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Experiência de tratamento não operatório de traumas hepáticos contusos no Hospital das Clínicas de Uberlândia: 114 casos

RESUMO

Introdução:

o trauma é a principal causa de morte na faixa etária de 1 a 49 anos no Brasil. O Tratamento não operatório (TNO) é padrão ouro nos centros de trauma e não altera a mortalidade quando comparado ao tratamento operatório.

Métodos:

foram avaliados 114 prontuários médicos de pacientes vítimas de trauma hepático contuso atendidos no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU) no período de novembro de 2015 a novembro de 2020.

Resultados:

os homens foram o sexo mais acometido (74,5%) e a faixa etária mais prevalente foi de 20 a 49 anos (65,7%). 60,5% dos pacientes admitidos apresentavam um Injury Severity Score (ISS) maior ou igual a 16. Na admissão, 30,7% apresentaram FC acima de 100bpm e 30,70% PAS abaixo de 100mmHg. O TNO foi instituído em 77,2% dos pacientes, o índice de falha foi de 11,36% e o índice de falha específica, excluindo as cirurgias decorrentes por complicação de lesões associadas, foi de 1,75%. 33,33% dos óbitos foram decorrentes de traumatismo cranioencefálico grave.

Conclusão:

o índice de TNO instituído no HC-UFU é próximo ao estabelecido na literatura para traumas hepáticos. O índice de falha, quando excluídas às complicações por lesões associadas, é considerado baixo. O reconhecimento do perfil epidemiológico dos pacientes admitidos no HC-UFU permite o treinamento especializado integrativo e multiprofissional das equipes assistenciais e o desenvolvimento de protocolos institucionais, visando reduzir a morbimortalidade relacionada ao trauma hepático.

Palavras-chave:
Cuidados de Suporte Avançado de Vida no Trauma; Centros de Traumatologia; Protocolos Clínicos; Fígado

ABSTRACT

Introduction:

trauma is the leading cause of death for the age group from 1 to 49 years in Brazil. Non-Operative Management (NOM) is the gold standard in trauma centers and does not affect mortality in comparison to operative treatment.

Methods:

medical records were reviewed for 114 patients with blunt liver trauma treated at Hospital das Clínicas of the Federal University of Uberlândia (HC-UFU) from November 2015 to November 2020.

Results:

the most prevalent gender was masculine (74.5%). The most prevalent age group was 20 to 49 years (65.7%). The majority of admitted patients (60.5%) had an Injury Severity Score (ISS) of more than 15. On hospital admission, 30.7% had HR above 100 bpm and 30.70% had SBP below 100mmHg. NOM was implemented in 77.2% of patients, the failure rate was 11.36% and the specific failure rate, excluding complications of associated injuries that resulted in surgery, was 1.75%. One third of deaths were due to severe traumatic brain injury.

Conclusion:

the failure rate of NOM in this study is similar to the literature reports for liver trauma. The failure rate, excluding complications of associated injuries, is considered low. The recognition of the epidemiological profile of patients admitted at HC-UFU allows multidisciplinary and integrated care with specialized training, as well as the development of institutional protocols, aiming to reduce morbidity and mortality related to hepatic trauma.

Keywords:
Advanced Trauma Life Support Care; Trauma Centers; Clinical Protocols; Liver

INTRODUÇÃO

O Trauma é a principal causa de morte na faixa etária de 1 a 49 anos no Brasil11 DATASUS Tecnologia da Informação a Serviço do SUS, Ministério da Saúde. Mortalidade - Brasil: óbitos por faixa etária segundo Capítulo CID-10, Período: 2019. Acesso em: 24 de março 2021. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obt10uf.def
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. O principal mecanismo são os acidentes de trânsito e cerca de 5% das internações destas vítimas são decorrentes de traumas hepáticos22 American College of Surgeons. Trauma abdominal e pélvico, Advanced Trauma Life Suport, Chicago, IL. 10 ed. 2018.,33 Taghavi S, Askari R. Liver Trauma. [Updated 2021 Jul 22]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022 Jan. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK513236/.

Vítimas de trauma abdominal, estáveis hemodinamicamente e sem sinais de peritonite franca ao exame clínico, são candidatos a realizar tomografia computadorizada (TC) de abdome com contraste22 American College of Surgeons. Trauma abdominal e pélvico, Advanced Trauma Life Suport, Chicago, IL. 10 ed. 2018.. De acordo com a American Association for the Surgery of Trauma (AAST), as lesões hepáticas identificadas são classificadas em graus de I a V, conforme achados tomográficos e gravidades das lesões, podendo ser instituído o tratamento não operatório (TNO)44 The American Association for the Trauma of Surgery. Injury Scoring Scales. 2018. Disponível em: https://www.aast.org/resources/Trauma-Tools/injuryscoring-scales
https://www.aast.org/resources/Trauma-To...
,55 Feliciano DV, Mattox KL, Moore EE. Trauma. 9 ed. Mc Graw Hill. 2020..

O TNO é padrão ouro nos centros de trauma. É responsável por diminuir tempo de internação, infecções abdominais e necessidade de transfusão de hemocomponentes, não alterando a mortalidade quando comparado ao tratamento operatório55 Feliciano DV, Mattox KL, Moore EE. Trauma. 9 ed. Mc Graw Hill. 2020.

6 Pimentel SK, et al. Fatores de risco para óbito no trauma abdominal fechado com abordagem cirúrgica. Rev. Col. Bras. Cir. 2015;42(4):259-264. doi: 10.1590/0100-69912015004011.
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-77 Coccolini F, et al. Liver Trauma: WSES 2020 guidelines. World J Emerg Surg. 2020;15(1):24. doi: 10.1186/s13017-020-00302-7.
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. Há evidências de que o desenvolvimento de tecnologias e protocolos institucionais está associado à redução de complicações relacionadas ao trauma22 American College of Surgeons. Trauma abdominal e pélvico, Advanced Trauma Life Suport, Chicago, IL. 10 ed. 2018..

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo e observacional, em que os dados retrospectivos foram coletados de 114 prontuários médicos de pacientes vítimas de trauma com o diagnóstico da internação de “Traumatismo do fígado ou da vesícula biliar” (CID 10 D36.1), atendidos no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU) no período de novembro de 2015 a novembro de 2020. Foram excluídos para este projeto os traumas penetrantes, os pacientes admitidos em parada cardiorrespiratória, pacientes sem lesão de víscera maciça, pacientes transferidos de outro serviço com dados insuficientes em prontuário, ou prontuário médico não encontrado. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFU número 43093520.9.0000.5152.

No HC-UFU não há protocolo institucional de TNO de trauma hepático, cabendo ao médico cirurgião plantonista a decisão pelo TNO. Há uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para pacientes cirúrgicos, porém não exclusiva ao trauma. Há serviço de hemodinâmica, porém não funciona 24h. Há serviço de radiologia, porém as tomografias realizadas na urgência não são laudadas. As imagens tomográficas podem ser discutidas com o médico radiologista em caso de dúvida diagnóstica em dias e horários específicos durante a semana diurno. Existe o Protocolo de Transfusão maciça no serviço que é aberto em caso de pacientes adultos, vítima de trauma, com ABC score ≥2 pontos, com presença suspeita ou confirmada de sangramento, e evidência clínica de instabilidade hemodinâmica após a infusão inicial de 1000mL de solução cristalóide; descompressão pleural e/ou pericárdica (quando indicada); controle de sangramento externo, enfaixamento pélvico e alinhamento de fraturas; e esvaziamento gástrico e vesical.

RESULTADOS

Os homens foram o sexo mais acometido (74,5%). A faixa etária mais prevalente foi a economicamente ativa, de 20 a 49 anos (65,7%). Em relação à admissão, a escala de coma de Glasgow é moderada ou grave em 21,05% dos pacientes e 60,5% dos pacientes admitidos apresentavam um Injury Severity Score (ISS) maior ou igual a 16 (Tabela 1).

Tabela 1
Características demográficas e de gravidade dos pacientes com trauma hepático contuso admitidos no HC-UFU de nov 2015 a nov 2020.

Tabela 2
Tratamento não operatório do trauma hepático contuso. Classificação das lesões por grau e sua relação com falha do TNO.

Tabela 3
Complicacoes do TNO da lesão hepática contusa tratadas com cirurgia.

Na admissão, 30,7% apresentavam FC acima de 100bpm e 30,70% PAS abaixo de 100mmHg. O FAST foi realizado em 35,1% dos pacientes na Sala do Trauma e em 42,5% destes foi positivo. O Protocolo de Transfusão Maciça foi acionado em 14,9%, entretanto, deste total de pacientes, apenas 3 (17,64%) foram admitidos com PAS ≤100mmHg, FC >100bpm e FAST positivo (Tabela 1).

Em relação aos pacientes que realizaram tomografia na admissão, 28% das lesões não foram classificadas pela equipe assistente. 14% dos pacientes não realizaram tomografia na admissão. Em relação às tomografias classificadas pela equipe, 18,7% corresponderam a lesão hepática Grau I, 43,7% a Grau II, 29,7% a Grau III, 7,8% Grau IV. Não houve Grau V classificado.

O TNO foi instituído em 77,2% dos pacientes admitidos com trauma hepático. O índice de falha de TNO foi de 11,36% (10), sendo que apenas 2 foram resultantes de complicações diretas da lesão hepática: fístula biliar e hematoma subcapsular infectado. Em 5 das falhas havia lesão esplênica associada e em 3 destes a esplenectomia foi realizada. Os demais pacientes foram abordados por outras lesões associadas: trauma pancreático (3), hérnia diafragmática (1) e lesão de víscera oca (1).

Dos pacientes que foram abordados cirurgicamente imediatamente à admissão, ou seja, em até 6 horas do trauma, 19,23% (5) realizaram empacotamento hepático e 38,46% (10) realizaram hepatorrafia ou posicionamento de gelfoam como principal procedimento cirúrgico.

Do total de pacientes avaliados, 36,8% (42) foram admitidos em Unidade de Terapia Intensiva e 15,8% (18) evoluíram à óbito na internação. Destes 18 óbitos, 33,34% foram decorrentes de complicações do TCE grave, mesma porcentagem decorrente de choque hemorrágico (Tabela 4).

Tabela 4
Causa de óbitos.

DISCUSSÃO

Pacientes vítimas de trauma hepático contuso são, majoritariamente, população economicamente ativa masculina, em acordo com resultados de estudos nacionais e internacionais88 Stalhschmidt CM, et al. Trauma hepático: epidemiologia de cinco anos em um serviço de emergência. Rev. Col. Bras. Cir. 2008;35(4):225-8.,99 Ozogul B, et al. Non-operative management (NOM) of blunt hepatic trauma: 80 cases. Ulus Travma Acil Cerrahi Derg. 2014 Mar;20(2):97-100. doi: 10.5505/tjtes.2014.20737.
https://doi.org/10.5505/tjtes.2014.20737...
.

No presente estudo, o TNO foi instituído em 77,2% dos pacientes, índice próximo ao estabelecido na literatura para traumas hepáticos. Entretanto, o TNO em nosso serviço é instituído sem a disponibilidade de radiologista e hemodinâmica 24h, considerados pela literatura critérios de inclusão para instituir o TNO. Além disso, o índice de tomografias não laudadas pelos médicos assistentes é alto, o que configura outra crítica à inclusão dos pacientes nos critérios de TNO1010 Abrantes WL, et al. Tratamento não operatório do trauma hepático contuso. Rev Med Minas Gerais. 2006;16(1):43-8..

O índice de falha de TNO de 11,36% é considerado alto, quando comparado a outros estudos nacionais. Entretanto, o nosso estudo considerou lesões associadas e complicações tardias, que evoluíram com indicação cirúrgica, como falha de TNO. Dessa forma, se considerarmos os pacientes que evoluíram com necessidade cirúrgica apenas àqueles com complicações hepáticas, temos um índice de falha específico de 1,75%, tendo em vista que as falhas foram relacionadas, em sua maioria, a complicações por lesões associadas, como baço, pâncreas, víscera oca e diafragma. Além disso, é relevante observar que o perfil dos pacientes atendidos no HC-UFU é majoritariamente de pacientes com traumas contusos múltiplos, com um ISS elevado em mais da metade dos pacientes avaliados neste estudo1111 Drumond DAF, et al. Experiência do Hospital João XXIII no tratamento não operatório de vísceras abdominais maciças. Rev Med Minas Gerais. 2009;19(3):189-92..

Mais de um terço dos pacientes são admitidos com instabilidade hemodinâmica e submetidos a realização de FAST na sala do trauma e indicado hemotransfusão de urgência. Entretanto, na maioria dos pacientes que receberam PTM não foi seguido adequadamente o protocolo institucional.

Destaca-se a importância do estudo no reconhecimento do perfil epidemiológico dos pacientes admitidos no serviço para auxiliar na formulação de protocolos institucionais. O treinamento especializado a pacientes politraumatizados com múltiplas lesões associadas e alto risco de óbito por TCE deve ser integrativo e multiprofissional. Desta forma, entendemos que o desenvolvimento, a aplicação adequada e o seguimento de protocolos institucionais, poderá otimizar a assistência e reduzir a morbimortalidade associada ao trauma hepático em nosso serviço.

REFERENCES

  • 1
    DATASUS Tecnologia da Informação a Serviço do SUS, Ministério da Saúde. Mortalidade - Brasil: óbitos por faixa etária segundo Capítulo CID-10, Período: 2019. Acesso em: 24 de março 2021. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obt10uf.def
    » http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obt10uf.def
  • 2
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  • 3
    Taghavi S, Askari R. Liver Trauma. [Updated 2021 Jul 22]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022 Jan. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK513236/
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    The American Association for the Trauma of Surgery. Injury Scoring Scales. 2018. Disponível em: https://www.aast.org/resources/Trauma-Tools/injuryscoring-scales
    » https://www.aast.org/resources/Trauma-Tools/injuryscoring-scales
  • 5
    Feliciano DV, Mattox KL, Moore EE. Trauma. 9 ed. Mc Graw Hill. 2020.
  • 6
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    » https://doi.org/10.1590/0100-69912015004011
  • 7
    Coccolini F, et al. Liver Trauma: WSES 2020 guidelines. World J Emerg Surg. 2020;15(1):24. doi: 10.1186/s13017-020-00302-7.
    » https://doi.org/10.1186/s13017-020-00302-7
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  • 9
    Ozogul B, et al. Non-operative management (NOM) of blunt hepatic trauma: 80 cases. Ulus Travma Acil Cerrahi Derg. 2014 Mar;20(2):97-100. doi: 10.5505/tjtes.2014.20737.
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  • 10
    Abrantes WL, et al. Tratamento não operatório do trauma hepático contuso. Rev Med Minas Gerais. 2006;16(1):43-8.
  • 11
    Drumond DAF, et al. Experiência do Hospital João XXIII no tratamento não operatório de vísceras abdominais maciças. Rev Med Minas Gerais. 2009;19(3):189-92.
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Aceito
    04 Out 2022
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