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Rotura Hepática na Gravidez: Relato de caso

Hepatic Rupture in Pregnancy: A Case Report

Resumos

Rotura hepática é uma das mais sérias e catastróficas complicações da gravidez; sua incidência varia de 1:45000 a 1:225000 partos. É usualmente associada a pré-eclâmpsia. A mortalidade materna é de cerca de 60 a 86% e a fetal pode atingir de 56 a 75%. O diagnóstico é difícil, mas freqüentemente confirma-se pela presença de sangramento maciço e choque hipovolêmico. Relatamos o caso de uma paciente na 32ª semana de gravidez complicada por hemorragia hepática espontânea associada a pré-eclâmpsia, que foi submetida a tratamento cirúrgico com bom resultado.

Rotura hepática; Complicações da gravidez; Hipertensão arterial


Hepatic rupture is one of the most serious and catastrophic complications of pregnancy, with an estimated incidence of 1:45000 to 1:225000 deliveries. It is usually associated with preeclampsia. Maternal mortality is about 60-86% and fetal mortality can reach 56-75%. Diagnosis is difficult, but commonly relies on the presence of severe bleeding and hypovolemic shock. We present the case of a patient with a 32-week gestation complicated by spontaneous preeclampsia-associated hepatic hemorrhage, which was submitted to surgical treatment with good outcome.

Hepatic rupture; Complications of pregnancy; Arterial hypertension


Relato de caso

Rotura Hepática na Gravidez – Relato de caso

Hepatic Rupture in Pregnancy – A Case Report

Fernando Mangieri Sobrinho, Ricardo Mendes Alves Pereira, Inácio Teruo Inoue, Christian Day Costa de Lima Preti, Christiano Sambatti Pieralisi, Gustavo Eduardo Vitorino, Mirian Aparecida Gobbi

RESUMO

Rotura hepática é uma das mais sérias e catastróficas complicações da gravidez; sua incidência varia de 1:45000 a 1:225000 partos. É usualmente associada a pré-eclâmpsia. A mortalidade materna é de cerca de 60 a 86% e a fetal pode atingir de 56 a 75%. O diagnóstico é difícil, mas freqüentemente confirma-se pela presença de sangramento maciço e choque hipovolêmico. Relatamos o caso de uma paciente na 32ª semana de gravidez complicada por hemorragia hepática espontânea associada a pré-eclâmpsia, que foi submetida a tratamento cirúrgico com bom resultado.

PALAVRAS-CHAVE: Rotura hepática. Complicações da gravidez. Hipertensão arterial.

Introdução

A hemorragia com hematoma subcapsular e hepático e com rotura hepática são as mais temidas complicações do acometimento hepático relacionado à doença hipertensiva específica da gravidez. A incidência de rotura hepática complicando a gravidez varia de 1:45.000 a 1:225.000 partos1, estando a maioria absoluta dos casos associados com a pré-eclâmpsia e eclâmpsia. O desenvolvimento do hematoma hepático geralmente ocorre na superfície diafragmática do lobo hepático direito e o sintoma mais comum é a dor no quadrante superior direito do abdome2-4. A mortalidade materna é tão alta quanto 60 a 86%1, e a mortalidade fetal pode variar de 56 a 75%5. Relatamos um caso desta catastrófica complicação da gravidez, cujo diagnóstico e manejo em tempo hábil são essenciais para garantir melhor sobrevida materno-fetal.

Relato de Caso

LSP, 23 anos, branca, apresentava de história obstétrica pregressa na primeira gravidez parto cesárea no sétimo mês por pré-eclâmpsia grave e, na segunda gravidez, parto normal a termo. Deu entrada no Pronto Socorro Obstétrico do Hospital Universitário em 19/9/1999, com gravidez de 29 semanas e 6 dias pela data da última menstruação (DUM), com elevação da pressão arterial (160/110 mmHg). Estava assintomática e apresentava altura uterina de 27 cm, discreto edema de membros inferiores e o dipsticks (proteinúria) era negativo. Foi internada para investigação diagnóstica, permanecendo no hospital por quatro dias. Foi diagnosticada pré-eclâmpsia leve (proteinúria: 0,380 g/24 h em 20/9/99). Foi medicada com metildopa 750 mg/d, com controle satisfatório dos níveis pressóricos, recebendo alta em 22/09/99 e orientação para acompanhamento ambulatorial.

No primeiro retorno ambulatorial em 29/9/1999 apresentava controle pressórico adequado (PA sistólica entre 120-140 mmHg e PA diastólica entre 80-90 mmHg) e estava assintomática. Compareceu ao retorno programado em 6/10/99 com 32 semanas e 2 dias (DUM)/31 semanas e 2 dias (ultra-sonografia com 29 semanas), com queixa de epigastralgia. Estava normotensa (PA = 130 x 80 mmHg) e com altura uterina de 28 cm. Os exames laboratoriais apresentavam: ácido úrico 5,5 mg/dL, creatinina 0,70 mg/dL, proteinúria 1,920 g/24h e cardiotocografia (CTG) com feto reativo.

Foi internada e à admissão apresentou crise convulsiva tônico-clônica generalizada, recuperando a consciência em alguns minutos, queixando-se de dor importante no andar superior do abdome.

Ao exame físico apresentava pressão arterial de 60 x 40 mmHg, freqüência cardíaca de 100 bpm e batimentos cárdio-fetais de 52 bpm. Foi administrado sulfato de magnésio EV, cristalóide, furosemida, efedrina, ranitidina e hidróxido de alumínio.

Com a reanimação fetal intra-útero (correção da hipotensão materna e colocação da paciente em decúbito lateral esquerdo) houve melhora da freqüência cardíaca para 130 bpm e surgimento de variabilidade à CTG. A paciente persistia com queixa de dor no hipocôndrio direito e à descompressão brusca. O exame ultra-sonográfico do abdome mostrou líquido livre na cavidade, com imagem sugestiva de coleção intra-hepática. Foi então indicada cesárea e laparotomia exploradora.

À cesárea foi visualizada grande quantidade de sangue não coagulado na cavidade. Foi retirado RN em más condições de vitalidade. O inventário da cavidade abdominal demonstrou grande quantidade de sangue livre e área de rotura da cápsula hepática de aproximadamente 4,0 x 3,0 cm na borda inferior do lobo direito. Realizada lavagem da cavidade peritoneal e colocação de compressas para tamponamento da área de rotura. Foi encaminhada à UTI com instabilidade hemodinâmica, tendo recebido transfusão de fluídos e hemoderivados. No dia seguinte (07/10/99) foi realizada arteriografia hepática, que evidenciou trombose da artéria hepática comum. Em 08/10/99 foi realizada nova laparotomia (second look), na qual foi observada ausência de sangramento ativo e retiradas as compressas, quando se evidenciou grande hematoma e coágulo sobre a superfície hepática do lobo direito e pequeno sangramento na borda hepática no segmento IV–V, controlado com eletrocoagulação e gelfoam. Em 10/10/99 (quinto dia), o RN foi a óbito. A paciente evoluiu com febre e derrame pleural em 14/10/99, com radiografia de tórax demonstrando velamento de dois terços inferiores do hemitórax direito, sendo então diagnosticada pneumonia. Foi introduzida antibioticoterapia e realizada drenagem torácica. Em 17/10/99 evoluiu com melhora do quadro, recebendo alta da UTI. Em 02/11/99 (vigésimo oitavo dia) recebeu alta hospitalar com anti-hipertensivos e orientação para acompanhamento ambulatorial.

Discussão

A rotura hepática é uma entidade das mais sérias e catastróficas que pode complicar uma gravidez, seja por sua morbidade ou pela dificuldade diagnóstica. Foi descrita pela primeira vez por Abercrombie6, sendo que há somente cerca de 100 casos descritos na literatura mundial, estando a maioria associada à eclâmpsia7.

A incidência de rotura e hemorragia hepática varia de 1:45000 a 1:225000 partos1, sendo que a mortalidade materna varia de 60 a 86%1 e a fetal em torno de 56 a 75%5.

Em relação à literatura revista no período de 1960 a 19998, constatou-se que houve associação entre hemorragia hepática e pré-eclâmpsia em 98% dos casos, e em outras referências4,9 em 75%.

Comumente o lobo direito do fígado é o mais afetado2, ocorrendo hemorragia espontânea secundária ao infarto do parênquima em pacientes com pré-eclâmpsia grave3.

Rademaker4 propôs uma cadeia de eventos que culminariam na rotura hepática: infarto hepático, acarretando neovascularização do parênquima hepático. Esta cicatrização predisporia à rotura durante episódios de hipertensão, levando à hemorragia intrahepática. Esta poderia coalescer e formar um hematoma subcapsular, sendo que ao menor trauma ou expansão contínua do hematoma acarretaria sangramento intra-peritoneal, choque e óbito por exsanguinação. Achados patológicos de oclusão periportal microvascular com subseqüente necrose hepática, hemorragia, depósitos de fibrina nos sinusóides hepáticos e graus variados de necrose nas pacientes pré-eclâmpticas vêm dar suporte ao proposto acima5.

O diagnóstico adequado deste quadro é difícil antes de o sangramento maciço e o choque se estabelecerem, sendo esta dificuldade responsável por alta taxa de mortalidade materna e perinatal. Têm-se utilizado alguns métodos diagnósticos para se tentar diagnosticar esta complicação: identificação de alguns sinais e sintomas, lavado peritoneal, cintilografia hepática, USG, tomografia computadorizada e angiografia hepática8.

Na literatura revisada houve concordância quanto aos sinais e sintomas mais comumente vistos na hemorragia hepática: dor e desconforto epigástrico (69,5%), hipertensão arterial (65,6%), choque (56%), náuseas e vômitos (24,8%), dor escapular (20,5%) e cefaléia (10,6%)8.

Vários autores3,4 têm descrito um provável perfil da paciente com risco para apresentar esta rara complicação: multípara, com idade entre 20 e 30 anos, no terceiro trimestre de gravidez, com início agudo de epigastralgia, náuseas e vômitos. Entre os sinais e sintomas podem ser incluídos cefaléia, convulsões eclâmpticas, leve a grave hipertensão e dor escapular. Essas pacientes podem referir epigastralgia com vários dias de duração associada a leve hipertensão nos meses precedentes. Este quadro evolui para epigastralgia severa sem remissão, com poucas horas de duração, que então culmina em súbito e maciço colapso circulatório4.

Na ausência de choque hipovolêmico, o diagnóstico de rotura hepática em pacientes pré-eclâmpticas torna-se ainda mais difícil. Em revisão de 89 encontraram-se apenas seis casos sem repercussões hemodinâmicas e corretamente diagnosticados no pré-operatório5.

Considerando o tratamento da rotura hepática, há dois tipos de enfoques: tratamento cirúrgico, seja único ou em associação com drenagem, ligadura da artéria hepática, ressecção da área hepática afetada, ou tratamento conservador, que consiste em medidas de suporte intensivos, como infusão hídrica, e embolização arterial seletiva direcionada por arteriografia.

Em relação ao tratamento, nos estudos revistos a laparotomia foi o método mais freqüentemente utilizado (33,3%) e que apresentou maior taxa de sobrevida materna. Provavelmente essas pacientes se apresentavam com sinais de hemorragia e choque, e sofreram laparotomia por suspeita de descolamento prematuro de placenta, rotura uterina ou outro distúrbio associado ao choque, podendo-se atribuir a alta taxa de sobrevida materna ao manejo cirúrgico mais agressivo8.

Antes de 1970, a mortalidade materna associada à rotura hepática chegava a 100% nas pacientes sem tratamento cirúrgico10, no início dos anos 80 declinou para 77% e nos anos 90, para 30%3. O uso da técnica de embolização arterial seletiva guiada por raios X tem ganhado campo e está associado a menor taxa de mortalidade materna (10%). No estudo revisto o único óbito ocorreu por dificuldade técnica, no entanto 4 das 10 embolizações foram efetuadas por laparotomia8.

Entre os tratamentos cirúrgicos, o tamponamento da superfície sangrante com a drenagem do espaço peri-hepático esteve associado a taxa de mortalidade de 20%. Outros tipos de tratamento seriam laparotomia com ressecção hepática ou ligadura da artéria hepática8.

Houve concordância na literatura revista quanto ao tratamento pela embolização, com ou sem laparotomia, que apresentou melhor prognóstico em relação aos outros tipos de tratamento. A explicação para a melhor taxa de sobrevida foi que com a embolização ocorreria diminuição da fragilidade tecidual e diminuição do trauma iatrogênico no tecido hepático, quando comparada à ligadura da artéria hepática, segmentectomia hepática ou lobectomia. Com terapias mais agressivas o fígado, já comprometido, estaria sujeito a trauma adicional e provavelmente diminuição da sobrevida materna.

Com essas informações em mente, parece razoável assumir que a embolização das artérias hepáticas seletiva seria o tratamento mais eficaz nessas pacientes, pois o tecido já comprometido no local da hemorragia, com infarto e necrose do parênquima, não resistiria a um trauma iatrogênico por manipulação cirúrgica, sendo mais plausível cessar a hemorragia por meio de embolização apenas do suprimento arterial acima do sítio de hemorragia, evitando traumas em áreas não afetadas8,10.

A rotura hepática como complicação da pré-eclâmpsia é entidade grave, com grande morbimortalidade materno-fetal. Devido à raridade desta entidade não se encontram na literatura estudos prospectivos ótimos que ditem o diagnóstico e o tratamento ideal para essas pacientes, baseando-se apenas na análise de relatos de experiência, fazendo com que haja necessidade de que todo médico envolvido em cuidados de saúde materno-fetal tenha conhecimento desta situação, para que possa diagnosticá-la em tempo hábil e conseqüentemente possa garantir melhor sobrevida materno-fetal.

ABSTRACT

Hepatic rupture is one of the most serious and catastrophic complications of pregnancy, with an estimated incidence of 1:45000 to 1:225000 deliveries. It is usually associated with preeclampsia. Maternal mortality is about 60-86% and fetal mortality can reach 56-75%. Diagnosis is difficult, but commonly relies on the presence of severe bleeding and hypovolemic shock. We present the case of a patient with a 32-week gestation complicated by spontaneous preeclampsia-associated hepatic hemorrhage, which was submitted to surgical treatment with good outcome.

KEY WORDS: Hepatic rupture. Complications of pregnancy. Arterial hypertension.

Recebido em: 02/07/01

Aceito com modificações em: 01/03/02

Universidade Estadual de Londrina, Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná (HURNPr.), Departamento MISC

Correspondência:

Fernando Mangieri Sobrinho

Rua Santos, 488, Apto. 84 – Centro

86020-020 – Londrina – PR

e-mail: Mangieri@sercontel.com.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2002
  • Data do Fascículo
    Mar 2002

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2001
  • Aceito
    01 Mar 2002
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