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Cirurgia Global no Cenário Nacional: Perspectivas após o 34º Congresso Brasileiro de Cirurgia

RESUMO

O 34° Congresso Brasileiro de Cirurgia incluiu Cirurgia Global pela primeira vez em seu programa científico. Cirurgia Global é qualquer ação em pesquisa, prática clínica e políticas em saúde que visa melhorar o acesso e a qualidade do atendimento em especialidades cirúrgicas. Em 2015, a Comissão da The Lancet em Cirurgia Global destacou que cinco bilhões de pessoas carecem de assistência cirúrgica segura, oportuna e acessível. Ainda mais crítico, nove em cada dez pessoas não têm acesso a cuidados cirúrgicos essenciais em países de baixa e média renda, onde um terço da população mundial reside e apenas 6% dos procedimentos cirúrgicos globais são realizados. Embora pesquisadores e instituições brasileiras tenham contribuído para lançar as bases internacionais e nacionais do movimento desde 2014, a Cirurgia Global ainda é um assunto pouco debatido no país. Assim, faz-se urgente expandir essa área de conhecimento e quebrar paradigmas quanto ao papel do cirurgião na saúde pública no Brasil. Isso requer um esforço conjunto para alocar recursos de forma estratégica bem como para identificar oportunidades de colaboração, incluindo as sociedades médicas e os órgãos reguladores. Como membros da International Student Surgical Network of Brazil - organização sem fins lucrativos feita por e para estudantes, residentes e jovens médicos com foco na Cirurgia Global - revisamos por que investir em Cirurgia é uma medida custo-efetiva para fortalecer os sistemas de saúde, reduzir a morbimortalidade e promover o desenvolvimento econômico. Além disso, destacamos e propomos recomendações-chave para fomentar a Cirurgia Global a nível nacional.

Palavras-chave:
Estratégias de Saúde Globais; Equidade em Saúde; Indicadores de Qualidade em Assistência à Saúde; Mão de Obra em Saúde

ABSTRACT

The XXXIV Brazilian Congress of Surgery included Global Surgery for the first time in its scientific program. Global Surgery is any action in research, clinical practice, and policy-making that aims to improve access and quality of care in surgical specialties. In 2015, The Lancet Commission on Global Surgery highlighted that five billion people lack safe, timely, and affordable surgical care. Even more critical, nine of ten people cannot access essential surgical care in low and middle-income countries, where a third of the worldwide population resides, and only 6% of global surgical procedures are performed. Although Brazilian researchers and institutions have been contributing to lay the movement’s foundations since 2014, Global Surgery remains a barely debated subject in the country. It is urgent to expand the field and break paradigms regarding the surgeons’ role in public health in Brazil. Accomplishing these standards requires a joint effort to strategically allocate resources and identify collaboration opportunities, including those from medical societies and regulatory bodies. As members of the International Student Surgical Network of Brazil - a nonprofit organization by and for students, residents, and young physicians focused on Global Surgery - we review why investing in surgery is cost-effective to strengthen health systems, reduce morbimortality, and lead to economic development. Additionally, we highlight and propose key recommendations to foster the field at the national level.

Keywords:
Global Health Strategies; Health Equity; Quality Indicators, Health Care; Health Workforce

INTRODUÇÃO

O 34° Congresso Brasileiro de Cirurgia teve início no dia 2 de setembro de 2021 e destacou diferentes ferramentas para facilitar a prática clínica-cirúrgica dos cirurgiões gerais em seu cotidiano. Em meio a mesas redondas e painéis, pela primeira vez, o quase centenário Colégio Brasileiro de Cirurgiões incluiu a Cirurgia Global como tema na sessão “Cirurgia Global: Promovendo Equidade no Acesso ao Tratamento Cirúrgico”. De fato, a Cirurgia Global é um assunto emergente e pouco debatido em nosso país, embora pesquisadores e instituições brasileiras tenham contribuído para lançar as bases internacionais e nacionais do movimento desde 2014. Sete anos depois, ainda há urgência em expandir a Cirurgia Global e quebrar paradigmas sobre o papel do cirurgião na saúde pública no Brasil.

Mas, o que é Cirurgia Global? Cirurgia Global é qualquer ação em pesquisa, prática clínica e políticas em saúde que visa melhorar o acesso e a qualidade do atendimento em especialidades cirúrgicas, como trauma, anestesiologia, e obstetrícia11 Meara JG, Leather AJM, Hagander L, Alkire BC, Alonso N, Ameh EA, et al. Global Surgery 2030: evidence and solutions for achieving health, welfare, and economic development. Lancet. 2015;386(9993):569-624. doi: 10.1016/S0140-6736(15)60160-X.
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,22 Aruparayil N, Doe M, Grimes CE. Global surgery: importance, controversy and opportunity. Bull R Coll Surg Engl. 2020;102(S1):30-4. doi: 10.1308/rcsbull.TB2020.8.
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. Em 2015, a Comissão da The Lancet em Cirurgia Global destacou que cinco bilhões de pessoas carecem de assistência cirúrgica segura, oportuna e acessível. Ainda mais crítico, nove em cada dez pessoas não têm acesso a cuidados cirúrgicos essenciais em países de baixa e média renda - (PBMRs), onde um terço da população mundial reside e apenas 6% dos procedimentos cirúrgicos globais são realizados11 Meara JG, Leather AJM, Hagander L, Alkire BC, Alonso N, Ameh EA, et al. Global Surgery 2030: evidence and solutions for achieving health, welfare, and economic development. Lancet. 2015;386(9993):569-624. doi: 10.1016/S0140-6736(15)60160-X.
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,22 Aruparayil N, Doe M, Grimes CE. Global surgery: importance, controversy and opportunity. Bull R Coll Surg Engl. 2020;102(S1):30-4. doi: 10.1308/rcsbull.TB2020.8.
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. Consequentemente, 1.27 milhões de cirurgiões, anestesiologistas e obstetras adicionais são necessários até 2030 para cobrir essa lacuna e promover a saúde em todo o mundo11 Meara JG, Leather AJM, Hagander L, Alkire BC, Alonso N, Ameh EA, et al. Global Surgery 2030: evidence and solutions for achieving health, welfare, and economic development. Lancet. 2015;386(9993):569-624. doi: 10.1016/S0140-6736(15)60160-X.
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,33 Vervoort D, Bentounsi Z. InciSioN: Developing the Future Generation of Global Surgeons. J Surg Educ. 2019;76(4):1030-3. doi: 10.1016/j.jsurg.2019.02.008.
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. Além disso, baixos volumes operatórios estão associados a altas taxas de letalidade de condições cirúrgicas tratáveis comuns, com 143 milhões de procedimentos cirúrgicos adicionais sendo necessários nos PBMRs a cada ano para salvar vidas e prevenir incapacidades11 Meara JG, Leather AJM, Hagander L, Alkire BC, Alonso N, Ameh EA, et al. Global Surgery 2030: evidence and solutions for achieving health, welfare, and economic development. Lancet. 2015;386(9993):569-624. doi: 10.1016/S0140-6736(15)60160-X.
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Além da redução na morbimortalidade, investir em assistência cirúrgica está associado a bom custo-benefício. Sem o aumento do financiamento na expansão cirúrgica, os PBMRs sofrerão prejuízo na produtividade econômica e perderão uma estimativa de US$12,3 trilhões até 203011 Meara JG, Leather AJM, Hagander L, Alkire BC, Alonso N, Ameh EA, et al. Global Surgery 2030: evidence and solutions for achieving health, welfare, and economic development. Lancet. 2015;386(9993):569-624. doi: 10.1016/S0140-6736(15)60160-X.
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. Nessa perspectiva, melhorar a assistência cirúrgica leva ao desenvolvimento econômico e à mudança social. Cumprir tais padrões requer um esforço conjunto para alocar recursos de forma estratégica bem como para identificar oportunidades de colaboração, incluindo aqueles por parte de sociedades médicas e órgãos reguladores44 Bouchard ME, Sheneman N, Hey MT, Hoemeke L, Abdullah F. Investments in surgical systems contribute to pandemic readiness and health system resilience. J Public Health Policy. 2021;42(3):493-500. doi: 10.1057/s41271-021-00292-z.
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. Ademais, os investimentos em treinamento cirúrgico, desenvolvimento curricular e distribuição da força de trabalho são etapas cruciais para promover cuidados cirúrgicos eletivos e de emergência44 Bouchard ME, Sheneman N, Hey MT, Hoemeke L, Abdullah F. Investments in surgical systems contribute to pandemic readiness and health system resilience. J Public Health Policy. 2021;42(3):493-500. doi: 10.1057/s41271-021-00292-z.
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A integração efetiva de competências relacionadas à Cirurgia Global na educação médica e na prática cirúrgica continua sendo um desafio, especialmente em escolas médicas e programas de residência médica. Até o momento, não existe um currículo universal de habilidades acadêmicas em Cirurgia Global para informar aos programas educacionais. Além disso, instituições de países de alta renda são responsáveis pela maior parte da literatura, um viés natural para lidar com a complexidade de diferentes contextos e populações55 Boroumand S, Stein MJ, Jay M, Shen JW, Hirsh M, Dharamsi S. Addressing the health advocate role in medical education. BMC Med Educ. 2020;20(1):28. doi: 10.1186/s12909-020-1938-7.
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O Brasil ainda tem inúmeros desafios na área da saúde, apesar da existência de um sistema público de saúde abrangente. Enquanto regiões como o Norte têm aproximadamente 20 cirurgiões, anestesiologistas e obstetras por 100.000 habitantes, sendo esta a densidade mínima esperada da força de trabalho cirúrgica, o Sul facilmente ultrapassa 40 profissionais por 100.000 habitantes66 Scheffer M, Saluja S, Alonso N. Surgical care in the public health agenda. Cad Saude Publica. 2017;33(10):e00104717. doi: 10.1590/0102-311X00104717.
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. Vale ressaltar que tais estimativas podem mascarar a distribuição desigual desses profissionais entre estados pertencentes à mesma região geográfica. Essa distribuição heterogênea pode ser explicada pela falta de estabilidade salarial, infraestrutura e continuidade para melhorar o treinamento cirúrgico77 Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP; 2020.. Outro perigo consiste na maior concentração de profissionais no setor privado, enquanto 71,5% dos brasileiros dependem exclusivamente do sistema público de saúde77 Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP; 2020.. Ademais, a carga de doenças está mudando no Brasil, sem ser seguida pela agenda de prioridades do Ministério da Saúde. Ainda que as doenças infecciosas não sejam mais as principais causas de mortalidade, essas continuam sendo prioridade para financiamento e políticas em saúde. No entanto, condições cirurgicamente tratáveis, como traumas, continuam sendo a principal causa de morbidade e não aparecem na agenda de saúde pública66 Scheffer M, Saluja S, Alonso N. Surgical care in the public health agenda. Cad Saude Publica. 2017;33(10):e00104717. doi: 10.1590/0102-311X00104717.
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Intervenções imediatas são vitais para mudar o cenário atual. A mais simples consiste em ampliar o conhecimento acerca da importância e aplicabilidade da Cirurgia Global em nosso país. A International Student Surgical Network (InciSioN) é uma organização mundial sem fins lucrativos criada por e para estudantes, residentes e jovens médicos focada em Cirurgia Global, contando com mais de 5.000 membros espalhados por 70 países, incluindo o Brasil. Como representantes nacionais da InciSioN Brazil, saudamos a iniciativa de incluir Cirurgia Global na programação do congresso. Contudo, esperamos que tal marco não permaneça restrito a congressos acadêmicos, mas se expanda para um compromisso em longo prazo por parte das sociedades médicas e instituições educacionais. Além disso, faz-se essencial mencionar que o desenvolvimento da Cirurgia Global em nível nacional colocará o Brasil em posição de destaque para liderar o movimento como um país com um dos mais robustos sistemas públicos de saúde. Assim, propomos as seguintes recomendações para fomentar a Cirurgia Global no Brasil:

  1. Apoiar e propor colaboração bilateral com atuais grupos de Cirurgia Global, incluindo organizações lideradas por estudantes e residentes, para aumentar a advocacia em saúde entre cirurgiões, anestesiologistas, obstetras e a comunidade;

  2. Encorajar sociedades médicas de várias especialidades cirúrgicas a produzirem recursos de aprendizagem adaptados ao contexto local e a promoverem capacitação sobre Cirurgia Global em congressos, seminários e outros eventos educacionais;

  3. Inserir a Cirurgia Global nos currículos das escolas médicas e como componente dos programas de residência em cirurgia, anestesiologia e ginecologia e obstetrícia;

  4. Estabelecer agenda de prioridades em pesquisa sobre as doenças cirúrgicas que mais agravam a saúde dos brasileiros nos próximos cinco anos;

  5. Garantir equipe diversificada e inclusiva em Cirurgia Global para analisar, implementar e monitorar pesquisas e políticas de saúde com base nas necessidades da população brasileira;

  6. Instituições acadêmicas devem fornecer supervisão, apoio intelectual e financeiro aos estudantes que desejarem trabalhar com as prioridades estabelecidas;

  7. A partir dos achados, propor intervenções e políticas públicas de saúde nas Comissões Regionais de Saúde e no Conselho Nacional de Saúde;

  8. Renovar o plano e as políticas de prioridades a cada cinco anos.

Investir em cirurgia é a ação com melhor custo-benefício para diminuir inequidades e promover desenvolvimento. A cirurgia não é tão complexa ou cara como se acredita¹. Consiste em uma abordagem sustentável para melhorar o acesso aos cuidados em saúde, bem como para fortalecer a força de trabalho, o financiamento, a infraestrutura, os recursos e os serviços cirúrgicos nacionais. Mais do que adicionar à temática de “como eu trato” do último Congresso Brasileiro de Cirurgia sob a perspectiva da relação cirurgião-paciente, a Cirurgia Global pode servir como pilar para potencializar o papel dos cirurgiões no enfrentamento das disparidades de saúde em nosso Sistema Único de Saúde.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem e felicitam a International Federation of Medical Students Associations of Brazil por facilitar a sessão relacionada à cirurgia global no 34º Congresso Brasileiro de Cirurgia.

REFERENCES

  • 1
    Meara JG, Leather AJM, Hagander L, Alkire BC, Alonso N, Ameh EA, et al. Global Surgery 2030: evidence and solutions for achieving health, welfare, and economic development. Lancet. 2015;386(9993):569-624. doi: 10.1016/S0140-6736(15)60160-X.
    » https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)60160-X
  • 2
    Aruparayil N, Doe M, Grimes CE. Global surgery: importance, controversy and opportunity. Bull R Coll Surg Engl. 2020;102(S1):30-4. doi: 10.1308/rcsbull.TB2020.8.
    » https://doi.org/10.1308/rcsbull.TB2020.8
  • 3
    Vervoort D, Bentounsi Z. InciSioN: Developing the Future Generation of Global Surgeons. J Surg Educ. 2019;76(4):1030-3. doi: 10.1016/j.jsurg.2019.02.008.
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  • 4
    Bouchard ME, Sheneman N, Hey MT, Hoemeke L, Abdullah F. Investments in surgical systems contribute to pandemic readiness and health system resilience. J Public Health Policy. 2021;42(3):493-500. doi: 10.1057/s41271-021-00292-z.
    » https://doi.org/10.1057/s41271-021-00292-z
  • 5
    Boroumand S, Stein MJ, Jay M, Shen JW, Hirsh M, Dharamsi S. Addressing the health advocate role in medical education. BMC Med Educ. 2020;20(1):28. doi: 10.1186/s12909-020-1938-7.
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  • 6
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  • 7
    Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo, SP: FMUSP; 2020.
  • Fonte de financiamento:

    não.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2021
  • Aceito
    15 Dez 2021
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