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Doença de Wilson e Gravidez: Relato de Caso

Pregnancy and Wilson's Disease: A Case Report

Resumos

A doença de Wilson (degeneração hepatolenticular) é distúrbio autossômico recessivo raro que usualmente ocorre entre a primeira e terceira décadas de vida. Caracteriza-se por depósito excessivo de cobre no fígado e cérebro e é fatal se não diagnosticada e tratada precocemente. Os autores descrevem um caso de gravidez e doença de Wilson, mostrando a evolução satisfatória de uma paciente que fez uso da D-penicilamina até a sétima semana de gestação, quando a suspendeu por conta própria, e após a vigésima semana gestacional. A mãe evoluiu sem sinais de descompensação clínica ou obstétrica. O recém-nascido não apresentou nenhuma intercorrência e encontrava-se bem no final do primeiro ano de vida.

Doença de Wilson; Complicações da gravidez; Doença metabólica; Degeneração hepatolenticular


Wilson's disease (hepatolenticular degeneration) is a rare autosomal recessive disorder that usually occurs between the first and third decades. The condition is characterized by excessive deposition of copper in the liver and brain. It is fatal if the diagnosis and treatment are not performed early in life. The authors describe one case of pregnancy and Wilson's disease, showing the good evolution of the patient, who used D-penicillamine until the seventh week of gestation, discontinuing thereafter until the 20th week of gestation. The mother evolved with no signs of clinic and obstetric problems. The newborn did not present any problem and was healthy in his first year of life.

Wilson's disease; Pregnancy complications; Metabolic disease; Hepatolenticular degeneration


Relato de Caso

Doença de Wilson e Gravidez. Relato de Caso

Pregnancy and Wilson's Disease. A Case Report

Ana Paula Brito Hortêncio, Carlos Augusto Alencar Júnior, José Milton de Castro Lima Daniela Maria Queiroz Medeiros Moreira, Joelma Oliveira Moreira

RESUMO

A doença de Wilson (degeneração hepatolenticular) é distúrbio autossômico recessivo raro que usualmente ocorre entre a primeira e terceira décadas de vida. Caracteriza-se por depósito excessivo de cobre no fígado e cérebro e é fatal se não diagnosticada e tratada precocemente. Os autores descrevem um caso de gravidez e doença de Wilson, mostrando a evolução satisfatória de uma paciente que fez uso da D-penicilamina até a sétima semana de gestação, quando a suspendeu por conta própria, e após a vigésima semana gestacional. A mãe evoluiu sem sinais de descompensação clínica ou obstétrica. O recém-nascido não apresentou nenhuma intercorrência e encontrava-se bem no final do primeiro ano de vida.

PALAVRAS-CHAVE: Doença de Wilson. Complicações da gravidez. Doença metabólica. Degeneração hepatolenticular.

Introdução

A doença de Wilson, também conhecida como degeneração hepatolenticular, é distúrbio genético do metabolismo do cobre, descrita como entidade clínica pela primeira vez por Wilson em 19121. Entretanto, só em 1940 a doença foi relacionada ao acúmulo de cobre no fígado e cérebro2.

Herdada em caráter autossômico recessivo, apresenta prevalência de 1 caso em cada 30.000 a 50.000 nascidos vivos. Sendo os pais homozigóticos, a chance de o filho nascer com a doença é de 25%. O defeito genético encontra-se localizado no braço longo do cromossomo 13, na região 13q14. O produto do gene é uma ATPase transportadora do cobre, já tendo sido descritas várias mutações3.

Não obstante o metal seja, indubitavelmente, o responsável pela doença, não há correlação entre a concentração do cobre hepático e o tipo e gravidade da lesão do órgão. Jovens doentes assintomáticos podem ter níveis de cobre hepático muito superiores àqueles observados em pacientes em que a doença já progrediu para cirrose e acometimento do sistema nervoso central4.

A transição da forma assintomática para o grave comprometimento hepático ou cerebral varia, sendo que o diagnóstico só pode ser efetuado se anormalidades bioquímicas ou o aparecimento de sintomas levarem à investigação e descoberta dos achados patognomônicos4. Após mobilização do cobre do fígado e sua deposição em outros órgãos, especialmente sistema nervoso central, córneas e rins, a síndrome completa poderá se desenvolver4.

Predomina em pessoas jovens, com 60 a 70% dos acometidos procurando cuidados médicos entre os 8 e 20 anos, sendo mais rara antes dos 3 e após os 40 anos4. As manifestações clínicas são decorrentes do acúmulo de cobre nos diversos tecidos, principalmente fígado, gânglios da base, córneas, rins e articulações2. Infelizmente, a maioria dos sintomas são inespecíficos, respondendo pela alta freqüência de diagnósticos efetuados tardiamente ou não-concretizados, especialmente em indivíduos sem história familiar. Muitos dos pacientes diagnosticados na forma assintomática apresentaram apenas uma transinemia inexplicada ou são irmãos ou parentes de pessoas com a doença clínica4.

O envolvimento hepático ocorre, em geral, antes dos 20 anos, ao passo que a forma neurológica tende a aparecer após os 20 anos, podendo existir superposição entre as duas formas da doença. As manifestações hepáticas podem se apresentar como hepatite crônica, cirrose e, mais raramente, hepatite fulminante. As alterações neurológicas são variáveis, predominando os sintomas extrapiramidais, tremores, distonia, disartria, alterações de humor, sintomas psiquiátricos e, se não tratada, diminuição progressiva da capacidade intelectual2.

É doença progressiva e fatal se não for diagnosticada e tratada precocemente. O diagnóstico baseia-se na presença do anel corneal de Kayser-Fleischer, na diminuição dos níveis séricos de ceruloplasmina (menor que 20 mg/dL em 96% dos pacientes) e aumento dos níveis plasmáticos e da eliminação urinária do cobre4. A biópsia hepática é essencial para o diagnóstico definitivo em pacientes assintomáticos ou com manifestações hepáticas. A concentração do cobre hepático superior a 250 mg/g permite o diagnóstico da doença se os achados histológicos são compatíveis.

Desde que Walshe5, em 1956, introduziu a D-penicilamina no seu tratamento, as pacientes em uso contínuo apresentam bom prognóstico. Quando a função hepática é preservada a patologia não interfere na capacidade reprodutiva, sendo a capacidade procriativa normal. A gravidez, em geral, é bem tolerada.

Os autores descrevem um caso de doença de Wilson e gravidez, discutem as implicações da doença sobre a gravidez, as controvérsias do uso das medicações utilizadas no tratamento da patologia durante a gestação e lactação e os resultados materno e perinatal numa paciente acompanhada nos Serviços de Gastroenterologia do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC-UFC) e de Medicina Materno-Fetal da Maternidade Escola Assis Chateaubriand da Universidade Federal do Ceará (SMMF-MEAC/UFC).

Relato do Caso

AMM, 17 anos, sexo feminino, estudante, branca, primigesta, casada, natural e procedente de Maranguape, Ceará. Aos onze anos, submeteu-se a rastreamento para doença hepática hereditária, sendo firmado o diagnóstico de doença de Wilson. Na ocasião, encontrava-se assintomática, embora no exame físico evidenciasse eritema palmar, aranhas vasculares e hepatomegalia. A dosagem da ceruloplasmina foi de 6 mg/dL (normal: 20 a 60 mg/dL). Submeteu-se à biópsia hepática, que revelou hepatite crônica fibrosante. Na história familiar, dois irmãos (13 e 15 anos) haviam falecido de doença hepática nos últimos 14 meses, antecedendo o seu diagnóstico. Os pais eram primos em primeiro grau. Os outros dois irmãos vivos não apresentavam alteração ao exame físico e a dosagem da ceruloplasmina era normal. Desde então, foi iniciado esquema com D-penicilamina, na dose de 250 até 750 mg/dia, tendo evoluído, desde então, de forma satisfatória, clínica e laboratorialmente. Encontrava-se aproximadamente na sétima semana gestacional quando, suspeitando estar grávida, suspendeu a medicação por conta própria. Reiniciou seu uso na vigésima semana gestacional, por orientação médica, com dose de 500 mg/dia, sem qualquer sinal de descompensação clínica.

Ao iniciar o pré-natal, realizou a primeira ultra-sonografia obstétrica, que evidenciou ser a idade gestacional de 18 semanas, sem anormalidades. Havia erro de 4 semanas a menos em relação à data da última menstruação. Nas ecografias realizadas posteriormente, com 22 e 32 semanas, observaram-se condições placentárias, volume de líquido amniótico e crescimento e anatomia fetal aparentemente normais. O exame dopplervelocimétrico, realizado com 36 semanas, foi normal. Não foram dosados os níveis séricos de ceruloplasmina e os exames laboratoriais gerais não apresentaram alterações durante toda a gravidez.

Na quadragésima semana a paciente foi admitida em trabalho de parto, evoluindo sem complicações para parto vaginal. O recém-nascido, do sexo feminino, recebeu Apgar de 1o minuto de 8, pesou 3.310 g, mediu 51 cm e teve Capurro somático estimado em 39 semanas, sendo considerado adequado para a idade gestacional. A puérpera e o recém-nascido receberam alta hospitalar, sem intercorrências, no segundo dia do pós-parto. A D-penicilamina foi substituída por sulfato de zinco (150 mg/dia). Após 1 ano de evolução, a mãe encontrava-se em bom estado e a criança sem qualquer alteração em seu crescimento e desenvolvimento.

Discussão

A gravidez em pacientes com doença de Wilson apresenta alguns dilemas que merecem ser discutidos e revisados para que possamos orientar melhor nossas pacientes.

Quando não há tratamento a gravidez é rara, sendo causa comum de amenorréia, infertilidade e abortos repetidos. Por outro lado, as pacientes com diagnóstico precoce e tratamento efetivo, preservando as funções hepáticas e neurológicas, apresentam uma vida saudável, podendo levar uma gravidez a termo sem maiores complicações5. A gestação também não interfere no curso natural da doença. Desta forma, pacientes bem tratadas, com evolução satisfatória, não têm impedimento específico para engravidarem5.

Um outro aspecto refere-se ao uso das drogas disponíveis na terapia da doença de Wilson durante a gravidez. No arsenal terapêutico temos os agentes quelantes do cobre, representados pela D-penicilamina e trientina, que aumentam a excreção urinária do cobre; e os agentes que agem inibindo a absorção do cobre em nível intestinal, sendo os mais utilizados o acetato e o sulfato de zinco6. Embora vários trabalhos relatem a segurança dessas drogas durante a gravidez, existem controvérsias. Mesmo assim, é importante a manutenção da terapia quelante ou com o acetato ou sulfato de zinco, tendo em vista que a suspensão da medicação está associada a maior número de partos prematuros e risco de complicação da doença hepática e neurológica5.

A experiência maior é com a D-penicilamina. Briggs et al.7 classificam esta droga na classe de risco D, ou seja, que há evidência positiva de risco para o feto, mas que seu uso durante a gravidez pode ser aceito para aquelas pacientes em que a doença seja fatal, se não tratada, como é o caso da doença de Wilson. Na gravidez, quando indicada para o tratamento da artrite reumatóide, o fármaco deve ser suspenso8,9.

Existem descritos mais de 100 casos nos quais se empregou a medicação durante a gestação. A maioria dos recém-nascidos foram saudáveis, com bom desenvolvimento físico e intelectual. Algumas anormalidades têm sido referidas em pequeno número de casos: cútis laxa, hérnias inguinais, hiperflexão de articulações, provavelmente associadas com o efeito da droga no tecido conjuntivo7.

Para as pacientes que serão submetidas à cesárea, orienta-se utilizar dose menor da D-penicilamina, 250 a 500 mg, quando a dose usual é de 750 a 1.500 mg/dia, visto que a droga altera a formação do colágeno, dificultando a cicatrização da ferida cirúrgica7. Embora seja possível, não há relatos evidenciando diminuição da cicatrização nessas pacientes.

A trientina é classificado como risco C e seria uma opção nos casos com envolvimento neurológico agudo e, principalmente, quando há intolerância à D-penicilamina. Apresenta menos efeitos colaterais, porém não se encontra disponível no Brasil. Embora pareça segura na gestação, os relatos de seu uso são escassos7.

Walshe5 descreveu 7 casos de pacientes com doença de Wilson tratadas com trientina, considerando-a droga segura, apesar de ter sido descrito um caso de criança com isocromossomo X. Seu uso, no momento, parece não ser aconselhável durante a gestação, já que existem drogas menos tóxicas, como o próprio sulfato de zinco.

O acetato de zinco foi liberado pelo FDA, em 1997, para o tratamento da doença de Wilson, inclusive durante a gravidez, demonstrando ser seguro e com poucos efeitos colaterais, sendo classificado como risco A6. Porém, há poucos relatos utilizando o sulfato ou acetato de zinco nessas pacientes. É possível que se torne a droga de escolha para tratamento das gestantes com doença de Wilson, na dose de 50 mg de acetato de zinco ou 250 mg de sulfato de zinco, três vezes ao dia6.

No presente caso, apesar da suspensão do tratamento entre a 7a e 20a semanas, a paciente evoluiu bem, sem apresentar intercorrências. Não houve repercussões cicatriciais na episiorrafia.

Nenhuma das alterações fetais descritas na literatura, supostamente provocadas pela utilização da D-penicilamina, foi observada. O recém-nascido não teve malformações diagnosticadas ao nascimento, recebeu alta sem complicações e continuava bem no final do primeiro ano de vida.

SUMMARY

Wilson's disease (hepatolenticular degeneration) is a rare autosomal recessive disorder that usually occurs between the first and third decades. The condition is characterized by excessive deposition of copper in the liver and brain. It is fatal if the diagnosis and treatment are not performed early in life. The authors describe one case of pregnancy and Wilson's disease, showing the good evolution of the patient, who used D-penicillamine until the seventh week of gestation, discontinuing thereafter until the 20th week of gestation. The mother evolved with no signs of clinic and obstetric problems. The newborn did not present any problem and was healthy in his first year of life.

KEY WORDS: Wilson's disease. Pregnancy complications. Metabolic disease. Hepatolenticular degeneration.

Referências

Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC) ¾ Serviço de Gastroenterologia.

Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC) ¾ Serviço de Medicina Materno-Fetal.

Universidade Federal do Ceará (UFC).

Correspondência:

Carlos Augusto Alencar Júnior

Rua Vicente Linhares, 1551/Apto. 1000 ¾ Aldeota

60135-270 ¾ Fortaleza ¾ Ceará

Fone: (85) 258-3110/258-1383 Celular: 998-16112

  • 1. Wilson SAK. Progressive lenticular degeneration: a familial nervous disease associated with cirrhosis of the liver. Brain 1912; 34:295.
  • 2. Saas-Kostsak A, Bearn AG. Wilson's disease. In: Stanbury JB, Wyngaarden JB, Fredickson DS, editors. The Metabolic Basis of Inherited Disease. 4th ed. New York: McGraw-Hill; 1978. p.1098.
  • 3. Tanzi RE, Petrukhin K, Chernov I, et al. The Wilson's disease gene is a copper transporting ATPase with homology to the Menkes disease gene. Nat Genet 1993; 5:344-50.
  • 4. Sternlieb I. Wilson's disease. Clin Liver Dis 2000; 4:229-39.
  • 5. Walshe JM. Pregnancy in Wilson's disease. Q J Med 1977; 46:73-83.
  • 6. Anderson LA, Hakojarvi SL, Boudreaux SK. Zinc acetate treatment in Wilson's disease. Ann Pharmacother 1998; 32:78-87.
  • 7. Briggs GG, Freeman RK, Yaffe SJ. Drugs in pregnancy and lactation. 5th ed. Baltimore: Williams & Wilkins; 1998. p.824-6.
  • 8. Little BB. Immunosuppressant therapy during gestation. Semin Perinatol 1997; 21:143-8.
  • 9. Ostensen M, Ramsey-Goldman R. Treatment of inflammatory rheumatic disorders in pregnancy: what are the safest treatment options? Drug Saf 1998; 19:389-410.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    Jun 2001
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