INTRODUÇÃO
Hérnia inguinal é uma doença frequente, com importante impacto nas atividades diárias dos pacientes por ela acometidos. Segundo dados obtidos do Sistema Único de Saúde (SUS), foram realizadas cerca de 150.000 herniorrafias no Brasil em 2017, a maioria em caráter eletivo e em hospitais privados1. Houve predomínio na faixa etária entre 50 e 69 anos, sendo que, na população acima de 65 anos de idade foram encontradas as maiores taxas de mortalidade1,2.
Novas ferramentas diagnósticas surgiram nos últimos 40 anos, possibilitando o diagnóstico precoce de hérnias, ainda pequenas, assintomáticas e nem sempre perceptíveis no exame físico2-4. No entanto, história e exame físico apresentam sensibilidade de 75% a 92% e especificidade de 93% no diagnóstico destas hérnias5. Queixas típicas de hérnia incluem o relato de abaulamento na região inguinal, frequentemente relacionado aos esforços físicos, associado ou não a dor e desconforto5,6.
Alguns diagnósticos diferenciais devem ser descartados, como hérnias incisionais, hérnia femoral, lipoma de cordão espermático, varicocele, hidrocele, linfadenomegalia inguinal, endometriose, epididimite, torção testicular, cisto sebáceo, abscessos, entre outros2,5. É também importante a investigação de possíveis hérnias assintomáticas contralaterais passíveis de serem operadas no mesmo tempo cirúrgico7-9. Nesses casos de hérnias ocultas ou diagnóstico diferencial, os exames de imagem podem e devem ser utilizados para esclarecimento diagnóstico e adoção da melhor conduta5,6.
A ultrassonografia (USG) é um método com boa acuidade, não invasivo, sem radiação, porém, operador dependente, apresentando sensibilidade que varia de 33% a 100% e especificidade de 81% a 100%7. Já a tomografia (TC) tem se mostrado útil em hérnias ocultas, ou atípicas, com sensibilidade de 83% e especificidade de 67% a 83%5. A ressonância magnética é o exame de imagem que apresenta maior sensibilidade e especificidade em torno 94% e 96%, respectivamente, porém nem sempre disponível nos serviços públicos em nosso país8.
De acordo com o último consenso brasileiro na abordagem de hérnias inguinais, os métodos de imagem devem ser solicitados apenas em casos de dúvida diagnóstica e o exame inicial deve ser o ultrassom. Esta orientação foi divulgada em manual no Congresso Brasileiro de Hérnia de 2018 como orientações da Sociedade Brasileira de Hérnia para o manejo das hérnias inguinocrurais em adultos. Na persistência de dúvida, a ressonância se mostrou superior à tomografia4.
O objetivo deste estudo foi avaliar a concordância e discordância entre achados ultrassonográficos com as queixas, exame físico e achados intraoperatórios de pacientes submetidos à herniorrafia inguinal.
MÉTODOS
Estudo retrospectivo, descritivo, analítico, baseado em dados obtidos dos prontuários de pacientes submetidos à correção de hérnia inguinal entre janeiro de 2016 e dezembro de 2017. As cirurgias foram realizadas pela mesma equipe de cirurgiões do Grupo de Parede Abdominal da Universidade Santo Amaro. Os dados avaliados foram queixa típica, exame físico, laudo de USG e achados intraoperatórios. Foram excluídos pacientes com menos de 13 anos de idade e aqueles que não tinham, em prontuário, ao menos dois dos parâmetros predeterminados para o estudo, o que impossibilitaria a análise comparativa.
Como queixa típica foi considerados dor ou desconforto, associados ou não à tumefação na região inguinal. O exame físico foi considerado positivo em pacientes com anel inguinal superficial alargado e/ou manobra de Valsalva positiva. O ultrassom foi considerado positivo quando o laudo apresentava presença de hérnia inguinal na sua conclusão.
Para análise estatística dos resultados foram aplicados os testes Kappa e McNemar, com o objetivo de estudar, respectivamente, as concordâncias e discordâncias do USG com queixa, exame físico e achado intraoperatório, com nível de significância fixado em p<0,005. Cada análise agregou dois instrumentos diagnósticos separadamente e independente dos demais, confrontando-se laudo de ultrassom com queixa típica, com exame físico e com achado intraoperatório, sendo que cada comparação não continha todos os pacientes por falhas de prontuário.
Esse trabalho foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Santo Amaro e aprovado sob o parecer de nº 2.699.664.
RESULTADOS
Foram analisados 232 pacientes com 291 hérnias no total. Desses, 93,1% eram do sexo masculino e 6,9% do sexo feminino. A idade variou entre 14 e 88 anos, com média de 49,5 anos. Em 46 casos pôde-se comparar USG com queixa típica ou ausência de queixas (Tabela 1). Entre aqueles com queixas típicas, 24 (52,17%) tiveram hérnias confirmadas à USG e 14 (30,43%) apresentaram laudo de USG sem hérnias. Oito pacientes (17,40%) sem queixas tinham exame ultrassonográfico positivo para hérnia inguinal e nenhum paciente sem queixa teve USG normal. Aplicando-se o teste estatístico Kappa verificou-se que houve significância relacionada à concordância entre queixa e exame ultrassonográfico (Kappa=0,284 / p=0,019). Já o teste de McNemar (p=0,286) não mostrou significância estatística entre as discordâncias. A maior proporção de pacientes com queixa típica de hérnia sem USG confirmatório (30,43%) em relação a presença de hérnia ultrassonográfica na ausência de queixas (17,40%) não pôde ser considerado significante (Tabela 1).
Tabela 1 Concordância e discordância entre ultrassom e queixas típicas de hérnia do paciente.
USG# | Com queixa (%) | Sem queixa (%) | Total |
---|---|---|---|
Com hérnia (%) | 24 (52,17%)* | 8 (17,39%) | 32 (69,56%) |
Sem hérnia (%) | 14 (30,43%) | 0 (0,00%)* | 14 (30,43%) |
Total | 38 (82,60%) | 8 (17,39%) | 46 |
#USG: ultrassonografia;
*análises com significância estatística.
Em 56 casos a USG pôde ser comparada com o exame físico (Tabela 2). Em 34 (60,71%) pacientes, as hérnias inguinais, ao exame físico, foram confirmadas à USG e em 16 (28,57%), não foi constatada presença de hérnia inguinal à USG. Foram identificados cinco casos (8,93%) de hérnias à USG que não haviam sido confirmadas pelo exame físico. Um (1,78%) paciente com exame físico negativo e USG negativa para hérnia inguinal foi submetido à TC e posteriormente à cirurgia, tendo sido constatada a presença de hérnia no intraoperatório. Submetidos os dados à análise estatística pelo método de Kappa observou-se que a concordância não apresentou significância estatística (Kappa: 0,084; p=0,221). Já o teste de McNemar (p=0,0291) mostrou que a porcentagem de pacientes que apresentaram hérnia ao exame físico, não confirmada pelo exame ultrassonográfico (28,57%) foi maior que a porcentagem de hérnias identificadas somente ao exame complementar (8,93%), com significância quanto à discordância entre esses parâmetros (Tabela 2).
Tabela 2 Concordância e discordância entre ultrassom e achados em exame físico.
USG# | EF## compatível (%) | EF## não compatível (%) | Total |
---|---|---|---|
Com hérnia (%) | 34 (60,71%) | 5 (8,93%)* | 39 (69,64%) |
Sem hérnia (%) | 16 (28,57%)* | 1 (1,78%) | 17 (30,35%) |
Total | 50 (89,28%) | 6 (10,71%) | 56 |
#USG: ultrassonografia;
##EF: exame físico;
*análises com significância estatística.
Para a comparação entre os achados intraoperatórios e ultrassonográficos foram selecionados 52 casos de hérnias, como mostra a tabela 3. Trinta e cinco pacientes (67,30%) com exames ultrassonográficos positivos foram confirmados durante o intraoperatório e 17 (32,70%) com USG negativos para hérnia apresentaram presença da enfermidade no intraoperatório. Não houve paciente submetido à cirurgia sem a presença de hérnia. Analisando os dados, não foi possível avaliar concordância entre os itens selecionados pelo teste de Kappa. O teste de McNemar (p=0,001) mostrou que a porcentagem de pacientes com hérnia abordada cirurgicamente que apresentavam USG negativo (32,70%) foi maior do que a de pacientes com hérnia ultrassonográfica não identificada no intraoperatório, com significância estatística.
Tabela 3 Concordância e discordância entre ultrassom e achado intraoperatório.
USG# | Presença de hérnia no IO## (%) | Ausência de hérnia no IO##(%) | Total |
---|---|---|---|
Com hérnia (%) | 35 (67,30%) | 0 (0,00%)* | 35 (67,30%) |
Sem hérnia (%) | 17 (32,70%)* | 0 (0,00%) | 17 (32,70%) |
Total | 52 (100%) | 0 (0,00%) | 52 |
#USG: ultrassonografia;
##IO: intraoperatório;
*análises com significância estatística.
DISCUSSÃO
A predominância de homens em relação às mulheres encontrada na amostra estudada é condizente com a literatura mundial. A queixa típica e/ou exame físico apresentaram maior acurácia para identificar hérnias inguinais do que o ultrassom. Diante deste cenário, questiona-se a necessidade de solicitação desse exame complementar, uma vez que a clínica é soberana.
Várias técnicas radiológicas foram desenvolvidas para solucionar a dificuldade de diagnóstico diferencial das hérnias inguinais. O primeiro método descrito foi a herniografia, descrita pela primeira vez em 1967, no Canadá e, por ser uma técnica invasiva, que envolve o uso de injeção de contraste intraperitoneal, com riscos de complicações graves, está em desuso10,11.
Atualmente preconiza-se o diagnóstico de hérnias inguinais de difícil identificação clínica com auxílio da USG, o que é corroborado por Alabraba et al.12 e pela Sociedade Europeia de Hérnia5. Essa técnica é de baixo custo, não invasiva e praticamente isenta de riscos. Além disso, é uma modalidade dinâmica que permite uma avaliação abrangente no momento da imagem e não envolve radiação. Porém, tem como desvantagem, ser operador dependente13. Alguns estudos com pacientes portadores de hérnia inguinal típica demonstraram que a USG e a TC podem ter sensibilidade superestimadas13. O diagnóstico por meio do exame físico nesses casos deve ser considerado soberano, podendo dispensar o exame de imagem.
De acordo com Miller et al.9,13, Pawlak et al.14 e Mathews et al.15 são opções adicionais para o diagnóstico de hérnias inguinais a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM). Embora apresentem boa sensibilidade e especificidade, ambas as modalidades dependem de disponibilidade de recursos. Um estudo europeu liderado por Mathews15 propôs que, em pacientes com o exame clínico normal ou duvidoso, o USG pode ser considerado como válido para elucidação diagnóstica. Se os achados do USG forem normais, esses pacientes podem ser tratados com acompanhamento ambulatorial, desde que todo o esclarecimento necessário seja fornecido.
Segundo Miller et al.9, em concordância com nossos resultados, o exame físico conclusivo para hérnia inguinal dispensa a realização de qualquer exame de imagem pré-operatório. Nos casos em que os exames físico e de imagem não diagnosticam hérnia e o paciente mantém queixa de dor inguinal e/ou pélvica, Fitzgibbons et al.6 recomendam os preceitos “watchful waiting”, ou seja, o seguimento ambulatorial do paciente, ideia com a qual concordamos. Miller et al.9 propõem a realização de ressonância magnética em pacientes com suspeita de hérnia inguinal sem exame físico típico. Pawlak et al.14 recomendam o “wait-and-see aproach”, em que o paciente é acompanhado quanto à evolução clínica, como sendo uma modalidade segura e válida para pacientes abaixo de 50 anos de idade, ASA 1 ou 2, com sintomas há mais de três meses.
Phillips et al.16 concordam que a realização do USG não atribui benefício adicional em pacientes com hérnia inguinal clinicamente diagnosticada, além de não alterar a conduta. Consideram a exploração cirúrgica totalmente desnecessária por influência apenas de resultados ultrassonográficos positivos, que pode trazer prejuízo para o paciente, como dor crônica. Segundo o autor, a utilização de ultrassonografia é bem indicada em casos de hérnia recidivada, na diferenciação de hérnia direta com presença de lipoma e linfonodo local.
Miller et al.9 e Pierce et al.11 também defendem o uso de exame de imagem em casos de hérnias ocultas. O acesso à queixas relevantes e ao exame físico do paciente associado à avaliação do exame de imagem resultou em acurácia de 90%, enquanto que a avaliação isolada da imagem pelo médico radiologista apresentou acurácia de 35%. O Consenso Europeu5, assim como, o trabalho de Miller et al.9 propõem que, em casos de dúvida diagnóstica, por abaulamento intermitente ou não evidente ao exame físico ou ainda dores inguinais sem abaulamento, seja feito um exame de imagem. Acrescentam ainda que, em pacientes obesos, independentemente do sexo, ou com múltiplas hérnias, apenas o exame físico pode levar a erros diagnósticos.
Niebuhr et al.17, por outro lado, afirmam que o exame físico isoladamente, com especificidade e sensibilidade de 74,5% e 96,3%, respectivamente, não deve ser considerado como suficiente para diagnosticar hérnia inguinal, discordando dos resultados descritos no presente estudo. O autor defende ainda a realização do exame de imagem de forma dinâmica, padronizada e em centros especializados. Bradley et al.10, também em discordância com nossos achados, preconizam o uso de USG para diagnosticar hérnias inguinais. Citam a possibilidade de realização do exame num contexto dinâmico (tosse, manobra de Valsalva), o que aumenta a acurácia em comparação a outros exames de imagem. Lee et al.18 afirmam que o ultrassom possui elevada acurácia no diagnóstico de hérnia, inclusive diferenciando o tipo de hérnia em pacientes com diagnóstico duvidoso.
Na população estudada observou-se que o ultrassom, muitas vezes considerado importante para diagnosticar hérnias, pode ser um exame complementar sem impacto na propedêutica do paciente. Os dados mostraram que os pacientes com queixas típicas e exame físico compatível com hérnia inguinal não apresentaram alteração de conduta após realização do USG. Logo, deve-se valorizar a anamnese e o exame físico durante a propedêutica para elucidação diagnóstica.
A análise dos nossos resultados e da literatura pesquisada permitiu concluir que a ultrassonografia se mostrou um exame dispensável em pacientes com queixa típica e exame físico compatíveis com hérnia inguinal. Nos casos de dúvida, a ultrassonografia não auxiliou o diagnóstico. Acreditamos que novos estudos prospectivos e com outros métodos de imagem deverão ser realizados para determinação dos melhores métodos de imagem nos casos de dúvida diagnóstica.