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Níveis de hemoglobina glicosilada e anomalias cardíacas em fetos de mães com diabetes mellitus

Glycosylated hemoglobin levels and cardiac abnormalities in fetuses of diabetic mothers

Resumos

Avaliou-se, prospectivamente, a existência de relação entre o controle glicêmico materno, na primeira metade da gestação, com a ocorrência de anomalias cardíacas fetais, em gestantes com diabetes mellitus. O nível da hemoglobina glicosilada (HbA1c) foi determinado em 127 grávidas, por ocasião da primeira visita pré-natal. Nove eram portadoras de diabetes do tipo I, 77 do tipo II e 41 de Diabetes mellitus gestacional (DMG). Todas foram submetidas a ecocardiografia fetal detalhada na 28ª (±4,1) semana da gestação. Em 31 dos 127 fetos (24,4%) foram detectadas anomalias cardíacas. Em 10 (7,87%), foram diagnosticadas anomalias cardíacas estruturais e, em 21 (16,53%), miocardiopatia hipertrófica como anomalia cardíaca isolada. A média das dosagens de HbA1c no grupo de gestantes sem anomalias cardíacas (5,6%) foi estatisticamente diferente da média das HbA1c do grupo com anomalias (10,1%) (p<0,0001). A elaboração da curva ROC, representando o balanço entre a sensibilidade (92,83%) e a especificidade (98,92%) no diagnóstico das anomalias cardíacas estruturais, com base nos níveis da HbA1c e resultados da ecocardiografia fetal, revelou ponto de corte discriminatório em 7,5%. Em nove dos dez fetos portadores de anomalias cardíacas estruturais, o nível materno da HbA1c era maior do que 7,5%. Não foi observada diferença estatisticamente significante quando se compararam as médias das dosagens de HbA1c dos casos com e sem miocardiopatia hipertrófica, diagnosticada como anomalia isolada (MCPH), nos subgrupos de diabetes tipo II e DMG. Concluem os autores que o nível de HbA1c acima de 7,5% correlaciona-se com o diagnóstico ecocardiográfico de anomalias cardíacas estruturais. Por outro lado, este teste não se mostrou útil para discriminar conceptos portadores de MCHP.

Hemoglobina A glicosilada; Diabetes Mellitus; Feto; Malformações; Complicações da gestação; Ultra-sonografia


We analyze prospectively the existence of a relationship between the mother's glycemic control, in the first half of pregnancy, and the occurrence of abnormal fetal cardiac abnormalities, in pregnant women with diabetes mellitus. In 127 pregnant women, the level of glycosylated hemoglobin was determined on the first visit during prenatal care. Nine patients had type I diabetes, 77 type II and 41 gestational diabetes mellitus (GDM). All mothers were submitted to detailed fetal echocardiography, during the 28th ± 4.127 week of gestation. In 31 (24.4%) of the 127 fetuses cardiac anomalies were detected. In 10 (7.87%) an isolated cardiac anomaly was identified. Mean HbA1c in the group of pregnant women without cardiac anomalies (5.64%) was statistically different from the group with anomalies (10.14%) (p<0.0001). The receiver-operator characteristic, representing the balance between sensitivity (92.83%) and specificity (98.92%) in the diagnosis of structural cardiac abnormalities, showed a cut-off point at the 7.5% HbA1c level. In nine of ten fetuses with structural cardiac anomalies, the maternal level of HbA1c was higher than 7.5%. The difference between means of the groups with and without myocardial hypertrophy diagnosed as isolated anomaly (MCHP) was not statistically significant, when considering both type II diabetes and GDM subgroups. In conclusion, levels of HbA1c higher than 7.5% were associated with most cases of echocardiographycally diagnosed structural cardiac anomalies. On the other hand, this test was not useful to discriminate conceptus with MCHP.

Glysosylated hemoglobin A; Diabetes mellitus; Pregnancy complications; Fetus; Ultrasonography; Malformations


Trabalhos Originais

Níveis de Hemoglobina Glicosilada e Anomalias Cardíacas em Fetos de Mães com Diabetes Mellitus

Glycosylated Hemoglobin Levels and Cardiac Abnormalities in Fetuses of Diabetic Mothers

Ivo Behle, Paulo Zielinsky, Lucia Pellanda Zimmer, Mila Pontremoli, Juliana N. Risch

RESUMO

Avaliou-se, prospectivamente, a existência de relação entre o controle glicêmico materno, na primeira metade da gestação, com a ocorrência de anomalias cardíacas fetais, em gestantes com diabetes mellitus. O nível da hemoglobina glicosilada (HbA1c) foi determinado em 127 grávidas, por ocasião da primeira visita pré-natal. Nove eram portadoras de diabetes do tipo I, 77 do tipo II e 41 de Diabetes mellitus gestacional (DMG). Todas foram submetidas a ecocardiografia fetal detalhada na 28ª (±4,1) semana da gestação. Em 31 dos 127 fetos (24,4%) foram detectadas anomalias cardíacas. Em 10 (7,87%), foram diagnosticadas anomalias cardíacas estruturais e, em 21 (16,53%), miocardiopatia hipertrófica como anomalia cardíaca isolada. A média das dosagens de HbA1c no grupo de gestantes sem anomalias cardíacas (5,6%) foi estatisticamente diferente da média das HbA1c do grupo com anomalias (10,1%) (p<0,0001). A elaboração da curva ROC, representando o balanço entre a sensibilidade (92,83%) e a especificidade (98,92%) no diagnóstico das anomalias cardíacas estruturais, com base nos níveis da HbA1c e resultados da ecocardiografia fetal, revelou ponto de corte discriminatório em 7,5%. Em nove dos dez fetos portadores de anomalias cardíacas estruturais, o nível materno da HbA1c era maior do que 7,5%. Não foi observada diferença estatisticamente significante quando se compararam as médias das dosagens de HbA1c dos casos com e sem miocardiopatia hipertrófica, diagnosticada como anomalia isolada (MCPH), nos subgrupos de diabetes tipo II e DMG. Concluem os autores que o nível de HbA1c acima de 7,5% correlaciona-se com o diagnóstico ecocardiográfico de anomalias cardíacas estruturais. Por outro lado, este teste não se mostrou útil para discriminar conceptos portadores de MCHP.

PALAVRAS-CHAVE: Hemoglobina A glicosilada. Diabetes Mellitus. Feto. Malformações. Complicações da gestação. Ultra-sonografia.

Introdução

O aperfeiçoamento da assistência obstétrica determinou considerável redução da morbidade e da mortalidade materna e perinatal nas gestantes com diabetes mellitus. Como a melhoria na assistência perinatal e neonatal eliminou várias das causas que determinavam comprometimento dos indicadores de saúde, o impacto das anomalias congênitas tornou-se mais aparente e têm emergido como o fator que isoladamente mais contribui para a morbidade e mortalidade das crianças de mães diabéticas13. As anomalias congênitas maiores afetam de 4% a 12% dos recém-nascidos de mães com diabetes clínico. Dentre todas as anomalias detectadas, 40% a 50% referem-se a defeitos congênitos do coração1,9.

Em 1958, Allen et al.4 identificaram três hemoglobinas menores (HbA1a, HbA1b e HbA1c) coletivamente denominadas HbA1, as quais demonstram marcada mobilidade cromatográfica, característica que as diferenciam do restante da hemoglobina A. Estas hemoglobinas permaneceram apenas como uma curiosidade até que o incremento em suas concentrações foi correlacionado com o diabetes mellitus. Em 1978, Leslie et al.16 demonstraram haver correlação entre a hiperglicemia materna, traduzida pela elevação da glico-hemoglobina, medida por ocasião da primeira visita pré-natal, com malformações fetais. Miller et al.17, analisando valores da HbA1c antes da décima quarta semana de gestação em 113 grávidas diabéticas, observaram que dentre os 14 casos em que havia malformações fetais os seus níveis eram substancialmente maiores. Estes resultados foram confirmados por vários outros estudos, sugerindo que o grau de hiperglicemia, nas fases iniciais da gravidez, representa o maior determinante de risco para as anomalias congênitas12.

A hemoglobina A1c é uma pequena fração que se diferencia da hemoglobina adulta pela adição de uma molécula de glicose à porção terminal aminovalina da cadeia beta. Expressa como porcentagem do total da hemoglobina, o nível de HbA1c é dependente da média da concentração da glicose à qual as células sangüíneas vermelhas estiveram expostas durante seu ciclo vital. Os níveis de HbA1c representam, então, um índice integrado e retrospectivo, a refletir a concentração média da glicose para um determinado período de tempo7.

Na década de oitenta, a ecocardiografia pré-natal transabdominal foi agregada à propedêutica das gestações de alto risco21. Allan et al.3 demonstraram que seu emprego, no período pré-natal, detecta mais cardiopatias graves do que quando utilizado no período pós-natal. A ecocardiografia pré-natal detalhada requer, entretanto, especialista treinado para sua execução, de modo que ela ainda não está inserida dentro da propedêutica obstétrica rotineira. Este procedimento tem sido utilizado somente nos casos em que estão presentes fatores de risco para defeitos cardíacos ou quando existe diagnóstico de malformações em outros setores da economia fetal.

Recentemente, Shields et al.23 avaliaram a probabilidade da ecocardiografia pré-natal diagnosticar doenças cardíacas congênitas em gestantes com diabetes mellitus. Nenhum caso de doença cardíaca congênita foi diagnosticada em fetos cujas mães apresentavam níveis de HbA1c dentro da normalidade, no início da gestação. Entretanto, dentre as pacientes com valores anormais, não foi possível estabelecer um ponto de corte capaz de predizer a existência de anomalias cardíacas.

O presente estudo foi desenhado com o intuito de avaliar, prospectivamente, a existência de relação entre o controle glicêmico materno, traduzido pelo nível da HbA1c durante a primeira metade da gravidez e a ocorrência de anomalias cardíacas fetais, detectadas pela ecocardiografia em mulheres com diabetes mellitus insulino-dependente (DMID), diabetes mellitus não-insulino-dependente (DMNID) e diabetes mellitus gestacional (DMG), assistidas pelo sistema Hospital-Dia de atenção pré-natal.

Pacientes e Métodos

Entre janeiro de 1989 e janeiro de 1994, todas as gestantes matriculadas no Programa Hospital-Dia do Hospital Escola Materno-Infantil Presidente Vargas, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com DMID ou DMNID (tipos I e II) e aquelas rotuladas como portadoras de DMG, tiveram o nível de HbA1c determinado na primeira visita pré-natal. A amostra consiste de 127 de um total de 144 gestantes diabéticas e por seus respectivos conceptos. O estudo é prospectivo, seqüencial e não intencional, controlando-se, desta forma, possíveis vícios de seleção. Foram excluídos 17 casos da população total: 6 porque as gestantes deram a luz em outros hospitais e 11 nos quais a gravidez foi interrompida por abortamento espontâneo.

O teste de tolerância à glicose, dentre o grupo de mulheres com DMG, foi realizado já na primeira visita, porque elas eram portadoras de pelo menos um dos seguintes fatores de risco: peso excessivo; antecedentes familiares de diabetes; abortamento ou história de natimorto de causa desconhecida; antecedente de recém-nascido com mais de 4.000 g; antecedente de diabetes gestacional; síndrome hipertensiva; antecedente de recém-nascido com anomalias congênitas; ou tinham mais de 30 anos de idade.

Suspeitou-se de diabetes mellitus gestacional quando a glicemia, avaliada uma hora após a ingestão de 50 g de glicose, foi maior do que 135 mg/dl. O diagnóstico foi estabelecido por meio do teste de sobrecarga com 100 g de glicose, executado e interpretado conforme sugerido pela Associação Americana de Diabetes5. A hemoglobina glicosilada foi determinada pela aplicação de teste que determina os níveis de HbA1c (Inlab-Monotest, São Paulo, Brasil). Nesta metodologia, a porcentagem de HbA1c, referida em relação à hemoglobina total, é avaliada espectrofotometricamente com absorção a 415 nm. A correção da temperatura foi realizada no final dos cálculos. Os coeficientes de variação intra-ensaio e interensaio foram de 3%. O limite de confiança de 95%, para o estudo cromatográfico, foi de 6% e 8.3% da hemoglobina total em homens e mulheres não-diabéticos e com glicemias normais.

A ecocardiografia fetal detalhada foi realizada entre a 20ª e a 37ª semana de gestação. Todos os procedimentos foram executados por um dos investigadores (PZ), na Unidade de Cardiologia Fetal do Instituto de Cardiologia da Fundação Universitária de Cardiologia do Rio Grande do Sul. Foi utilizado um sistema ultra-sônico bidimensional, com transdutor de 3.5 MHz com doppler e opção para fluxo a cores (ATL Mark 9, Advanced Technology Laboratories, Bothell, WI, USA). O procedimento incluiu a visualização do corte de quatro câmaras e das vias de saída, doppler adicional e medidas no modo M e análise cinética das várias estruturas intracardíacas, bem como pelo doppler convencional e mapeamento a cores dos fluxos.

Este método é dotado de sensibilidade e especificidade, quando considerada a ecocardiografia pós-natal como padrão ouro, respectivamente de 92% e 100%28. Nos casos em que houve dificuldades, resultantes da posição fetal desfavorável, o exame foi repetido no mesmo dia ou uma semana após. O coração fetal pode ser adequadamente analisado em todos os casos. A miocardiopatia hipertófica foi considerada presente quando o septo interventricular media 5 mm ou mais no final da diástole, da metade da gestação até o termo, de acordo com os normogramas publicados por Sutton et al.24 e Allan2. As doenças cardíacas congênitas foram classificadas em ordem de importância. A lesão dominante em cada coração foi selecionada segundo a classificação proposta por Fyler et al.11 e Scott et al.22. A nomenclatura empregada é aquela proposta por Tynan et al.25. Corações com mais de uma lesão foram classificados de acordo com o distúrbio mais importante.

As gestantes, parturientes e puérperas, bem como seus fetos e recém-nascidos, receberam assistência conforme protocolo anteriormente publicado6.

As médias das variáveis contínuas, normalmente distribuídas em diferentes grupos, foram testadas pelo teste t de Student. As diferenças de freqüências das características e resultados em diferentes grupos foram testados pela análise do c2 ou teste exato de Fisher. Considerou-se estatisticamente significante o nível de 95% (p<0,05). A expressão da relação entre a sensibilidade e a especificidade, para determinação do ponto de corte, resultou da aplicação da curva ROC (receiver operator characteristic curve).

Esta pesquisa recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa Médica do Hospital Escola Materno-Infantil Presidente Vargas de Porto Alegre - Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul/Fundação Universitária de Cardiologia, sendo que todas as pacientes assinaram um termo pós-esclarecimento.

Resultados

Na Tabela 1 são apresentadas algumas características demográficas das 127 pacientes estudadas e a Tabela 2 apresenta a distribuição das gestantes estudadas conforme o tipo de diabetes.

A Tabela 3 mostra dados referentes ao momento da gestação em que se realizou o estudo ecocardiográfico fetal, bem como aquele em que se determinou a hemoglobina glicosilada e seus níveis.

Em 31 dos 127 fetos estudados (24,4%) foram detectadas anomalias cardíacas, classificadas conforme a proposta de Tynan et al.25 e que são apresentadas na Tabela 4. Em quatro casos havia associação com outras malformações não-cardíacas. Assim, um feto era portador de síndrome de Down, um apresentava pé torto e lábio leporino, outro hipospádia e o último doença multicística renal. A mortalidade fetal e neonatal foi, dentre a totalidade dos casos 3,14% e 3,64% respectivamente.

Na Tabela 5 são apresentados os resultados do estudo comparativo realizado entre os casos com e sem anomalias cardíacas fetais. A diferença entre as médias dos casos com e sem anomalias cardíacas foi estatisticamente diferente apenas para os níveis da hemoglobina glicosilada.

A Figura 1 representa o balanço entre a sensibilidade e a especificidade no diagnóstico das anomalias cardíacas estruturais, pela ecocardiografia fetal dos níveis da HbA1c. Para um ponto de corte no nível da HbA1c a 7,5% (sensibilidade de 92,83% e especificidade de 98,92%), observa-se a perda de 7,20% dos fetos com anomalias estruturais, ao passo que apenas 1,10% dos fetos normais são incluídos dentre aqueles portadores de anomalias.


Dos 9 fetos de gestantes com DMID, evidenciou-se atresia mitral em um, com hipoplasia do ventrículo esquerdo e bloqueio atrioventricular total, diagnóstico confirmado por estudo necroscópico. No outro havia grande comunicação inter-atrial, sem conexão atrioventricular e dupla via de saída do ventrículo direito. Nestes dois casos os níveis da HbA1c foram maiores do que 9,0%. Dentre os casos sem anomalias cardíacas, em nenhum a HbA1c foi maior do que 7,5% (p<0.002).

Dentre o grupo de 77 gestantes com DMNID, houve 9 fetos (9,09%) com anomalias cardíacas estruturais. Em todas essas gestantes, a HbA1c foi maior do que 7,5%. Dentre os fetos sem anomalias estruturais, em todos os casos a HbA1c foi menor do que 7,5%.( p<0,00001).

Entre as 41 gestantes com DMG, em um feto (2,43%) foi diagnosticada anomalia cardíaca estrutural, representada por comunicação interventricular, com interrupção do arco aórtico do tipo B. A HbA1c era maior do que 9,0%. Dentre as 40 gestantes com fetos sem anomalias cardíacas estruturais, a HbA1c foi maior do que 7,5% em 2 (5%) e igual ou menor do que 7,5% em 38 (95%) (p<0.006).

Considerando a relevância na ocorrência da MCPH (16,53%), diagnosticada como anomalia isolada, estudou-se sua associação com os níveis da hemoglobina glicosilada. Dentre as 9 gestantes portadoras de DMID, não houve nenhum caso de MCPH diagnosticada como anomalia cardíaca isolada.

No grupo de 77 gestantes consideradas como portadoras de DMNID, houve 15 fetos (19,48%) com MCPH, diagnosticada como anomalia cardíaca isolada. Em 6 (40%) destes, o nível da HbA1c foi maior do que 7,5% e em 9 (60%) igual ou menor do que 7,5%. Em 20 (32,25%) dentre os fetos sem MCPH, a HbA1c foi maior do que 7,5% e em 42 (67,75%) ela foi igual ou menor do que 7,5% (p=0,345).

No grupo de 41 gestantes com DMG, houve 6 fetos (14,63%) com MCPH diagnosticada como anomalia cardíaca isolada. Em dois (33,33%) destes, o nível da HbA1c foi maior do que 7,5% e nos outros quatro (66,66%) ele foi igual ou menor do que 7,5% (p=0,06).

Discussão

Os resultados obtidos na elaboração da curva ROC, para determinação do ponto de corte do nível da hemoglobina glicosilada, permite-nos concluir que o teste é dotado de bom poder discriminatório como indivíduos de risco da presença de anomalias cardíacas estruturais. Pois à medida em que a sensibilidade aumenta (diminuição do ponto de corte) não há perda na especificidade, até que altos níveis de sensibilidade sejam alcançados. Estes resultados estão de acordo com a experiência de vários autores1,14,15,17,18,20, com exceção de Shields et al.23. Entretanto, deve-se considerar que na pesquisa destes últimos autores, os dados foram analisados retrospectivamente, usando um banco de dados elaborado para finalidade diversa. Mesmo assim, com exceção da impossiblidade em caracterizar ponto de corte discriminatório para o nível da HbA1c, eles observaram adequada correlação entre níveis elevados de HbA1c e a presença de anomalias cardíacas estruturais.

Nossos resultados merecem considerações com respeito às características da amostra estudada. A inclusão de gestantes rotuladas como portadoras de DMG na pesquisa fundamentou-se no conceito de que, pelo menos parte dos casos de uma população assim caracterizada é, na verdade, portadora de diabetes do tipo II, no qual a intolerância à glicose não foi caracterizada antes da prenhez atual10. Isto ocorre especialmente quando estas mulheres têm mais de 30 anos e quando apresentam excesso de peso antes da gestação atual, fatores de risco presentes na nossa amostra. Reforça esta tese a ocorrência de anomalias cardíacas estruturais nesse grupo. Sendo o desequilíbrio metabólico no DMG de instalação tardia e por não atuar na fase da embriogênese, a incidência esperada de anomalias congênitas não deveria diferir do da população geral. Segundo Carr e Gabbe8, crianças de mães com DMG não apresentam risco aumentado para anomalias congênitas, a não ser quando existe intolerância à glicose prévia à gestação.

A ocorrência de anomalias estruturais em 9,09% dos casos do grupo com diabetes tipo II, que é similar àquela verificada em recente pesquisa de Towner et al.26 e a elevada sensibilidade e especificidade revelada pela HbA1c, justificam a indicação do emprego deste teste como auxiliar na orientação de mulheres portadoras de disglicemias e que estão com intenção de engravidar. Para estas, a prenhez deve ser postergada até que o nível da HbA1c esteja abaixo de 7,5%. Por outro lado, para mulheres que engravidam com níveis superiores a 7,5%, acreditamos que o teste serviria para orientar a realização precoce da ecocardiografia, já no primeiro trimestre, com uso de técnica transvaginal.

A inexistência de significância estatística entre as médias da glico-hemoglobina, nos casos de diabetes tipo II e DMG, demonstra que o teste não tem valor para discriminar a miocardiopatia hipertrófica, diagnosticada como anomalia cardíaca isolada. Já em publicação anterior, postulávamos que outros fatores, além da hiperglicemia materna, devem estar envolvidos na gênese dessa anomalia28. Já existem fortes elementos que sugerem a existência de alterações microvasculares antes do diagnóstico do estado hiperglicêmico, particularmente no diabetes do tipo II. É possível que essas alterações, ao induzirem produção de citocininas endoteliais, estejam implicadas no desencadeamento desse evento27.

Há inegáveis evidências de que o meticuloso controle materno do metabolismo dos hidratos de carbono e das gorduras, antes e durante a gestação de mulheres com diabetes mellitus, proporciona benefícios no porvir do concepto, não só pela redução na ocorrência das malformações congênitas, quanto pela redução das perdas fetais, complicações neonatais imediatas e, mais tardiamente, pela redução da obesidade e melhoria do desenvolvimento neuropsicológico infantil19. A falta de correlação entre os níveis da HbA1c e a ocorrência de MCPH, no nosso entendimento, está a referendar o emprego da ecocardiografia fetal detalhada em todas as gestantes com intolerância aos hidratos de carbono, bem como naquelas em que há fatores de risco para disglicemia. Os resultados obtidos neste estudo induzem-nos a postular que a ecocardiografia fetal, ao documentar conceptos com miocardiopatia hiertrófica como causa de anomalia isolada, possa se constituir em marcador para indivíduos que desenvolverão diabetes do tipo II em idade precoce, motivo de pesquisa em andamento.

SUMMARY

We analyze prospectively the existence of a relationship between the mother's glycemic control, in the first half of pregnancy, and the occurrence of abnormal fetal cardiac abnormalities, in pregnant women with diabetes mellitus. In 127 pregnant women, the level of glycosylated hemoglobin was determined on the first visit during prenatal care. Nine patients had type I diabetes, 77 type II and 41 gestational diabetes mellitus (GDM). All mothers were submitted to detailed fetal echocardiography, during the 28th ± 4.127 week of gestation. In 31 (24.4%) of the 127 fetuses cardiac anomalies were detected. In 10 (7.87%) an isolated cardiac anomaly was identified. Mean HbA1c in the group of pregnant women without cardiac anomalies (5.64%) was statistically different from the group with anomalies (10.14%) (p<0.0001). The receiver-operator characteristic, representing the balance between sensitivity (92.83%) and specificity (98.92%) in the diagnosis of structural cardiac abnormalities, showed a cut-off point at the 7.5% HbA1c level. In nine of ten fetuses with structural cardiac anomalies, the maternal level of HbA1c was higher than 7.5%. The difference between means of the groups with and without myocardial hypertrophy diagnosed as isolated anomaly (MCHP) was not statistically significant, when considering both type II diabetes and GDM subgroups. In conclusion, levels of HbA1c higher than 7.5% were associated with most cases of echocardiographycally diagnosed structural cardiac anomalies. On the other hand, this test was not useful to discriminate conceptus with MCHP.

KEY WORDS: Glysosylated hemoglobin A. Diabetes mellitus. Pregnancy complications. Fetus. Ultrasonography. Malformations.

Agradecimentos

Os co-autores Mila Pontremoli e Juliana N. Risch, participaram deste trabalho com o apoio do PIBIC-CNPq (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Pesquisa) e da FAPERGS (Fundação de Apoio a Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul).

Unidade de Cardiologia Fetal

Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul

Fundação Universitária de Cardiologia

Correspondência:

Ivo Behle - Unidade de Pesquisa

Av. Princesa Isabel, 395 - Santana - Porto Alegre

90.620-001 Fone: 217.3355 R.257 / 277 - Fax: 217.2035

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 1998
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