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Fatores preditivos de mortalidade na cirurgia de controle de danos no trauma abdominal

RESUMO

Introdução:

a cirurgia de controle de danos (CCD) é estratégia bem definida de manejo cirúrgico para pacientes vítimas de trauma grave. A literatura sugere que as indicações, tempo operatório, medidas terapêuticas adotadas, alterações laboratoriais e achados transoperatórios apresentam impacto direto sobre o desfecho.

Objetivo:

analisar o perfil clínico-demográfico dos pacientes submetidos à CCD e identificar fatores preditivos de morbimortalidade na amostra.

Métodos:

coorte retrospectiva a partir da análise de prontuários de pacientes submetidos à CCD por trauma abdominal entre novembro de 2015 e dezembro de 2021. As variáveis analisadas incluíram dados demográficos, tempo da admissão, mecanismo do trauma, lesões associadas, escores de trauma, parâmetros laboratoriais, achados cirúrgicos, reposição volêmica e de hemoderivados, complicações pós-operatórias, tempo de internação e mortalidade. Para analisar os fatores de risco para mortalidade, foi utilizada análise de regressão logística binária.

Resultados:

no período, foram realizadas 696 laparotomias por trauma abdominal e destas, 8.9% (n=62) foram CCD, sendo mais de 80% por mecanismo penetrante. A mortalidade foi de 59.6%. Na regressão logística estratificada pela sobrevida, diversas variáveis foram associadas à mortalidade com significância estatística, incluindo hipotensão e alteração do estado mental à admissão, parada cardiorrespiratória no transoperatório, necessidade de toracotomia de reanimação, acidose metabólica, hiperlactatemia, coagulopatia, fibrinólise, gravidade dos escores de trauma e necessidade de hemoderivados.

Conclusão:

apesar da condução da estratégia de CCD em centro de trauma, a morbimortalidade ainda é elevada. A partir de parâmetros clínicos e laboratoriais pré e pós-operatórios, é possível predizer o risco de evolução para óbito na amostra estudada.

Palavras-chave:
Traumatismo Múltiplo; Ferimentos e Lesões; Índices de Gravidade do Trauma; Indicadores de Morbimortalidade; Fatores de Risco

ABSTRACT

Introduction:

damage control surgery (DCS) is well recognized as a surgical strategy for patients sustaining severe abdominal trauma. Literature suggests the indications, operative times, therapeutic procedures, laboratory parameters and intraoperative findings have a direct bearing on the outcomes.

Objective:

to analyze the clinical profile of patients undergoing DCS and determine predictors of morbidity and mortality.

Methods:

a retrospective cohort study was conducted on all patients undergoing DCS following abdominal trauma from November 2015 and December 2021. Data on subjects’ demographics, baseline presentation, mechanism of injury, associated injuries, injury severity scores, laboratory parameters, operative details, postoperative complications, length of stay and mortality were assessed. A binary logistic regression analysis was performed to determine potential risk factors for mortality.

Results:

During the study period, 696 patients underwent trauma laparotomy. Of these, 8.9% (n=62) were DCS, with more than 80% due to penetrating mechanisms. Overall mortality was 59.6%. In the logistic regression stratified by survival, several variables were significantly associated with mortality, including hypotension, and altered mental status at admission, intraoperative cardiorespiratory arrest, need for resuscitative thoracotomy, metabolic acidosis, hyperlactatemia, coagulopathy, fibrinolysis, and severity of the trauma injury scores.

Conclusion:

DCS may be appropriate in critically injured patients; however, it remains associated with significant morbidity and high mortality, even at specialized trauma care centers. From pre and postoperative clinical and laboratory parameters, it was possible to predict the risk of death in the studied sample.

Keywords:
Multiple Trauma; Wounds and Injuries; Injury Severity Score; Indicators of Morbidity and Mortality; Risk Factors

INTRODUÇÃO

A cirurgia de controle de danos (CCD) baseia-se na premissa de que pacientes vítimas de trauma abdominal grave com hemorragia e comprometimento das reservas fisiológicas não são candidatos à laparotomia com tratamento definitivo de todas as lesões, pois apresentam pequena chance de sobreviver ao insulto cirúrgico somado ao insulto fisiológico já em curso. A tétrade letal (“lethal diamond”), composta de hipotermia, acidose metabólica, coagulopatia e hipocalcemia, é a cascata de eventos que a CCD tenta interromper e corrigir11 Ditzel RM Jr, Anderson JL, Eisenhart WJ, Rankin CJ, DeFeo DR, Oak S, Siegler J. A review of transfusion- and trauma-induced hypocalcemia: Is it time to change the lethal triad to the lethal diamond? J Trauma Acute Care Surg. 2020;88(3):434-439.. A estratégia é baseada na fragmentação da cirurgia tradicional em etapas, resolvendo inicialmente a hemorragia e a contaminação, e deixando para um segundo momento as ressecções e reconstruções, aumentando a chance de sobrevivência do doente22 Hirshberg A, Walden R. Damage control for abdominal trauma Surg Clin North Am. 1997;77(4):813-20. doi: 10.1016/s0039-6109(05)70586-7.
https://doi.org/10.1016/s0039-6109(05)70...

3 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543.
-44 Cirocchi R, Abraha I, Montedori A, Farinella E, Bonacini I, Tagliabue L, et al. Damage control surgery for abdominal trauma. Cochrane Database of Systematic Reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2013;2013(3):CD007438. doi: 10.1002/14651858.CD007438.pub3.
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.

A história desta modalidade cirúrgica surgiu da necessidade de controle do sangramento em pacientes vítimas de trauma, situação bastante frustrante para os cirurgiões da década de 1980, em que a mortalidade da cirurgia tradicional beirava 90%55 Stone HH, Strom PR, Mullins RJ. Management of the Major Coagulopathy with onset during laparotomy. Ann Surg. 1983 May;197(5):532-5. doi: 10.1097/00000658-198305000-00005.
https://doi.org/10.1097/00000658-1983050...
. A primeira publicação sobre o tema consiste em relatos de 31 pacientes vítimas de trauma, nos quais Stone et al.55 Stone HH, Strom PR, Mullins RJ. Management of the Major Coagulopathy with onset during laparotomy. Ann Surg. 1983 May;197(5):532-5. doi: 10.1097/00000658-198305000-00005.
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propuseram a priorização do controle hemostático e da contaminação, sem preocupar-se inicialmente com a correção anatômica de lesões. Os autores identificaram redução importante nos óbitos, mesmo que mantendo índice de complicações de 100% durante a internação. A mortalidade no subgrupo tratado com tamponamento e compressão do sangramento foi de 35%, enquanto no grupo da laparotomia definitiva, esse índice chegou a 93%.

A descrição inicial dos estágios da CCD foi proposta por Rotondo et al.66 Rotondo MF, Schwab CW, McGonigal MD, et al. Damage control: an approach for improved survival in exsanguinating penetrating abdominal injury. J Trauma. 1993;35(3):375-82; discussion 382-3., dividindo o processo em três etapas. A primeira consiste no controle do sangramento e da contaminação, com fechamento temporário do abdome. A segunda, prevenção e tratamento da hipotermia e correção de coagulopatia e acidose na unidade de terapia intensiva (UTI). A terceira e última, indicada após as primeiras 24-72 horas da injúria cirúrgica, preconiza correção definitiva das lesões, criação de ostomias, definição do plano nutricional e fechamento da fáscia, podendo corresponder a mais de uma intervenção cirúrgica, se necessário33 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543.,44 Cirocchi R, Abraha I, Montedori A, Farinella E, Bonacini I, Tagliabue L, et al. Damage control surgery for abdominal trauma. Cochrane Database of Systematic Reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2013;2013(3):CD007438. doi: 10.1002/14651858.CD007438.pub3.
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,66 Rotondo MF, Schwab CW, McGonigal MD, et al. Damage control: an approach for improved survival in exsanguinating penetrating abdominal injury. J Trauma. 1993;35(3):375-82; discussion 382-3..

A determinação de fatores associados à mortalidade em pacientes submetidos à CCD é um desafio e diversos trabalhos já foram publicados com este objetivo77 Chovanes J, Cannon JW, Nunez TC. The Evolution of Damage Control Surgery. Surg Clin North Am. 2012;92(4):859-75,vii-viii. doi: 10.1016/j.suc.2012.04.002.
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. Ainda assim, a literatura não estabeleceu pontos de corte precisos para valores laboratoriais e achados cirúrgicos33 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543.. O objetivo deste trabalho é analisar as indicações e resultados dessa abordagem ao trauma abdominal em centro de referência em trauma, bem como identificar possíveis fatores preditivos para mortalidade na amostra.

MÉTODOS

Trata-se de estudo de coorte retrospectiva incluindo todos os pacientes submetidos a laparotomia exploradora por trauma abdominal admitidos no Hospital de Pronto Socorro Municipal de Porto Alegre em um período de 6 anos, entre novembro de 2015 a dezembro de 2021. Após a seleção inicial de casos, foram excluídos aqueles cuja abordagem foi definitiva na primeira cirurgia, os óbitos ainda na mesa cirúrgica e os casos de controle de danos para tratamento de complicações, sendo incluídos apenas pacientes submetidos à CCD na admissão hospitalar.

As variáveis analisadas incluíram dados demográficos, tempo da admissão até a cirurgia, mecanismo do trauma, lesões associadas, sinais vitais na chegada e Escala de Coma de Glasgow (ECG), escores de trauma - Revised Trauma Score (RTS), Injury Severity Score (ISS), Abdominal Trauma Index (ATI), Trauma and Injury Severity Score (TRISS) -, parâmetros laboratoriais - hemoglobina, gasometria arterial, cálcio iônico, tempo de protrombina (TP), tempo de tromboplastina parcial ativado (KTTP), plaquetas, fibrinogênio e lactato -, achados cirúrgicos, perda sanguínea estimada, reposição volêmica e de hemoderivados, manobras de controle de danos, manejo do abdome aberto, complicações pós-operatórias, tempo de internação em UTI/hospitalar e mortalidade.

Todas as cirurgias foram realizadas por cirurgiões contratados do serviço de Cirurgia Geral e do Trauma com a participação de residentes em treinamento. A decisão final de optar por CCD foi definida a critério do cirurgião assistente, devido à ausência de protocolo institucional definido.

A análise estatística foi realizada no software IBM SPSS®, versão 24.0. A análise descritiva do perfil da amostra segundo as variáveis em estudo foi apresentada por meio de tabelas de frequência absoluta (n) e percentuais (%) para as variáveis categóricas; e por medidas de posição e dispersão (média, mediana, desvio-padrão, mínimo e máximo) para as variáveis contínuas. A normalidade das variáveis contínuas foi determinada pelo teste de Kolmorogov-Smirnov; aquelas com distribuição normal foram descritas com medidas de média e desvio padrão, e as de distribuição assimétrica, com medianas e intervalos interquartis (IQR; p25 - p75). A amostra foi dividida em dois grupos de acordo com o desfecho (sobrevida e óbito) para comparação. Para comparar as variáveis categóricas entre os grupos, foram utilizados os testes qui quadrado ou exato de Fisher, conforme apropriado. Variáveis contínuas com distribuição normal foram comparadas pelo teste t de Student para amostras independentes, e as variáveis contínuas com distribuição assimétrica, pelo teste U de Mann Whitney. O nível de significância adotado para os testes estatísticos foi de 5% (p<0.05).

Para analisar os fatores de risco para mortalidade foi utilizada a análise de regressão logística por meio de modelos univariado e múltiplo, com critério de entrada para seleção de variáveis preditoras. Aquelas com importância clínica ou com valor de p<0.10 analisadas isoladamente na primeira fase no modelo univariado foram inseridas no modelo multivariado. As variáveis preditoras foram mantidas no modelo final se p<0.05.

O estudo foi realizado com base em banco de dados secundário, cuja elaboração foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre sob o parecer nº 3.641.331.

RESULTADOS

No período avaliado, 696 pacientes foram submetidos a laparotomia exploradora por trauma abdominal penetrante ou contuso na Instituição, sendo que 11.6% (n=82) necessitou abordagem por CCD no atendimento inicial. Vinte pacientes (2.8%) não sobreviveram até o término do procedimento, sendo registrados como óbitos na mesa cirúrgica e, portanto, excluídos da análise. Quanto à distribuição de gênero, 87% (n=54) dos pacientes eram masculinos. A mediana de idade foi de 27 anos (5 - 64, IQR 16). A maioria foi deslocada para o hospital com ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), porém 4.8% (n=3) procuraram o hospital por meios próprios, enquanto os demais foram encaminhados pela brigada militar.

Quanto ao mecanismo de trauma, 80.6% (n=50) foram ferimentos penetrantes, sendo 74.2% (n=46) por projétil de arma de fogo. Dos 12 (19.4%) vítimas de trauma contuso, 7 (11.3%) estavam envolvidos em acidentes de trânsito. As lesões associadas extra-abdominais estavam presentes em 32 (51.6%) pacientes da amostra, sendo a maioria em tórax (n=18; 29%) e extremidades (n=15; 24.2%). Em sua maioria, os pacientes apresentavam taquicardia, hipotensão e estado mental preservado. A aferição da pressão intra-abdominal e temperatura corporal não foram avaliadas devido à ausência de dados em quase todos os prontuários.

As principais lesões encontradas no transoperatório foram perfurações de vísceras ocas (n=46; 75.4%), lacerações de vísceras maciças (n=33; 53.2%), lesões vasculares (n=20; 30.2%) e de mesentério (n=19; 30.6%). Tratando-se de órgãos específicos, os mais prevalentes foram intestino delgado em 53.2% (n=33) e cólon em 48.4% (n=30). O major bleeder, em tradução livre, o principal responsável pelo sangramento, foram as lesões de vísceras maciças, de mesentério e de grandes vasos retroperitoneais.

A abordagem de duas cavidades foi necessária em 14 pacientes (22.6%), sendo a laparotomia associada à toracotomia, tamponamento extraperitoneal de pelve ou ambos. A parada cardiorrespiratória (PCR) no transoperatório ocorreu em 16 pacientes (25.8%), e a toracotomia de reanimação foi realizada em 10 (16%). O tempo estimado de cirurgia apresentou mediana de 95 minutos (30 - 300 min, IQR 60). A mediana do tempo de entre avaliação inicial e bloco cirúrgico foi de 47 minutos (15 - 600 min, IQR 41).

A mediana do sangramento transoperatório estimado foi de 2 litros. A abordagem da reposição volêmica foi uniforme quanto à administração de ácido tranexâmico na primeira hora em mais de 70% dos pacientes. A reposição de cristaloides foi maior que 2 litros em 27.4% (n=23) dos casos. Em relação aos hemoderivados, a mediana de bolsas transfundidas foi de 4 concentrados de hemácias (CH), 3 unidades de plasma fresco (PF) no transoperatório, com a proporção PF:CH>0.75 na metade dos casos. Contudo, apenas 2 pacientes receberam fibrinogênio e 3, crioprecipitados durante o ato cirúrgico. A tromboelastografia, disponível no hospital em determinado período do estudo, foi realizada em 15 (24.2%) pacientes para orientar a correção da coagulopatia.

As medianas dos escores de trauma avaliados revelam o perfil de gravidade da amostra, sendo apresentadas na Tabela 1. Alterações laboratoriais como hiperlactatemia, coagulopatia, anemia, plaquetopenia, acidose metabólica, hipocalcemia e fibrinólise também foram observadas. Quanto aos desfechos, a taxa de mortalidade geral foi de 59.6% (n=37). Destes, 27 pacientes foram classificados como óbitos precoces (antes de completar 48h da cirurgia). Do total de pacientes, 21 (34%) receberam alta e 4 (6.5%) foram transferidos para continuidade do tratamento em outra instituição.

Tabela 1
Dados clínico-demográficos, do atendimento inicial e desfechos da amostra. Dados são reportados em n (%) e média ± desvio-padrão ou mediana (IQR, p25 - p75).

A mediana do tempo até reintervenção programada foi de 48 horas (20 - 120 horas, IQR 30). O tratamento definitivo foi possível na primeira reintervenção em 82.8% (n=29) dos sobreviventes iniciais, com a reconstrução de trânsito intestinal prevalecendo como segunda abordagem em 62.8% (n=22) dos casos. Quanto às complicações cirúrgicas, 20 (58.8%) necessitaram intervenção não programada, sendo a maioria por fístulas do trato gastrintestinal (n=7; 20%) e deiscências de anastomoses, (n=10; 28.5%) dos quais 10 (28.5%) foram tratados com ostomia. Entre os sobreviventes iniciais (>48h após admissão), 26 (74.3%) necessitaram suporte nutricional com nutrição parenteral, 13 (37%) evoluíram para insuficiência renal aguda dialítica e 16 (25.8%) foram traqueostomizados.

Na análise univariada estratificada pela sobrevida, diversas variáveis apresentaram diferença estatisticamente significante entre os grupos. A hipotensão arterial, ECG alterada, lesão vascular venosa, necessidade de abordagem de duas cavidades, PCR no transoperatório e escores de trauma (com exceção do ATI e Shock Index), bem como parâmetros laboratoriais e a necessidade de transfusão de CH foram mais observados no grupo óbito. A Tabela 2 apresenta características estratificadas pela sobrevida.

Tabela 2
Características estratificadas pela sobrevida. Dados são reportados em n (%), média ± desvio-padrão ou mediana (IQR, p25 - p75).

A partir do modelo univariado, a análise de regressão logística multivariada definiu como fatores preditivos de mortalidade as alterações laboratoriais na gasometria arterial, hemograma, coagulograma e lactato, além de parâmetros clínicos como ECG, RTS, ISS e necessidade de toracotomia de reanimação (Tabela 3). Os pontos de corte acima ou abaixo dos quais os fatores preditivos foram mais associados à mortalidade (percentil 50 da curva de probabilidade) foram: ECG 12, RTS 5.60, ISS 21, BE -14, HCO3 14.5mmol/l, TP 44.2 segundos, fibrinogênio 109.6g/dl e lactato 6.1mg/dl.

Tabela 3
Regressão logística binária para avaliação de preditores de mortalidade.

Não houve diferença estatisticamente significante entre óbitos precoces (<48h) e tardios (>48h) em relação ao mecanismo do trauma, sinais vitais à admissão, escores de trauma, lesões intra-abdominais e reposição volêmica. O tempo cirúrgico foi significativamente maior entre os óbitos tardios (150 min; 120 - 210) em comparação com os óbitos precoces (75 min; 55 - 120); p=0.005.

DISCUSSÃO

A reavaliação das indicações de CCD tem sido tema de estudo ao longo das últimas décadas. Na revisão de um centro de trauma militar norte-americano77 Chovanes J, Cannon JW, Nunez TC. The Evolution of Damage Control Surgery. Surg Clin North Am. 2012;92(4):859-75,vii-viii. doi: 10.1016/j.suc.2012.04.002.
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, publicada em 2012, alguns parâmetros foram utilizados para indicar a abordagem em etapas, entre eles: pH <7.2, coagulopatia demonstrada laboratorialmente, lesão de víscera oca associada a lesão vascular, hipotensão ou Shock Index elevado (>1.2) e necessidade de 4 ou mais concentrados de hemácias. A seleção adequada do paciente crítico para cirurgia definitiva primária em pacientes com comprometimento fisiológico grave vai quase inevitavelmente levar para desfecho desfavorável ou abreviação não planejada do procedimento.

Em contraste, o uso excessivamente liberal (ou super indicação) da CCD pode negar aos pacientes com reserva fisiológica adequada os benefícios da abordagem única, e expô-los a procedimentos com alto potencial de morbimortalidade, como as complicações relacionadas ao abdome aberto e o processo da cirurgia por etapas33 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543.,88 Lamb CM, MacGoey P, Navarro AP, Brooks AJ. Damage control surgery in the era of damage control resuscitation. Br J Anaesth. 2014;113(2):242-9. doi: 10.1093/bja/aeu233.
https://doi.org/10.1093/bja/aeu233...
. Ainda não são conhecidas todas as indicações para CCD, contudo, aquele paciente cuja chance de sobreviver à cirurgia definitiva seja consideravelmente menor devido à exaustão fisiológica provocada pelo trauma é o provável candidato ideal33 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543..

As indicações variam de necessidade de transfusão maciça, acidose, hipotermia, tempo cirúrgico maior de 90 minutos, coagulopatia clínica ou laboratorial, lactato elevado, lesões vasculares maiores e múltiplas lesões de vísceras ocas11 Ditzel RM Jr, Anderson JL, Eisenhart WJ, Rankin CJ, DeFeo DR, Oak S, Siegler J. A review of transfusion- and trauma-induced hypocalcemia: Is it time to change the lethal triad to the lethal diamond? J Trauma Acute Care Surg. 2020;88(3):434-439.

2 Hirshberg A, Walden R. Damage control for abdominal trauma Surg Clin North Am. 1997;77(4):813-20. doi: 10.1016/s0039-6109(05)70586-7.
https://doi.org/10.1016/s0039-6109(05)70...
-33 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543.,66 Rotondo MF, Schwab CW, McGonigal MD, et al. Damage control: an approach for improved survival in exsanguinating penetrating abdominal injury. J Trauma. 1993;35(3):375-82; discussion 382-3.

7 Chovanes J, Cannon JW, Nunez TC. The Evolution of Damage Control Surgery. Surg Clin North Am. 2012;92(4):859-75,vii-viii. doi: 10.1016/j.suc.2012.04.002.
https://doi.org/10.1016/j.suc.2012.04.00...

8 Lamb CM, MacGoey P, Navarro AP, Brooks AJ. Damage control surgery in the era of damage control resuscitation. Br J Anaesth. 2014;113(2):242-9. doi: 10.1093/bja/aeu233.
https://doi.org/10.1093/bja/aeu233...
-99 Hoey BA, Schwab CW. Damage Control Surgery. Scand J Surg. 2002;91(1):92-103. doi: 10.1177/145749690209100115.
https://doi.org/10.1177/1457496902091001...
. Estima-se que 10% dos pacientes vítimas de trauma grave devem se beneficiar desta abordagem, e quanto mais cedo a tomada de decisão, maior o benefício88 Lamb CM, MacGoey P, Navarro AP, Brooks AJ. Damage control surgery in the era of damage control resuscitation. Br J Anaesth. 2014;113(2):242-9. doi: 10.1093/bja/aeu233.
https://doi.org/10.1093/bja/aeu233...
. Alguns autores acreditam que esta decisão deve ser tomada nos primeiros 15 minutos do atendimento1010 Kapan M, Onder A, Oguz A, Taskesen F, Aliosmanoglu I, Gul M, et al. The effective risk factors on mortality in pacients undergoing damage control surgery. Eur Rev Med Pharmacol Sci. 2013;17(12):1681-7.. Na amostra apresentada, 8.6% das laparotomias por trauma abdominal foram abordadas por CCD, proporção próxima ao recomendado na literatura.

A mortalidade na CCD é bastante variável na literatura. A proporção de óbitos encontrada neste estudo foi de 59.6%, relativamente alta em comparação com casuísticas previamente publicadas na literatura. Kapan et al.1010 Kapan M, Onder A, Oguz A, Taskesen F, Aliosmanoglu I, Gul M, et al. The effective risk factors on mortality in pacients undergoing damage control surgery. Eur Rev Med Pharmacol Sci. 2013;17(12):1681-7., em estudo sobre fatores de risco relacionados à CCD com 24 pacientes, reportaram índice de 45.8%. Já o estudo sul-africano conduzido por Joep et al.1111 Joep T, Nicol A, Kairinos N, Teijink J, Prins M, Navsaria P. Predicting mortality in damage control surgery for major abdominal trauma. S Afr J Surg. 2010;48(1):6-9., com amostra semelhante ao nosso estudo (n=74), observou a surpreendente taxa de mortalidade de apenas 27%. Outros trabalhos internacionais reportam índices variando de 38.5 - 66%1212 Aoki N, Wall MJ, Demsar J, et al. Predictive model for survival at the conclusion of a damage control laparotomy. Am J Surg. 2000;180(6):540-4; discussion 544-5. doi: 10.1016/s0002-9610(00)00497-9.
https://doi.org/10.1016/s0002-9610(00)00...
,1313 Ordonez CA, Badiel M, Sanchez AI, Granados M, Garcia AF, Ospina G, et al. Improving Mortality Predictions in Trauma Patients Undergoing Damage Control Strategies. Am Surg. 2011;77(6):778-82..

Pacientes sobreviventes à CCD apresentam risco aumentado de complicações pós-operatórias. Infecção de ferida operatória e deiscência de anastomoses são comuns devido à alta carga de contaminação e o risco de formação de fístula é alto no abdome aberto11 Ditzel RM Jr, Anderson JL, Eisenhart WJ, Rankin CJ, DeFeo DR, Oak S, Siegler J. A review of transfusion- and trauma-induced hypocalcemia: Is it time to change the lethal triad to the lethal diamond? J Trauma Acute Care Surg. 2020;88(3):434-439.. O índice geral de complicações encontradas no presente trabalho foi de 53.2%, bastante semelhante ao de Kaplan et al.1010 Kapan M, Onder A, Oguz A, Taskesen F, Aliosmanoglu I, Gul M, et al. The effective risk factors on mortality in pacients undergoing damage control surgery. Eur Rev Med Pharmacol Sci. 2013;17(12):1681-7., de 54.2%. Apesar da CCD reduzir a mortalidade em comparação à cirurgia definitiva em pacientes gravíssimos, ainda conta com elevada morbimortalidade, tempo de internação hospitalar prolongado e custos hospitalares significativos33 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543.,44 Cirocchi R, Abraha I, Montedori A, Farinella E, Bonacini I, Tagliabue L, et al. Damage control surgery for abdominal trauma. Cochrane Database of Systematic Reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2013;2013(3):CD007438. doi: 10.1002/14651858.CD007438.pub3.
https://doi.org/10.1002/14651858.CD00743...
.

Os fatores preditivos de mortalidade no presente estudo foram alteração do estado mental, a necessidade de toracotomia, escores de trauma (RTS e ISS), bem como anormalidades laboratoriais secundárias a acidose metabólica e coagulopatia. No estudo de Kaplan et al.1010 Kapan M, Onder A, Oguz A, Taskesen F, Aliosmanoglu I, Gul M, et al. The effective risk factors on mortality in pacients undergoing damage control surgery. Eur Rev Med Pharmacol Sci. 2013;17(12):1681-7., estes fatores foram divididos em pré- e pós-operatórios. No primeiro grupo, idade, excesso de base, pH e temperatura foram estatisticamente significantes. No segundo, plaquetas, RNI, unidades de CH, Trauma Index e ISS também foram variáveis preditoras. Ordonez et al.1313 Ordonez CA, Badiel M, Sanchez AI, Granados M, Garcia AF, Ospina G, et al. Improving Mortality Predictions in Trauma Patients Undergoing Damage Control Strategies. Am Surg. 2011;77(6):778-82., encontraram, ainda, correlação de sobrevida com valores de outros escores de trauma, incluindo ISS, ATI, RTS e TRISS, temperatura corporal e valores laboratoriais de pH, fibrinogênio, hemoglobina e CH.

Mais recentemente, a literatura tem destacado os efeitos diretos e indiretos da hipocalcemia em cada componente da clássica tríade letal, sendo sugerido como a quarta ponta da tétrade ou diamante letal do trauma11 Ditzel RM Jr, Anderson JL, Eisenhart WJ, Rankin CJ, DeFeo DR, Oak S, Siegler J. A review of transfusion- and trauma-induced hypocalcemia: Is it time to change the lethal triad to the lethal diamond? J Trauma Acute Care Surg. 2020;88(3):434-439.. Apesar da hipocalcemia observada no grupo óbito, os valores de cálcio iônico não foram estatisticamente significantes como fatores de risco no modelo multivariado. Em relação à hipotermia, a temperatura corporal menor de 36ºC por mais de 4h já se torna significativa, com relatos de 100% de mortalidade, se abaixo de 32ºC. A falta de dados sobre temperatura registrados em prontuário eletrônico impediu a análise desta variável no presente estudo.

Em artigo de revisão publicado da Cochrane de 2010, que compara pacientes com manejo definitivo versus CCD, foram encontrados problemas interessantes. Dos 1523 artigos pré-selecionados, nenhum estudo randomizado controlado foi identificado. A maioria das publicações sobre o tema vem de experiências cirúrgicas relatadas em estudos observacionais, retrospectivos ou estudos de casos, provavelmente devido a questões éticas impeditivas33 Ball, CG. Damage Control Surgery. 2015. Current opinion in critical care. 2015;21(6): 538-543.,44 Cirocchi R, Abraha I, Montedori A, Farinella E, Bonacini I, Tagliabue L, et al. Damage control surgery for abdominal trauma. Cochrane Database of Systematic Reviews. Cochrane Database Syst Rev. 2013;2013(3):CD007438. doi: 10.1002/14651858.CD007438.pub3.
https://doi.org/10.1002/14651858.CD00743...
.

O presente estudo apresenta limitações inerentes a estudos retrospectivos baseados em registros de prontuários como fonte de dados, como a documentação inconsistente de informações clínicas relevantes. Além disso, a avaliação da reposição volêmica ficou restrita ao período do transoperatório pela dificuldade de aferição precisa entre atendimento pré-hospitalar e cuidados na UTI. Os exames laboratoriais também não foram coletados todos no mesmo momento, sendo em alguns casos coletados na admissão, no transoperatório ou como primeiro exame na UTI.

Como perspectivas futuras, sugere-se a criação de protocolos bem definidos para manejo desses pacientes, desde a avaliação na sala de emergência até a prestação de cuidados intensivos pós-operatórios, com o objetivo de padronizar o atendimento e melhorar os desfechos. A definição de pontos de corte para indicação de CCD deve ser alvo de estudos prospectivos. O adequado registro por parte das equipes de assistência à saúde se faz necessário para minimizar as perdas de informações, diminuindo os vieses de registro em estudos futuros.

CONCLUSÃO

Apesar do tratamento em centro de referência em trauma, a morbimortalidade dos pacientes submetidos à CCD por trauma abdominal ainda é muito elevada. A partir da análise da amostra de pacientes submetidos à CCD por trauma abdominal, é possível definir fatores preditivos de mortalidade baseados em parâmetros clínicos e laboratoriais pré e pós-operatórios. A identificação e reconhecimento de pacientes com maior probabilidade de desenvolver complicações ou óbito é fundamental para melhor indicar a estratégia de controle de danos, bem como orientar as melhores ferramentas terapêuticas durante os cuidados intensivos.

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  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2022
  • Aceito
    17 Jul 2022
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