Acessibilidade / Reportar erro

Fatores preditivos de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado

Resumos

OBJETIVO: Identificar fatores preditivos de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado. MÉTODOS: Análise retrospectiva dos dados das vítimas de trauma fechado com idade superior a 13 anos, em um período de 15 meses. Comparamos as variáveis entre os doentes com lesões abdominais diagnosticadas por tomografia computadorizada e/ou laparotomia - grupo I (Abbreviated Injury Scale abdome>0, grupo I) e os demais - grupo II (Abbreviated Injury Scale abdome=0,). RESULTADOS: Foram incluídos 3783 casos, com média etária de 39,1 +17,7 anos (14 a 99 anos), sendo 76,1% do sexo masculino. Foram identificadas lesões abdominais em 130 doentes (3,4%). Os traumatizados com lesões abdominais apresentaram, significativamente, menor média etária (35,4 + 15,4 anos vs. 39,2 + 17,7 anos), menor média da pressão arterial sistólica à admissão (114,7 + 32,4mmHg vs. 129,1 + 21,7mmHg), menor média na escala de coma de Glasgow à admissão (12,9 + 3,9 vs. 14,3 + 2,0), maior média de AIS em segmento cefálico (0,95 + 1,5 vs. 0,67 + 1,1), maior média de AIS em segmento torácico (1,10 + 1,5 vs. 0,11 + 0,6) e maior média de AIS em extremidades (1,70 ± 1,8 vs. 1,03 ± 1,2). Os maiores Odds ratio foram presença de tórax flácido (21,8) e fraturas de pelve (21,0). CONCLUSÃO: As lesões abdominais foram mais frequentemente observadas nos doentes com instabilidade hemodinâmica, alteração na escala de coma de Glasgow, lesões graves em crânio, tórax ou extremidades.

Pacientes; Diagnóstico; Ferimentos e lesões; Ferimentos não penetrantes; Traumatismos abdominais


OBJECTIVE: To identify predictors of abdominal injuries in victims of blunt trauma. METHOD: retrospective analysis of trauma protocols (collected prospectively) of adult victims of blunt trauma in a period of 15 months. Variables were compared between patients with abdominal injuries (AIS>0) detected by computed tomography or/and laparotomy (group I) and others (AIS=0, group II). Student's t, Fisher and qui-square tests were used for statistical analysis, considering p<0.05 as significant. RESULTS: A total of 3783 cases were included, with a mean age of 39.1 ± 17.7 years (14-99), 76.1% being male. Abdominal injuries were detected in 130 patients (3.4%). Patients sustaining abdominal injuries had significantly lower mean age (35.4 + 15.4 vs. 39.2 + 17.7), lower mean systolic blood pressure on admission (114.7 + 32.4 mmHg vs. 129.1 + 21.7 mmHg), lower mean Glasgow coma scale (12.9 + 3.9 vs. 14.3 + 2.0), as well as higher head AIS (0.95 + 1.5 vs. 0.67 + 1.1), higher thorax AIS (1.10 + 1.5 vs. 0.11 + 0.6) and higher extremities AIS (1.70 ± 1.8 vs. 1.03 ± 1.2). Patients sustaining abdominal injuries also presented higher frequency of severe injuries (AIS>3) in head (18.5% vs. 7.9%), thorax (29.2% vs. 2.4%) and extremities (40.0% vs. 13.7%). The highest odds ratios for the diagnosis of abdominal injuries were associated flail chest (21.8) and pelvic fractures (21.0). CONCLUSION: Abdominal injuries were more frequently observed in patients with hemodynamic instability, changes in Glasgow coma scale and severe lesions to the head, chest and extremities.

Patients; Diagnosis; Wounds and injuries; Blunt injuries; Abdominal injuries


ARTIGO ORIGINAL

Fatores preditivos de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado

Samiris FarrathI; José Gustavo Parreira,TCBC-SP I; Jacqueline A. G. Perlingeiro,TCBC-SP I; Silvia C. Solda, TCBC-SPI; José Cesar Assef,TCBC-SPII

ICirurgião do Serviço de Emergência. Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

IIDiretor do Serviço de Emergência. Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: José Gustavo Parreira E-mail: jgparreira@uol.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Identificar fatores preditivos de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado.

MÉTODOS: Análise retrospectiva dos dados das vítimas de trauma fechado com idade superior a 13 anos, em um período de 15 meses. Comparamos as variáveis entre os doentes com lesões abdominais diagnosticadas por tomografia computadorizada e/ou laparotomia – grupo I (Abbreviated Injury Scale abdome>0, grupo I) e os demais – grupo II (Abbreviated Injury Scale abdome=0,).

RESULTADOS: Foram incluídos 3783 casos, com média etária de 39,1 +17,7 anos (14 a 99 anos), sendo 76,1% do sexo masculino. Foram identificadas lesões abdominais em 130 doentes (3,4%). Os traumatizados com lesões abdominais apresentaram, significativamente, menor média etária (35,4 + 15,4 anos vs. 39,2 + 17,7 anos), menor média da pressão arterial sistólica à admissão (114,7 + 32,4mmHg vs. 129,1 + 21,7mmHg), menor média na escala de coma de Glasgow à admissão (12,9 + 3,9 vs. 14,3 + 2,0), maior média de AIS em segmento cefálico (0,95 + 1,5 vs. 0,67 + 1,1), maior média de AIS em segmento torácico (1,10 + 1,5 vs. 0,11 + 0,6) e maior média de AIS em extremidades (1,70 ± 1,8 vs. 1,03 ± 1,2). Os maiores Odds ratio foram presença de tórax flácido (21,8) e fraturas de pelve (21,0).

CONCLUSÃO: As lesões abdominais foram mais frequentemente observadas nos doentes com instabilidade hemodinâmica, alteração na escala de coma de Glasgow, lesões graves em crânio, tórax ou extremidades.

Descritores: Pacientes. Diagnóstico. Ferimentos e lesões. Ferimentos não penetrantes. Traumatismos abdominais.

INTRODUÇÃO

Nas grandes cidades, os mecanismos de trauma fechado mais comuns incluem os acidentes automobilísticos, atropelamentos e quedas. A grande dissipação de energia pode resultar em múltiplas lesões em diferentes segmentos corpóreos e, dentre estes, o abdominal apresenta algumas particularidades. O fígado e o baço são os órgãos mais frequentemente lesados. Contudo, sabe-se que até 40% dos hemoperitônios não determinam sintomas ou sinais significativos à avaliação inicial1. Estas falhas diagnósticas resultam em mortes consideradas "evitáveis", pois poderiam não ocorrer se as lesões tivessem sido reconhecidas inicialmente1.

Há várias situações que dificultam o diagnóstico de lesões abdominais. O exame físico pode não ser confiável pela presença de trauma múltiplo ou mesmo de alteração no nível de consciência. Os parâmetros do exame clínico podem ser mascarados em doentes com intoxicação exógena2. Desta forma, recorremos a exames complementares como o ultrassom e a tomografia computadorizada.

O Foccused Assessment Sonography for Trauma (FAST) é o exame ultrassonográfico realizado na sala de emergência, com o objetivo de detectar líquido livre intraperitoneal e pericárdico em vítimas de trauma. Este método diagnóstico apresenta limitações, principalmente relacionadas ao volume do hemoperitônio presente no momento do exame, além de ser examinador dependente3. Mesmo um exame ultrassonográfico completo, quando são avaliados detalhadamente os órgãos abdominais, pode ser falso negativo4.

A tomografia computadorizada de abdome é atualmente o exame de maior acurácia nesta situação5,6. Contudo, também é acompanhada de pontos negativos. Há necessidade de administração endovenosa de contraste iodado e exposição à radiação. Dependendo do protocolo utilizado, pode não ser custo-efetiva se comparado a exames mais simples. Além de tudo, há limitações conhecidas no diagnóstico de lesões pancreáticas e intestinais7.

Sabemos que há variáveis clínicas que se relacionam com a presença de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado, as quais podem ser denominadas "fatores preditivos". Isto se torna importante diante da possibilidade de haver lesões intra-abdominais potencialmente letais que não manifestam sinais clínicos ao exame abdominal inicial. A identificação destes marcadores pode orientar o médico quanto à gravidade do caso, sugerir uma investigação diagnóstica mais detalhada e direcionada. Além disso, pode determinar um acompanhamento mais próximo e influenciar o momento de alta hospitalar.

O objetivo do nosso estudo é a identificação de fatores preditivos de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado.

MÉTODOS

No Serviço de Emergência da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo realizamos uma coleta prospectiva de dados de todos os pacientes traumatizados admitidos na sala de emergência entre 2008 e 2009. Foram coletados dados sobre identificação, mecanismo de trauma, dados vitais à admissão, índices de trauma, exames complementares realizados, doenças associadas, lesões diagnosticadas e tratamento realizado.

O protocolo de avaliação abdominal por exames de imagem que é empregado rotineiramente em nosso Serviço utiliza o FAST, o ultrassom completo (US) e a tomografia computadorizada (TC) seletivamente e na dependência da avaliação do risco de lesão abdominal pelo médico assistente. Além da investigação por imagem, realizamos exames laboratoriais como o leucograma, a dosagem sérica de amilase e a gasometria arterial para avaliação de possíveis lesões abdominais. A leucocitose, o aumento de amilase e a acidose metabólica sugerem lesões que eventualmente não tenham sido identificadas pelos exames de imagem.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, sob o número 064/11. Realizamos uma análise retrospectiva dos protocolos coletados no período 10/06/2008 a 01/09/2009. Foram incluídas todas as vítimas de trauma fechado com idade superior a 13 anos. A estratificação de gravidade da amostra foi realizada através dos índices de trauma: Escala de Coma de Glasgow (ECG)8, Revised Trauma Score (RTS)9, Abbreviated Injury Scale (AIS)10, Injury Severity Score (ISS)11 e Trauma Score – Injury Severity Score (TRISS)12. Comparamos as variáveis entre os doentes com lesões abdominais (AIS abdome>0, grupo I) diagnosticadas por tomografia computadorizada e/ou laparotomia exploradora e os demais (AIS abdome=0, grupo II) para identificar os fatores preditivos de lesões abdominais. Consideramos como graves as lesões com AIS>3. Os doentes com líquido livre intraperitoneal ou hematomas de retroperitoneo, mas sem lesões em vísceras específicas, não foram considerados como portadores de lesão abdominal, sendo incluídos no grupo II.

Consideramos para análise apenas as variáveis com informações em mais de 95% do total de protocolos. Utilizamos o teste qui-quadrado ou Fisher para avaliar as variáveis categóricas. As variáveis numéricas serão apresentadas como média + desvio padrão. Utilizamos o teste t de Student para a comparação das médias. Consideramos p<0,05 como estatisticamente significativo. Calculamos também o Odds Ratio quando adequado.

RESULTADOS

Foram incluídas em nosso estudo 3783 vítimas de trauma fechado, cuja idade variou entre 14 e 99 anos (média 39,1 anos + 17,7 anos), sendo 2879 (76,1%) do sexo masculino. As médias do RTS, ISS e TRISS calculados para a amostra foram, respectivamente, 7,72 + 0,6; 5,13 + 8,3 e 0,97 + 0,1. Os mecanismos de trauma relatados foram os acidentes com motociclistas em 924 (24,4%), atropelamentos em 855 (22,6%), quedas da própria altura em 644 (17,0%), quedas de nível em 455 (12,0%), agressão física em 424 (11,2%), acidentes automobilísticos em 337 (8,9%). Os restantes 144 (3,9%) apresentavam mecanismos de trauma associados ou que não se encaixavam nos grupos acima.

As lesões encontradas nas extremidades foram observadas em 2233 (59,0%) doentes, em segmento cefálico em 1566 (41,4%), em segmento torácico em 216 (5,7%) e, em segmento abdominal, em 130 (3,4%). No grupo I, as lesões abdominais mais frequentes foram as hepáticas, identificadas em 42 (32,3%) pacientes e as esplênicas, também em 42 (32,3%) (Tabela 1). As lesões no estômago, intestino delgado e cólon somadas foram observadas em 12 doentes, o que corresponde a 0,3% da amostra total e 9,1% do grupo I. As lesões abdominais graves (AIS>3) foram identificadas em 84 pacientes, o que corresponde a 2,2% do total da amostra e 64,6% dos doentes do grupo I.

Observamos que 3424 doentes tinham exame físico abdominal sem nenhuma alteração à admissão. Destes, 54 (1,6%) apresentavam alguma lesão abdominal. Dos 359 traumatizados que tinham o exame físico abdominal alterado, 76 (21,2%) tinham lesão abdominal. Quando analisamos apenas os doentes com lesões abdominais, observamos que 54 (41,5%) apresentavam exame físico abdominal normal à admissão. Apenas seis doentes apresentavam sinais francos de peritonite ao exame físico e todos estes apresentavam lesões abdominais.

Na comparação das variáveis numéricas entre os grupos, observamos que os doentes com lesões abdominais (grupo I) se caracterizaram por apresentarem, significativamente (p<0,05), menor média etária (35,4 + 15,4 anos vs. 39,2 + 17,7 anos), menor média na pressão arterial sistólica à admissão (114,7 + 32,4mmHg vs. 129,1 + 21,7mmHg), maior média na frequência cardíaca à admissão (91,6 + 16,2bpm vs. 82,6 + 13,4bpm), menor média na escala de coma de Glasgow à admissão (12,9 + 3,9 vs. 14,3 + 2,0), maior média do índice de trauma anatômico AIS em segmento cefálico (0,95 + 1,5 vs. 0,67 + 1,1), torácico (1,10 + 1,5 vs. 0,11 + 0,6 ) e em extremidades (1,70 ± 1,8 vs. 1,03 ± 1,2) (Tabela 2). Os doentes do grupo I apresentaram, significativamente (p<0,05), menor média de RTS (7,37 + 1,3 vs. 7,73 + 0,5) e TRISS (0,86 + 0,2 vs. 0,98 + 0,1), como também maior média de ISS (22,6 +15,9 vs. 4,5 + 7,1) em comparação ao grupo II.

Notamos que houve uma diferença significativa na comparação das frequências dos mecanismos de trauma entre os grupos (p<0,001). A frequência dos atropelamentos foi maior (33,8% vs. 22,2%) e, a de quedas de própria altura, menor (1,5% vs. 17,6%), no grupo de doentes com lesões abdominais.

Na comparação das variáveis nominais entre os grupos, notamos que os traumatizados com lesões abdominais apresentaram uma frequência significativamente maior de exame físico abdominal anormal (58,5% vs. 7,7%), ECG<8 à admissão (14,6% vs. 6,4%), PAS<100mmHg à admissão (16,9% vs. 1,8%), drenagem de tórax à admissão (13,8% vs. 1,3%), lesão grave em segmento cefálico (AIS>3) (18,5% vs. 7,9%), trauma raquimedular (6,2% vs. 1,0%), hemotórax (17,7% vs. 1,1%), pneumotórax (13,8% vs. 1,4%), fraturas de costelas (26,9% vs. 2,6%), tórax flácido (13,1% vs. 0,7%), contusão pulmonar (18,5% vs. 1,2%), enfisema de subcutâneo (4,6% vs. 0,5%), lesão grave em segmento torácico (29,2% vs. 2,4%), fraturas em membros superiores (16,9% vs. 4,8%), fraturas em membros inferiores (14,6% vs. 5,5%), fraturas expostas em membros superiores (4,6% vs. 1,0%), fraturas expostas em membros inferiores (7,7% vs. 3,0%), fraturas e pelve (37,7% vs. 2,8%) e lesões graves (AIS>3) em extremidades (40,0% vs. 13,7%) (Tabela 3). Os maiores Odds ratio para diagnóstico de lesões abdominais foram a presença de tórax flácido (21,8) e fraturas de pelve (21,0) (Tabela 3).

No grupo I, foram realizadas 39 laparotomias, sendo 29 terapêuticas. Sessenta doentes tiveram tratamento não operatório de lesões em fígado, baço e/ou rins, sendo dez arteriografias com embolização necessárias neste grupo. A letalidade foi significativamente maior no grupo I (12,3% vs. 1,9%, p<0,001). Não foram identificadas complicações por atraso no diagnóstico de lesões abdominais.

DISCUSSÃO

Não se sabe ao certo qual a porcentagem de doentes com lesões abdominais secundárias ao trauma fechado. Em estudos com amostras amplas, como o de Mackersie et al.13, cerca de 3% das vítimas de trauma fechado apresentavam alguma lesão abdominal. Nas vítimas de politraumatismo admitidas com trauma cranioencefálico leve, sua frequência aumenta para 10%14. Estudando apenas os doentes com mecanismos de trauma "de alta energia", Deunk et al.7 encontraram aproximadamente 30% de lesões abdominais. Nos casos de vítimas de trauma com fraturas de pelve, a incidência de lesões abdominais associadas pode alcançar 40%15.

A amostra deste estudo tem valores de RTS, ISS e TRISS que sugerem mecanismos de trauma de baixa energia. A frequência de lesões abdominais foi 3,4%. As lesões graves estiveram presentes em 2,2% e as lesões de vísceras ocas em 0,3%. Acreditamos que esta baixa incidência torne ainda mais difícil o diagnóstico das lesões abdominais.

Sabe-se também que um exame físico normal não descarta a possibilidade de lesão abdominal. Tanto a história clínica como o exame físico e os exames complementares podem apresentar resultados falso-negativos. Michetti et al.2, em 2010, verificaram que 10% das vítimas de trauma fechado com exame físico abdominal sem alterações à admissão apresentavam lesões abdominais confirmadas por exames de imagem (tomografia computadorizada). Em nosso estudo, observamos que, dos pacientes com exame abdominal normal, apenas 1,6% apresentavam lesões abdominais, mas 41,5% dos doentes com alguma lesão abdominal não tinha qualquer alteração no exame físico abdominal. Portanto, exames complementares devem ser empregados para a identificação destas possíveis lesões.

O FAST e o ultrassom completo de abdome, métodos rotineiramente utilizados para a avaliação das vítimas de trauma abdominal fechado, apresentam o problema dos exames "falso-negativos"3,16-24. Apesar de haver grupos que indicam a realização rotineira de tomografia computadorizada em vítimas de trauma fechado, sabemos que há limitações no seu uso. É necessária a administração de material para contraste endovenoso e oral, que se segue de reações anafiláticas em aproximadamente 1:1000 casos1. Há exposição a uma certa dose de radiação, que pode ser associada ao surgimento de neoplasias em longo prazo25. O risco do transporte deve ser considerado. Dependendo da distância entre a sala de emergência e o tomógrafo, o doente precisa estar hemodinamicamente normal para a sua realização. Outro ponto limitante é a disponibilidade deste exame que não é regular. A tomografia de abdome pode apresentar também resultado falso negativo, principalmente em lesões de pâncreas, duodeno retroperitoneal e jejuno/íleo26,27. Sabe-se também que o atendimento ao traumatizado onera muito o sistema de saúde28. Isto deveria também ser considerado na indicação sistemática de tomografia de abdome em uma amostra de doentes com trauma de baixa energia, em que a positividade do exame dificilmente seria superior a 5%.

Há necessidade de selecionar os doentes de maior risco a serem submetidos à tomografia computadorizada de abdome. É com este objetivo que surge a idéia de estudar variáveis que possam estar significativamente associadas à presença de lesões abdominais. Estes fatores preditivos podem alertar para um risco maior, o que permitiria a priorização e direcionamento da investigação diagnóstica.

Mackersie et al.13, em 1989, estudaram os sinais "indiretos" relacionados à presença de lesões abdominais nos doentes vítimas de trauma fechado. Estes autores notaram que a presença de excesso de base menor que -5mEq/L à gasometria arterial, de hipotensão arterial à admissão ou na cena do trauma, de lesões em tórax e de fraturas de bacia se associaram significativamente a presença de lesões abdominais.

Em 2010, Deunk et al.7 propuseram a indicação seletiva de tomografia computadorizada, baseada em critérios clínicos, radiológicos, laboratoriais e ultrassonográficos. Em seu estudo envolvendo 1040 vítimas de trauma de alta energia, identificaram nove fatores independentes significativamente associados com a presença de lesões abdominais: alterações em radiografia simples de tórax, coluna ou pelve, FAST positivo, exame físico abdominal positivo, alterações no exame físico da coluna vertebral, excesso de base menor que -3mEq/L na gasometria arterial, pressão arterial sistólica menor que 90mmHg e presença de fraturas em ossos longos. Baseados nestes dados, a tomografia estaria indicada nos doentes estáveis hemodinamicamente que apresentassem concomitantemente: sinais de deterioração neurológica (escala de coma de Glasgow menor que 8, anisocoria, fratura exposta de crânio), exame físico abdominal anormal, fraturas de bacia, coluna lombar ou extremidades, excesso de base menor que -3mEq/L à gasometria arterial, anormalidades à radiografia de tórax, bacia, coluna, ou FAST positivo7.

Há preocupação especialmente com o grupo de traumatizados com diminuição do nível de consciência, especialmente os com trauma cranioencefálico grave. Como não há nível neurológico adequado, o exame físico abdominal fica prejudicado e lesões graves podem passar despercebidas mesmo na tomografia de abdome. As lesões mais temidas são as que ocorrem em vísceras ocas, pois seu diagnóstico tardio pode ter consequências graves29. Justamente neste grupo, o diagnóstico por tomografia computadorizada é mais difícil, o que constitui uma combinação muito perigosa.

Outros estudos avaliaram a presença de fatores preditivos de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado. Beck et al.30, em 2004, encontraram relação significativa de lesões abdominais com uma radiografia de pelve anormal e a necessidade de intubação orotraqueal. Os dados encontrados em nossa amostra demonstram claramente a associação das lesões abdominais com algumas variáveis: instabilidade hemodinâmica à admissão, diminuição do nível de consciência à admissão, maior gravidade de lesões em segmentos cefálico, torácico e em extremidades, bem como, fraturas de pelve e em ossos longos (Tabela 3). Muitos destes dados estão de acordo com os estudos já citados 7,13,30. É interessante observar que a presença de fratura pélvica é o fator isolado que aparece mais frequentemente como preditivo de lesões abdominais. No estudo de Deunk et al.7, em 2010, o Odds Ratio para a presença de lesão abdominal nos portadores de fraturas de pelve foi 46,8. Em nosso estudo, a chance de um traumatizado com fratura de pelve apresentar uma lesão abdominal é 21 vezes maior quando comparada com os pacientes sem fratura.

Já é conhecida a associação das lesões torácicas com as abdominais13. Em nossa amostra, o maior Odds ratio para a presença de lesões abdominais foi observado na associação com o tórax flácido (OR=21,8), um marcador de trauma torácico grave. Nossos dados também confirmaram a maior chance de lesão abdominal nos traumatizados com fraturas de ossos longos e de coluna vertebral. Contudo, consideramos importante observar que, em nosso estudo, a incidência de lesões abdominais foi também maior na presença de lesões graves em segmento cefálico e nos doentes com diminuição na escala de coma de Glasgow. Fica claro que, para o diagnóstico adequado, deve-se observar o doente como um todo, pois os sinais da presença de lesões abdominais podem também ser encontrados em outros segmentos corporais ou mesmo no próprio mecanismo do trauma. Os dados deste estudo apontam para uma maior frequência de lesões abdominais nas vítimas de atropelamentos, enquanto que, nas vítimas de quedas da própria altura, sua incidência foi menor.

Finalmente, gostaríamos de chamar a atenção para a somatória de fatores que dificultam o diagnóstico na prática clínica: as lesões abdominais são mais frequentes justamente nas situações de maior risco de passarem despercebidas, como na diminuição de nível de consciência, trauma craniencefálico grave, necessidade de intubação orotraqueal, necessidade de uso de analgésicos (tórax flácido) ou mesmo na necessidade de tratamento operatório por fraturas em extremidades, quando um procedimento anestésico é necessário.

A proposta de nosso estudo foi justamente expor de uma forma ampla quais variáveis poderiam estar associadas às lesões abdominais. Certamente, a utilização destes dados pode trazer informações úteis para a identificação de lesões que, inicialmente, poderiam passar despercebidas, contribuindo para a diminuição da morbidade e letalidade associada ao diagnóstico tardio de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado.

Os dados deste estudo nos permitem concluir que os fatores preditivos de lesões abdominais em vítimas de trauma fechado são: mecanismo de trauma, instabilidade hemodinâmica, alteração do nível de consciência e presença de lesões graves em crânio, tórax ou extremidades, especialmente tórax flácido e fraturas pélvicas.

Conflito de interesse: nenhum

Fonte de financiamento: nenhum

Recebido em 18/11/2011

Aceito para publicação em 19/01/2012

Trabalho realizado no Serviço de Emergência. Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo- Departamento de Cirurgia. Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

  • 1. Fabian TC, Croce, MA. Abdominal trauma, including indications for celiotomy. In: Mattox KL, Feliciano DV, Moore EE, editores. Trauma. 4Ş ed. New York: McGraw-Hill; 2000. p.1583-602.
  • 2. Michetti CP, Sakran JV, Grabowski JG, Thompson EV, Bennett K, Fakhry SM. Physical examination is a poor screening test for abdominal-pelvic injury in adult blunt trauma patients. J Surg Res. 2010;159(1):456-61.
  • 3. Shuster M, Abu-Laban RB, Boyd J, Gauthier C, Mergler S, Shepherd L, et al. Focused abdominal ultrasound for blunt trauma in an emergency department without advanced imaging or on-site surgical capability. CJEM. 2004;6(6):408-15.
  • 4. Kornezos I, Chatziioannou A, Kokkonouzis I, Nebotakis P, Moschouris H, Yiarmenitis S, et al. Findings and limitations of focused ultrasound as a possible screening test in stable adult patients with blunt abdominal trauma: a Greek study. Eur Radiol. 2010;20(1):234-8.
  • 5. Self ML, Blake AM, Whitley M, Nadalo L, Dunn E. The benefit of routine thoracic, abdominal, and pelvic computed tomography to evaluate trauma patients with closed head injuries. Am J Surg. 2003;186(6):609-13; discussion 613-4.
  • 6. Salim A, Sangthong B, Martin M, Brown C, Plurad D, Demetriades D Whole body imaging in blunt multisystem trauma patients without obvious signs of injury: results of a prospective study. Arch Surg. 2006;141(5):468-73.
  • 7. Deunk J, Brink M, Dekker HM, Kool DR, Blickman JG, van Vugt AB, et al. Predictors for the selection of patients for abdominal CT after blunt trauma: a proposal for a diagnostic algorithm. Ann Surg. 2010;251(3):512-20.
  • 8. Teasdale G, Jennett B. Assessment of coma and impaired consciousness: a practical scale. Lancet. 1974;2(7872):81-84.
  • 9. Champion HR, Sacco WJ, Copes WS, Gann DS, Gennarelli TA, Flanagan ME. A revision of the Trauma Score. J Trauma. 1989;29(5):623-9.
  • 10
    Association for the Advancement of Automotive Medicine, Committee on Injury Scaling. The abbreviated injury scale-1990 Revision (AIS-90). Des Plaines, IL: Association for the Advancement of Automotive Medicine, 1990.
  • 11. Baker SP, O'Neill B, Haddon W Jr, Long WB. The injury severity score: a method for describing patients with multiple injuries and evaluating emergency care. J Trauma. 1974;14(3):187-96.
  • 12. Boyd CR, Tolson MA, Copes WS. Evaluating trauma care: the TRISS method. Trauma Score and the Injury Severity Score. J Trauma. 1987;27(4):370-8.
  • 13. Mackersie RC, Tiwary AD, Shackford SR, Hoyt DB. Intra-abdominal injury following blunt trauma. Identifying the high-risk patient using objective risk factors. Arch Surg. 1989;124(7):809-13.
  • 14. Wu SR, Shakibai S, McGahan JP, Richards JR. Combined head and abdominal computed tomography for blunt trauma: which patients with minor head trauma benefit most? Emerg Radiol. 2006;13(2):61-7.
  • 15. Parreira JG, Haddad L, Rasslan S. Lesões abdominais nos traumatizados com fraturas de bacia. Rev Col Bras Cir. 2002;29(3):153-60.
  • 16. Miller MT, Pasquale MD, Bromberg WJ, Wasser TE, Cox J. Not so FAST. J Trauma. 2003;54(1):52-9; discussion 59-60.
  • 17. Sirlin CB, Brown MA, Deutsch R, Andrade-Barreto OA, Fortlage DA, Hoyt DB, et al. Screening US for blunt abdominal trauma: objective predictors of false-negative findings and missed injuries. Radiology. 2003;229(3):766-74.
  • 18. Hoffman L, Pierce D, Puumala S. Clinical predictors of injuries not identified by focused abdominal sonogram for trauma (FAST) examinations. J Emerg Med. 2009;36(3):271-9.
  • 19. Ballard RB, Rozycki GS, Newman PG, Cubillos JE, Salomone JP, Ingram WL, et al. An algorithm to reduce the incidence of false-negative FAST examinations in patients at high risk for occult injury. Focused Assessment for the Sonographic Examination of the Trauma patient. J Am Coll Surg. 1999;189(2):145-50; discussion 150-1.
  • 20. Poletti PA, Kinkel K, Vermeulen B, Irmay F, Unger PF, Terrier F. Blunt abdominal trauma: should US be used to detect both free fluid and organ injuries? Radiology. 2003;227(1):95-103.
  • 21. Yoshii H, Sato M, Yamamoto S, Motegi M, Okusawa S, Kitano M, et al. Usefulness and limitations of ultrasonography in the initial evaluation of blunt abdominal trauma. J Trauma. 1998;45(1):45-50; discussion 50-1.
  • 22. Kendall JL, Faragher J, Hewitt GJ, Burcham G, Haukoos JS. Emergency Department Ultrasound is not a sensitive detector of solid organ injury. West J Emerg Med. 2009;10(1):1-5.
  • 23. Tillou A, Gupta M, Baraff LJ, Schriger DL, Hoffman JR, Hiatt JR, et al. Is the use of pan-computed tomography for blunt trauma justified? A prospective evaluation. J Trauma. 2009;67(4):779-87.
  • 24. Deunk J, Brink M, Dekker HM, Kool DR, van Kuijk C, Blickman JG, et al. Routine versus selective computed tomography of the abdomen, pelvis, and lumbar spine in blunt trauma: a prospective evaluation. J Trauma. 2009;66(4):1108-17.
  • 25. Johnson DA, Helft PR, Rex DK. CT and radiation-related cancer risk-time for a paradigm shift? Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2009;6(12):738-40.
  • 26. Atri M, Hanson JM, Grinblat L, Brofman N, Chughtai T, Tomlinson G. Surgically important bowel and/or mesenteric injury in blunt trauma: accuracy of multidetector CT for evaluation. Radiology. 2008;249(2):524-33.
  • 27. Phelan HA, Velmahos GC, Jurkovich GJ, Friese RS, Minei JP, Menaker JA, et al. An evaluation of multidetector computed tomography in detecting pancreatic injury: results of a multicenter AAST study. J Trauma. 2009;66(3):641-6; discussion 646-7.
  • 28. Lanzarotti S, Cook CS, Porter JM, Judkins DG, Williams MD. The cost of trauma. Am Surg. 2003;69(9):766-70.
  • 29. Sung CK, Kim KH. Missed Injuries in abdominal trauma. J Trauma. 1996;41(2):276-82.
  • 30. Beck D, Marley R, Salvator A, Muakkassa F. Prospective study of the clinical predictors of a positive abdominal computed tomography in blunt trauma patients. J Trauma. 2004;57(2):296-300.
  • Endereço para correspondência:

    José Gustavo Parreira
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      18 Nov 2011
    • Aceito
      19 Jan 2012
    Colégio Brasileiro de Cirurgiões Rua Visconde de Silva, 52 - 3º andar, 22271- 090 Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 2138-0659, Fax: (55 21) 2286-2595 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revista@cbc.org.br