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Videocirurgia em oncologia: mitos e verdades

Video - surgery in oncology: mythos and truths

EDITORIAL

Videocirurgia em oncologia – mitos e verdades

Video - surgery in oncology – mythos and truths

TCBC Alfredo Guarischi

Presidente da Comissão Permanente do Câncer do Colégio Brasileiro de Cirurgiões; Cirurgião do Hospital da Força Aérea do Galeão – Rio de Janeiro – RJ; Cirurgião do Hospital da Lagoa – Rio de Janeiro – RJ

A Oncologia Cirúrgica definitivamente está vivendo a era da videocirurgia. Foram inúmeras as apresentações de procedimentos oncológicos por videocirurgia que pude assistir durante o Congresso Brasileiro de Videocirurgia, em Bento Gonçalves, e no Mundial de Câncer Gástrico, em São Paulo, que ocorreram respectivamente em abril e maio deste ano.

Os avanços tecnológicos sempre despertaram discussões entre os pioneiros (visionários?) e os tradicionalistas (céticos?). Com o advento da videocirurgia não foi diferente.

As publicações das primeiras séries de apendicectomias por Mouret, na França, e Semm, um ginecologista, na Alemanha, em 1983, despertaram o interesse de alguns e perplexidade de muitos. Após Mouret realizar a primeira vídeo-colecistectomia, em Lyon, iniciou-se uma corrida de curta distância, vencida pelo professor Perissat que publicou a primeira grande série (42 casos operados do final de 1988 a junho de 1989). Na aprazível Bento Gonçalves o depoimento do professor Perissat foi emocionante. A conjugação do excelente vinho da serra gaúcha e as brilhantes apresentações dos brasileiros contagiaram o exigente francês e experiente professor que, com entusiasmo juvenil, discorreu sobre o que enfrentaram os pioneiros.

Em 1990, Thomas Szego e Sergio Roll, no Brasil, introduziram a técnica em nosso meio. Sergio Regadas, em 1991, realizou a primeira colectomia, meses após a técnica ser realizada nos USA.

O dogma "grandes cirurgias, grandes incisões" passou a ser questionado. Alguns chegaram a medir as quatro incisões da colecistectomia por vídeo e comparar com o tamanho de uma mini-laparotomia. O valor do método ficou por algum tempo restrito a discussão sobre o resultado estético. Os planos de saúde e seguradoras não pagavam pela "estética". A utilização do termo "cirurgia a laser" (agonistas) era alternado com o de "video-larapioscopia" (antagonistas). Carregadores de aparelhos de vídeo, estacionamentos de aparelhos e consórcios para aquisição de material compunham o cenário. Alguns "novatos" começaram a obter ganhos substanciais. Na falta de experiência e tecnologia algumas técnicas cirúrgicas foram "adaptadas", assim como as lesões iatrogênicas (biliares, intestinais e vasculares) eram argumentos contra. Um dos melhores videocirurgiões do Brasil, Áureo Ludovico de Goiás, foi até considerado um "não cirurgião". Questionava-se também como treinar os residentes. Cirurgiões com clínica estabelecida e experiência comprovada, que não acreditaram na "ai vem mais uma novidade", acabaram perdendo clientela. As lideranças tradicionais demoravam a despertar para o amanhã. A pressão dos pacientes foi também sentida. A indústria investiu no desenvolvimento de instrumental de forma decisiva. A época do vi uma vez, fiz uma vez e ensinei uma vez acabou. Era necessário re-aprender a operar.

A descrença com o método, inicialmente liderado por franceses e alemães, deu lugar a uma onda mundial de otimismo com o engajamento dos americanos e sua enorme força industrial. Estes últimos vinte anos provaram que o uso da videocirurgia nas principais afecções benignas digestivas, ginecológicas, torácicas e urológicas está consolidada. O profissional não apto a realizá-la pode estar cometendo uma falha ética em não discutir esta opção técnica com seu paciente.

O grande desafio é estabelecer o papel da videocirurgia na cirurgia do câncer. A melhor operação no câncer é a primeira. Não existe tratamento complementar que corrija o dano decorrente de uma cirurgia oncologicamente inadequada. É consenso que o cirurgião experiente é uma variável independente, tendo impacto direto no índice de complicações, recidivas loco-regionais e sobrevida. Porém, na vídeo, o instrumental (câmeras, pinças, trocarteres, bisturis especiais, etc) faz também a diferença.

O papel da videocirurgia, no diagnóstico e estadiamento das neoplasias abdominais e torácicas, está consolidado. A cirurgia minimamente invasiva permite uma recuperação mais rápida e o eventual inicio de tratamento complementar mais precoce.

O tratamento paliativo também é possível. Uma colostomia ou ileostomia poderá ser realizada através da vídeo, evitando-se uma incisão maior para escolha do segmento correto a ser exteriorizado. É razoável tentar por vídeo a liberação de alças de delgado que estejam produzindo obstrução, assim como a realização de derivações ou ressecções paliativas gástrica, biliar ou intestinal.

A maioria dos cirurgiões experientes em oncologia, independente da especialidade, não via na vídeo, uma opção adequada. Habilidosos e persistentes vídeocirurgiões, mas sem "formação oncológica", passaram a operar pacientes com câncer. Em diversas especialidades as primeiras cirurgias foram realizadas por não especialistas. A polêmica tornou-se ainda mais calorosa quando alguns passaram a defender a vídeocirurgia como uma especialidade médica e não um método, confundindo-se com a disputa pelo mercado de trabalho, afastando médicos e agentes financiadores da saúde (pública e privada). Tomas Kuhn, em seu brilhante livro "The Structure of Scientific Revolutions", publicado em 1962, discute a invisibilidade das revoluções em ciência. Sua leitura ajuda a entender o que ocorreu e pode abreviar a duração e profundidade das novas crises que vão ocorrer neste quase admirável mundo novo, imaginado por Aldous Huxley, em 1931.

A duração da curva de aprendizado é difícil de ser estabelecida, apesar de haver um grande número de publicações defendendo números "mágicos". Não há dúvida que se deve normatizar e chancelar quando um profissional está habilitado. O cenário ideal é freqüentar cursos teóricos e práticos, seguido de um estágio com exposição a casos de complexidade crescente, passando de cirurgião assistente a principal, sempre ajudado por instrutor qualificado.

Atualmente este tipo de aprendizado não é regra. Vários centros de treinamento foram fechados decorrentes de dificuldades diversas. A proibição de cirurgia em cães, levou a utilização de porcos, o que não atende a certas necessidades anatômicas, além de ocasionar um enorme aumento nos custos dos cursos. A utilização de cadáveres especialmente conservados é praticamente inexistente em nosso meio. Sendo assim, o que isto significa para a segurança dos pacientes?

A utilização da caixa preta ainda é válida, porém não pode ser comparada a utilização de simuladores computadorizados. Estes representam um grande avanço, permitindo, num primeiro momento, inúmeras repetições de tarefas corriqueiras e de situações de emergência, mas ajudam no desenvolvimento da cognição. Tem-se a oportunidade de previamente "operar" um paciente baseado em seus próprios exames de imagens. Na aviação os simuladores estão consagrados, contribuindo para diminuir incidentes e acidentes. O custo de um simulador cirúrgico é centenas de vezes menor do que é gasto na tentativa de reparo (financeiro, físico e emocional) de lesões iatrogênicas, que seu uso poderia evitar. Pilotos e cirurgiões comandam equipes, são responsáveis por vidas e tomam decisões constantemente, sendo as mais difíceis freqüentemente solitárias. Hoje os aviadores têm uma ferramenta de treinamento que me dá inveja e fico imaginando o que nosso Santos Dumont, de tantas invenções, poderia contribuir aliando cirurgia e aviação.

Não é função dos pioneiros dizer a última palavra, mas dizer a primeira palavra. Este é o passo mais difícil. O pioneiro tem que começar com a avaliação do problema, que sempre esteve presente, mas até então ninguém pensou nesta particular maneira de resolvê-lo. Estas são reflexões do psicólogo inglês Harry Guntrip, publicadas em 1968.

A primeira palavra já foi dita: estamos vivendo a era da videocirurgia na oncologia. O método está mudando o perfil centenário e consagrado na formação de cirurgiões, além de demonstrar a necessidade de um grande reaparelhamento de hospitais.

A videocirurgia é uma opção no tratamento de algumas patologias malignas; em determinados estádios; em centros devidamente aparelhados e só deve ser praticada por cirurgiões com experiência em oncologia, independente de sua formação ( Cirurgia Geral, Proctologia, Urologia, Ginecologia, Torácica ou outra especialidade reconhecida), mas também em videocirurgia, seguindo protocolos controlados. Ainda não temos acompanhamento de longo prazo para demonstrar que este método é oncologicamente adequado comparado com o acesso tradicional, em relação ao controle loco-regional e impacto na sobrevida.

Em ciência a verdade é passageira, porém é provável que estejamos diante de mais um revolucionário paradigma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Nov 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007
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