Acessibilidade / Reportar erro

Aspectos fisiopatológicos da síndrome pós-ressecção anterior do reto para o tratamento de câncer retal

RESUMO

O número de pacientes com distúrbios funcionais intestinais em decorrência das operações para o tratamento do câncer retal tem aumentado durantes as últimas décadas. Alterações anatômicas e funcionais após a retirada do reto provocam aumento da frequência evacuatória, urgência evacuatória, evacuações múltiplas e incontinência para fezes e flatos, caracterizando a síndrome da ressecção anterior baixa ou LARS - "low anterior resection syndrome". Este artigo apresenta uma revisão geral do tema, com ênfase para conceitos atuais e aspectos fisiopatológicos de distúrbios funcionais do intestino após o tratamento cirúrgico do câncer retal. É fundamental que o cirurgião compreenda esses mecanismos, para melhor abordagem dos pacientes e restabelecimento da sua qualidade de vida.

Descritores:
Neoplasias Retais; Complicações Pós-Operatórias; Incontinência Fecal; Qualidade de Vida; Escores de Disfunção Orgânica

ABSTRACT

The number of patients with bowel dysfunction due to the treatment of rectal cancer has increased during the recent decades. Anatomical and functional disorders after the removal of the rectum are followed by increased stool frequency, urgency, multiple evacuations and flatus or stool incontinence characterizing the low anterior resection syndrome - LARS. The purpose of this article is to present a review of the literature on current concepts and pathophysiological aspects of bowel dysfunction after resection of rectal cancer. It is essential to understand these mechanisms for a better management of patients and recovery of their quality of life.

Keywords:
Rectal Neoplasms; Postoperative Complications; Fecal Incontinence; Quality of Life; Organ Dysfunction Scores

INTRODUÇÃO

O câncer colorretal é o terceiro mais comum entre os homens, com 746 mil casos novos, e o segundo nas mulheres, com 614 mil casos novos no ano de 2012. No Brasil, em 2014, houve 15.070 casos novos em homens e 17.530 em mulheres. Esses valores correspondem a um risco estimado de 15,44 casos novos a cada 100 mil homens e 17,24 a cada 100 mil mulheres11 Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José de Alencar Gomes da Silva. Estimativa da Incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2014. Available from: http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/sintese-de-resultados-comentarios.asp
http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/s...
.

Mesmo com o desenvolvimento de abordagens cirúrgicas menos invasivas, a ressecção cirúrgica radical do reto por via abdominal ainda é o melhor tratamento com intenção curativa para o câncer retal. As operações para tratamento dos tumores dos terços médio e inferior seguem os princípios da excisão total do mesorreto (ETM), padronizada por Heald22 Heald RJ, Husband EM, Ryall RD. The mesorectum in rectal cancer surgery--the clue to pelvic recurrence? Br J Surg. 1982;69(10):613-6.,33 Heald RJ, Ryall RD. Recurrence and survival after total mesorectal excision for rectal cancer. Lancet. 1986;1(8496):1479-82. em 1982. Essa técnica reduziu as recidivas locais que eram de 15% a 40% para 6% a 10%44 Olson C. Current status of surgical intervention for the management of rectal cancer. Crit Rev Oncog. 2012;17(4):373-82.. Já os tumores do terço superior do reto podem ser tratados com a excisão parcial do mesorreto (EPM), mantendo os bons resultados oncológicos da ETM55 Lopez-Kostner F, Lavery IC, Hool GR, Rybicki LA, Fazio VW. Total mesorectal excision is not necessary for cancers of the upper rectum. Surgery. 1998;124(4):612-7; discussion 617-8.. Essas operações são conhecidas como ressecção anterior do reto (RAR).

Apesar da evolução da técnica cirúrgica e atenção à preservação da inervação pélvica, muitos pacientes desenvolvem alterações urinárias, sexuais e intestinais graves após a RAR66 Kim NK, Kim YW, Cho MS. Total mesorectal excision for rectal cancer with emphasis on pelvic autonomic nerve preservation: expert technical tips for robotic surgery. Surg Oncol. 2015;24(3):172-80.

7 Kauff DW, Kempski O, Huppert S, Koch KP, Hoffmann KP, Lang H, et al, Total mesorectal excision--does the choice of dissection technique have an impact on pelvic autonomic nerve preservation? J Gastrointest Surg. 2012;16(6):1218-24.

8 Visser WS, Te Riele WW, Boerma D, van Ramshorst B, van Westreenen HL. Pelvic floor rehabilitation to improve functional outcome after a low anterior resection: a systematic review. Ann Coloproctol. 2014;30(3):109-14.
-99 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after rectal cancer treatment: a study comparing the specialist's versus patient's perspective. BMJ Open. 2014;4(1):e003374.. O conjunto de alterações funcionais do intestino após a RAR é denominado síndrome pós-ressecção anterior do reto ("low anterior resection syndrome" - LARS)1010 Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after treatment for rectal cancer. Acta Oncol, 2008;47(6):994-1003.,1111 Ziv Y, Zbar A, Bar-Shavit Y, Igov I. Low anterior resection syndrome (LARS): cause and effect and reconstructive considerations. Tech Coloproctol. 2013;17(2):151-62.. A LARS é caracterizada por uma combinação de sintomas que incluem aumento da frequência evacuatória, urgência evacuatória, evacuações múltiplas e incontinência para fezes ou flatos, levando a impacto negativo na qualidade de vida e, principalmente, no convívio social dos pacientes submetidos a RAR1111 Ziv Y, Zbar A, Bar-Shavit Y, Igov I. Low anterior resection syndrome (LARS): cause and effect and reconstructive considerations. Tech Coloproctol. 2013;17(2):151-62.

12 Emmertsen KJ, Chen TYT, Laurberg S. Functional results after treatment for rectal cancer. J Coloproctol (Rio J.). 2014;34(1):55-61.

13 Emmertsen KJ, Laurberg S; Rectal Cancer Function Study Group. Impact of bowel dysfunction on quality of life after sphincter-preserving resection for rectal cancer. Br J Surg. 2013;100(10):1377-87.
-1414 Reibetanz J, Kim M, Germer CT, Schlegel N. [Late complications and functional disorders after rectal resection: prevention, detection and therapy]. Chirurg. 2015;86(4):326-31. German.. Em um estudo sobre esta condição, Juul et at.1515 Juul T, Ahlberg M, Biondo S, Espin E, Jimenez LM, Matzel KE, et al. Low anterior resection syndrome and quality of life: an international multicenter study. Dis Colon Rectum. 2014;57(5):585-91. avaliaram 796 pacientes submetidos a tratamento cirúrgico do câncer retal e mostraram que a qualidade de vida pós-operatória desses pacientes está intimamente relacionada com a gravidade dos sintomas da LARS. Pacientes com LARS grave apresentaram piores resultados em um questionário da European Organisation for Research and Treatment of Cancer para avaliação da qualidade de vida em pacientes com câncer (EORTC QLQ-C30).

Os sintomas da LARS podem ser identificados logo após o procedimento cirúrgico ou com a restauração do trânsito intestinal, quando houve uso de estoma de desvio temporário (colostomia ou ileostomia protetora). Pode haver diminuição gradativa da intensidade dos sintomas ao longo dos meses, com estabilização (platô) após 12 a 24 meses de acompanhamento pós-operatório. Após esse período de seguimento, alguns pacientes podem ter função intestinal próxima do normal, mas a maioria deles, entre 60% e 80%, ainda manifesta os sintomas, com prejuízo nas atividades diárias e na vida psicossocial1212 Emmertsen KJ, Chen TYT, Laurberg S. Functional results after treatment for rectal cancer. J Coloproctol (Rio J.). 2014;34(1):55-61..

Até o presente momento não há tratamento especifico para a LARS. A abordagem terapêutica dos pacientes é empírica e consiste no tratamento dos sintomas apresentados, utilizando terapias para a incontinência fecal e para outras disfunções evacuatórias. O tratamento deve envolver equipe multidisciplinar e abordar seus vários aspectos, incluindo avaliação nutricional e psicológica de todos os pacientes. Adequações comportamentais, restrições dietéticas e uso de protetores da roupa íntima são frequentes nos indivíduos acometidos1616 Martellucci J. Low anterior resection syndrome: a treatment algorithm. Dis Colon Rectum. 2016;59(1):79-82..

Os descritores neoplasias retais, complicações pós-operatórias, incontinência fecal, qualidade de vida e escores de disfunção orgânica foram utilizados nas bases de dados do MEDLINE, LILACS e SciELO, para levantar os dados da literatura.

FISIOPATOLOGIA DA LARS

Apesar da fisiopatologia exata da LARS ainda não estar bem estabelecida, a maioria dos estudos corrobora com a hipótese de origem multifatorial e alguns importantes aspectos devem ser considerados sobre como a RAR influenciaria no funcionamento intestinal (Figura 1).

Figura 1.
Fisiopatologia da LARS.

O reto funciona como reservatório transitório de fezes e gases e, consequentemente, a sua ressecção parcial ou total resulta na diminuição da capacidade de retenção gasosa e fecal. O restabelecimento do trânsito intestinal após RAR e ETM com anastomose colorretal direta término-terminal ou anastomose coloanal são opções que resultam em um reservatório retal de baixo volume e são causas presumidas de incontinência para fezes e flatos. Apesar das tentativas em aumentar o volume do "neorreto", com anastomose látero-terminal e bolsa em J do cólon distal, suas vantagens funcionais em relação à anastomose direta estão presentes apenas de forma transitória nos primeiros 24 meses1111 Ziv Y, Zbar A, Bar-Shavit Y, Igov I. Low anterior resection syndrome (LARS): cause and effect and reconstructive considerations. Tech Coloproctol. 2013;17(2):151-62.,1717 Heriot AG, Tekkis PP, Constantinides V, Paraskevas P, Nicholls RJ, Darzi A, et al. Meta-analysis of colonic reservoirs versus straight coloanal anastomosis after anterior resection. Br J Surg. 2006;93(1):19-32.,1818 Rubin F, Douard R, Wind P. The functional outcomes of coloanal and low colorectal anastomoses with reservoirs after low rectal cancer resections. Am Surg. 2014;80(12):1222-9..

Alguns estudos sugerem que a disfunção intestinal estaria mais relacionada à motilidade colônica aumentada do que à anastomose utilizada. Lee et al.1919 Lee WY, Takahashi T, Pappas T, Mantyh CR, Ludwig KA. Surgical autonomic denervation results in altered colonic motility: an explanation for low anterior resection syndrome? Surgery. 2008;143(6):778-83., em um modelo animal, observaram aumento no índice de motilidade colônica de ratos após a denervação do cólon esquerdo corroborando com esta hipótese. A maioria dos pacientes com sintomas da LARS se queixa de reflexo gastrocólico exacerbado e aumento da frequência evacuatória. Essas alterações podem ser resultado da denervação autonômica causada no segmento distal do cólon e reto, reduzindo os estímulos inibitórios e aumentando os movimentos peristálticos do cólon1414 Reibetanz J, Kim M, Germer CT, Schlegel N. [Late complications and functional disorders after rectal resection: prevention, detection and therapy]. Chirurg. 2015;86(4):326-31. German.,1919 Lee WY, Takahashi T, Pappas T, Mantyh CR, Ludwig KA. Surgical autonomic denervation results in altered colonic motility: an explanation for low anterior resection syndrome? Surgery. 2008;143(6):778-83..

Pacientes que foram submetidos a rádio e quimioterapia pré-operatórias, rotineiramente realizadas em casos de tumores de reto mais avançados e naqueles com suspeita de acometimento linfonodal ao diagnóstico, também apresentam piores resultados quanto à frequência e intensidade dos sintomas da LARS quando comparados à pacientes tratados apenas cirurgicamente. O mecanismo parece estar relacionado à lesão nervosa direta e a fibrose pélvica induzidas pela irradiação da pelve. A radioterapia pélvica também pode trazer disfunções sexuais e urinárias decorrentes de lesões nervosas2020 Bregendahl S, Emmertsen KJ, Lous J, Laurberg S. Bowel dysfunction after low anterior resection with and without neoadjuvant therapy for rectal cancer: a population-based cross-sectional study. Colorectal Dis. 2013;15(9):1130-9.,2121 Lundby L, Krogh K, Jensen VJ, Gandrup P, Qvist N, Overgaard J, et al. Long-term anorectal dysfunction after postoperative radiotherapy for rectal cancer. Dis Colon Rectum. 2005;48(7):1343-9; discussion 1349-52; author reply 1352..

Os pacientes com LARS também apresentam diminuição da sensibilidade na transição retoanal, com prejuízo na capacidade de discriminação entre líquidos e gases, comprometendo o reflexo inibitório retoanal e os mecanismos da continência fecal1111 Ziv Y, Zbar A, Bar-Shavit Y, Igov I. Low anterior resection syndrome (LARS): cause and effect and reconstructive considerations. Tech Coloproctol. 2013;17(2):151-62..

Alterações na pressão anal de repouso (esfíncter anal interno - EAI) e na pressão máxima de contração (esfíncter anal externo - EAE) já foram relatadas após a RAR, levando a perda de fezes líquidas (soilling) e urgência e incontinência, respectivamente1212 Emmertsen KJ, Chen TYT, Laurberg S. Functional results after treatment for rectal cancer. J Coloproctol (Rio J.). 2014;34(1):55-61.,1414 Reibetanz J, Kim M, Germer CT, Schlegel N. [Late complications and functional disorders after rectal resection: prevention, detection and therapy]. Chirurg. 2015;86(4):326-31. German.. Ho et al.2222 Ho YH, Tsang C, Tang CL, Nyam D, Eu KW, Seow-Choen F. Anal sphincter injuries from stapling instruments introduced transanally: randomized, controlled study with endoanal ultrasound and anorectal manometry. Dis Colon Rectum. 2000;43(2):169-73. mostraram que as alterações no EAI podem estar relacionadas á introdução instrumental por via anal (grampeadores) e à denervação durante a dissecção e irradiação pélvicas. Neste estudo, pacientes submetidos a anastomoses grampeadas apresentaram pressão anal de repouso reduzida na manometria anorretal e maior incidência de fragmentação do esfíncter anal interno vista na ultrassonografia endoanal após seis meses de pós-operatório. Quanto ao EAE, ainda não se verificou dano estrutural diretamente relacionado a técnica cirúrgica, sendo sua disfunção provavelmente secundária à lesão do nervo pudendo99 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after rectal cancer treatment: a study comparing the specialist's versus patient's perspective. BMJ Open. 2014;4(1):e003374..

AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO INTESTINAL NA LARS

Os sintomas da LARS, além de inespecíficos e presentes em outros distúrbios da defecação, variam muito em sua apresentação clínica e são de difícil mensuração por parte da equipe assistente, uma vez que essas alterações são subjetivas em relação à percepção dos pacientes. Com o objetivo de identificar e mensurar como essas alterações funcionais afetam a qualidade de vida após a RAR, utilizam-se questionários específicos para a avaliação da função intestinal99 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after rectal cancer treatment: a study comparing the specialist's versus patient's perspective. BMJ Open. 2014;4(1):e003374.,2323 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. What are the best questionnaires to capture anorectal function after surgery in rectal cancer? Curr Colorectal Cancer Rep. 2015;11:37-43.. Como exemplo temos o Wexner Fecal Incontinence Score ( Wexner score, 1993)2424 Jorge JM, Wexner SD. Etiology and management of fecal incontinence. Dis Colon Rectum. 1993;36(1):77-97., The St. Mark's Incontinence Score (St. Mark's score, 1999)2525 Vaizey CJ, Carapeti E, Cahill JA, Kamm MA. Prospective comparison of faecal incontinence grading systems. Gut. 1999;44(1):77-80. e o The Fecal Incontinence Severity Index (FISI, 1999)2626 Rockwood TH, Church JM, Fleshman JW, Kane RL, Mavrantonis C, Thorson AG, et al. Patient and surgeon ranking of the severity of symptoms associated with fecal incontinence: the fecal incontinence severity index. Dis Colon Rectum. 1999;42(12):1525-32., que avaliam a incontinência fecal sem considerar outros sintomas frequentes na LARS como a urgência e a re-evacuação. Outros questionários, como o European Organisation for Research and Treatment of Cancer Quality of Life Questionaire - Colorectal Module ( EORTC QLQ-CR29)2323 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. What are the best questionnaires to capture anorectal function after surgery in rectal cancer? Curr Colorectal Cancer Rep. 2015;11:37-43. e o The Fecal Incontinence Quality of Life Scale (FIQL)2727 Yusuf SAI, Neves JJM, Habr-Gama A, Kiss DR, Rodrigues JG. Avaliação da qualidade de vida na incontinência anal: validação do questionário FIQL (Fecal Incontinence Quality of Life). Arq Gastroenterol. 2004;41(3):202-8. têm seu principal enfoque na qualidade de vida e podem complementar os questionários de avaliação dos pacientes com LARS. Já o Memorial Sloan Kettering Cancer Center Bowel Function Instrument (MSKCC BFI, 2005)2828 Temple LK, Bacik J, Savatta SG, Gottesman L, Paty PB, Weiser MR, et al. The development of a validated instrument to evaluate bowel function after sphincter-preserving surgery for rectal cancer. Dis Colon Rectum. 2005;48(7):1353-65., foi o primeiro questionário criado especificamente para avaliar a função intestinal de pacientes submetidos a operações preservadoras do esfíncter no tratamento do câncer retal. No entanto, a sua utilização tem sido restrita devido ao elevado número de itens e à falta de praticidade na sua aplicação.

Em 2012, Emmertsen et al.2929 Emmertsen KJ, Laurberg S. Low anterior resection syndrome score: development and validation of a symptom-based scoring system for bowel dysfunction after low anterior resection for rectal cancer. Ann Surg. 2012; 255(5):922-8. publicaram o desenvolvimento e validação do Low Anterior Resection Syndrome Score (LARS score). Este é uma ferramenta objetiva e eficiente para avaliação da função intestinal após a RAR, que é de fácil aplicação na prática clínica e tem pontuação baseada no impacto de cada sintoma da LARS na qualidade de vida dos pacientes. Os itens avaliados pelo escore LARS são incontinência para flatos, incontinência para fezes líquidas, aumento da frequência evacuatória, evacuações múltiplas e urgência evacuatória (Tabela 1). A pontuação para cada item é não linear e com base na frequência e impacto determinados por cada um dos sintomas na qualidade de vida, podendo variar de 0 a 42 pontos. Este foi o primeiro questionário para avaliar a função intestinal em pacientes após RAR que considerou a frequência dos sintomas e seu impacto na qualidade de vida3030 Juul T, Ahlberg M, Biondo S, Emmertsen KJ, Espin E, Jimenez LM, et al. International validation of the low anterior resection syndrome score. Ann Surg. 2014;259(4):728-34.

31 Hou XT, Pang D, Lu Q, Yang P, Jin SL, Zhou YJ, et al. Validation of the Chinese version of the low anterior resection syndrome score for measuring bowel dysfunction after sphincter-preserving surgery among rectal cancer patients. Eur J Oncol Nurs. 2015;19(5):495-501.
-3232 Juul T, Battersby NJ, Christensen P, Janjua AZ, Branagan G, Laurberg S, Emmertsen KJ, Moran B; UK LARS Study Group. Validation of the English translation of the low anterior resection syndrome score. Colorectal Dis. 2015;17(10):908-16..

Tabela 1
Sintomas abordados pelo "LARS score".

DISCUSSÃO

Enquanto diminui a população de sobreviventes ao câncer de reto com estoma definitivo, aumenta o número de pacientes com operações preservadoras do esfíncter que apresentam graves alterações funcionais do intestino99 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after rectal cancer treatment: a study comparing the specialist's versus patient's perspective. BMJ Open. 2014;4(1):e003374.. A realização de anastomoses colorretais para evitar colostomias definitivas é preferida pela maior parte dos cirurgiões, mas nem sempre é a melhor opção para o paciente99 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after rectal cancer treatment: a study comparing the specialist's versus patient's perspective. BMJ Open. 2014;4(1):e003374.. Alguns estudos já mostraram que pacientes submetidos a amputação abdominoperineal com colostomia definitiva apresentam melhor qualidade de vida do que os submetidos a RAR, em decorrência dos sintomas ocasionados pela anastomose coloanal99 Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after rectal cancer treatment: a study comparing the specialist's versus patient's perspective. BMJ Open. 2014;4(1):e003374.,3333 Digennaro R, Tondo M, Cuccia F, Giannini I, Pezzolla F, Rinaldi M, et al. Coloanal anastomosis or abdominoperineal resection for very low rectal cancer: what will benefit, the surgeon's pride or the patient's quality of life? Int J Colorectal Dis. 2013;28(7):949-57..

Apesar de a maioria dos estudos sobre a LARS estar focada nas alterações estruturais ocorridas no reto e canal anal, evidências mostram que alterações da motilidade cólica, envolvimento de reflexos inibitórios e alterações sensitivas anais também tem papel importante na etiologia desta condição, ampliando o campo para estudos futuros.

Mortalidade e recorrência local foram as principais áreas de estudo do câncer retal nas últimas décadas, porém, atualmente, a avaliação dos resultados funcionais e da qualidade de vida dos pacientes submetidos a RAR tem ganhado importante destaque no meio científico na medida que aumenta a população de sobreviventes ao câncer retal e a busca pela retomada de suas atividades diárias1414 Reibetanz J, Kim M, Germer CT, Schlegel N. [Late complications and functional disorders after rectal resection: prevention, detection and therapy]. Chirurg. 2015;86(4):326-31. German..

Além disso, a avaliação da função intestinal por meio de escores poderá contribuir na identificação das intervenções terapêuticas com menor prejuízo funcional no tratamento do câncer retal e acompanhar de forma objetiva e prática a evolução dos sintomas3434 Habr-Gama A, Perez RO, São Julião GP, Proscurshim I, Gama-Rodrigues J. Nonoperative approaches to rectal cancer: a critical evaluation. Semin Radiat Oncol. 2011;21(3):234-9.

35 Habr-Gama A, Sabbaga J, Gama-Rodrigues J, São Julião GP, Proscurshim I, Bailão Aguilar P, et al. Watch and wait approach following extended neoadjuvant chemoradiation for distal rectal cancer: are we getting closer to anal cancer management? Dis Colon Rectum. 2013; 56(10):1109-17.
-3636 Habr-Gama A, São Julião GP, Perez RO. Nonoperative management of rectal cancer: identifying the ideal patients. Hematol Oncol Clin North Am. 2015;29(1):135-51.. O uso deste tipo de questionário, como o "LARS score", tem sido internacionalmente difundido por processos padronizados de tradução, validação e adaptação cultural desenvolvidos para avaliação objetiva de funções orgânicas como a intestinal3030 Juul T, Ahlberg M, Biondo S, Emmertsen KJ, Espin E, Jimenez LM, et al. International validation of the low anterior resection syndrome score. Ann Surg. 2014;259(4):728-34.,3737 Dewolf L, Koller M, Velikova G, Johnson CD, Scott N, Bottomley A. EORTC Quality of Life Group translation procedure. Bruxelas: EORTC Quality of Life Group; 2009.,3838 World Health Organization. Management of substance abuse. Process of translation and adaptation of instruments [Interntet]. Geneva: World Health Organization: 2012. Available from: http://www.who.int/substance_abuse/research_tools/translation/en/
http://www.who.int/substance_abuse/resea...
. A uniformização e padronização na avaliação de pacientes com LARS também poderá possibilitar a condução de mais estudos multicêntricos e metanálises entre populações culturalmente diferentes, além do surgimento de algoritmos para o seu tratamento.

A alta incidência dos sintomas da LARS mesmo em centros especializados no tratamento do câncer retal mostra que as alterações funcionais e estruturais causadas pela remoção do reto talvez possam ser minimizadas, mas não evitadas. E, possivelmente, os estudos futuros deverão se direcionar para o desenvolvimento de técnicas não-cirúrgicas ou minimamente invasivas para o tratamento da neoplasia de reto. Enquanto isso, medidas para minimizar os sintomas devem ser iniciadas tão logo haja o diagnóstico. O tratamento atual inclui adequações dietéticas, ingestão de fibras formadoras de bolo fecal, uso de drogas como a loperamida em casos acompanhados de diarreia, biofeedback anorretal, irrigação transanal, estimulação neurossacral e até a confecção de um estoma definitivo em pacientes com casos graves e que consideram que a vida era melhor antes da reconstrução do trânsito intestinal.

É preciso compreender melhor o mecanismo pelo qual ocorrem as alterações da função intestinal após a retirada do reto para minimizar o seu efeito na qualidade de vida dos pacientes.

CONCLUSÕES

Apesar dos muitos estudos sobre a LARS e suas alterações funcionais do intestino, sua etiologia e fisiopatologia ainda não foram bem elucidadas. Entretanto, a maioria das evidências corrobora para sua origem multifatorial, influenciada pelas alterações fisiológicas na motilidade intestinal e sensibilidade anal, além de modificações estruturais e anatômicas na pelve após o procedimento cirúrgico. A avaliação da função intestinal e a identificação precoce de pacientes com sintomas exacerbados deve ser feita sistematicamente no seguimento pós-operatório e o tratamento multidisciplinar iniciado imediatamente, com o objetivo de minimizar o impacto na vida dos pacientes.

  • Fonte de financiamento: CNPq e FAPEMIG.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José de Alencar Gomes da Silva. Estimativa da Incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2014. Available from: http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/sintese-de-resultados-comentarios.asp
    » http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/sintese-de-resultados-comentarios.asp
  • 2
    Heald RJ, Husband EM, Ryall RD. The mesorectum in rectal cancer surgery--the clue to pelvic recurrence? Br J Surg. 1982;69(10):613-6.
  • 3
    Heald RJ, Ryall RD. Recurrence and survival after total mesorectal excision for rectal cancer. Lancet. 1986;1(8496):1479-82.
  • 4
    Olson C. Current status of surgical intervention for the management of rectal cancer. Crit Rev Oncog. 2012;17(4):373-82.
  • 5
    Lopez-Kostner F, Lavery IC, Hool GR, Rybicki LA, Fazio VW. Total mesorectal excision is not necessary for cancers of the upper rectum. Surgery. 1998;124(4):612-7; discussion 617-8.
  • 6
    Kim NK, Kim YW, Cho MS. Total mesorectal excision for rectal cancer with emphasis on pelvic autonomic nerve preservation: expert technical tips for robotic surgery. Surg Oncol. 2015;24(3):172-80.
  • 7
    Kauff DW, Kempski O, Huppert S, Koch KP, Hoffmann KP, Lang H, et al, Total mesorectal excision--does the choice of dissection technique have an impact on pelvic autonomic nerve preservation? J Gastrointest Surg. 2012;16(6):1218-24.
  • 8
    Visser WS, Te Riele WW, Boerma D, van Ramshorst B, van Westreenen HL. Pelvic floor rehabilitation to improve functional outcome after a low anterior resection: a systematic review. Ann Coloproctol. 2014;30(3):109-14.
  • 9
    Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after rectal cancer treatment: a study comparing the specialist's versus patient's perspective. BMJ Open. 2014;4(1):e003374.
  • 10
    Emmertsen KJ, Laurberg S. Bowel dysfunction after treatment for rectal cancer. Acta Oncol, 2008;47(6):994-1003.
  • 11
    Ziv Y, Zbar A, Bar-Shavit Y, Igov I. Low anterior resection syndrome (LARS): cause and effect and reconstructive considerations. Tech Coloproctol. 2013;17(2):151-62.
  • 12
    Emmertsen KJ, Chen TYT, Laurberg S. Functional results after treatment for rectal cancer. J Coloproctol (Rio J.). 2014;34(1):55-61.
  • 13
    Emmertsen KJ, Laurberg S; Rectal Cancer Function Study Group. Impact of bowel dysfunction on quality of life after sphincter-preserving resection for rectal cancer. Br J Surg. 2013;100(10):1377-87.
  • 14
    Reibetanz J, Kim M, Germer CT, Schlegel N. [Late complications and functional disorders after rectal resection: prevention, detection and therapy]. Chirurg. 2015;86(4):326-31. German.
  • 15
    Juul T, Ahlberg M, Biondo S, Espin E, Jimenez LM, Matzel KE, et al. Low anterior resection syndrome and quality of life: an international multicenter study. Dis Colon Rectum. 2014;57(5):585-91.
  • 16
    Martellucci J. Low anterior resection syndrome: a treatment algorithm. Dis Colon Rectum. 2016;59(1):79-82.
  • 17
    Heriot AG, Tekkis PP, Constantinides V, Paraskevas P, Nicholls RJ, Darzi A, et al. Meta-analysis of colonic reservoirs versus straight coloanal anastomosis after anterior resection. Br J Surg. 2006;93(1):19-32.
  • 18
    Rubin F, Douard R, Wind P. The functional outcomes of coloanal and low colorectal anastomoses with reservoirs after low rectal cancer resections. Am Surg. 2014;80(12):1222-9.
  • 19
    Lee WY, Takahashi T, Pappas T, Mantyh CR, Ludwig KA. Surgical autonomic denervation results in altered colonic motility: an explanation for low anterior resection syndrome? Surgery. 2008;143(6):778-83.
  • 20
    Bregendahl S, Emmertsen KJ, Lous J, Laurberg S. Bowel dysfunction after low anterior resection with and without neoadjuvant therapy for rectal cancer: a population-based cross-sectional study. Colorectal Dis. 2013;15(9):1130-9.
  • 21
    Lundby L, Krogh K, Jensen VJ, Gandrup P, Qvist N, Overgaard J, et al. Long-term anorectal dysfunction after postoperative radiotherapy for rectal cancer. Dis Colon Rectum. 2005;48(7):1343-9; discussion 1349-52; author reply 1352.
  • 22
    Ho YH, Tsang C, Tang CL, Nyam D, Eu KW, Seow-Choen F. Anal sphincter injuries from stapling instruments introduced transanally: randomized, controlled study with endoanal ultrasound and anorectal manometry. Dis Colon Rectum. 2000;43(2):169-73.
  • 23
    Chen TY, Emmertsen KJ, Laurberg S. What are the best questionnaires to capture anorectal function after surgery in rectal cancer? Curr Colorectal Cancer Rep. 2015;11:37-43.
  • 24
    Jorge JM, Wexner SD. Etiology and management of fecal incontinence. Dis Colon Rectum. 1993;36(1):77-97.
  • 25
    Vaizey CJ, Carapeti E, Cahill JA, Kamm MA. Prospective comparison of faecal incontinence grading systems. Gut. 1999;44(1):77-80.
  • 26
    Rockwood TH, Church JM, Fleshman JW, Kane RL, Mavrantonis C, Thorson AG, et al. Patient and surgeon ranking of the severity of symptoms associated with fecal incontinence: the fecal incontinence severity index. Dis Colon Rectum. 1999;42(12):1525-32.
  • 27
    Yusuf SAI, Neves JJM, Habr-Gama A, Kiss DR, Rodrigues JG. Avaliação da qualidade de vida na incontinência anal: validação do questionário FIQL (Fecal Incontinence Quality of Life). Arq Gastroenterol. 2004;41(3):202-8.
  • 28
    Temple LK, Bacik J, Savatta SG, Gottesman L, Paty PB, Weiser MR, et al. The development of a validated instrument to evaluate bowel function after sphincter-preserving surgery for rectal cancer. Dis Colon Rectum. 2005;48(7):1353-65.
  • 29
    Emmertsen KJ, Laurberg S. Low anterior resection syndrome score: development and validation of a symptom-based scoring system for bowel dysfunction after low anterior resection for rectal cancer. Ann Surg. 2012; 255(5):922-8.
  • 30
    Juul T, Ahlberg M, Biondo S, Emmertsen KJ, Espin E, Jimenez LM, et al. International validation of the low anterior resection syndrome score. Ann Surg. 2014;259(4):728-34.
  • 31
    Hou XT, Pang D, Lu Q, Yang P, Jin SL, Zhou YJ, et al. Validation of the Chinese version of the low anterior resection syndrome score for measuring bowel dysfunction after sphincter-preserving surgery among rectal cancer patients. Eur J Oncol Nurs. 2015;19(5):495-501.
  • 32
    Juul T, Battersby NJ, Christensen P, Janjua AZ, Branagan G, Laurberg S, Emmertsen KJ, Moran B; UK LARS Study Group. Validation of the English translation of the low anterior resection syndrome score. Colorectal Dis. 2015;17(10):908-16.
  • 33
    Digennaro R, Tondo M, Cuccia F, Giannini I, Pezzolla F, Rinaldi M, et al. Coloanal anastomosis or abdominoperineal resection for very low rectal cancer: what will benefit, the surgeon's pride or the patient's quality of life? Int J Colorectal Dis. 2013;28(7):949-57.
  • 34
    Habr-Gama A, Perez RO, São Julião GP, Proscurshim I, Gama-Rodrigues J. Nonoperative approaches to rectal cancer: a critical evaluation. Semin Radiat Oncol. 2011;21(3):234-9.
  • 35
    Habr-Gama A, Sabbaga J, Gama-Rodrigues J, São Julião GP, Proscurshim I, Bailão Aguilar P, et al. Watch and wait approach following extended neoadjuvant chemoradiation for distal rectal cancer: are we getting closer to anal cancer management? Dis Colon Rectum. 2013; 56(10):1109-17.
  • 36
    Habr-Gama A, São Julião GP, Perez RO. Nonoperative management of rectal cancer: identifying the ideal patients. Hematol Oncol Clin North Am. 2015;29(1):135-51.
  • 37
    Dewolf L, Koller M, Velikova G, Johnson CD, Scott N, Bottomley A. EORTC Quality of Life Group translation procedure. Bruxelas: EORTC Quality of Life Group; 2009.
  • 38
    World Health Organization. Management of substance abuse. Process of translation and adaptation of instruments [Interntet]. Geneva: World Health Organization: 2012. Available from: http://www.who.int/substance_abuse/research_tools/translation/en/
    » http://www.who.int/substance_abuse/research_tools/translation/en/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2016
  • Aceito
    30 Mar 2017
Colégio Brasileiro de Cirurgiões Rua Visconde de Silva, 52 - 3º andar, 22271- 090 Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 2138-0659, Fax: (55 21) 2286-2595 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@cbc.org.br