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Fatores associados à variação da creatina fosfoquinase (CPK) em pacientes vítimas de trauma, submetidos à “Onda Vermelha”, com evolução à rabdomiólise

RESUMO

Objetivo:

identificar e analisar fatores associados à variação dos níveis plasmáticos de creatina fosfoquinase (CPK) em vítimas de trauma com evolução à rabdomiólise.

Métodos:

estudo longitudinal prospectivo, com 50 pacientes que seguiram para o protocolo “Onda Vermelha”, com evolução à rabdomiólise, após admissão hospitalar. Foram estudadas as variáveis: idade, sexo, escores, mecanismo e desfecho de trauma, CPK na admissão e final, intervalos de dias entre as avaliações laboratoriais, realização de cirurgia e complicações. Os valores da CPK foram estratificados em <500U/L; ≥500 - <1000 U/L; ≥1000U/L, com cálculo da diferença entre os valores inicial e final.

Resultados:

à admissão, 83% dos pacientes (n=39) apresentavam CPK≥1000U/L, com predomínio de trauma contuso e lesão torácica (p<0,05), além de fratura ortopédica, lesão renal aguda e hemorragia digestiva, sendo que a CPK era menor naqueles sem lesão renal aguda, com tendência à significância estatística. Não houve diferenças na estratificação por CPK final. Fatores que se revelaram independentemente associados à maior variação da CPK foram, positivamente, o tempo de internação superior a uma semana e síndrome compartimental, e negativamente, lesão renal aguda.

Conclusão:

como achado, nível de CPK de 1000U/L permanece como limite inferior, com importância à intervenção precoce em condições de agravamento do quadro, como hemorragia digestiva, lesão renal aguda e síndrome compartimental, que implicaram maiores diferenças absolutas entre CPK inicial e final, além do trauma contuso, lesão torácica e fratura ortopédica.

Descritores:
Rabdomiólise; Creatina Quinase; Serviços Médicos de Emergência

ABSTRACT

Objective:

to identify and analyze factors associated with plasma creatine phosphokinase (CPK) levels in trauma victims with progression to rhabdomyolysis.

Methods:

we conducted a prospective, longitudinal study, with 50 patients submitted to the “Red Wave” protocol, with evolution to rhabdomyolysis after hospital admission. We studied the variables age, gender, trauma scores, mechanism and outcome, CPK at admission and final, intervals of days between laboratory evaluations, surgery and complications. We stratified CPK values in <500U/L, ≥500 - <1000 U/L, and ≥1000U/L, with calculation of the difference between the initial and final values.

Results:

at admission, 83% of patients (n=39) had CPK≥1000U/L, with predominance of blunt trauma and thoracic injury (p<0.05), as well as orthopedic fracture, acute renal failure and gastrointestinal bleeding, CPK being lower in those without acute renal injury, with a trend towards statistical significance. There were no differences in final CPK stratification. Factors that were independently associated with the greater CPK variation were, positively, hospitalization time greater than one week and compartment syndrome, and negatively, acute renal injury.

Conclusion:

the CPK level of 1000U/L remains the lower limit, with importance for early intervention in worsening conditions such as digestive hemorrhage, acute renal injury and compartment syndrome, which implied greater absolute differences between initial and final CPK, in addition to blunt trauma, thoracic injury and orthopedic fracture.

Keywords:
Rhabdomyolysis; Creatine Kinase; Emergency Medical Services

INTRODUÇÃO

A Rabdomiólise é uma síndrome com elevado potencial de ameaça à vida, caracterizada pela lesão do músculo estriado esquelético, com lise do miócito e liberação do conteúdo intracelular para o meio extracelular, incluindo enzimas, como lactato desidrogenase (LDH), aldolase, aspartato aminotransferase (AST), alanina aminotransferase (ALT) e creatina fosfoquinase (CPK), além de íons, como potássio e fósforo, mioglobina e ácido úrico, este pelo aumento do catabolismo das purinas intracelulares11 Petejova N, Martinek A. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis and renal replacement therapy: a critical review. Crit Care. 2014;18(3):224.,22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.. As principais complicações são hipercalemia, hipocalcemia, hiperuricemia, inflamação hepática, arritmias cardíacas, parada cardíaca e coagulação intravascular disseminada22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.

3 Khan FY. Rhabdomyolysis: a review of the literature. Neth J Med. 2009;67(9):272-83.
-44 Rosa NG, Silva G, Teixeira A, Rodrigues F, Araújo JA. Rabdomiólise. Acta Méd Port. 2005;18(4):271-82.. De forma tardia, o paciente pode desenvolver síndrome compartimental e lesão renal aguda, esta associada à alta morbimortalidade e presente em cerca de 4% a 50% dos casos22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.,44 Rosa NG, Silva G, Teixeira A, Rodrigues F, Araújo JA. Rabdomiólise. Acta Méd Port. 2005;18(4):271-82.. Independentemente da causa, a taxa de mortalidade pode atingir até 8%22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8..

A função normal do miócito é garantida através da manutenção de um gradiente iônico (principalmente sódio, potássio e cálcio), o qual é estabelecido pela atuação de proteínas de transporte transmembrana, como sódio/potássio ATPase (Na+/K+ ATPase), cujas atividades enzimáticas dependem da energia obtida a partir da degradação da adenosina trifosfato (ATP)33 Khan FY. Rhabdomyolysis: a review of the literature. Neth J Med. 2009;67(9):272-83.

4 Rosa NG, Silva G, Teixeira A, Rodrigues F, Araújo JA. Rabdomiólise. Acta Méd Port. 2005;18(4):271-82.
-55 Vanholder R, Sever MS, Erek E, Lameire N. Rhabdomyolysis. J Am Soc Nephrol. 2000;11(8):1553-61.. No trauma (crush syndrome ou crush injury) ou na depleção do estoque de ATP (consumo excessivo de álcool ou atividade física intensa, por exemplo), ocorre dano às proteínas de transporte transmembrana e, consequentemente, à membrana celular, resultando no desbalanço iônico, com grande influxo intracelular de Na+ e Ca2+33 Khan FY. Rhabdomyolysis: a review of the literature. Neth J Med. 2009;67(9):272-83.,66 Malinoski DJ, Slater MS, Mullins RJ. Crush injury and rhabdomyolysis. Crit Care Clin. 2004;20(1):171-92.. Como resultado, há lise do miócito, em virtude do aumento do influxo intracelular de água por osmose, da ativação de proteases e fosfolipases dependentes de Ca2+, da contração miofibrilar persistente (dependente de Ca2+) e da cascata inflamatória resultante das interações patológicas a partir dos processos de fibrose e necrose estabelecidos33 Khan FY. Rhabdomyolysis: a review of the literature. Neth J Med. 2009;67(9):272-83.

4 Rosa NG, Silva G, Teixeira A, Rodrigues F, Araújo JA. Rabdomiólise. Acta Méd Port. 2005;18(4):271-82.

5 Vanholder R, Sever MS, Erek E, Lameire N. Rhabdomyolysis. J Am Soc Nephrol. 2000;11(8):1553-61.
-66 Malinoski DJ, Slater MS, Mullins RJ. Crush injury and rhabdomyolysis. Crit Care Clin. 2004;20(1):171-92.. A evolução e a progressão deste processo de injúria muscular resulta na rabdomiólise.

Os achados da rabdomiólise são quantificados principalmente através dos níveis de CPK no plasma, uma enzima expressa por vários tipos celulares, em tecidos diferentes, e que participa na formação de fosfocreatina, a partir de creatina, na dependência de ATP33 Khan FY. Rhabdomyolysis: a review of the literature. Neth J Med. 2009;67(9):272-83.,77 Baynes JW, Dominiczak MH. Bioquímica médica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.,88 Torres PA, Helmstetter JA, Kaye AM, Kaye AD. Rhabdomyolysis: pathogenesis, diagnosis, and treatment. Ochsner J. 2015;15(1):58-69.. A fosfocreatina assim formada atua como reservatório intracelular de fosfato, o qual pode ser utilizado para regeneração da adenosina difosfato (ADP) em ATP, com o objetivo de manter as funções celulares normais77 Baynes JW, Dominiczak MH. Bioquímica médica. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011..

De imediato, o trauma, penetrante ou contuso, está associado à elevação nos valores da CPK plasmática na análise laboratorial22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.,33 Khan FY. Rhabdomyolysis: a review of the literature. Neth J Med. 2009;67(9):272-83.. Infarto agudo do miocárdio (IAM), distrofia muscular, lesão renal aguda (LRA), miosite autoimune, neoplasias malignas e outros processos inflamatórios de acometimento principalmente muscular, também estão relacionados a níveis elevados da CPK no plasma11 Petejova N, Martinek A. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis and renal replacement therapy: a critical review. Crit Care. 2014;18(3):224.,22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.,44 Rosa NG, Silva G, Teixeira A, Rodrigues F, Araújo JA. Rabdomiólise. Acta Méd Port. 2005;18(4):271-82.. Dessa forma, a solicitação no tempo correto e a simples análise desse marcador bioquímico, constituem formas eficientes de reduzir a chance de progressão do quadro rabdomiolítico, principalmente para LRA. Além disso, o valor da CPK plasmática é diretamente proporcional ao distúrbio ou desintegração do tecido muscular estriado, por conta do vazamento concomitante de constituintes musculares intracelulares na circulação. Considerando a concentração normal de CPK<100U/L, concentrações cinco a dez vezes maiores do que o limite superior do normal (tais como 500-1000 U/L) são utilizadas para confirmação da rabdomiólise11 Petejova N, Martinek A. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis and renal replacement therapy: a critical review. Crit Care. 2014;18(3):224.,22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.,44 Rosa NG, Silva G, Teixeira A, Rodrigues F, Araújo JA. Rabdomiólise. Acta Méd Port. 2005;18(4):271-82.,88 Torres PA, Helmstetter JA, Kaye AM, Kaye AD. Rhabdomyolysis: pathogenesis, diagnosis, and treatment. Ochsner J. 2015;15(1):58-69..

Uma vez que a análise de CPK plasmática constitui forma de prevenir a progressão à rabdomiólise e suas complicações e o nível de CPK circulante é diretamente proporcional à lesão muscular (seja por dano direto, seja por complicações, como síndrome compartimental e LRA) e, consequentemente, à gravidade do quadro, este estudo tem como objetivo identificar e analisar os fatores associados à maior variação da CPK durante a internação hospitalar em pacientes vítimas de trauma, submetidos ao protocolo “Onda Vermelha”. O conhecimento destes fatores permitiria reduzir as chances de evolução à rabdomiólise; identificar precocemente complicações associadas à piora do quadro rabdomiolítico instalado, com aumento da CPK durante a internação; e intervir precocemente nas complicações associadas à maior variação da CPK e, consequentemente, na maior lesão muscular.

MÉTODOS

Estudo do tipo longitudinal prospectivo, com amostra composta por 50 pacientes que, entre 2011 e 2015, seguiram para o protocolo da “Onda Vermelha”, com subsequente evolução à rabdomiólise, após admissão no pronto-atendimento do Hospital Risoleta Tolentino Neves, um hospital universitário terciário de referência em atendimento ao trauma, urgência e emergência no vetor Norte de Belo Horizonte99 Miranda B. Hospital das Clínicas e Risoleta Neves reduzem leitos. O Tempo. Belo Horizonte. [Internet]. 2015 Jan 21. [cited 2017 fev 17]. Disponível em: http://www.otempo.com.br/cidades/hospital-das-cl%C3%ADnicas-e-risoleta-neves-reduzem-leitos-1.977233
http://www.otempo.com.br/cidades/hospita...
. Vítimas de crimes violentos são parte considerável dos atendimentos e da população sob análise. A “Onda Vermelha” pode ser descrita como um conjunto de ações táticas médicas e também administrativas cujo objetivo é realizar toracotomia e procedimentos cirúrgicos que promovam a cessação de quadros hemorrágicos graves de maneira eficiente e segura, no bloco cirúrgico1010 Palmer C. Major trauma and the injury severity score--where should we set the bar? Annu Proc Assoc Adv Automot Med. 2007;51:13-29..

Dos 50 pacientes da amostra, os valores de CPK na admissão e final estavam preenchidos nos prontuários de, respectivamente, 47 e 43 pacientes. Os dados foram obtidos a partir do banco de dados de RT (Collector®), sendo coletadas as seguintes variáveis: prontuário, idade, sexo, RTS (Revised Trauma Score), ISS (Injury Severity Score), TRISS (Trauma and Injury Severity Score), mecanismo e desfecho do trauma, presença de hemorragia digestiva, lesão renal aguda, arritmia cardíaca, síndrome compartimental, síndrome compressiva, lesões hepática, esplênica, intestinal, torácica, renal e vascular, fraturas ortopédicas, traumatismo crânio-encefálico (TCE), avaliação do CPK na admissão e final, com o intervalo de dias entre as avaliações laboratoriais, e realização de cirurgia (laparotomia, toracotomia, ortopédica ou outra).

O ISS é um sistema anatômico de pontuação, baseado na atribuição de valores de 1 a 6 (Escala Abreviada de Lesões, onde 1 significa menor; 2, moderado; 3, sério; 4, severo/ameaça a vida; 5 crítico/sobrevida incerta e; 6, não sobrevivente), para cada lesão, considerando cada uma das seis regiões do corpo: cabeça e pescoço, face, tórax, abdome, extremidades (incluindo pelve) e superfície externa. No caso de múltiplas lesões, somente os maiores valores, para cada região, são utilizados, sendo que os três maiores valores, em segmentos corpóreos diferentes, são dobrados e somados para produzir o índice. Os valores variam de 0 a 75, de modo que se alguma lesão for igual a 6, em qualquer segmento, o ISS é 75 automaticamente1111 Champion HR, Sacco WJ, Copes WS, Gann DS, Gennarelli TA, Flanagan ME. A revision of the Trauma Score. J Trauma. 1989;29(5):623-9.. Já o RTS é um sistema fisiológico de pontuação, com grande confiabilidade e acurácia para prever o óbito, sendo calculado a partir da primeira medição da escala de coma de Glasgow (ECG), pressão arterial sistólica (PAS) e frequência respiratória (FR), variando de 0 a 7,84081212 Rezende R, Avanzi O. Importância do Índice Anatômico de Gravidade do Trauma no manejo das fraturas toracolombares do tipo explosão. Rev Col Bras Cir. 2009;36(1):9-13.. Considerou-se que níveis de ISS inferiores a 25 foram de trauma de baixa ou moderada gravidade; 25 a 34, trauma grave; 35 ou mais, trauma gravíssimo1313 Alvarez BD, Razente DM, Lacerda DA, Lother NS, Von Bahten, Stahlschmidt CM. Analysis of the Revised Trauma Score (RTS) in 200 victims of different trauma mechanisms. Rev Col Bras Cir. 2016;43(5): 334-40.. Considerou-se que a probabilidade de sobrevivência era satisfatória quando RTS fosse igual ou superior a 6, ou seja, probabilidade superior a 90%11 Petejova N, Martinek A. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis and renal replacement therapy: a critical review. Crit Care. 2014;18(3):224..

Foram criadas seis variáveis específicas, que representam a distribuição dos valores de CPK na admissão e final em três categorias distintas, cada um: <500U/L; ≥500U/L e <1000U/L; ≥1000U/L88 Torres PA, Helmstetter JA, Kaye AM, Kaye AD. Rhabdomyolysis: pathogenesis, diagnosis, and treatment. Ochsner J. 2015;15(1):58-69.. Alem disso, foi criada outra variável específica que representa o valor absoluto da diferença entre os valores de CPK final e na admissão.

Finalizada a organização das variáveis, foi feita a análise estatística, para a qual foi usado o programa SPSS Release 23.0.0.0, para Windows. Variáveis contínuas foram expressas em média e desvio padrão, e foram analisadas usando test t de Student; variáveis categóricas foram analisadas usando o qui-quadrado de Pearson ou teste de Fisher (se o número esperado de casos em uma categoria fosse inferior a 5), sendo que essa análise consistiu na análise univariada. Os fatores preditores independentemente associados à diferença de CPK foram determinados por meio de análises de regressão linear. Os valores que tiveram significância inferior a 20% (p<0,20) na análise univariada foram incluídos em um modelo linear e o modelo final foi obtido por deleção sequencial de variáveis. Para este modelo, algumas variáveis contínuas foram categorizadas. O nível de confiança considerado para resultados significativos foi 5% (p<0,05). Para avaliar o modelo multivariado obtido, foi feito o teste imtest implementado no software que, além de permitir avaliar a existência de heterocedasticidade do modelo final, ainda testa para curtose e assimetria dos dados preditos.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG e do Hospital Risoleta Tolentino Neves e submetido à Plataforma Brasil (CAAE: 44349515.5.0000.5149).

RESULTADOS

Os principais resultados descritivos associados às categorias da CPK de admissão encontram-se na tabela 1. Os 47 pacientes tinham média de idade de 39,1 anos (DP=16,8) e eram em sua maioria homens (83,0%; n=39). O mecanismo do trauma mais comum foi o contuso (68,1%; n=32). A RTS média foi compatível com sobrevivência superior a 90% (6,9; DP=1,74) e, o ISS, com trauma de baixa e moderada gravidade (22,9; DP=12,4). Para 45 pacientes (95,7%) foi feita alguma cirurgia, com predomínio da laparatomia (46,8%; n =22). Quanto às lesões e complicações, a mais comum foi a fratura ortopédica (n=33; 70,2%), seguida da lesão torácica (n=24; 51,1%), hemorragia digestiva (n=17; 36,2%), injúria renal aguda (n=16; 34%), lesão hepática (n=13; 27,7%) e lesão intestinal (n=13; 27,7%).

Tabela 1
Resultados descritivos da amostra por faixa de CPK avaliada na admissão.

Com relação às faixas de CPK na admissão, a maioria dos pacientes apresentava valores maiores ou iguais a 500 (n=43; 91,49%), com predomínio, entre estes, dos pacientes com CPK maior ou igual a 1000 (n=39; 82,98%). Destes, a média de idade foi de 37,3 anos (DP=14,43) e eram em sua maioria homens (87,2%; n=34). O mecanismo do trauma mais comum foi o contuso (71,8%; n=28). A RTS média foi compatível com sobrevivência superior a 90% (7,06; DP=1,47) e, o ISS, com trauma de baixa e moderada gravidade (23,95; DP=13,22). Os tempos médios de internação em UTI superaram 30 dias. Para 37 pacientes (94,9%) foi feita alguma cirurgia, com predomínio da laparatomia (43,6%; n =17), seguida da toracotomia (30,8%; n=12). Quanto às lesões e complicações, a mais comum foi a fratura ortopédica (n=28; 71,8%), seguida da lesão torácica (n=23; 59%), hemorragia digestiva (n=12; 30,8%), injúria renal aguda (n=12; 30,8%), lesão hepática (n=11; 28,2%) e lesão intestinal (n=10; 25,6%).

Houve diferenças significativas entre médias e proporções para as seguintes variáveis, quanto à estratificação pelo valor de CPK na admissão: desfecho do trauma (p=0,005), com predomínio do contuso entre os pacientes com maiores níveis de CPK, e lesão torácica (p=0,044), mais frequente nos pacientes com maiores níveis de CPK.

Os resultados associados às categorias da CPK final encontram-se na tabela 2. Os 43 pacientes apresentam média de idade de 40,19 anos (DP=16,6), com predomínio de homens (81,4%; n=35). O mecanismo do trauma mais comum foi o contuso (67,4%; n=29). A RTS média foi compatível com sobrevivência superior a 90% (n=7; DP=1,69) e, o ISS, com trauma de baixa e moderada gravidade (22,58; DP=12,88). Os tempos médios de internação em UTI superaram 35 dias. Para 42 pacientes (97,7%) foi feita alguma cirurgia, com predomínio da laparatomia (46,5%; n=20). Quanto às lesões e complicações, a mais comum foi a fratura ortopédica (n=29; 67,4%), seguida da lesão torácica (n=21; 48,8%), hemorragia digestiva (n=15; 34,9%), injúria renal aguda (n=15; 34,9%), lesão intestinal (n=12; 27,9%) e lesão hepática (n=11; 25,6%).

Tabela 2
Resultados descritivos da amostra por faixa de CPK avaliada ao final.

Com relação às faixas de CPK final, a maioria dos pacientes apresentava valores menores que 500 (n=26; 60,47%). Destes, a média de idade foi de 44,62 anos (DP=17,61) e eram em sua maioria homens (80,8%; n=21). O mecanismo do trauma mais comum foi o contuso (65,4%; n=17). A RTS média foi compatível com sobrevivência superior a 90% (7,24; DP=1,12) e, o ISS, com trauma de baixa e moderada gravidade (21,15; DP=10,77). Os tempos médios de internação em UTI superaram 21 dias. Para 26 pacientes (100%) foi feita alguma cirurgia, com predomínio da laparatomia (38,5%; n=10). Quanto às lesões e complicações, a mais comum foi a fratura ortopédica (n=17; 65,4%), seguida da lesão torácica (n=14; 53,8%), injúria renal aguda (n=10; 38,5%) e hemorragia digestiva (n=9; 34,6%).

Não houve diferenças significativas entre médias e proporções para as variáveis, quanto à estratificação pelo valor de CPK final: desfecho do trauma (p=0,078) e tempo, em dias, de internação na UTI (p=0,062).

A tabela 3 apresenta as variações médias da CPK, durante o período de internação, de acordo com as variáveis dos 43 pacientes com valor de CPK final preenchido na amostra. A maior variação média observada foi para a síndrome compartimental (13658,67; DP=8024,04), seguida da lesão intestinal (7143,42; DP=3125,68), hemorragia digestiva (6494,8; DP=2502,51), TCE (6150,5; DP=2018,5) e laparotomia (5331,55; DP=1921,48). A menor variação média relaciona-se, principalmente, à cirurgia ortopédica (1469; DP=1010), seguida pela lesão renal (1815,67; DP=1586,47), lesão vascular (2232,67; DP=912,95) e sexo feminino (2490,75; DP=783,98).

Tabela 3
Resultados descritivos da amostra de pacientes, estratificando de acordo com a variação da CPK ao longo da internação.

Os valores com significância inferior a 20% (p<0,20), incluídos no modelo final de regressão linear, são: sexo (p=0,121), internação na UTI (p=0,168), hemorragia digestiva (p=0,197), injúria renal aguda (p=0,192), síndrome compartimental (p=0,004), lesão intestinal (p=0,053), lesão vascular (p=0,141), fratura ortopédica (p=0,145), cirurgia ortopédica (p=0,112) e outras cirurgias (p=0,187).

A tabela 4 indica os fatores que se revelaram independente e positivamente associados à variação da CPK: de forma positiva, o tempo de internação superior a uma semana e a síndrome compartimental e, de forma negativa, a injúria renal aguda. Não houve evidência de heterocedasticidade (p=0,784), assimetria (p=0,403), ou curtose (p=0,260).

Tabela 4
Fatores independentemente associados à diferença de CPK.

DISCUSSÃO

Nos pacientes estudados com LRA, a CPK à admissão era menor comparativamente àqueles sem LRA, com tendência à significância estatística (p=0,096), diferença esta não observada no caso da estratificação de pacientes com síndrome compartimental. Estatisticamente, essa é a razão pela qual a presença de LRA está associada a diferenças negativas na CPK na presença de outros fatores, como o tempo de internação maior que uma semana e a síndrome compartimental. Na prática, esse resultado pode representar que pacientes com rabdomiólise e menor gravidade à admissão, representada pelo menor CPK, apresentam maiores chances de evoluir à LRA, porém deve-se considerar também que a CPK apresenta picos dentro de 24 a 72 horas, e depois declina gradualmente em sete a dez dias, o que pode influenciar os resultados encontrados a depender do tempo para internação do paciente11 Petejova N, Martinek A. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis and renal replacement therapy: a critical review. Crit Care. 2014;18(3):224.. Dessa forma, há a necessidade de mais estudos sobre essa relação.

Na rabdomiólise, os achados clínicos são quantificados a partir da análise laboratorial dos níveis de CPK, os quais encontram-se tipicamente elevados nos pacientes, constituindo, portanto, um importante biomarcador da doença22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.,1414 Lima RS, da Silva Junior GB, Liborio AB, Daher EF. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2008;19(5):721-9.. Dessa forma, estabelece-se, na literatura, o limiar de CPK maior que 500U/L para definição de uma rabdomiólise significante; outros estudos definem uma CPK de 1000U/L como limite inferior ao diagnóstico1414 Lima RS, da Silva Junior GB, Liborio AB, Daher EF. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2008;19(5):721-9.. Dessa forma, o presente trabalho, com base em estudos anteriores, sugere o valor de 1000U/L como limite inferior para análise da CPK, com 83% dos valores de admissão acima desse limiar, a partir dos pacientes admitidos no protocolo da “Onda Vermelha”, com diagnóstico clínico de rabdomiólise88 Torres PA, Helmstetter JA, Kaye AM, Kaye AD. Rhabdomyolysis: pathogenesis, diagnosis, and treatment. Ochsner J. 2015;15(1):58-69.,1515 Brown CV, Rhee P, Chan L, Evans K, Demetriades D, Velmahos GC. Preventing renal failure in patients with rhabdomyolysis: do bicarbonate and mannitol make a difference? J Trauma. 2004;56(6):1191-6..

A rabdomiólise é basicamente uma consequência da lesão muscular, em associação, principalmente, com a síndrome compartimental, trauma (crush syndrome ou crush injury) e lesão de reperfusão, cuja complicação mais severa, presente em 13 a 50% dos casos, é a LRA, a partir do depósito de mioglobina, que leva à vasoconstrição renal, formação de depósitos intratubulares e lesão direta aos túbulos renais11 Petejova N, Martinek A. Acute kidney injury due to rhabdomyolysis and renal replacement therapy: a critical review. Crit Care. 2014;18(3):224.,1616 Nayak S, Jindal A. Myoglobinuria and acute kidney injury. J Integr Nephrol Androl. 2015;2(2):50-4.. À admissão, os pacientes do presente estudo apresentavam-se, principalmente, com fratura ortopédica (71,8%) e lesão torácica (59%), tipicamente associadas ao trauma e, consequentemente, à lesão muscular. A LRA esteve presente em cerca de 31% dos pacientes, dentro da faixa histórica da literatura.

O diagnóstico rápido e a intervenção precoce são essenciais ao prognóstico do paciente. Na maioria dos casos, a função renal, grande preocupação nessa síndrome, recupera-se e a taxa de sobrevivência fica em torno de 78%1717 Keltz E, Khan FY, Mann G. Rhabdomyolysis. The role of diagnostic and prognostic factors. Muscles Ligaments Tendons J. 2014;3(4):303-12.. Dos pacientes com valor de CPK avaliado ao final da internação, cerca de 61% apresentou normalização dos níveis da enzima na circulação (<500U/L). Além disso, a taxa de sobrevivência ficou em torno de 79% para todos os pacientes. Pacientes com CPK>1000U/L à admissão apresentaram as maiores taxas de sobrevivência do estudo, provavelmente por demandarem maior atenção da equipe médica, com a realização de procedimentos cirúrgicos. O mesmo não se observou para os pacientes nessa mesma categoria, com CPK>1000U/L, porém ao final da internação, com sobrevivência de 50%, em virtude do pior prognóstico e irreversibilidade do quadro.

O diagnóstico precoce da rabdomiólise relaciona-se principalmente ao reconhecimento de um quadro clínico compatível com a síndrome, antes da avaliação laboratorial dos níveis de CPK, que apesar de ser um marcador bioquímico de análise simples e de custo acessível, pode demandar um tempo extra essencial ao manejo crítico na sala de emergência. Concomitantemente, um tratamento efetivo representa a atuação eficaz sobre as principais lesões, de modo que a relação de uma lesão com a evolução do quadro clínico do paciente pode ser quantificada a partir da variação dos níveis de CPK22 Bagley WH, Yang H, Shah KH. Rhabdomyolysis. Intern Emerg Med. 2007;2(3):210-8.,1717 Keltz E, Khan FY, Mann G. Rhabdomyolysis. The role of diagnostic and prognostic factors. Muscles Ligaments Tendons J. 2014;3(4):303-12..

Nesse contexto, o trauma por si só constitui uma causa comum de rabdomiólise, seja pela compressão e lesão muscular associadas, seja pelas lesões concomitantes apresentadas, fazendo-se necessário seu manejo adequado. O presente trabalho aponta hemorragia digestiva, lesão renal aguda e síndrome compartimental como variáveis estatisticamente associadas à maior variação dos níveis de CPK durante a internação, independente de outros fatores, demandando, portanto, maior atenção das equipes de emergência1616 Nayak S, Jindal A. Myoglobinuria and acute kidney injury. J Integr Nephrol Androl. 2015;2(2):50-4.. A hemorragia digestiva, embora grave e presente nos resultados descritivos de acordo com a variação da CPK ao longo da internação, não entrou no modelo final dos fatores independentemente associados à diferença de CPK, provavelmente pelo fato dos demais fatores apresentarem maior impacto na alteração da CPK.

O presente trabalho indicou maior relação da rabdomiólise com valores de CPK acima de 500U/L, e principalmente >1000U/L, no momento da admissão, em associação com fratura ortopédica, seguida de lesão torácica, hemorragia digestiva, lesão renal aguda, lesão hepática e lesão intestinal, e em pacientes submetidos à laparotomia, principalmente, e de toracotomia. Do ponto de vista prático, reforça-se a necessidade da solicitação precoce da CPK plasmática em vítimas de trauma, com o valor de 1000U/L como limite inferior para análise. Além disto, deve-se proceder à avaliação do quadro clínico do paciente e das complicações apresentadas, de modo a intervir precocemente em condições relacionadas ao agravamento da lesão muscular e, consequentemente, do quadro rabdomiolítico, como fratura ortopédica, hemorragia digestiva e lesão renal aguda. Entretanto, há a necessidade de mais estudos na área, para obtenção de maior amostra de dados comparativos.

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  • Fonte de financiamento:

    Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq da autora correspondente. Bolsa PIBIC/CNPq do segundo autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2017
  • Aceito
    22 Jan 2018
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