INTRODUÇÃO
Câncer gástrico (GC) ainda é uma importante causa de morte por câncer em todo o mundo. No Brasil é a terceira neoplasia maligna mais comum entre os homens e a quinta entre as mulheres1. No entanto, a via genética para desenvolvimento e progressão deste tumor permanece incerta. É uma doença multifatorial que resulta de predisposição genética individual e de fatores ambientais, como dieta, consumo de álcool, tabagismo e infecção crônica por Helicobacter pylori ou pelo vírus Epstein-Barr (EBV)2-4. O vírus Epstein-Barr pertence ao gênero linfocryptovirus da família do gama-herpesvírus humano e infecta mais de 90% da população adulta mundial5. É um herpesvírus onipresente classificado como carcinógeno do grupo 1 pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer. O EBV está associado a várias doenças malignas, como linfoma de Burkitt, linfoma de Hodgkin, carcinoma de nasofaringe, linfoma de células natural killer e, também, com câncer gástrico2,6. O vírus Epstein-Barr e a infecção concomitante por H. pylori estão positivamente associados à gastrite grave em pacientes pediátricos e com câncer gástrico3,4,7,8.
Glutationa S-transferases (GST; EC 2.5.1.18), uma família de supergenes de enzimas de desintoxicação de fase II, parece formar um mecanismo de proteção contra carcinogênese química9. A glutationa S-transferase mu 1 (GSTM1) e a glutationa S-transferase teta 1 (GSTT1) são enzimas críticas para a desintoxicação de carcinógenos endógenos e ambientais. O gene GSTT1 está localizado no cromossomo 22 e o GSTM1 no cromossomo 110. Deleções homozigotas ou ausência do genótipo dos genes GSTT1 e GSTM1 podem estar associadas ao aumento do risco de câncer11. O termo “polimorfismo” é usado em genética para descrever as múltiplas formas de um gene existente em um indivíduo ou em um grupo de indivíduos. As isoenzimas GSTM1 e GSTT1 exibem polimorfismos de deleção, resultando em falta de atividade, e os genótipos nulos têm sido associados a um aumento significativo no risco de câncer gástrico12.
Nosso estudo tem como objetivo comparar o polimorfismo dos genes GSTT1 e GSTM1, na área tumoral, com as margens de ressecção proximal e distal de estômagos ressecados de pacientes com câncer gástrico e investigar infecção concomitante de EBV e H. pylori.
MÉTODOS
Estudamos prospectivamente dez pacientes com adenocarcinoma gástrico submetidos à gastrectomia com linfadenectomia D2 no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Extraímos o DNA genômico do tecido tumoral fresco e das margens de ressecção proximal e distal (Figura 1). Nós o isolamos por digestão em 500µl contendo 10mM Tris-HCl, pH 7,5, 10mM NaCl, SDS a 2%, 10mM EDTA, pH 8,0 e 15µl de proteinase K a 10mg/ml a 60ºC durante 2h. Posteriormente, adicionamos um volume igual de fenol: clorofórmio 1:1 (v/v), seguido de agitação vigorosa e centrifugação. A fase aquosa foi separada e o DNA precipitado com dois volumes de etanol absoluto a -20 durante a noite. Após centrifugação, lavamos os pellets com etanol a 70% e ressuspendemos o DNA em água Milli-Q. Submetemos o DNA genômico extraído à PCR para confirmar a integridade do DNA usando primers do gene exon 5 p53, gerando um produto de 274pb, como relatado por Pestaner et al.13. Detectamos genótipos GSTM1 e GSTT1 por reação em cadeia pela polimerase (PCR) multiplex com o exon 5 do gene p53 como controle interno para o sucesso da reação de amplificação. Os iniciadores (primers) usados para GSTM1, GSTT1 e p53 estão descritos na tabela 1.

Figura 1 Peças cirúrgicas de gastrectomia dos pacientes 1 e 5 que mostram a área do tumor (T), a margem proximal de ressecção (PM) e a margem distal de ressecção (DM)
Tabela 1 Lista dos iniciadores utilizados.
Genes | Sequência dos iniciadores senso (F) E antissenso (R) | Tamanho do produto (bp*) |
---|---|---|
GSTM1** | (F) 5' GAACTCCCTGAAAAGCTAAAGC 3' | 220 |
(R) 5' GTGGGCTCAAATATACGGTGG 3' | ||
GSTT1*** | (F) 5' TTCCTTACTGGTCCTCACATCTC 3´ | 450 |
(R) 5' TCACCGGATCATGGCCAGCA 3' | ||
p53 (exon 5) | (F) 5' GCAACCAGCCCTGTCGTGTCTCCA 3' | 274 |
(R) 5' GGAATTCTGTTCACTTGTGCCCTGACTTTCAAC3' | ||
EBV-TC67# | 5' CAG GCT TCC CTG CAA TTT TAC AAG CGG 3' | 288 |
EBV-TC69# | 5' CCCAGAAGTATACGTGGTGACGTAGA 3' | |
glmM17 | (F) 5'GGA TAA GCT TTT AGG GGT GTT AGG GG3' | 140 |
(R) 5'GCA TTC ACA AAC TTA TCC CCA ATC3' |
*bp: pares de bases;
**GSTM1: Glutationa S-transferase mu 1;
***GSTT1:Glutationa S-transferase teta 1;
#TC67/TC69: iniciadores de consenso; Espinoza et al.17.
As condições da PCR incluíam desnaturação inicial a 94oC durante cinco minutos seguido por 30 ciclos a 95oC durante 1min, 64oC durante 1min, 72oC durante 1 min. A extensão final foi a 72ºC por 5min14. Após a amplificação, separamos os produtos da PCR em eletroforese em gel de poliacrilamida a 10% e os visualizamos com nitrato de prata. Realizamos a coloração do gel da seguinte forma: uma etapa inicial da fixação do DNA usando solução de etanol a 10% e ácido acético a 0,37% por 10min, um passo de impregnação com solução de nitrato de prata a 0,2% por 10min seguido por enxágue com água destilada durante 30s, e um passo final com 3% de NaOH e 0,4% de formaldeído até as bandas de DNA serem claramente visíveis. Usamos a solução inicial para parar a reação15.
Detecção do vírus Epstein-Barr (EBV) e de Helicobacter pylori.
Nós avaliamos a presença do DNA do EBV e de H. pylori nas amostras usando PCR. Para detectar o DNA-EBV, empregamos os iniciadores de consenso TC67 e TC6916, cujo produto é um fragmento de 288pb. Para a detecção do DNA de H. pylori, foram utilizados pares de iniciadores para o gene glmM, conforme descrito por Espinoza et al.17 para obter um tamanho de produto de PCR de 140pb. Realizamos a amplificação para o EBV-DNA da seguinte forma: 95ºC por 1min, seguido por 40 ciclos a 94ºC por 1min, 55ºC por 2min, 72ºC por 1min e uma etapa final de extensão de 5min a 72ºC. Os parâmetros para a amplificação do DNA de H. pylori foram: 5min para a desnaturação inicial a 96ºC, depois 35 ciclos a 95ºC, 55ºC e 72ºC, sendo 1min para cada temperatura durante os ciclos, e um passo de alongamento final a 72ºC durante 7min. Armazenamos os produtos resultantes da amplificação do DNA (amplicons) a 4ºC até o uso, quando os analisamos em 10% de gel de poliacrilamida corado com prata15. Usamos linhagens de células de Raji e uma amostra positiva para infecção por H. pylori como controles de reação positiva para EBV e H. pylori, respectivamente. Os controles negativos foram amostras contendo apenas a mistura de reação sem DNA.
Esta pesquisa está em conformidade com as diretrizes para estudos em humanos e regulamentos de bem-estar animal. O comitê de pesquisa em seres humanos do nosso instituto (Comitê de Ética em Pesquisa) aprovou o protocolo do estudo (CAAE 43698915.6.0000.5257) e todos os pacientes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
RESULTADOS
As idades variaram de 51 a 75 anos; seis pacientes eram do sexo masculino e quatro do sexo feminino. A tabela 2 mostra as características do tumor, os achados cirúrgicos e patológicos, bem como, o estadiamento.
Tabela 2 Características tumorais, achados cirúrgicos e histopatológicos e estadiamento.
Paciente | Idade | Sexo | Localização do tumor | Tipo histológico | Cirurgia | Margens de ressecção | Estadiamento |
---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | 51 | M | Cardia III | Pouco diferenciado/ tipo difuso | Gastrectomia total | Negativa | T3N3aM1 |
2 | 75 | M | Corpo | Moderadamente diferenciado/ tipo intestinal | Gastrectomia subtotal | Negativa | T2N0M0 |
3 | 71 | M | Antro | Moderadamente diferenciado/ tipo intestinal | Gastrectomia subtotal | Negativa | T3N1M0 |
4 | 53 | M | Cardia III | Pouco diferenciado/tipo difuso | Gastrectomia total | Positiva | T3N2M0 |
5 | 56 | F | Antro | Moderadamente diferenciado/ tipo intestinal | Gastrectomia subtotal | Negativa | T3N3aM0 |
6 | 53 | F | Fundo | Pouco diferenciado/tipo difuso | Gastrectomia total | Negativa | T3N1M0 |
7 | 52 | F | Antro | Bem diferenciado/ tipo intestinal | Gastrectomia subtotal | Negativa | T1aN0M0 |
8 | 69 | M | Antro | Pouco diferenciado/tipo difuso | Gastrectomia subtotal | Negativa | T3N2M0 |
9 | 61 | M | Corpo + Antro | Moderadamente diferenciado/ tipo intestinal | Gastrectomia total | Negativa | T3N1M0 |
10 | 58 | F | Antro | Pouco diferenciado/tipo difuso | Antrectomia | Negativa | T3N0M0 |
A tabela 3 mostra o polimorfismo para GSTT1 e GSTM1 da área tumoral (T), da margem distal (MD) e da margem proximal (MP).
Tabela 3 Genótipos glutationa S-transferase mu 1 (GSTM1) e glutationa S-transferase teta 1 (GSTT1).
GSTT1 | GSTM1 | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Pacientes | MD* | T† | MP‡ | MD* | T† | MP‡ |
1 | POS | NEG | POS | POS | NEG | POS |
2 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
3 | POS | POS | POS | NEG | NEG | NEG |
4 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
5 | POS | POS | NEG | POS | POS | POS |
6 | NEG | NEG | NEG | POS | POS | POS |
7 | POS | POS | POS | NEG | NEG | NEG |
8 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
9 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
10 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
MD*: margem distal;
T†: área tumoral;
MP‡: margem proximal;
POS: positivo; NEG: negativo.
A tabela 4 mostra a presença ou ausência do vírus Epstein-Barr (EBV) ou de H.pylori associado ao câncer gástrico.
Tabela 4 Pesquisa de DNA de EBV e de H. pylori.
EBV | H.pylori | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
Pacientes | MD* | T† | MP‡ | MD* | T† | MP‡ |
1 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
2 | NEG | NEG | NEG | NEG | NEG | NEG |
3 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
4 | NEG | NEG | NEG | NEG | NEG | NEG |
5 | NEG | POS | POS | POS | POS | POS |
6 | NEG | NEG | NEG | POS | POS | NEG |
7 | NEG | NEG | NEG | POS | POS | POS |
8 | POS | POS | POS | POS | POS | POS |
9 | NEG | POS | POS | NEG | NEG | NEG |
10 | NEG | POS | POS | POS | POS | POS |
MD*: margem distal;
T†: área tumoral;
MP‡: margem proximal;
POS: positivo; NEG: negativo.
Detectamos produtos dos genes GSTT1 e GSTM1 nas margens proximal e distal do paciente 1, mas observamos genótipos nulos na área do tumor. No paciente 5, a margem proximal foi negativa para GSTT1. A presença de produto de amplificação para o gene p53 em todas as amostras indica o controle interno da reação. Nos outros oito pacientes analisados, não observamos tal desequilíbrio (Figura 2).

Figura 2 PCR multiplex dos genes GSTM1 e GSTT1 e do exon 5 do gene codificante da proteína p53 (Tp53), 100 pares de bases ladder (bp) controle negativo (C-). Paciente 1: DNA do fragmento tumoral (T) mostrando genótipo nulo (ausência de 480 e 215 pb) para GSTT1 e GSTM1. PM e DM correspondem às margens do tumor proximal e distal, mostrando amplificação para GSTT1 e GSTM1. O exon 5 do p53, usado como controle interno, é detectado em todas as amostras. Paciente 5: GSTT1 ausente apenas na PM
Encontramos o DNA do EBV na área do tumor e também nas margens proximal e distal dos pacientes 1, 3 e 8, mas não na margem distal dos pacientes 5, 9 e 10. Observamos infecção concomitante por H. pylori e EBV em 5/10 (50%) dos casos (tabela 4).
DISCUSSÃO
Revisão de Knuutila et al.18,19 descreve muitas aberrações cromossômicas, como perdas e ganhos de sequências de DNA tumoral, que ocorrem em vários tumores malignos. A instabilidade cromossômica e amplificações/exclusões heterogêneas de genes estão associadas a muitas malignidades20-23. Para o câncer gástrico, Noguchi et al.24 não detectaram exclusões cromossômicas dos genes GSTM1 e GSTT1 em seu trabalho. Os autores, ao compararem seus resultados com os realizados com a população japonesa25, observaram diferenças no padrão de aberrações cromossômicas entre pacientes europeus e de populações de alto risco, como no Japão, sugerindo diferentes gêneses tumorais nessas populações. Em nosso estudo, em pacientes brasileiros com adenocarcinoma gástrico, notamos um genótipo nulo para GSTT1 e GSTM1 apenas na área tumoral de um paciente, e um genótipo nulo para GSTT1 na margem proximal em outro. Estes resultados refletem uma heterogeneidade intratumoral para os genes estudados. Em um dos nossos outros estudos, uma PCR multiplex foi realizada para os genes GSTT1 e GSTM1 usando amostras de três áreas distintas de uma neoplasia pseudopapilar sólida do pâncreas. Os resultados mostraram um genótipo nulo para GSTT1 nas áreas tumorais 1 e 3 quando comparado com a área 2. O genótipo nulo para GSTT1 nas áreas 1 e 3 do tumor indica heterogeneidade tumoral26. Este é o primeiro relato em que diferentes genótipos para GSTT1 e GSTM1, DNA do EBV e infecção por H. pylori foram observados no mesmo paciente, indicando uma provável deleção desses genes em resposta à progressão tumoral e heterogeneidade intratumoral.
A heterogeneidade intratumoral tem sido descrita como uma característica inerente à maioria dos cânceres humanos27. Uma das principais causas de heterogeneidade genética no câncer é a instabilidade genômica27. A instabilidade genômica inclui frequências aumentadas de mutação de par de bases, instabilidade de microssatélites, variações, como o número de cromossomos ou mudanças de estrutura, que também são chamadas de instabilidade cromossômica28,29.
O vírus Epstein-Barr está associado a vários tumores humanos e, em 1990, os genomas do EBV foram detectados em carcinomas gástricos30. Wu et al.31 demonstraram que a DNase do EBV pode induzir a instabilidade genômica através de dois mecanismos: diretamente, por dano ao DNA, e indiretamente, pela inibição do reparo do DNA. As infecções por H.pylori e EBV são fatores de risco bem estabelecidos para o desenvolvimento do câncer gástrico. H. pylori causa gastrite em humanos, com inflamação crônica. Acredita-se que esta inflamação crônica seja a causa da instabilidade genômica32. O H. pylori é classificado como um carcinógeno do grupo I, uma vez que essa bactéria é responsável pela maior taxa de mortes relacionadas ao câncer em todo o mundo33.
Em nosso estudo, apenas os espécimes dos pacientes 2 e 4 estavam livres de infecção por EBV ou H. pylori. Provavelmente, outros fatores de risco, como idade, sexo, tabagismo, consumo de álcool ou fatores dietéticos, estão presentes nesses pacientes. A interação entre EBV e H. pylori na mucosa gástrica pode ter efeitos sinérgicos no desenvolvimento do câncer gástrico32. Nosso estudo sugere que a infecção concomitante entre H. pylori e EBV pode ser um dos fatores responsáveis pelo surgimento do câncer gástrico. A instabilidade genômica em resposta à infecção por EBV ou H. pylori pode também ser responsável pelos genótipos nulos de GSTM1 e GSTT1 encontrados no presente estudo.