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Uso da realimentação pós-operatória ultra precoce e seu impacto na redução de fluidos endovenosos.

RESUMO

Objetivo:

investigar em uma série de casos de pacientes submetidos a operações de médio porte em cirurgia geral, o uso da conduta de realimentação pós-operatória “ultra precoce”(dieta oral líquida oferecida na recuperação pós-anestésica), avaliando-se o volume de fluidos endovenosos recebidos no pós-operatório por estes pacientes, assim como a ocorrência de complicações e o tempo de internação hospitalar.

Métodos:

estudo prospectivo, observacional. Avaliou-se a aderência à rotina de realimentação “ultra precoce”, abreviação do jejum pré-operatório, volume de hidratação venosa perioperatório, tempo de internação e morbidade operatória.

Resultados:

um total de 154 pacientes com média da idade de 46±15 anos, foram acompanhados. Realimentação “ultra precoce” foi realizada em 144 casos (93,5%). Pacientes que não receberam realimentação “ultra precoce” receberam volume significativamente maior de fluidos endovenosos no pós-operatório do que pacientes realimentados de maneira “ultra precoce” (500ml versus 200ml, p=0,018). O tempo de internação foi de 2,4±2,79 dias (realimentação convencional) versus 1,45±1,83 dias (realimentação “ultra precoce”), sem diferença estatística (p=0,133).Não houve diferença no percentual de complicações gerais (p=0,291), vômitos (p=0,696) ou infecção do sítio cirúrgico (p=0,534).

Conclusão:

a realimentação “ultra precoce” apresentou-se como uma conduta de elevada aderência em operações de médio porte em Cirurgia Geral nesta série de casos e, esteve relacionada a infusão de volume significativamente menor de fluidos endovenosos no pós-operatório, com índices baixos de complicações e sem impacto no tempo de internação.

Descritores:
Período Perioperatório; Assistência Perioperatória; Jejum; Complicações Pós-Operatórias; Hospitalização; Terapia Combinada

ABSTRACT

Objective:

To investigate the use of “ultra-early” postoperative feeding (oral liquid diet offered in the post-anesthetic recovery room) in patients undergoing common general surgical procedures and to assess the volume of intravenous fluids, as well as the rate of complications and the length of hospital stay.

Methods:

Prospective, observational study, which assessed the compliance with the “ultra-early” feeding, the reduction of preoperative fasting time, the perioperative venous hydration volume, the length of stay and the operative morbidity.

Results:

154 patients with a mean age of 46 ± 15 years were followed. “Ultra-early” feeding was performed in 144 cases (93.5%). Patients who did not receive the “ultra-early” feeding received a significantly greater volume of postoperative intravenous fluids (500mL versus 200mL, p = 0.018). The length of stay was 2.4 ± 2.79 days (conventional feeding) versus 1.45 ± 1.83 days (“ultra-early” feeding), with no statistical difference (p = 0.133). There was no difference in the percentage of general complications (p = 0.291), vomiting (p = 0.696) or surgical infection (p = 0.534).

Conclusion:

“Ultra-early” feeding had a high adherence by patients undergoing common general surgical procedures, and it was related to decreased infusion of postoperative fluids. Complication rates and the length of stay were similar between groups.

Headings:
Perioperative Period; Perioperative Care; Fasting; Postoperative Complications; Hospitalization

INTRODUÇÃO

Protocolos multimodais de cuidados perioperatórios vêm sendo aplicados em diversos serviços de cirurgia com o objetivo de diminuir a morbidade operatória, o tempo de internação hospitalar e, consequentemente, acelerar a recuperação do paciente cirúrgico11 Polk HC Jr, Birkmeyer J, Hunt DR, Jones RS, Whittemore AD, Barracloug B. Quality and safety in surgical care. Ann Surg. 2006;243(4):439-48.,22 de Vries E, Prins HA, Crolla R, den Outer AJ, van Andel G, van Helden SH, , Schlack WS, van Putten MA, Gouma DJ, Dijkgraaf MG, Smorenburg SM, Boermeester MA; SURPASS Collaborative Group. Effect of a comprehensive surgical safety system on patient outcomes. N Engl J Med. 2010;363(20):1928-37.. O protocolo multimodal ACERTO (Aceleração da Recuperação Total no pós-operatório), originalmente implantado no Brasil no ano de 200533 Aguilar-Nascimento JE, Caporossi C, Bicudo-Salomão A, editores. Acerto: acelerando a recuperação total pós-operatória. 3 ed. Rio de Janeiro: Rubio; 2016., foi mote para a publicação de diversos estudos na última década. Além dos bons resultados demonstrados com a aplicação de todos os elementos do protocolo conjuntamente, merecem destaque três condutas: abreviação do jejum pré-operatório, hidratação venosa perioperatória e realimentação precoce no pós-operatório. Estas têm se apresentado com elevado impacto na redução da resposta ao trauma e diminuição do tempo de internação hospitalar 44 Aguilar-Nascimento JE, Dock-Nascimento D, Faria MSM, Maria EV, Yonamine F, Silva MR, et al. Ingestão pré-operatória de carboidratos diminui a ocorrência de sintomas gastrointestinais pós-operatórios em pacientes submetidos à colecistectomia. Arq Bras Cir Dig. 2007;20(2):77-80.

5 Chong MA, Wang Y, Berbenetz NM, McConachie I. Does goal-directed haemodynamic and fluid therapy improve peri-operative outcomes? A systematic review and meta-analysis. Eur J Anaesthesiol. 2018;35(7):469-83.

6 Pogatschnik C, Steiger E. Review of preoperative carbohydrate loading. Nutr Clin Pract. 2015;30(5):660-4.

7 Ljungqvist O. Jonathan E. Rhoads lecture 2011: insulin resistance and enhanced recovery after surgery. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2012;36(4):389-98.
-88 Thiele RH, Raghunathan K, Brudney CS, Lobo DN, Martin D, Senagore A, Cannesson M, Gan TJ, Mythen MM, Shaw AD, Miller TE; Perioperative Quality Initiative (POQI) I Workgroup. American Society for Enhanced Recovery (ASER) and Perioperative Quality Initiative (POQI) joint consensus statement on perioperative fluid management within an enhanced recovery pathway for colorectal surgery. Perioper Med (Lond). 2016;5:24. Erratum in: Perioper Med (Lond). 2018;7:5..

No Hospital Universitário Júlio Müller (Cuiabá, Mato Grosso, Brasil), onde o protocolo ACERTO foi criado, desde o ano de 2015, de maneira geral, para pacientes submetidos a operações de médio porte na unidade de Cirurgia Geral têm sido proposta uma rotina internamente denominada realimentação “ultra precoce” no pós-operatório. Nesta, após a operação, o paciente permanece na recuperação pós-anestésica (RPA) até sua completa estabilização e, assim que liberado pelo médico anestesiologista responsável, é realimentado com líquidos claros, ainda neste ambiente. Esta realimentação é feita habitualmente com 400ml de líquidos claros enriquecido com maltodextrina 12,5% (50g).

Até o momento, nenhum estudo se propôs a avaliar especificamente pacientes submetidos a este tipo de conduta. Empiricamente elocubrou-se que a maioria dos pacientes submetidos a realimentação “ultra precoce” dispensem a necessidade de qualquer tipo de fluidoterapia parenteral no pós-operatório, uma vez que poderá satisfazer suas necessidades hídricas plenamente pela via oral já à partir de sua alta da unidade de recuperação pós-anaestésica. Todavia, essa hipótese ainda não foi submetida a uma análise que demonstre sua real validade. Com base nisso, o presente estudo tem por objetivo investigar em uma série de casos de pacientes submetidos a operações de médio porte em cirurgia geral, o uso da conduta de realimentação pós-operatória “ultra precoce”(dieta oral líquida oferecida na recuperação pós-anestésica), avaliando-se o volume de fluidos endovenosos recebidos no pós-operatório por estes pacientes, assim como a ocorrência de complicações e o tempo de internação hospitalar.

MÉTODOS

Os dados foram coletados após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa UFMT-Hospital Universitário Júlio Muller - CEP sob o parecer 2.191.113 (CAAE: 71694117.5.0000.5541). O presente estudo não possui conflitos de interesse por parte de seus autores.

Estudo prospectivo, observacional, de seguimento com pacientes adultos (acima de 18 anos), internados sequencialmente na Unidade de Cirurgia Geral do Hospital Universitário Júlio Müller (Cuiabá-MT, Brasil), para serem submetidos a operações eletivas de médio porte. A definição do porte da operação foi realizada de acordo com os critérios adotados pelo sistema público brasileiro (Sistema Único de Saúde), na padronização de seus procedimentos operatórios (portaria GM nº 2848 de novembro de 2007).1010 Brasil. Ministério da Saúde. SIGTAP - Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde. Disponível em: http://sigtap.datasus.gov.br/tabela-unificada/app/sec/inicio.jsp. Acesso em 10 de maio de 2019.
http://sigtap.datasus.gov.br/tabela-unif...
Todos os pacientes avaliados nessa amostragem terminaram o procedimento operatório e adentraram a unidade de recuperação pós-anestésica como candidatos a realização de realimentação “ultra precoce”, ficando a escolha de utilizá-la ou não à critério dos médicos (cirurgiões e anestesistas) responsáveis por cada caso.

O período de observação ocorreu entre julho de 2016 a fevereiro de 2017. Os pacientes foram seguidos desde o momento da sua internação hospitalar até sua alta ambulatorial. Dados de pacientes que não puderam ser acompanhados por todo esse período (perdas de seguimento), foram descartados da amostra. Não fizeram parte desta amostragem, operações em pacientes com doença neoplásica maligna (suspeita ou confirmada).

Considerou-se como realimentação “ultra precoce”, a ingestão oral de líquidos claros (1 copo de 400ml) enriquecido com maltodextrina 12,5% (50g), ainda na unidade de Recuperação pós-anestésica (RPA), sob supervisão da equipe de enfermagem e anestesiologia. Estes pacientes já recebiam alta daquela unidade com ingesta hídrica liberada. Foram tabulados valores em mililitros, referentes ao volume total de hidratação venosa no pré, intra e pós-operatório (apenas o volume infundido de cristaloides, independente do tipo de solução utilizada). Para estratificação das complicações cirúrgicas ocorridas até a alta ambulatorial foi utilizada a classificação de Clavien-Dindo, em versão traduzida e testada para Português do Brasil1111 Moreira LF, Pessôa MC, Mattana DS, Schmitz FF, Volkweis BS, Antoniazzi JL, et al. Cultural adaptation and the Clavien-Dindo surgical complications classification translated to Brazilian Portuguese. Rev Col Bras Cir. 2016;43(3):141-8..

As variáveis contínuas foram avaliadas quanto à distribuição normal pelo teste de Kolmogorov-Smirnov (K-S) e homogeneidade de variâncias pelo teste de Levene, sendo expressas em média e desvio-padrão (variáveis de distribuição normal e que apresentaram homocedasticidade), ou mediana e intervalo máximo e mínimo (variáveis de distribuição não-paramétrica). As variáveis categóricas foram expressas em número absoluto, percentual e intervalo de confiança 95% (IC95). Na comparação dos resultados entre variáveis contínuas foi utilizado, para os dados considerados de distribuição normal e que apresentaram homocedasticidade, o teste T de Student. Para os demais dados, utilizou-se o teste não-paramétrico de Mann-Whitney. A análise entre variáveis categóricas foi realizada utilizando-se o teste qui-quadrado ou o teste exato de Fisher, quando os valores esperados em alguma das caselas foram menores que 5. Foi adotado como índice de significância estatística o valor de p<0,05. Para análise, utilizou-se o pacote estatístico SPSS (Statistical Package for Social Sciences) versão 20.0 para Microsoft® Windows®.

RESULTADO(S)

Foram analisados nesta série 154 pacientes consecutivos cujos procedimentos operatórios realizados podem ser vistos na tabela 1.

Tabela 1
Operações de média complexidade realizadas nos 154 pacientes estudados.

A média da idade foi de 46±15 anos (IC95% 44-49 anos); com 62 (36,1%) homens e 92 (63,9%) mulheres. A maioria dos pacientes apresentaram status físico de acordo com a classificação da Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA) um (73; 47,4%) ou dois (47,4%). Um total de 8 pacientes (5,2%) foram classificados no pré-operatório como ASA 3. Em relação ao score preditivo de Apfel para risco de vômitos no pós-operatório, 49 pacientes (31,6%) foram considerados de risco baixo, enquanto 68,2% apresentaram risco moderado a alto (63 (40,9%) risco moderado e 43 (27,7%) risco alto).

Abreviação do jejum com o uso de líquidos claros enriquecidos com carboidratos (com ou sem proteínas) ocorreu em 134 casos (aderência a esta conduta de 87%). Por sua vez, o tempo médio de jejum pré-operatório foi de 4,77±3,93h (IC95% 4,15-5,40h). Realimentação “ultra precoce”, com liberação de dieta oral líquida já na ala de recuperação pós-anestésica foi realizada em 144 casos (93,5%). Esses pacientes foram para as unidades de internação (enfermarias) com líquidos liberados por via oral e receberam a segunda refeição (dieta geral em 52/36,1% dos casos e dieta branda em 88/61,1% dos casos, pastosa ou líquida em 4/2,7% dos casos) em média 2,81±1,2 horas depois (IC95% 2,60-3,01h; variação de 1 a 8h). Em contrapartida, como mostrado na figura 1, os pacientes onde a realimentação “ultra precoce” não foi realizada, foram realimentados (dieta geral em 27,2% dos casos e dieta branda em 54,5% dos casos, pastosa ou líquida em 18,1%) com mediana de 6h (variação de 3 a 24h) após a alta da unidade de RPA (p<0,001 versus pacientes com realimentação ultra precoce).

Figura 1
Tempo em horas para a primeira refeição ocorrida após alta da unidade de RPA (alimentação em enfermaria) em pacientes que haviam sido alimentados na RPA e naqueles onde isso não foi realizado (*p<0,001).

Na série estudada, nenhum caso recebeu hidratação endovenosa no período pré-operatório. A mediana do volume intra-operatório recebido foi de 600ml (variando de 500 a 2000ml), e no pós-operatório foi de 200ml (variando de 100 a 5300ml). Conforme observado na figura 2, quando comparado o volume recebido no pós-operatório, pacientes que não receberam realimentação “ultra precoce” (mediana 500ml, variando de 100 a 2000ml) receberam volume significativamente maior de fluidos endovenosos do que pacientes realimentados de maneira “ultra precoce” (mediana de 200ml, variando de 100 a 5300ml; p=0,018).

Figura 2
Volume de hidratação venosa com cristaloides recebido no período pós-operatório estratificado por pacientes que receberam ou não realimentação "ultra precoce" (*p=0,018).

A média do tempo de internação dos pacientes estudados foi de 1,5±1,9 dias, (IC95% 1,2 - 1,8 dias). Embora pacientes em que a realimentação “ultra precoce” não foi realizada tenham tido a média do tempo de internação pós-operatório superior em relação àqueles em que a realimentação “ultra precoce” foi realizada (2,4±2,79 dias versus 1,45±1,83 dias); a análise estatística da comparação entre os grupos não mostrou diferença significante (p=0,133).

Complicações pós-operatórias (entre maiores ou menores), ocorreram em 41 casos (26,6%). A maior parte das complicações ocorridas foram menores, envolvendo os graus I (16,2%) ou II (7,8%) da classificação de Clavien-Dindo. Não houve diferença no percentual de complicações entre pacientes que receberam ou não a realimentação “ultra precoce” (p=0,291). A ocorrência global de vômitos no pós-operatório foi de 11% (17 casos). O percentual de vômitos em pacientes que receberam realimentação “ultra precoce” foi de 11,1%, contra 10% em pacientes que não receberam realimentação “ultra precoce”, sem diferença significativamente estatística entre os grupos (p=0,696). Ocorreram 10 casos de infecção do sítio cirúrgico, o que corresponde a 6,5% do total de pacientes operados. A maioria desses casos esteve relacionado com operações para o tratamento de hérnias ventrais (30% dos casos de infecção do sítio cirúrgico). Apenas em um caso o diagnóstico de ISC foi feito durante a internação (caso mais grave, onde o paciente permaneceu por quinze dias internado). Nos demais (90% dos casos de ISC), o diagnóstico e a resolução se deram em nível ambulatorial. Não houve casos de reinternação motivados por complicações pós-operatórias (infecciosas ou não). Não houve diferenças entre pacientes que realizaram realimentação «ultra precoce» com aqueles onde esta conduta não foi realizada (p=0,5345).

DISCUSSÃO

Os resultados do presente estudo demonstram que pacientes submetidos a cirurgias de médio porte, submetidos às rotinas do protocolo multimodal ACERTO, que foram realimentados em regime “ultra-precoce” ainda na unidade RPA, recebem alíquotas mínimas de hidratação venosa no período pós-operatório. Isso implica dizer que estes pacientes receberam infusão venosa inferior a 1 frasco de solução cristaloide considerando aqui o momento em que o mesmo foi admitido na unidade de recuperação pós-anestésica até sua alta hospitalar. Esses pacientes não receberam doses adicionais de cristaloides endovenosos que não fossem aquela que iniciou a ser infundida na unidade de RPA e foi liberado para a unidade de internação (enfermaria) com líquidos orais liberados.

Hernioplastias e Colecistectomias foram respectivamente a segunda e terceira operação mais realizada no sistema de saúde brasileiro entre os anos de 1995 a 200799 Yu PC, Calderaro D, Gualandro DM, Marques AC, Pastana AF, Prandini JC, et al. Non-cardiac surgery in developing countries: epidemiological aspects and economical opportunities--the case of Brazil. PLoS One. 2010;5(5):e10607.. Corrobora-se com isso os dados aqui apresentados. Noventa e dois (59,8%) pacientes foram submetidos a colecistectomia videolaparoscópica ou hernioplastias ventrais e crurais no presente estudo.

Segundo o protocolo multimodal ACERTO, em comum acordo com a Diretriz ACERTO de intervenções nutricionais no perioperatório em cirurgia geral eletiva, publicada em 2017 em associação com o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) e com a Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (BRASPEN), recomenda-se com grau de recomendação forte e nível de evidência alto que a realimentação oral ou enteral após operação abdominal eletiva deve ser precoce (em até 24h de pós-operatório) desde que o paciente esteja hemodinamicamente estável (mesmo em casos de anastomoses digestivas). Em operações como videocolecistectomia, hernioplastias e cirurgias ano-orificiais (médio porte), recomenda-se o início imediato de dieta e hidratação oral, sem uso de hidratação por via endovenosa1313 Aguilar-Nascimento JE, Salomão AB, Waitzberg DL, Dock-Nascimento DB, Correa MITD, Campos ACL, et al. ACERTO guidelines of perioperative nutritional interventions in elective general surgery. Rev Col Bras Cir. 2017;44(6):633-48..

A este último ponto, nos referimos no presente estudo como realimentação “ultra precoce”, uma vez que a primeira ingestão oral ocorra ainda na unidade de recuperação pós-anestésica. Oferta-se ao paciente pelo menos 400ml de líquidos claros acrescidos de maltodextrina 12,5% na RPA, quando bem acordados, supervisionados pela equipe de enfermagem e anestesia. Esta modalidade de nutrição pós-operatória foi alcançada em 93,5% dos pacientes. Após a alta da RPA, a primeira refeição foi ofertada em média após 3,2±2,45h (IC95% 2,81-3,59h), em relação ao término da operação sendo, na maioria da vezes, uma dieta hospitalar branda. Em nossa série, nos pacientes onde a realimentação “ultra precoce” não foi realizada, a dieta em alguns casos chegou a ser reintroduzida até 24h após a alta da RPA (mediana de 6h).

No pós-operatório a mediana do volume infundido de cristaloides foi de 200ml (variando de 100 a 5300ml). A mediana de volume infundido exclusivamente no pós-operatório de pacientes realimentados ultra-precocemente foi 200ml, enquanto a mediana do volume infundido em pacientes na qual tal conduta não foi realizada foi de 500ml (variando de 100 a 2000ml [p=0,018] ). Uma vez que a apresentação de uso das soluções cristaloides utilizadas neste estudo foram unidades (frascos) de 500ml, realizamos uma comparação entre pacientes que receberam a infusão de um volume de hidratação venosa no pós-operatório correspondente ao conteúdo de um frasco de soro (<500ml) ou mais que um (=500ml). Observamos que 78,5% dos casos realimentados na unidade de RPA receberam menos de 1 frasco (500ml) de hidratação venosa no pós-operatório, enquanto isso só ocorreu em 36,36% dos casos onde a realimentação “ultra precoce” não foi realizada (p=0,005). Isso implica dizer que os pacientes realimentados na unidade de RPA receberam volume adicional de hidratação venosa apenas nesta unidade, e foram de alta para enfermaria sem um soro conectado em sua via de acesso venoso ou apenas com o restante da solução inicialmente infundida na unidade de RPA (para completar o final da infusão). À partir disso, podemos inferir que tais pacientes de fato recebem volume zero de hidratação venosa pós-operatória quando na unidade de internação (enfermaria).

Além dos benefícios afim de acelerar a recuperação do paciente no pós-operatório, é importante ressaltar a economia financeira que a não administração de soroterapia indevida pode gerar ao sistema de saúde, seja ele público ou privado. Um recente ensaio clínico randomizado brasileiro avaliou os resultados clínicos e o custo médio para hidratação venosa em pacientes submetidos a colecistectomia videolaparoscópica com regime de hidratação venosa convencional versus hidratação venosa zero no pós-operatório. No grupo controle (hidratação venosa livre) o custo médio da soroterapia foi de 23,41 ± 3,63 reais por paciente, enquanto que, para o grupo estudo (hidratação restritiva), foi de 13,35 ± 2,73 reais (p< 0,05). Além da segurança clínica da fluidoterapia zero no pós-operatório de colecistectomias videolaparoscópica, este estudou cogitou uma possível economia aos cofres públicos de aproximadamente 559.466 reais/ano (considerando o número de operações deste tipo feitas pelo sistema público de saúde do Brasil) resultante da interrupção do uso rotineiro de soro no pós-operatório de colecistectomias1414 Henriques JR, Correia MITD. Are postoperative intravenous fluids in patients undergoing elective laparoscopic cholecystectomy a necessity? A randomized clinical trial. Surgery. 2018;163(4):721-5..

Dentre as complicações pós-operatórias (total de 27%) de acordo com a Classificação Clavien-Dindo, destacam-se principalmente as tipo I (16,2%), onde são consideradas qualquer desvio do curso pós-operatório ideal sem necessidade de tratamento farmacológico ou de intervenções cirúrgicas, endoscópicas e radiológicas. Na série estudada, complicações pós-operatórias que exigiram algum tipo de intervenção ocorreram em apenas 2,5% dos casos. A incidência geral de vômitos no pós-operatório desta série foi de 11%. Comparando-se a estudos similares ao nosso, a estimativa de náuseas e vômitos no pós-operatório em pacientes cirúrgicos esta em torno de 20 a 40%, podendo chegar até a 80% em pacientes de alto risco1515 Cao X, White PF, Ma H. An update on the management of postoperative nausea and vomiting. J Anesth. 2017;31(4):617-26.. Nota-se que a nossa incidência de náuseas e vômitos no pós-operatório foi significativamente menor comparando-se a literatura, corroborando os benefícios do protocolo multimodal associado a realimentação ultra precoce e menores volumes de hidratação venosa.

Neste estudo, encontramos um percentual de 6,5% (10 casos) de infecção do sítio cirúrgico. Apenas um caso de infecção mais grave foi evidenciado ainda durante a internação. No Brasil, os dados sobre a incidência de ISC em cirurgias gerais e específicas variam entre 1,4% a 38,8%1616 Carvalho RLR, Campos CC, Franco LMC, Rocha AM, Ercole FF. Incidência e fatores de risco para infecção de sítio cirúrgico em cirurgias gerais. Rev Latino-Am. Enfermagem. 2017;25:e2848.. Vários fatores de risco são conhecidos na literatura como predisponentes a ISC e compõem o Índice de risco de infecção cirúrgica do National Nosocomial Infection Surveillance System (NISS), como o índice da ASA, o Potencial de Contaminação da Ferida Operatória (PCFO) e o tempo de duração da cirurgia. Os dados apresentados estão de acordo com a literatura, porém, observa-se um alto índice de infecções em operações classificadas como limpas (3,89%), possivelmente devido ao elevado número de hernioplastias complexas presentes nesta série. No entanto, apenas 1,94% das ISC deram-se em operações potencialmente contaminadas, provavelmente pelo uso da videolaparoscopia em grande parte dos casos de operações desta categoria. A menor invasão e exposição dos tecidos e a duração do procedimento proporcionados pela cirurgia videolaparoscópica, podem influenciar na ocorrência de ISC, contudo não excluí-la.

É importante ressaltar que temos aqui a apresentação da avaliação de uma série de casos, o que traz, metodologicamente, limitações importantes para os resultados ora apresentados. Devido a este motivo, uma vez que a aderência a conduta de realimentação ultra precoce no pós-operatório foi elevada (93,5%), tivemos um grupo de comparação com poucos casos, o que sem dúvidas pode ter influência nos números apresentados. Dessa maneira, para melhor avaliar o impacto desta rotina, em especial em termos de morbidade pós-operatória, é importante que novos estudos sejam realizados, com uma amostragem mais homogêna e um número de casos mais igualitário entre os grupos à serem investigados.

Protocolos multimodais devem estar constantemente em transformações. São pautados na evidência, e a evidência é dinâmica. Essa dinamicidade é salutar e parte inseparável do pensamento em busca das melhores estratégias de condução de pacientes cirúrgicos. Ainda há muito o que ser investigado e comprovado quando falamos de estratégias de aceleração da recuperação operatória em suas diversas perspectivas. A realimentação “ultra precoce“ e a consequente diminuição de volume de fluidos endovenosos aqui demonstrados, parece ser uma conduta simples, segura e com potencial relação de custo-efetividade. Esta ainda é uma conduta pouco conhecida na maioria dos serviços em nosso meio.

CONCLUSÃO

A realimentação “ultra precoce” no pós-operatório se mostrou, nesta série, como factível e com elevada aderência em operações de médio porte. Pacientes submetidos a esta conduta receberam, quantidades mínimas de fluidos endovensosos no pós-operatório, significativamente inferiores aos que foram realimentados dentro da rotina convecional. Por sua vez, o emprego da realimentação “ultra precoce” dentro dessa série de casos mostrou taxas de complicações pós-operatórias baixas e compatíveis com a literatura, sem incremento do tempo de interação. Essa pode ser, portanto, uma nova conduta clinicamente efetiva no sentido de acelerar a recuperação pós-operatória do paciente cirúrgico.

  • Fonte de financiamento: Não

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2019
  • Aceito
    12 Nov 2019
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