Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação de pacientes vítimas de trauma cranioencefálico com sinais de intoxicação alcoólica.

RESUMO

Objetivo:

avaliar, em vítimas de traumatismo cranioencefálico, a influência da intoxicação alcoólica no tempo para submissão destes pacientes à tomografia de crânio, comparando também os achados tomográficos nos pacientes alcoolizados e não alcoolizados.

Métodos:

estudo retrospectivo de 183 pacientes com traumatismo cranioencefálico, divididos em dois grupos: 90 alcoolizados e 93 não alcoolizados. Foi calculado o intervalo de tempo desde a chegada do paciente ao pronto socorro até a realização da tomografia para comparação entre os grupos, e analisados os achados tomográficos.

Resultados:

no grupo alcoolizado, o percentual de pacientes do sexo masculino foi maior, a idade predominante situava-se entre os 31 e os 40 anos, a agressão foi o mecanismo de trauma mais frequente e estes pacientes apresentaram valores mais baixos na escala de coma de Glasgow. Observou-se que não houve diferença estatística entre os dois grupos quanto ao intervalo de tempo para realização de tomografia, bem como, em relação aos achados tomográficos. Além disso, nos pacientes alcoolizados, quando correlacionados os valores da escala de coma de Glasgow com o intervalo de tempo, não houve diferença entre valores de 13 a 15 (traumatismo cranioencefálico leve) e os iguais ou menores do que 12 (traumatismo cranioencefálico moderado e grave).

Conclusão:

os sinais de intoxicação alcoólica não influenciaram no intervalo de tempo para realização da tomografia. Os pacientes alcoolizados apresentaram escores mais baixos na escala de coma de Glasgow por efeito direto do álcool e não por uma maior prevalência de achados tomográficos.

Descritores:
Lesões Encefálicas Traumáticas; Concussão Encefálica; Lesões Encefálicas; Tomografia; Escala de Coma de Glasgow; Intoxicação Alcoólica.

ABSTRACT

Objetive:

to evaluate the influence of alcohol intoxication in the time to perform head computed tomography and tomographic findings in traumatic brain injury patients.

Methods:

a retrospective study of 183 traumatic brain injury patients, divided into two groups: 90 alcoholics and 93 non-alcoholics. Time interval from patient’s arrival at emergency room to tomography was calculated for comparison between the groups, and tomographic findings were analyzed.

Results:

in the alcoholic group, the percentage of male patients was higher, the predominant age was between 31 and 40 years, aggression was the most frequent trauma mechanism, and these patients showed lower values on the Glasgow coma scale. It was observed that there was no statistical difference between the two groups regarding the time interval for tomography execution, as well as regarding the tomographic findings. In addition, in the alcoholic patients, when the Glasgow coma scale values were correlated with the time interval, there was no difference from scores 13 to 15 (mild traumatic brain injury) and those equal to or inferior than 12 (moderate and severe traumatic brain injury).

Conclusion:

signs of alcoholic intoxication did not influence the time interval for tomography execution. Patients under alcohol influence showed lower scores on the Glasgow coma scale due to the direct effect of alcohol and not due to a higher prevalence of tomographic findings.

Keywords:
Brain Injuries, Traumatic; Brain Concussion; Brain Injuries; Tomography; Glasgow Coma Scale; Alcoholic Intoxication

INTRODUÇÃO

Estudos mostram um consumo médio de 7,8 litros de álcool por ano per capita na população acima de 15 anos de idade. Considerando apenas os consumidores de álcool, essa quantidade passa a ser de 19,3 litros por pessoa11 World Health Organization. Global status report on alcohol and health 2018 [Internet]. Geneva: WHO Press. 2018. Available from: http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_alcohol_report/msbgsruprofiles.pdf.
http://www.who.int/substance_abuse/publi...
. Este consumo de álcool tem sido relacionado à diminuição de inúmeras capacidades cognitivas que, por sua vez, podem aumentar o risco de lesões. Globalmente, em 2016, estima-se que tenham ocorrido quase 1 milhão de mortes e 52,4 milhões de lesões relacionadas à ingesta de álcool. Acidentes de trânsito, lesões autoprovocadas, violência interpessoal e quedas foram as mais comuns11 World Health Organization. Global status report on alcohol and health 2018 [Internet]. Geneva: WHO Press. 2018. Available from: http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_alcohol_report/msbgsruprofiles.pdf.
http://www.who.int/substance_abuse/publi...

2 Rundhaug NP, Moen KG, Skandsen T, Schirmer-Mikalsen K, Lund SB, Hara S, et al. Moderate and severe traumatic brain injury: effect of blood alcohol concentration on Glasgow Coma Scale score and relation to computed tomography findings. J Neurosurg. 2015;122(1):211-8.
-33 Scheenen ME, de Koning ME, van der Horn HJ, Roks G, Yilmaz T, van der Naalt J, et al. Acute alcohol intoxication in patients with mild traumatic brain injury: characteristics, recovery and outcome. J Neurotrauma. 2016;33(4):339-45..

Neste contexto, observa-se que o trauma craniano ocorre em grande número de casos e é considerado um problema de saúde pública, pois afeta geralmente a faixa mais ativa e produtiva da população. Além disso, o traumatismo cranioencefálico (TCE) está associado à altas taxas de mortalidade e pode levar à sequelas graves que impactam na qualidade de vida. Um trabalho de revisão sobre TCE realizado no Brasil mostrou a grande importância de uma avaliação neurológica inicial a fim de se evitar óbitos e sequelas no caso de traumas graves44 Gaudêncio TG, Leão GM. A epidemiologia do traumatismo crânio-encefálico: um levantamento bibliográfico no Brasil. Rev Neurocienc. 2013;21(3):427-34..

Quando relacionamos etilismo com TCE, observa-se que em torno de 30% dos pacientes com este tipo de traumatismo estavam alcoolizados no momento do acidente33 Scheenen ME, de Koning ME, van der Horn HJ, Roks G, Yilmaz T, van der Naalt J, et al. Acute alcohol intoxication in patients with mild traumatic brain injury: characteristics, recovery and outcome. J Neurotrauma. 2016;33(4):339-45., com alguns estudos demonstrando valores próximos a 50%55 Harrison DA, Prabhu G, Grieve R, Harvey SE, Sadique MZ, Gomes M, et al. Risk Adjustment In Neurocritical care (RAIN)--prospective validation of risk prediction models for adult patients with acute traumatic brain injury to use to evaluate the optimum location and comparative costs of neurocritical care: A cohort study. Health Technol Assess. 2013;17(23):vii-viii, 1-350.. O álcool reduz o nível de consciência de pacientes com TCE22 Rundhaug NP, Moen KG, Skandsen T, Schirmer-Mikalsen K, Lund SB, Hara S, et al. Moderate and severe traumatic brain injury: effect of blood alcohol concentration on Glasgow Coma Scale score and relation to computed tomography findings. J Neurosurg. 2015;122(1):211-8. e a escala de coma Glasgow (ECG), amplamente adotada na prática clínica para avaliar este nível de consciência66 Teasdale G, Maas A, Lecky F, Manley G, Stocchetti N, Murray G. The Glasgow Coma Scale at 40 years: standing the test of time. Lancet Neurol. 2014;13(8):844-54. Erratum in: Lancet Neurol. 2014;13(9):863., ajuda na decisão clínica e orienta no diagnóstico e no gerenciamento de pacientes com TCE em departamentos de emergência e centros de trauma77 Shahin H, Gopinath SP, Robertson CS. Influence of alcohol on early Glasgow Coma Scale in head injured patients. J Trauma. 2010;69(5):1176-81..

A ECG atribui pontos ao desempenho do paciente baseado em três fatores: na abertura dos olhos (4 pontos), nas respostas verbais (5 pontos) e nas respostas motoras (6 pontos). A escala atinge valores que variam de 3 a 15 pontos, sendo 3 correspondente a um estado de coma e 15 ao estado normal de um paciente sem trauma ou sem déficits neurológicos88 Lesur GR, Nishida MB, Rodrigues JMS. Necessidade de tomografia computadorizada em pacientes com trauma cranioencefálico de grau leve. Rev da Fac Ciênc Méd Sorocaba [Internet]. 2017;19(2):76-80. Available from:https://revistas.pucsp.br/index.php/RFCMS/article/view/28332.
https://revistas.pucsp.br/index.php/RFCM...
. A gravidade do TCE pode ser classificada de acordo com os valores da ECG, sendo considerado leve, quando de 13 a 15, moderado de 9 a12 e grave quando ≤899 Reith FCM, Lingsma HF, Gabbe BJ, Lecky FE, Roberts I, Maas AIR. Differential effects of the Glasgow Coma Scale Score and its components: an analysis of 54,069 patients with traumatic brain injury. Injury. 2017;48(9):1932-43..

Entretanto, o uso desta escala pode ser limitado para pacientes alcoolizados66 Teasdale G, Maas A, Lecky F, Manley G, Stocchetti N, Murray G. The Glasgow Coma Scale at 40 years: standing the test of time. Lancet Neurol. 2014;13(8):844-54. Erratum in: Lancet Neurol. 2014;13(9):863.. Se um baixo escore nessa escala for atribuído exclusivamente ao álcool, o resultado pode ser uma subestimação da gravidade de uma possível lesão cerebral e levar a um atraso desnecessário nas intervenções diagnósticas e terapêuticas. Por outro lado, pode ocorrer uma superestimação da gravidade da lesão, gerando intervenções desnecessárias22 Rundhaug NP, Moen KG, Skandsen T, Schirmer-Mikalsen K, Lund SB, Hara S, et al. Moderate and severe traumatic brain injury: effect of blood alcohol concentration on Glasgow Coma Scale score and relation to computed tomography findings. J Neurosurg. 2015;122(1):211-8..

Há divergências nos estudos clínicos se pacientes alcoolizados apresentam valores na ECG mais baixos quando comparados com não alcoolizados, sendo que alguns estudos afirmam que essa diferença realmente existe22 Rundhaug NP, Moen KG, Skandsen T, Schirmer-Mikalsen K, Lund SB, Hara S, et al. Moderate and severe traumatic brain injury: effect of blood alcohol concentration on Glasgow Coma Scale score and relation to computed tomography findings. J Neurosurg. 2015;122(1):211-8.,33 Scheenen ME, de Koning ME, van der Horn HJ, Roks G, Yilmaz T, van der Naalt J, et al. Acute alcohol intoxication in patients with mild traumatic brain injury: characteristics, recovery and outcome. J Neurotrauma. 2016;33(4):339-45.,1010 Salim A, Ley EJ, Cryer HG, Margulies DR, Ramicone E, Tillou A. Positive serum ethanol level and mortality in moderate to severe traumatic brain injury. Arch Surg. 2009;144(9):865-71., enquanto outros trabalhos demonstram que os valores não possuem diferença significativa quando medidos no setor de emergência77 Shahin H, Gopinath SP, Robertson CS. Influence of alcohol on early Glasgow Coma Scale in head injured patients. J Trauma. 2010;69(5):1176-81.,1111 Stuke L, Diaz-Arrastia D, Gentilello LM, Shafi S. Effect of alcohol on Glasgow Coma Scale in head-injured patients. Ann Surg. 2007;245(4):651-5..

A tomografia computadorizada (TC) de crânio desempenha um papel crucial para o diagnóstico confiável e rápido destas lesões1212 Mata-Mbemba D, Mugikura S, Nakagawa A, Murata T, Ishii K, Li L, et al. Early CT findings to predict early death in patients with traumatic brain injury: Marshall and Rotterdam CT scoring systems compared in the major academic tertiary care hospital in Northeastern Japan. Acad Radiol. 2014;21(5):605-11.. Para aumentar a eficácia do uso deste exame de imagem na detecção de lesões intracranianas em pacientes com valores na ECG de 13 a 15, são usados alguns critérios, como o New Orleans Criteria e a Canadian Head Rule, sendo estes os mais conhecidos e utilizados. Estes critérios são muito importantes, já que a sua não utilização pode levar a atraso de diagnósticos de possíveis lesões que venham a acarretar algum dano ao paciente. Por outro lado, seu uso quando não criteriosamente recomendado pode levar a uma exposição desnecessária à radiação1313 Mata-Mbemba D, Mugikura S, Nakagawa A, Murata T, Kato Y, Tatewaki Y, et al. Canadian CT head rule and New Orleans Criteria in mild traumatic brain injury: comparison at a tertiary referral hospital in Japan. Springerplus. 2016;5:176..

O presente estudo vem testar a hipótese de que pacientes etilizados com TCE podem ter um atraso diagnóstico de possíveis lesões cerebrais agudas devido à dificuldade na sua avaliação clínica e à incerteza quanto à mensuração de dados do exame neurológico, como a ECG. A atribuição de menor pontuação nesta escala apenas ao álcool poderia acarretar em um atraso no diagnóstico.

Portanto, o objetivo deste trabalho foi avaliar se a presença de sinais de intoxicação alcoólica pode ter influenciado o tempo de realização da TC em pacientes alcoolizados, com TCE, em comparação com pacientes não alcoolizados, correlacionando com a presença de achados tomográficos.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo retrospectivo de 183 pacientes com TCE atendidos no pronto socorro do Hospital do Trabalhador, que realizaram TC durante o ano de 2017. Os dados clínicos, mecanismo de trauma e características das lesões foram coletados pelo registro eletrônico do hospital. O escore na ECG dos pacientes foi avaliado na admissão como parte do exame neurológico e a TC foi realizada no momento em que foi indicada. O estudo foi desenvolvido sob aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital do Trabalhador (CAAE 83037418.0.0000.5225).

Foram incluídos pacientes com idade superior a 18 anos e inferior a 60 anos e excluídos aqueles com histórico de etilismo crônico, síndromes psiquiátricas, mecanismo de trauma há muitos dias, causas de origem não traumática e pacientes em abstinência de álcool.

Para otimizar a coleta, foram buscados os exames realizados nas sextas-feiras, finais de semana e feriados, além das vésperas e dias subsequentes a feriados, pois foi constatado, por meio de um teste piloto inicial, que estes eram os dias com maior prevalência de atendimento a alcoolizados.

A presença de intoxicação alcoólica foi avaliada em consulta ao prontuário e, quando registrada, estava descrita como relatada pelo próprio paciente ou constatada por algum dado clínico, como "hálito etílico". Os pacientes foram separados em dois grupos de acordo com essa informação: alcoolizados (90 pacientes) e não alcoolizados (93 pacientes).

O horário de entrada registrado no prontuário foi computado em horas e minutos, assim como, o horário de realização da TC e, com isso, foi calculado o intervalo de tempo entre os dois, em minutos. Outros dados foram coletados, como sexo, idade, ECG (variando de 3 a 15), mecanismo de trauma, presença de achados agudos no exame de imagem e, se presentes, quais eram estes achados. Apenas um dos pacientes avaliados não possuía registro da ECG. Para a idade, os dados foram categorizados em faixas etárias: 18 a 30 anos, 31 a 40 anos, 41 a 50 anos e 51 a 60 anos.

Os mecanismos de trauma foram divididos em seis categorias: agressão, queda de mesmo nível, queda de outro nível, colisão automobilística, atropelamento e choque contra anteparo. Os achados na tomografia foram divididos em duas categorias: lesões intracranianas e fraturas de face e/ou de calota craniana.

O intervalo de tempo foi correlacionado com outras três variáveis. Uma delas compara o intervalo de tempo entre pacientes alcoolizados e não alcoolizados. Outra análise foi feita apenas entre pacientes com achados positivos tomográficos, comparando o intervalo de tempo entre os dois grupos de estudo. A terceira análise foi feita somente entre os pacientes alcoolizados, separando-os por valores na ECG, sendo um grupo para pacientes com valores ≥13 (TCE leve) e outro grupo para pacientes com valores ≤12 (TCE moderado e grave).

Os dados coletados foram então analisados por meio do software estatístico R1414 R Core Team [Internet]. R: A Language and Environment for Statistical Computing. R Foundation for Statistical Computing, Vienna, Austria; 2016 [cited 2018 Set 10]. Disponível em:https://www.r-project.org/.
https://www.r-project.org/...
. Para a análise descritiva, as medidas de tendência central e de dispersão foram expressas em medianas e valores mínimo e máximo (mediana, mínimo - máximo) por apresentarem distribuição não normal. Foi testada normalidade das amostras usando-se o teste estatístico Shapiro-Wilk. As variáveis categóricas, por sua vez, foram expressas em frequências relativas.

Para a análise estatística inferencial, foram utilizados os testes de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis para variáveis dependentes contínuas, e chi-quadrado e Fisher para variáveis dependentes binárias ou categóricas. Foi considerado nível de significância de 5% para este estudo.

RESULTADOS

Dos 183 pacientes estudados, 90 estavam alcoolizados e 93 não alcoolizados. A porcentagem de pacientes do sexo masculino do grupo com intoxicação alcoólica se mostrou maior do que no grupo não alcoolizado (96,6%, p<0.01). Foi observada também uma diferença significativa em relação à faixa etária (p=0,0124), sendo que, entre os alcoolizados, 30% tinham entre 31 e 40 anos e 26,7% entre 41 e 50 anos e, entre os não alcoolizados, 44,1 % tinham entre 18 e 30 anos (Tabela 1).

Tabela 1
Características dos pacientes, mecanismos de trauma e valor na escala de coma de Glasgow no momento de admissão.

Houve diferença significativa também em relação ao mecanismo de trauma (p<0,001). Dos pacientes alcoolizados, 45,5% tiveram como mecanismo a agressão, seguido de colisão automobilística em 21,1%, enquanto entre os não alcoolizados, o mecanismo com maior prevalência foi a colisão automobilística em 29%, seguido de queda de outro nível em 25,8% (Tabela 1).

Quando analisada a relação entre etilismo e índices da ECG, houve uma diferença significativa (p<0,001) no momento da admissão dos pacientes, com valores mais baixos na ECG entre os alcoolizados (mediana de 14) e os não alcoolizados (mediana de 15) (Tabela 1).

Em relação ao intervalo de tempo entre a admissão no serviço de emergência e a realização de TC, a mediana foi de 69 minutos (16 a 834) considerando a amostra inteira. Quando comparado os dois grupos de pacientes, não houve diferença significativa, sendo que a mediana foi de 63,5 (16 a 834) para alcoolizados e 72 (17 a 612) para não intoxicados. Quando analisados apenas os pacientes com presença de achado tomográfico anormal, não houve diferença significativa entre alcoolizados e não alcoolizados (p=0,7976) (Tabela 2).

Tabela 2
Intervalo de tempo para admissão no pronto socorro e realização de TC em todos os pacientes e naqueles apenas com achados na TC.

De todos os pacientes, 52,7% tinham achados anormais na tomografia. Não houve diferença significativa entre os dois grupos analisados (p=0,329), assim como, quanto aos tipos de achados entre os dois grupos (Tabela 3).

Tabela 3
Presença de achados anormais na TC e tipos de achados.

Entre os pacientes alcoolizados, aqueles que tiveram índices ≥13 na ECG, a mediana de intervalo de tempo foi de 60 minutos (16 a 834) para a realização da TC, contra 69 minutos (17 a 243) para aqueles com valores ≤12, não resultando em diferença estatística (p=0,7441) (Tabela 4).

Tabela 4
Intervalo de tempo para admissão no pronto socorro e realização da TC nos pacientes alcoolizados.

DISCUSSÃO

Este estudo teve sua origem na hipótese de que pacientes alcoolizados podem apresentar um atraso no diagnóstico de lesões cerebrais agudas. Esta hipótese foi fundamentada considerando a dificuldade na avaliação clínica destes pacientes no serviço de emergência, os quais podem tanto apresentar um estado de agitação quanto um rebaixamento do nível de consciência devido ao efeito do álcool. Entretanto, quando sofrem um TCE, torna-se difícil avaliar se estas alterações no nível de consciência são devidas ao álcool ou a possíveis lesões cerebrais agudas.

Com base no perfil de pacientes atendidos em serviços de emergência, já era esperada uma maior porcentagem de pacientes masculinos33 Scheenen ME, de Koning ME, van der Horn HJ, Roks G, Yilmaz T, van der Naalt J, et al. Acute alcohol intoxication in patients with mild traumatic brain injury: characteristics, recovery and outcome. J Neurotrauma. 2016;33(4):339-45.,44 Gaudêncio TG, Leão GM. A epidemiologia do traumatismo crânio-encefálico: um levantamento bibliográfico no Brasil. Rev Neurocienc. 2013;21(3):427-34., independente do estado de intoxicação. Entre os alcoolizados, essa diferença entre os sexos se tornou mais significativa ainda, com 96,6% dos pacientes sendo do sexo masculino. No entanto, o mesmo não ocorreu quando foram analisados os dados referentes à faixa etária dos pacientes que, contrariamente a dados de estudos anteriores em que os pacientes alcoolizados eram mais jovens33 Scheenen ME, de Koning ME, van der Horn HJ, Roks G, Yilmaz T, van der Naalt J, et al. Acute alcohol intoxication in patients with mild traumatic brain injury: characteristics, recovery and outcome. J Neurotrauma. 2016;33(4):339-45., este trabalho constatou que a maior parte (56%) dos pacientes alcoolizados se encontrava entre os 31 e 50 anos.

Em relação ao mecanismo de trauma, os resultados mostraram diferenças significativas entre os dois grupos de pacientes, e divergentes da literatura, com as agressões sendo mais frequentes entre os pacientes alcoolizados. Isso pode ser reflexo de um índice de violência mais pronunciado no Brasil1515 Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y Justicia Penal A.C. Metodología del ranking (2015) de las 50 ciudades más violentas del mundo. 2016;(2017):49. Available from: http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/lib/Prensa/2016_01_25_seguridad_justicia_y_paz-50_most_violent_cities_2015.pdf.
http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/...
.

Quanto aos valores da ECG medidos nos serviços de emergência, há certa divergência na literatura22 Rundhaug NP, Moen KG, Skandsen T, Schirmer-Mikalsen K, Lund SB, Hara S, et al. Moderate and severe traumatic brain injury: effect of blood alcohol concentration on Glasgow Coma Scale score and relation to computed tomography findings. J Neurosurg. 2015;122(1):211-8.,33 Scheenen ME, de Koning ME, van der Horn HJ, Roks G, Yilmaz T, van der Naalt J, et al. Acute alcohol intoxication in patients with mild traumatic brain injury: characteristics, recovery and outcome. J Neurotrauma. 2016;33(4):339-45.,77 Shahin H, Gopinath SP, Robertson CS. Influence of alcohol on early Glasgow Coma Scale in head injured patients. J Trauma. 2010;69(5):1176-81.,1010 Salim A, Ley EJ, Cryer HG, Margulies DR, Ramicone E, Tillou A. Positive serum ethanol level and mortality in moderate to severe traumatic brain injury. Arch Surg. 2009;144(9):865-71.,1111 Stuke L, Diaz-Arrastia D, Gentilello LM, Shafi S. Effect of alcohol on Glasgow Coma Scale in head-injured patients. Ann Surg. 2007;245(4):651-5.. O presente estudo observou que pacientes alcoolizados apresentaram valores menores quando comparados com o grupo controle. Isso pode ser um fator que leva à confusão na avaliação clínica dos pacientes, pois pode gerar dúvidas se essa queda no índice da ECG é devida ao álcool ou a uma possível lesão cerebral, como havia sido hipotetizado.

Quando avaliado o intervalo de tempo para a realização da tomografia, não houve diferença estatística entre os dois grupos de pacientes, mesmo com pacientes alcoolizados apresentando uma mediana na ECG menor do que os não alcoolizados. Atribuímos esse resultado a um número amostral pequeno. Essa análise de tempo também foi realizada no grupo de indivíduos alcoolizados de acordo com os valores na ECG, considerando que pacientes com valores ≥13, ou seja, classificados como TCE leve, poderiam apresentar maior tempo para que a TC fosse realizada quando comparados com pacientes com valores ≤12 (TCE moderado e grave). Neste último grupo, a necessidade de tomografia é mais clara e apenas esse ponto de corte na ECG já é suficiente para indicação de TC1515 Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y Justicia Penal A.C. Metodología del ranking (2015) de las 50 ciudades más violentas del mundo. 2016;(2017):49. Available from: http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/lib/Prensa/2016_01_25_seguridad_justicia_y_paz-50_most_violent_cities_2015.pdf.
http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/...
. É válido lembrar que não existe um protocolo para indicação de TC exclusivo para pacientes alcoolizados com TCE1616 Hospital Albert Einstein. Traumatismo Cranioencefálico. Diretriz Assistencial. São Paulo: Sociedade Beneficente Israelita Brasileira; 2017. Disponível em: https://medicalsuite.einstein.br/pratica-medica/Paginas/diretrizes-assistenciais.aspx?busca=traumatismo%20cranioencefalico&Especialidade=
https://medicalsuite.einstein.br/pratica...
.

A Canadian Head Rule para indicação de TC, uma das mais utilizadas na prática clínica, preconiza que a TC está indicada no TCE leve, definido como perda de consciência, amnésia ou desorientação em pacientes com escore ECG de 13 a 15, quando há algum critério de alto ou moderado risco, ou quando há distúrbio de coagulação1313 Mata-Mbemba D, Mugikura S, Nakagawa A, Murata T, Kato Y, Tatewaki Y, et al. Canadian CT head rule and New Orleans Criteria in mild traumatic brain injury: comparison at a tertiary referral hospital in Japan. Springerplus. 2016;5:176.. Os critérios de alto risco são: ECG <15 após duas horas do trauma; fratura exposta ou afundamento do crânio; fratura de base do crânio; vômitos (ao menos dois episódios) e idade ≥65 anos. Os critérios de moderado risco abrangem amnésia antes do impacto >30 minutos e mecanismo de trauma grave1717 Stiell IG, Wells GA, Vandemheen K, Clement C, Lesiuk H, Laupacis A, et al. The Canadian CT Head Rule for patients with minor head injury. Lancet. 2001;357(9266):1391-6..

Se a indicação de TC para pacientes alcoolizados seguir essa mesma regra, caso o paciente tenha um TCE leve e não apresente nenhum critério para risco moderado ou grave, só será indicada tomografia para quem possuir ECG<15 após duas horas de trauma. A mediana encontrada neste estudo para o intervalo de tempo de pacientes alcoolizados com TCE leve foi de 60 minutos. Neste trabalho o objetivo não foi avaliar se os critérios de indicação de TC são seguidos, mas esse achado se mostrou importante, visto que tomografias podem estar sendo realizadas sem a real necessidade, submetendo o paciente a exames desnecessários e acarretando gastos ao sistema público de saúde, além submeter o paciente a doses significativas de radiação1818 Brenner DJ, Hall EJ. Computed tomography--an increasing source of radiation exposure. N Engl J Med. 2007;357(22):2277-84..

Outro ponto importante é que não existe um critério específico para indicação de TC em pacientes intoxicados. O protocolo de New Orleans, elaborado para pacientes com ECG de 15, é o único que considera o sinal de intoxicação por álcool e por outras drogas como um dado para indicação de TC1313 Mata-Mbemba D, Mugikura S, Nakagawa A, Murata T, Kato Y, Tatewaki Y, et al. Canadian CT head rule and New Orleans Criteria in mild traumatic brain injury: comparison at a tertiary referral hospital in Japan. Springerplus. 2016;5:176.. No entanto, não preconiza um período de observação destes pacientes, algo que é fundamental quando se trata de pacientes alcoolizados e com superestimação da ECG para indicação de TC. O que se observa é uma alta sensibilidade do New Orleans Criteria em relação a outros protocolos, já que a especificidade deste critério é extremamente baixa e pode acarretar indicação de tomografia de forma excessiva1919 Foks KA, van den Brand CL, Lingsma HF, van der Naalt J, Jacobs B, de Jong E, et al. External validation of computed tomography decision rules for minor head injury: prospective, multicentre cohort study in the Netherlands. BMJ. 2018;362:k3527..

A discussão sobre a importância da existência de um protocolo exclusivo para pacientes intoxicados que tiveram TCE foi levantada, pois sendo a ECG um dos principais norteadores para a indicação desse exame, e ela estando alterada em alcoolizados, talvez estes pacientes não se encaixem nos critérios de protocolos já existentes. Outro fator que colabora é que já foi constatado que os valores na ECG em pacientes intoxicados com TCE aumentam conforme o corpo metaboliza a droga, e isso é clinicamente importante porque a avaliação clínica e condutas a serem tomadas seriam diferentes77 Shahin H, Gopinath SP, Robertson CS. Influence of alcohol on early Glasgow Coma Scale in head injured patients. J Trauma. 2010;69(5):1176-81., e talvez a solicitação excessiva de tomografias fosse diminuída se houvesse um período de observação para TCE leve em pacientes alcoolizados.

Esse estudo é retrospectivo e apresenta limitações comuns a esse tipo de trabalho. Outro fator limitante diz respeito ao momento do diagnóstico das lesões cerebrais agudas, que não ocorre exatamente quando é realizada a TC. O momento real do diagnóstico não constava no sistema utilizado para procura de dados.

Assim, conclui-se que, apesar dos sinais de intoxicação alcoólica não influenciarem no intervalo de tempo para realização da TC, foi possível constatar que os pacientes intoxicados apresentavam escores mais baixos na ECG, provavelmente por efeito direto do álcool e não por uma maior prevalência de achados tomográficos neste grupo. O tempo de indicação de TC não mostrou diferença significativa entre os grupos de alcoolizados com TCE leve e TCE moderado/grave.

Devido à confusão que a intoxicação alcoólica pode causar no nível de consciência e, por consequência, na avaliação clínica no serviço de emergência, consideramos importante a elaboração de critérios específicos para indicação de TC neste grupo de pacientes para não submetê-los a exames desnecessários, mas sem acarretar em um atraso diagnóstico de lesões cerebrais agudas.

  • Fonte de financiamento: nenhuma.

REFERÊNCIAS

  • 1
    World Health Organization. Global status report on alcohol and health 2018 [Internet]. Geneva: WHO Press. 2018. Available from: http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_alcohol_report/msbgsruprofiles.pdf
    » http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_alcohol_report/msbgsruprofiles.pdf
  • 2
    Rundhaug NP, Moen KG, Skandsen T, Schirmer-Mikalsen K, Lund SB, Hara S, et al. Moderate and severe traumatic brain injury: effect of blood alcohol concentration on Glasgow Coma Scale score and relation to computed tomography findings. J Neurosurg. 2015;122(1):211-8.
  • 3
    Scheenen ME, de Koning ME, van der Horn HJ, Roks G, Yilmaz T, van der Naalt J, et al. Acute alcohol intoxication in patients with mild traumatic brain injury: characteristics, recovery and outcome. J Neurotrauma. 2016;33(4):339-45.
  • 4
    Gaudêncio TG, Leão GM. A epidemiologia do traumatismo crânio-encefálico: um levantamento bibliográfico no Brasil. Rev Neurocienc. 2013;21(3):427-34.
  • 5
    Harrison DA, Prabhu G, Grieve R, Harvey SE, Sadique MZ, Gomes M, et al. Risk Adjustment In Neurocritical care (RAIN)--prospective validation of risk prediction models for adult patients with acute traumatic brain injury to use to evaluate the optimum location and comparative costs of neurocritical care: A cohort study. Health Technol Assess. 2013;17(23):vii-viii, 1-350.
  • 6
    Teasdale G, Maas A, Lecky F, Manley G, Stocchetti N, Murray G. The Glasgow Coma Scale at 40 years: standing the test of time. Lancet Neurol. 2014;13(8):844-54. Erratum in: Lancet Neurol. 2014;13(9):863.
  • 7
    Shahin H, Gopinath SP, Robertson CS. Influence of alcohol on early Glasgow Coma Scale in head injured patients. J Trauma. 2010;69(5):1176-81.
  • 8
    Lesur GR, Nishida MB, Rodrigues JMS. Necessidade de tomografia computadorizada em pacientes com trauma cranioencefálico de grau leve. Rev da Fac Ciênc Méd Sorocaba [Internet]. 2017;19(2):76-80. Available from:https://revistas.pucsp.br/index.php/RFCMS/article/view/28332
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/RFCMS/article/view/28332
  • 9
    Reith FCM, Lingsma HF, Gabbe BJ, Lecky FE, Roberts I, Maas AIR. Differential effects of the Glasgow Coma Scale Score and its components: an analysis of 54,069 patients with traumatic brain injury. Injury. 2017;48(9):1932-43.
  • 10
    Salim A, Ley EJ, Cryer HG, Margulies DR, Ramicone E, Tillou A. Positive serum ethanol level and mortality in moderate to severe traumatic brain injury. Arch Surg. 2009;144(9):865-71.
  • 11
    Stuke L, Diaz-Arrastia D, Gentilello LM, Shafi S. Effect of alcohol on Glasgow Coma Scale in head-injured patients. Ann Surg. 2007;245(4):651-5.
  • 12
    Mata-Mbemba D, Mugikura S, Nakagawa A, Murata T, Ishii K, Li L, et al. Early CT findings to predict early death in patients with traumatic brain injury: Marshall and Rotterdam CT scoring systems compared in the major academic tertiary care hospital in Northeastern Japan. Acad Radiol. 2014;21(5):605-11.
  • 13
    Mata-Mbemba D, Mugikura S, Nakagawa A, Murata T, Kato Y, Tatewaki Y, et al. Canadian CT head rule and New Orleans Criteria in mild traumatic brain injury: comparison at a tertiary referral hospital in Japan. Springerplus. 2016;5:176.
  • 14
    R Core Team [Internet]. R: A Language and Environment for Statistical Computing. R Foundation for Statistical Computing, Vienna, Austria; 2016 [cited 2018 Set 10]. Disponível em:https://www.r-project.org/
    » https://www.r-project.org/
  • 15
    Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y Justicia Penal A.C. Metodología del ranking (2015) de las 50 ciudades más violentas del mundo. 2016;(2017):49. Available from: http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/lib/Prensa/2016_01_25_seguridad_justicia_y_paz-50_most_violent_cities_2015.pdf
    » http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/lib/Prensa/2016_01_25_seguridad_justicia_y_paz-50_most_violent_cities_2015.pdf
  • 16
    Hospital Albert Einstein. Traumatismo Cranioencefálico. Diretriz Assistencial. São Paulo: Sociedade Beneficente Israelita Brasileira; 2017. Disponível em: https://medicalsuite.einstein.br/pratica-medica/Paginas/diretrizes-assistenciais.aspx?busca=traumatismo%20cranioencefalico&Especialidade=
    » https://medicalsuite.einstein.br/pratica-medica/Paginas/diretrizes-assistenciais.aspx?busca=traumatismo%20cranioencefalico&Especialidade=
  • 17
    Stiell IG, Wells GA, Vandemheen K, Clement C, Lesiuk H, Laupacis A, et al. The Canadian CT Head Rule for patients with minor head injury. Lancet. 2001;357(9266):1391-6.
  • 18
    Brenner DJ, Hall EJ. Computed tomography--an increasing source of radiation exposure. N Engl J Med. 2007;357(22):2277-84.
  • 19
    Foks KA, van den Brand CL, Lingsma HF, van der Naalt J, Jacobs B, de Jong E, et al. External validation of computed tomography decision rules for minor head injury: prospective, multicentre cohort study in the Netherlands. BMJ. 2018;362:k3527.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2019
  • Aceito
    15 Jul 2019
Colégio Brasileiro de Cirurgiões Rua Visconde de Silva, 52 - 3º andar, 22271- 090 Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 2138-0659, Fax: (55 21) 2286-2595 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@cbc.org.br