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Reinfusão transoperatória: um método simples e seguro na cirurgia de emergência

Resumos

O objetivo deste trabalho é reforçar a importância da reinfusão sanguínea como um método barato, seguro e simples, e que pode ser utilizado em hospitais de pequeno porte, destacando aqueles que não dispõem de banco de sangue. Além disso, mesmo com a utilização de aparelhos que realizam a coleta e filtração do sangue, trabalhos mais recentes mostram que a relação custo-benefício é bem melhor, comparando a transfusão autóloga com a transfusão de hemoderivados, mesmo quando há lesão de vísceras ocas e contaminação do sangue. Sabe-se que, atualmente, a transfusão de sangue alogênico acarreta uma série de riscos aos pacientes, dentre eles, estão os distúrbios de coagulação mediados pelo excesso de enzimas no sangue, conservada e deficiência nos fatores de coagulação; destacando o Fator V, a proacelerina. Outro fator seria o risco de contaminação com patógenos ainda desconhecidos ou que não são investigados durante a triagem para seleção de doadores, como por exemplo, a Febre do Nilo Ocidental e a Doença de Creutzfeldt-Jacob, mais conhecida como Doença da "Vaca Louca". Comparando ambos os métodos, concluímos que a autotransfusão sanguínea possui inúmeras vantagens em relação à transfusão heteróloga, mesmo em hospitais de grande porte. Não somos contra a transfusão de hemoderivados, só não concordamos que seja desprezado o sangue do próprio paciente, sem termos certeza de que vai chegar sangue em quantidade suficiente para tirá-lo do choque hemorrágico.

Sangue; Transfusão de Sangue; Transfusão de Sangue Autóloga; Traumatismos Abdominais; Choque Hemorrágico


The objective is to reinforce the importance of blood reinfusion as a cheap, safe and simple method, which can be used in small hospitals, especially those in which there is no blood bank. Moreover, even with the use of devices that perform the collection and filtration of blood, more recent studies show that the cost-benefit ratio is much better when autologous transfusion is compared with blood transfusions, even when there is injury to hollow viscera and blood contamination. It is known that the allogeneic blood transfusion carries a number of risks to patients, among them are the coagulation disorders mediated by excess enzymes in the conserved blood, and deficiency in clotting factors, mainly the Factor V, the proacelerin. Another factor would be the risk of contamination with still unknown pathogens or that are not investigated during screening for selection of donors, such as the West Nile Fever and Creutzfeldt-Jacob, better known as "Mad Cow" disease. Comparing both methods, we conclude that blood autotransfusion has numerous advantages over heterologous transfusion, even in large hospitals. We are not against blood transfusions, just do not agree that the patient's own blood is discarded without making sure there will be enough blood in stock to get him out of the hemorrhagic shock.

Blood; Blood Transfusion; Blood Transfusion; Autologous; Abdominal Injuries; Shock, Hemorrhagic


As hemorragias internas, decorrentes de lesões traumáticas nas cavidades, torácica e abdominal, bem como as hemorragias resultantes de rupturas de vísceras maciças ou de vasos mesentéricos, podem levar à morte, caso não haja uma reposição volêmica adequada, sendo que esta passa obrigatoriamente por uma reposição sanguínea. Não basta parar a hemorragia, é necessário repor o volume perdido.

A reinfusão sanguínea é um método que consiste na reintrodução do sangue perdido pelo paciente em uma hemorragia qualquer, no período pré, per ou pós-operatório, e acumulado nas cavidades torácica ou abdominal; sendo coletado por meios variados, e imediatamente reintroduzido na circulação do paciente11. Bogossian L, Bogossian AT. Autotransfusão de pré-coleta imediata. Rev Col Bras Cir. 2008;35(4):259-63.. Trata-se, portanto, de uma transfusão autóloga, o que a diferencia das outras transfusões que são homólogas22. Bogossian L. Papel atual da reinfusão sanguínea. Folha Med. 1986;92(4):223-8.

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Atualmente, podemos destacar os principais meios de utilização da reinfusão: transoperatória, feita com sangue acumulado em cavidades serosas (hemoperitônio e hemotórax); transoperatória feita com sangue coletado durante os procedimentos cirúrgicos; pós-operatória (utiliza sangue que escoa por drenos no pós-operatório); de sangue contido nos órgãos extirpados durante o ato operatório11. Bogossian L, Bogossian AT. Autotransfusão de pré-coleta imediata. Rev Col Bras Cir. 2008;35(4):259-63. , 33. Adukauskienë D, Ðirvinskas E, Veikutienë A. Autologinio kraujo perpylima. Medicina (Kaunas) 2008;44(6):482-8. , 66. Saarela E. Autotransfusion: a review. Ann Clin Res. 1981;13 Suppl 33:48-56.. Este método é utilizado principalmente em esplenectomias, mas não deve ser usado em órgãos infectados ou em pacientes portadores de neoplasia maligna11. Bogossian L, Bogossian AT. Autotransfusão de pré-coleta imediata. Rev Col Bras Cir. 2008;35(4):259-63. , 77. Walrond ER, Huston JE. Autotransfusion in splenic rupture. Lancet. 1965;286(7462):1134.

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Lembrar, também, da autotransfusão de pré-depósito (programada) que consiste na coleta prévia do sangue do paciente para reinfundi-lo no momento em que dele necessitar11. Bogossian L, Bogossian AT. Autotransfusão de pré-coleta imediata. Rev Col Bras Cir. 2008;35(4):259-63. , 33. Adukauskienë D, Ðirvinskas E, Veikutienë A. Autologinio kraujo perpylima. Medicina (Kaunas) 2008;44(6):482-8. , 44. Ridgeway S, Tai C, Alton P, Barnardo P, Harrison DJ. Pre-donated autologous blood transfusion in scoliosis surgery. J Bone Joint Surg Br. 2003;85(7):1032-6. , 1111. Chen G, Zhang F, Gong M, Yan M. Effect of perioperative autologous versus allogeneic blood transfusion on the immune system in gastric cancer patients. J Zhejiang Univ Sci B. 2007;8(8):560-5..

Comparando a reinfusão com a transfusão, temos vantagens evidentes da primeira. Ora, a transfusão é na verdade um transplante de órgão, com todas as desvantagens que essa pode trazer55. Keeling MM, Gray LA Jr, Brink MA, Hillerich VK, Balnd KI. Intraoperative autotransfusion: experience in 725 consecutive cases. Ann Surg. 1983;197(5):536-41.. Conhecemos os vários problemas da transmissão de doenças como a sífilis, Doença de Chagas e AIDS, só para citar algumas22. Bogossian L. Papel atual da reinfusão sanguínea. Folha Med. 1986;92(4):223-8. , 55. Keeling MM, Gray LA Jr, Brink MA, Hillerich VK, Balnd KI. Intraoperative autotransfusion: experience in 725 consecutive cases. Ann Surg. 1983;197(5):536-41. , 1212. Nascimento Jr B, Scarpelini S, Rizoli S. Coagulopatia no trauma. Medicina (Ribeirão Preto). 2007;40(4):509-17.. Os defensores da transfusão podem dizer que o sangue passa por uma série de testes que o torna isento de ser transfundido com essas doenças. Entretanto, devemos lembrar que, além do tempo de espera, os custos acarretados são altos. No passado, quando não se conhecia a AIDS, vários pacientes foram contaminados em transfusões. Será que não estamos transfundindo alguns vírus que não sabemos que existem, e no futuro, estaremos nos lamentando novamente, como fazemos hoje com a AIDS? Segundo a America's Blood Centers (ABC), atualmente, há outras doenças que podem ser transmitidas por meio da transfusão sanguínea e que não são investigadas de forma adequada durante a triagem para possíveis doadores, como a Febre do Nilo Ocidental, o Parvovírus B19, a Babesiose e a Doença de Creutzfeldt-Jacob, sendo sua variante mais conhecida, a "Doença da Vaca Louca"1313. MacPherson J. Blood costs and the market basket. Blood Counts. 2009;1(1):1-2.

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Em uma análise retrospectiva com 592 pacientes submetidos à autotransfusão transoperatória foi comparando os custos da transfusão sanguínea convencional e a transfusão autóloga, como terapia coadjuvante. O custo total da autotransfusão foi de U$63.252,00. Se fossem transfundir a mesma quantidade com hemoderivados, o custo seria em torno de U$114.523,00, ou seja, uma economia em torno de 45% do valor total2020. Smith LA, Barker DE, Burns RP. Autotransfusion utilization in abdominal trauma. Am Surg. 1997;63(1):47-9. , 2121. Brown CV, Foulkrod KH, Sadler HT, Richards EK, Biggan DP, Czysz C, et al. Autologous blood transfusion during emergency trauma operations. Arch Surg. 2010;145(7):690-4.. Estudo realizado por Brown et al. 2121. Brown CV, Foulkrod KH, Sadler HT, Richards EK, Biggan DP, Czysz C, et al. Autologous blood transfusion during emergency trauma operations. Arch Surg. 2010;145(7):690-4. , em 2010, mostrou que os pacientes submetidos à autotransfusão tiveram um custo de U$1.616 por paciente. Já os pacientes submetidos somente a transfusão alogênica, tiveram um custo de U$2.584 por paciente2121. Brown CV, Foulkrod KH, Sadler HT, Richards EK, Biggan DP, Czysz C, et al. Autologous blood transfusion during emergency trauma operations. Arch Surg. 2010;145(7):690-4..

Finalmente, não existe mais sangue total, o sangue transfundido na sala de operações é o concentrado de hemácias, espesso e de infusão lenta. E na reinfusão, quais os inconvenientes? A autotransfusão é relativamente livre de complicações. As ressalvas seriam o consumo dos fatores de coagulação e plaquetas, contaminação, sepse, embolia aérea e a hemólise, que ocorre pela própria manipulação das hemácias durante o processo de coleta na cavidade, acarretando, em alguns casos, hemoglobinúria e hipercalemia, lembrando que esta última é uma complicação raríssima22. Bogossian L. Papel atual da reinfusão sanguínea. Folha Med. 1986;92(4):223-8. , 88. Duncan SE, Klenaboff G, Rogers W. A clinical experience with intraoperative autotransfusion. Ann Surg. 1974;180(3):296-304. , 2222. Harris EM, D'Agostino J. Autotransfusion. In: King C, Henretig FM, editors. Textbook of pediatric emergency procedures. 2nd ed. Philadelphia: Lippincot; 2008. p.391-5.

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Em 2006, Bowley et al. 2626. Bowley DM, Barker P, Boffard KD. Intraoperative blood salvage in penetrating abdominal trauma: a randomised, controlled trial. World J Surg. 2006;30(6):1074-80. realizaram um estudo randomizado com 44 pacientes, vítimas de trauma abdominal penetrante, em que 21 destes foram submetidos à transfusão autóloga e a alogênica, concomitantemente. Após compararem com o grupo controle de 23 pacientes que receberam apenas sangue alogênico, concluíram que não houve diferença discernível quanto à taxa de infecção pós-operatória e à mortalidade, em relação ao grupo estudado26.

Um dos principais questionamentos quanto à transfusão transoperatória no trauma é o risco de contaminação do sangue. Horst et al. 2727. Horst HM, Dlugos S, Fath JJ, Sorensen VJ, Obeid FN, Bivins BA. Coagulopathy and intraoperative blood salvage (IBS). J Trauma. 1992;32(5):646-52; discussion 652-3., em 1992, revisaram o uso da reinfusão em uma série de 154 pacientes, vítimas de trauma. Dentre 66 pacientes com lesão intestinal, 58 receberam sangue contaminado e desenvolveram coagulopatia com um volume menor de transfusões, comparado ao grupo que recebeu sangue não contaminado. Entretanto, os 117 pacientes que receberam menos de 10 unidades de sangue coletado durante a operação, tiveram alterações mínimas quanto aos parâmetros de coagulação, independente da presença de lesão intestinal. Segundo o estudo, nas complicações relacionadas à infecção, tanto em pacientes com ou sem lesão intestinal, a taxa de infecção foi maior em pacientes sem lesão intestinal2727. Horst HM, Dlugos S, Fath JJ, Sorensen VJ, Obeid FN, Bivins BA. Coagulopathy and intraoperative blood salvage (IBS). J Trauma. 1992;32(5):646-52; discussion 652-3.. Bowley et al.2626. Bowley DM, Barker P, Boffard KD. Intraoperative blood salvage in penetrating abdominal trauma: a randomised, controlled trial. World J Surg. 2006;30(6):1074-80. verificaram que 85% dos pacientes no grupo que foi submetido à transfusão autóloga tinham contaminação entérica e 38% tinham uma lesão colônica. Das amostras de sangue do grupo autotransfundido, enviadas para cultura, 90% foram positivas, mas não houve correlação entre as características microbiológicas do sangue reinfundido e as complicações infecciosas subsequentes. Além disso, não houve aumento da morbimortalidade séptica nos pacientes que receberem autotransfusão de sangue contaminado2626. Bowley DM, Barker P, Boffard KD. Intraoperative blood salvage in penetrating abdominal trauma: a randomised, controlled trial. World J Surg. 2006;30(6):1074-80..

Outra barreira para o uso de tal procedimento seria o agravamento da coagulopatia em paciente com sangramento ativo. Segundo Brown et al. 2121. Brown CV, Foulkrod KH, Sadler HT, Richards EK, Biggan DP, Czysz C, et al. Autologous blood transfusion during emergency trauma operations. Arch Surg. 2010;145(7):690-4., seus estudos sugeriram o oposto, afirmando que os pacientes do grupo controle receberam mais unidades de plasma que os pacientes reinfundidos. O mesmo pode ser observado no trabalho de Bowley et al. 2626. Bowley DM, Barker P, Boffard KD. Intraoperative blood salvage in penetrating abdominal trauma: a randomised, controlled trial. World J Surg. 2006;30(6):1074-80. , em que não houve diferenças significativas entre os grupos analisados.

No balanço geral, a reinfusão venceu. Não somos contra a transfusão, só não concordamos que seja desprezado o sangue do próprio paciente, sem termos certeza de que vai chegar sangue em quantidade suficiente para tirá-lo do choque hemorrágico.

A reinfusão sanguínea constitui-se uma prática muito antiga. Foi realizada pela primeira vez, em animais, por Blundell em 1818. Entretanto, quem primeiro a praticou no homem foi Highmore, em um caso de hemorragia pós-parto. Sutugin, em 1868, sugeriu a utilização do sangue perdido durante procedimentos cirúrgicos. Miller, por volta de 1885, reinfundiu um paciente submetido a uma amputação22. Bogossian L. Papel atual da reinfusão sanguínea. Folha Med. 1986;92(4):223-8. , 2828. Symbas PN, Levin JM, Ferrier FL, Sybers RG. A study on autotransfusion from hemotorax. South Med J. 1969;62(6):671-4. , 2929. Pilcher LS. III. On transfusion and reinfusion of blood. Ann Surg. 1886;3(3):226-30.. Logo após, em 1886, Duncan3030. Duncan J. On re-infusion of blood in primary and other amputations. Br Med J. 1886;1(1309):192-3. utilizou também a reinfusão em uma amputação, acrescentando fosfato de sódio para retardar a coagulação. Em 1914, Thies, fez uso de tal método com grande sucesso em um caso de prenhez tubária rota. Durante a Primeira Guerra Mundial, Elmendorf utilizou pela primeira vez a autotransfusão em um hemotórax. Seu método foi aperfeiçoado por Symbas, que reinfundiu cerca de 400 pacientes, vítimas de hemotórax traumático, sem alguma complicação perceptível3131. Barriot P, Riou B, Viars P. Prehospital autotransfusion in life-threatening hemothorax. Chest. 1988;93(3):522-6.. A transfusão autóloga foi utilizada pela primeira vez em trauma abdominal por Van Schaik em 1927. Durante a Segunda Guerra Mundial, a autotransfusão era realizada com um sistema aberto de sucção e a anticoagulação por meio da hemodiluição ou uso de citrato. A filtração era feita de forma artesanal, com gazes de algodão2626. Bowley DM, Barker P, Boffard KD. Intraoperative blood salvage in penetrating abdominal trauma: a randomised, controlled trial. World J Surg. 2006;30(6):1074-80. ,32.

No Brasil a reinfusão sanguínea foi bastante utilizada pelos cirurgiões, principalmente, com o advento de um aparelho idealizado por Cordovil, em 1937, que realizava a captação e filtração do sangue diretamente da cavidade peritoneal. O procedimento era, entretanto, muito laborioso, pois requeria grandes seringas e cubas para aspirar o sangue da cavidade através do aparelho. Eram feitas sucessivas injeções na veia do paciente à medida que fossem preenchidas as seringas, atrasando o inicio da cirurgia. Esses problemas contribuíram para o esquecimento do método, que não resistia ao cotejo das transfusões sanguíneas, que se desenvolviam rapidamente, oferecendo uma série de facilidades, inclusive frascos e equipamentos apropriados e de uso prático. Na década de 1960, Bogossian publicou uma série de trabalhos sobre o aperfeiçoamento da técnica de reinfusão, tornando-a bastante prática e de grande utilidade, principalmente em locais de difícil acesso, com estrutura precária, sendo uma alternativa para os pacientes que necessitavam de uma reposição sanguínea imediata22. Bogossian L. Papel atual da reinfusão sanguínea. Folha Med. 1986;92(4):223-8. , 33. Adukauskienë D, Ðirvinskas E, Veikutienë A. Autologinio kraujo perpylima. Medicina (Kaunas) 2008;44(6):482-8.. Assim como, em catástrofes e guerras, pois o consumo de hemoderivados é enorme, onde é comum a falta desses componentes em tais situações.

No Setor de Trauma do Hospital Geral do Estado de Alagoas o método vem sendo utilizado com sucesso desde a década de 80. No início, houve um grande entusiasmo, e, pouco a pouco, foi caindo em desuso, sendo utilizado apenas por um grupo pequeno de cirurgiões.

Continuamos hoje como fazíamos antigamente, isto é, colhendo o sangue com cuba ou aspirando para um reservatório de drenagem torácica (Figura 1), filtrando manualmente com compressas (Figura 2), e, colocando-o em um frasco vazio de solução salina para reinfundi-lo com um equipo adequado para transfusão sanguínea (Figura 3). Para os cirurgiões e anestesiologistas mais novos, tal rusticidade em pleno século XXI agride muito as células sanguíneas, e nisso nós também concordamos, pois existe no mercado uma série de kits que, além de diminuir o risco de contaminação e a hemólise, facilitam a reinfusão, assegurando a praticidade do método e permitindo sua melhor aceitação33. Adukauskienë D, Ðirvinskas E, Veikutienë A. Autologinio kraujo perpylima. Medicina (Kaunas) 2008;44(6):482-8. , 3131. Barriot P, Riou B, Viars P. Prehospital autotransfusion in life-threatening hemothorax. Chest. 1988;93(3):522-6. , 3333. Rosenblatt R, Dennis P, Draper LD. A new method for massive fluid resuscitation in the trauma patient. Anesth Analg. 1983;62(6):613-6.

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Figura 1
Coleta de sangue da cavidade pleural.

Figura 2
Filtração do sangue em compressas.

Figura 3
A) frasco solução vazio; B) frasco com sangue filtrado sendo reinfundido.

Apesar do tema já ter sido amplamente divulgado, foi ficando no esquecimento. Devemos lembrar que a reinfusão é um método simples e de fácil manuseio, que pode ser adaptado em qualquer hospital de pequeno porte, destacando aqueles que não dispõem de bancos de sangue. Além disso, é uma ótima opção para instituições de grande porte, pois é seguro e bem mais barato do que os custos atrelados a transfusão de hemoderivados.

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  • Fonte de financiamento: nenhum.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2013
  • Aceito
    29 Dez 2013
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