à cirurgia. A colecistectomia é obrigatória apenas em presença de colecistite (casos 2 e 4) e de necessidade de desvio biliar (caso 2), e foi tática no caso 3. A exploração instrumental no colédoco da criança deve ser extremamente cuidadosa pela delicadeza e pequeno tamanho da estrutura. Sempre optamos por coledocotomia longitudinal o mais distal possível e exploração e lavagem biliar com cateter de Fogarty do calibre mais delgado adequado para o caso, comprovando o clareamento final da via biliar através de colangiografia e mantendo drenagem com dreno de Kehr. Quando há coleções hepáticas fazemos apenas o desbridamento e drenagem através da superfície hepática. Os pacientes recebem tratamento anti-helmíntico por via oral após o retorno pós-operatório a uma peristalse normal. Não temos experiência com o uso de imidazólicos ou piperazina intra-coledocianos, embora alguns citem esta possibilidade. O dreno de Kehr é retirado após colangiografia normal. O caso 2 é o primeiro em literatura de que temos conhecimento apresentando fístula coledocoduodenal espontânea e obstrução fibrótica do colédoco distal. Embora coledocoduodenostomia seja incomum em crianças, a possibilidade de uma anastomose ampla e a menor morbidade frente à alternativa de uma coledocojejunoanastomose em presença de inflamação extensa do pedículo hepático, nos fez optar por esta alternativa. Até o momento a possibilidade de pancreatite secundária a estenose da papila, que nos preocupava, não ocorreu. Caso venha a ocorrer no seguimento a possibilidade de uma papilotomia endoscópica seria nossa alternativa inicial para resolução.

Lisieux Eyer de Jesus

Rua Presidente Domiciano, 52/802 - Ingá

24210-270 – Niterói - RJ

Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital Municipal Jesus, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.



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  • Endereço para correspondência

    Recebido em 19/05/2003
    Aceito para publicação em 02/09/2003
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2004

    Histórico

    • Recebido
      19 Maio 2003
    • Aceito
      02 Set 2003
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