Acessibilidade / Reportar erro

Índices veno-arteriais para predição da acidemia fetal ao nascimento em gestações com insuficiência placentária

Venous-arterial indices in the prediction of acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency

Resumos

OBJETIVOS: investigar a possibilidade da predição da acidemia no nascimento, em gestações com insuficiência placentária, com o emprego de índices veno-arteriais avaliados pela dopplervelocimetria, definindo seus pontos de corte para esta predição. MÉTODOS: trata-se de estudo transversal prospectivo no qual foram incluídas 47 gestações únicas com insuficiência placentária (presença de índice de resistência e índice de pulsatilidade (IP) na artéria umbilical (AU) superiores ao percentil 95), após a 26ª semana. Foram excluídos os casos com fetos apresentando anomalias estruturais ou cromossômicas. O Doppler foi realizado a menos de 24 horas do parto. Amostra de sangue arterial umbilical para análise da acidemia foi coletada imediatamente após o nascimento. Diagnosticou-se acidemia quando o pH encontrava-se abaixo de 7,20 na ausência de trabalho de parto e abaixo de 7,15 quando parto vaginal. Foram consideradas patológicas as acidemias metabólicas ou mistas. Construiu-se curva ROC para os índices veno-arteriais: IP para veias do ducto venoso (IPV DV)/IP/AU e IPV DV/IP artéria cerebral média (ACM). Determinaram-se os pontos de corte e posteriormente foram calculados a sensibilidade, especificidade, VPP, VPN e acurácia. RESULTADOS: o IPV DV/IP AU não mostrou ser bom parâmetro para a predição da acidemia. A análise do IPV DV/IP ACM mostrou uma área sob a curva ROC de 0,785 com p = 0,004, e, para o ponto de corte de 0,582, encontraram-se sensibilidade de 66,7%, especificidade de 77,1% e acurácia de 74,5%. CONCLUSÕES: o IPV DV/IP ACM mostrou-se adequado na predição da acidemia no nascimento em gestações com insuficiência placentária. O ponto de corte para esse índice que demonstrou melhores valores de predição foi 0,582.

Complicações da gravidez; Ducto venoso; Acidemia no nascimento; Insuficiência placentária


OBJECTIVE: to investigate whether it is possible to predict acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency using venous-arterial indices: pulsatility index for vein (PIV) of the ductus venosus (DV) over PI of the middle cerebral artery (MCA) and PIV of the DV over PI of the umbilical artery, and establish cut-off values for this prediction. PATIENTS AND METHODS: this was a prospective cross-sectional study involving forty-seven patients with placental insufficiency (umbilical artery resistance and pulsatility indices above the 95th percentile for gestational age) who were submitted to Dopplervelocimetry in the last 24 hours before delivery. All pregnancies were singleton, over 26 weeks of age and without structural or chromosome anomalies. Arterial cord blood was obtained for gasometry immediately after birth. Acidemia was defined as umbilical arterial pH < 7.20 in the absence of uterine contractions and pH < 7.15 in the presence of contractions. Metabolic or mixed acidemia at birth were considered pathological. A ROC curve was calculated for the venous-arterial indices: PIV DV/PI umbilical artery (UA) and PIV DV/PI MCA. A cut-off value was established and sensitivity, specificity, accuracy, positive and negative predictive values and positive and negative likelihood ratios were calculated. RESULTS: The DV/UA PI index was not a good predictor of acidemia at birth. The DV/MCA PI index was related to acidemia at birth (area under the curve 0,785, p = 0,004). The cut-off value was: 0,582, sensitivity 66,7%, specificity 77,1 and accuracy 74,5%. CONCLUSION: the PIV DV/PI MCA ratio is adequate for predicting acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency. The cut-off value was: 0,582.

Dopplervelocimetry; Ductus venosus; Acidemia at birth; Placental insufficiency


TRABALHOS ORIGINAIS

Índices veno-arteriais para predição da acidemia fetal ao nascimento em gestações com insuficiência placentária

Venous-arterial indices in the prediction of acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency

Francisco Herlânio Costa CarvalhoI, II; Antonio Fernandes MoronI; Rosiane MattarI; Carlos Geraldo Viana MurtaI; Renato Martins SantanaI; Maria Regina TorloniI; Luiz Kulay JuniorI

IUniversidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina

IIMaternidade – Escola Assis Chateaubriand – Universidade Federal do Ceará

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Francisco Herlânio Costa Carvalho Rua Osvaldo Cruz 2582, apto. 202 Bairro Dionísio Torres – 60125-151 – Fortaleza – CE E-mail: herlaniocosta@uol.com.br

RESUMO

OBJETIVOS: investigar a possibilidade da predição da acidemia no nascimento, em gestações com insuficiência placentária, com o emprego de índices veno-arteriais avaliados pela dopplervelocimetria, definindo seus pontos de corte para esta predição.

MÉTODOS: trata-se de estudo transversal prospectivo no qual foram incluídas 47 gestações únicas com insuficiência placentária (presença de índice de resistência e índice de pulsatilidade (IP) na artéria umbilical (AU) superiores ao percentil 95), após a 26ª semana. Foram excluídos os casos com fetos apresentando anomalias estruturais ou cromossômicas. O Doppler foi realizado a menos de 24 horas do parto. Amostra de sangue arterial umbilical para análise da acidemia foi coletada imediatamente após o nascimento. Diagnosticou-se acidemia quando o pH encontrava-se abaixo de 7,20 na ausência de trabalho de parto e abaixo de 7,15 quando parto vaginal. Foram consideradas patológicas as acidemias metabólicas ou mistas. Construiu-se curva ROC para os índices veno-arteriais: IP para veias do ducto venoso (IPV DV)/IP/AU e IPV DV/IP artéria cerebral média (ACM). Determinaram-se os pontos de corte e posteriormente foram calculados a sensibilidade, especificidade, VPP, VPN e acurácia.

RESULTADOS: o IPV DV/IP AU não mostrou ser bom parâmetro para a predição da acidemia. A análise do IPV DV/IP ACM mostrou uma área sob a curva ROC de 0,785 com p = 0,004, e, para o ponto de corte de 0,582, encontraram-se sensibilidade de 66,7%, especificidade de 77,1% e acurácia de 74,5%.

CONCLUSÕES: o IPV DV/IP ACM mostrou-se adequado na predição da acidemia no nascimento em gestações com insuficiência placentária. O ponto de corte para esse índice que demonstrou melhores valores de predição foi 0,582.

Palavras-chave: Complicações da gravidez.. Ducto venoso. Acidemia no nascimento. Insuficiência placentária.

ABSTRACT

OBJECTIVE: to investigate whether it is possible to predict acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency using venous-arterial indices: pulsatility index for vein (PIV) of the ductus venosus (DV) over PI of the middle cerebral artery (MCA) and PIV of the DV over PI of the umbilical artery, and establish cut-off values for this prediction.

PATIENTS AND METHODS: this was a prospective cross-sectional study involving forty-seven patients with placental insufficiency (umbilical artery resistance and pulsatility indices above the 95th percentile for gestational age) who were submitted to Dopplervelocimetry in the last 24 hours before delivery. All pregnancies were singleton, over 26 weeks of age and without structural or chromosome anomalies. Arterial cord blood was obtained for gasometry immediately after birth. Acidemia was defined as umbilical arterial pH < 7.20 in the absence of uterine contractions and pH < 7.15 in the presence of contractions. Metabolic or mixed acidemia at birth were considered pathological. A ROC curve was calculated for the venous-arterial indices: PIV DV/PI umbilical artery (UA) and PIV DV/PI MCA. A cut-off value was established and sensitivity, specificity, accuracy, positive and negative predictive values and positive and negative likelihood ratios were calculated.

RESULTS: The DV/UA PI index was not a good predictor of acidemia at birth. The DV/MCA PI index was related to acidemia at birth (area under the curve 0,785, p = 0,004). The cut-off value was: 0,582, sensitivity 66,7%, specificity 77,1 and accuracy 74,5%.

CONCLUSION: the PIV DV/PI MCA ratio is adequate for predicting acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency. The cut-off value was: 0,582.

Keywords: Dopplervelocimetry. Ductus venosus. Acidemia at birth. Placental insufficiency.

Introdução

As alterações hemodinâmicas são desencadeadas pelo estímulo dos quimiorreceptores quando o feto é exposto a hipoxemia1. O mecanismo de adaptação fetal visa proteger os órgãos considerados nobres, cujas funções devem ser preservadas para a manutenção das suas atividades vitais. Maior fluxo de sangue é destinado ao sistema nervoso central, miocárdio e glândulas adrenais. Esse privilégio ocorre com detrimento dos demais órgãos, nos quais ocorre vasoconstrição (fenômeno denominado centralização da circulação fetal)2.

Em situações de grave comprometimento placentário, os mecanismos compensatórios alcançam seus limites e a oxigenação do miocárdio torna-se insuficiente para proporcionar adequada contratilidade e efetiva ejeção do sangue. A queda no débito cardíaco é atribuída à miocardiopatia hipoxêmica com subseqüente disfunção ventricular3.

A descompensação hemodinâmica é clinicamente reconhecida pelo padrão anormal da dopplervelocimetria do território venoso. Com a redução no débito cardíaco, a pressão venosa central se eleva, causando, durante a sístole atrial, aumento do fluxo reverso na veia cava inferior (VCI) e fluxo zero ou reverso no ducto venoso (DV). A progressão dos padrões de fluxos anormais nas veias precordiais reflete, presumivelmente, estágios progressivos da disfunção miocárdica e sua correlação com a gravidade da acidemia4.

A transição entre a adaptação e a descompensação, devido à hipoxemia, é difícil de ser identificada acuradamente. Não existe, na atualidade, intervenção terapêutica efetiva capaz de reverter o curso progressivo da insuficiência placentária, exceto a ultimação da gestação. Otimizar a assistência e decidir o momento da intervenção é complexo, pois requer a comparação dos riscos da prematuridade contra aqueles da permanência intra-uterina: morte e lesão de múltiplos órgãos devido à inadequada perfusão tecidual5. Uma conduta razoável é permitir a manutenção da gestação até o ponto anterior à lesão fetal, portanto minimizando tanto os riscos da prematuridade como os da própria lesão orgânica. A questão clínica é saber que ponto seria esse e como o seguimento poderia ser realizado.

Há evidências crescentes de que o Doppler pode ter papel central nas decisões perinatais, avaliando o risco de lesões teciduais ou morte intra-uterina comparado aos riscos da prematuridade em fetos comprometidos6,7.

Nos dois últimos anos, surgiram pesquisas indicando tendência em analisar a relação veno-arterial com a elaboração de índices preditivos. Tchirikov et al.8 descreveram o índice venoso-arterial, que é calculado obtendo-se o volume do fluxo sangüíneo na veia umbilical e dividindo-o pelo índice de pulsatilidade (IP) da artéria umbilical (AU). Na predição do comprometimento neonatal, os autores encontraram ponto de corte de 100 mL/min/kg com sensibilidade de 85% e taxa de falso-positivo de 15%. Baschat9, objetivando analisar a relação entre o Doppler venoso pré-cordial e a resistência placentária, descreveu índices adquiridos a partir da relação do IP da AU com o DV e a VCI. No seguimento de gestações normais observa-se que o índice obtido pela divisão do IP da artéria umbilical pelo índice de pulsatiliade para veias (IPV) do DV é constante durante toda a gravidez. Os índices obtidos pela divisão do IP da artéria umbilical pela relação S/A ou (S A)/S do DV diminuem ao longo da gravidez O autor enfatiza a importância desses índices serem testados em situações de elevada resistência placentária.

O objetivo do presente estudo é investigar a probabilidade da predição da acidemia ao nascimento por meio da análise das relações veno-arteriais adquiridas dividindo o IP do DV pelo IP da AU e pelo IP da artéria cerebral média (ACM) e definir o ponto de corte nessa determinação, em gestações com insuficiência placentária.

Pacientes e Métodos

Trata-se de estudo transversal prospectivo com análise dopplervelocimétrica da AU, ACM e do DV em gestações com insuficiência placentária. A coleta de dados foi realizada entre 1º de março de 2001 e 31 de outubro de 2003.

A pesquisa foi executada respeitando os preceitos da Declaração de Helsinque e segue os termos preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde (portaria 196/1996). Todas as pacientes foram informadas sobre os objetivos, os exames a serem realizados e sua segurança, e, após esclarecimento das dúvidas, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O protocolo de estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa de ambas as instituições (Hospital São Paulo – UNIFESP e Maternidade-Escola Assis Chateaubriand Universidade Federal do Ceará).

O estudo inclui 47 pacientes com diagnóstico de insuficiência placentária (presença de índice de resistência e IP na AU acima do percentil 95 para a idade gestacional estimada, calculados pelas tabelas de Arduini e Rizzo, 199010), persistência de incisura protodiastólica em ambas as artérias uterinas, gestações únicas, idade gestacional >26 semanas, ausência de anomalias estruturais ou cromossômicas no feto ou recém-nascido (RN); último exame de Doppler realizado a menos de 24 horas do parto, RN vivo, gasometria realizada no cordão umbilical no momento do parto e parto realizado em uma das duas instituições incluídas no estudo. Foram excluídas as gestantes com diagnóstico de descolamento prematuro de placenta antes ou durante o parto, anestesia geral quando parto abdominal ou que se recusaram a prosseguir no estudo.

Quinze pacientes foram selecionadas no setor de Patologia Obstétrica do Hospital São Paulo e 32 na Maternidade-Escola Assis Chateaubriand.

A idade gestacional foi estimada pela data da última menstruação, desde que conhecida e confiável, e confirmada por exame ecográfico realizado antes da 20ª semana. Pacientes com data da última menstruação desconhecida ou pouco confiável foram admitidas no estudo quando havia a informação de exame ecográfico precoce. Nesse caso, a idade gestacional foi corrigida pela ultra-sonografia.

Treze pacientes não apresentavam doenças associadas à insuficiência placentária. As doenças associadas das outras 34 pacientes foram: 17 doenças hipertensivas específicas da gestação (DHEG) na sua forma pura (destas, uma apresentou eclâmpsia e a outra, síndrome HELLP), dez apresentavam hipertensão arterial crônica (duas delas evoluíram com DHEG superajuntada), duas portadoras da síndrome do anticorpo antifosfolípide, duas do vírus HIV, uma diabética insulino-independente, uma cardiopatia reumática e uma portadora de carcinoma mamário que realizou quimioterapia durante a gestação.

A média de idade da população foi de 28,9 anos (variando de 16 a 44 anos). A maioria era multípara (28 pacientes - 60,6%).

A idade gestacional média no momento do parto foi de 32,9 semanas (variando de 26 a 40 semanas). A gestação foi resolvida pela cesárea em 42 pacientes (89,4%) e houve cinco partos vaginais (10,6%). Os RN pesaram, em média, 1.581 g (variando de 500 a 2.730 g). Quanto à adequação do peso à idade gestacional, 42 RN foram classificados como PIG (89,4%) e 5 como AIG (10,6%).

Trinta e dois RN (68,1%) apresentaram Apgar no primeiro minuto maior ou igual a 7 e 15 deles menor que 7. No quinto minuto, 44 dos RN (93,6%) mostravam Apgar maior ou igual a 7.

O tamanho da amostra foi calculado com o auxílio do programa Epi-Info. Fixando erro alfa de 5% (confiança de 95%), erro beta de 10% (poder do estudo de 90%) e considerando-se freqüência esperada de acidemia no cordão umbilical ao nascimento em torno de 20%, no grupo de gestações de alto risco, foi encontrado "n" total de 34 pacientes.

Os exames foram realizados em equipamentos de ultra-sonografia das marcas Dysonic (GE) ou Siemens Versa-Pro com capacidade para estudo dopplervelocimétrico colorido e pulsátil. Utilizou-se transdutor convexo de 3,5 MHz. As medidas dopplervelocimétricas foram obtidas durante período de repouso, na ausência de movimentos respiratórios fetais ou de contrações uterinas. O ângulo de insonação foi considerado satisfatório quando inferior a 30°. Utilizou-se filtro de 100 Hz, para minimizar as chances de erros causados pelo movimento das paredes vasculares. O tamanho da amostra de volume foi ajustado de acordo com o diâmetro do vaso analisado. Em particular para o DV, utilizou-se janela de 1 a 2 mm. As medidas verificadas foram efetuadas após a obtenção de pelo menos três ondas seguidas e simétricas.

Durante a realização do exame dopplervelocimétrico, as pacientes eram acomodadas em posição semi-Fowler, objetivando evitar a hipotensão postural. Todos os exames foram realizados pelo mesmo pesquisador (FHCC).

Como local de amostragem para obtenção do sonograma da AU adotou-se a sua porção mais distal (próximo à sua inserção placentária). O segmento escolhido foi selecionado pelo Doppler colorido, acionando-se, então, o Doppler pulsado para obtenção das ondas de velocidade de fluxo. O fluxo da veia umbilical também foi visualizado no mesmo corte. Foi calculado o IP da AU (A B / média)11.

A ACM foi identificada em secção transversal do cérebro fetal em plano paralelo, mais caudal do que o plano para obtenção do diâmetro biparietal (incluindo tálamos e o cavum do septo pelúcido). Com o auxílio do Doppler colorido identificaram-se o polígono de Willis e seus ramos em estreita proximidade com as asas maiores dos ossos esfenóides. Foi considerada para análise a ACM mais próxima do transdutor. O local de amostragem foi a sua porção média, entre a saída do polígono de Willis e a fissura de Silvius. Foi calculado o IP da ACM (A B / média)11.

O DV foi identificado em corte transversal ou médio-sagital do abdome superior fetal por meio do Doppler colorido e o local de amostragem foi localizado em sua porção ístmica, mais estreita e com maiores velocidades. Foi calculado o IP para veias (IPV) (S A/média)12.

Foram calculados os IPV DV/IP AU (dividindo o índice de pulsatilidade para veias do ducto venoso pelo índice de pulsatilidade da artéria umbilical) e IPV DV/IP ACM (dividindo o índice de pulsatilidade para veias do ducto venoso pelo índice de pulsatilidade da artéria cerebral média) para cada paciente.

Após o nascimento, antes do delivramento e do primeiro movimento respiratório fetal, obteve-se um segmento de 10-20 cm de comprimento do cordão umbilical por clampeamento com duas pinças. As amostras de sangue (artéria e veia) foram obtidas através de punção (aproximadamente 2 mL) de ambos os vasos com seringas previamente preparadas. As amostras eram enviadas imediatamente ao laboratório e analisadas dentro de 5-10 minutos da coleta.

Considerou-se acidemia os valores de pH inferiores a 7,26 para a veia e 7,20 para a artéria, se a paciente não apresentasse contrações uterinas, e pH <7,20 para a veia e 7,15 para a AU, se a paciente estivesse em trabalho de parto. Somente foram considerados como anormais os casos com diagnóstico de acidemia metabólica ou mista (BE < -10 e pCO2 >60 mmHg, na ausência de trabalho de parto, e BE < -11 e pCO2 >65 mmHg quando houve contrações uterinas, na AU, ou BE < -6 e pCO2 >50 mmHg na ausência de trabalho de parto e BE < -8 e pCO2 > 55 mmHg na presença de contrações uterinas para a veia umbilical)13. Quando foi coletado sangue da artéria e da veia umbilicais, considerou-se para diagnóstico de acidemia o resultado da AU. Somente quando a coleta da artéria não foi efetuada ou a análise foi prejudicada é que foi considerado o resultado obtido na veia umbilical.

As pacientes foram seguidas com exames dopplervelocimétricos periódicos. A freqüência dos exames foi determinada seguindo protocolos de acompanhamento semelhantes em ambos os serviços, levando-se em consideração a condição clínica materna e as alterações encontradas com o uso do Doppler. Após a admissão no protocolo de estudo, todas as pacientes permaneceram internadas até o parto. As outras provas de vitalidade fetal também eram realizadas seguindo o mesmo protocolo.

Para a análise estatística empregou-se o programa SPSS 10.0® (SPSS Co., Chicago, IL, USA). Foram calculados a sensibilidade e a especificidade dos vários pontos de corte das relações veno-arteriais testadas (variáveis independentes) e construído curva ROC para cada parâmetro. A variável analisada no nascimento (variável dependente) foi a presença de acidemia metabólica ou mista no cordão umbilical. Quando o parâmetro analisado se mostrou bom indicador para o diagnóstico de acidemia (área sob a curva significativamente superior a 50%; p<0,05), selecionou-se o melhor ponto de corte. Para esse valor encontrado foram calculados também o valor preditivo positivo, o valor preditivo negativo, a taxa de falso-positivos, a taxa de falso-negativos, o valor de predição (acurácia), a razão de verossimilhança positiva e a razão de verossimilhança negativa.

Resultados

Obteve-se diagnóstico de acidemia em 12 pacientes (25,5%). Ocorreu acidemia metabólica em 6 casos e acidemia mista em 6. Não houve diagnóstico de acidemia respiratória.

Em 19 casos foram colhidas amostras do sangue da veia e da artéria umbilicais no momento do parto, em 26 oportunidades foi colhido somente sangue das artérias e em 2 casos apenas da veia. Em nenhum dos casos nos quais foram examinados ambos os vasos houve diferença no diagnóstico de normalidade ou de acidemia. O pH médio da AU foi de 7,27 (variando de 7,14 a 7,37) e da veia de 7,27 (variando de 6,97 a 7,41). O déficit de base encontrado na AU foi, em média, de -5,85 (variando de 0,0 a -17,0) e na veia de -6,34 (variando de 0,0 a -22,3).

O IPV DV/IP AU apresentou média de 0,39 (variando de 0,19 a 0,73) e mediana 0,39 e o IPV DV/IP ACM apresentou valor médio de 0,50 (variando de 0,23 a 1,01) com mediana de 0,48.

A análise do IPV DV/IP AU mostrou uma área sob a curva ROC de 0,568 [intervalo de confiança (IC)=0,358; 0,777] com p=0,603 (Figura 1). Esse índice não se mostrou bom parâmetro para o diagnóstico de acidemia ao nascimento na população estudada.


A análise do IPV DV/IP ACM na predição de acidemia ao nascimento mostra uma área sob a curva ROC significativamente superior a 50%, traduzindo esse parâmetro como bom indicador para acidemia. Encontrou-se uma área sob a curva de 0,785 [IC=0,645; 0,924] com p=0,004 (Figura 2).


Para decisão do ponto de corte foi construído quadro com as coordenadas da curva ROC determinando a sensibilidade e a taxa de falso-positivo (complementar da especificidade) para os valores encontrados com este último índice. Tomou-se como ponto de corte o valor de 0,582, onde IPV DV/IP ACM e" 0,582 implica maiores chances de presença de acidemia ao nascimento. Encontraram-se: sensibilidade de 66,7%, especificidade de 77,1%, valor preditivo positivo de 50%, valor preditivo negativo de 87,1%, taxa de falso-positivo de 50%, taxa de falso-negativo de 12,9%, acurácia de 74,5%, razão de verossimilhança positiva de 2,9 e razão de verossimilhança negativa de 0,43.

Discussão

O advento da dopplervelocimetria permitiu o estudo da hemodinâmica útero e feto-placentária e proporcionou melhoria nos resultados perinatais nas populações de alto risco14. O Doppler da AU reflete a resistência vascular placentária, fortemente correlacionada com a restrição do crescimento fetal e os efeitos multi-sistêmicos da deficiência de nutrientes e oxigênio. Por isso, é hoje considerado o melhor método de diagnosticar a insuficiência placentária15,16.

Este estudo avaliou a relação entre os índices veno-arteriais, criados através do DV e das AU e ACM, e a presença de acidemia ao nascimento, em gestações com diagnóstico de insuficiência placentária, pela presença de resistência elevada na AU. Critério adicional para inclusão foi a persistência de incisura protodiastólica nas artérias uterinas após 26 semanas. Dentro das limitações de uma investigação in vivo, esses critérios tentam garantir razoável homogeneidade na população de estudo. Foram excluídas outras causas agudas de acidemia fetal, tais como descolamento prematuro de placenta e anestesia geral. O resultado do Doppler do DV, considerado na análise estatística, foi realizado a menos de 24 horas do parto, pois alterações podem aparecer rapidamente nos dias que antecedem o padrão anormal na cardiotocografia17,18.

A doplevelocimetria anormal da AU permite a identificação dos fetos de risco para resultados adversos, mas é um pobre indicador da condição fetal. Em contraste, o Doppler venoso nos permite definir a gravidade dos resultados perinatais, pois relaciona-se com o grau do comprometimento circulatório do feto7,18,19.

A progressão da anormalidade circulatória fetal associa-se com deterioração do equilíbrio ácido-básico e resultados perinatais adversos. O fenômeno da centralização é relacionado com queda da pO2 no cordão umbilical e padrões anormais de Doppler venoso com queda da pO2 mais acentuada, acidemia e morte fetal3.

A análise do sangue do cordão umbilical é considerada o padrão-ouro na avaliação da condição bioquímica fetal/neonatal. A aferição dos parâmetros ácido-básicos no cordão umbilical, ao nascimento, mostrou ser mais preciso indicador de asfixia intra-parto que os escores de Apgar e essa análise deveria ser rotineira no cuidado obstétrico20.

O limite inferior da normalidade para o pH, abaixo do qual se considera acidemia ao nascimento, não foi definido com precisão. Observa-se variação de 7,00 a 7,20 (ACOG, 1994)20. Utilizaram-se, nessa investigação, os parâmetros de Vintzileos et al.13, que diferenciam os fetos que se submeteram às contrações uterinas daqueles nascidos por cesariana eletiva. O valor do pH na AU, sem trabalho de parto, foi considerado o valor clássico <7,20. O objetivo foi selecionar mais precocemente todos os fetos com acidemia e não apenas aqueles com acidemia grave (pH <7,00), nos quais ocorre associação com seqüelas neurológicas e, inclusive, morte neonatal21.

Sabe-se que tanto a acidemia metabólica quanto a mista estão relacionadas com complicações neonatais. Portanto, foram considerados na análise estatística somente esses dois tipos de acidemia e não a acidemia respiratória, pois o objetivo primário dos testes antenatais é prevenir a mortalidade e o risco de lesão neurológica grave20.

O uso de relações entre os índices do Doppler arterial e venoso na avaliação da condição cardíaca fetal é relativamente inexplorado. Em recente estudo, Tchirikov et al.8 demonstraram que o índice venoso-arterial melhora a predição de comprometimento neonatal quando comparado aos vasos arteriais (umbilical e uterina) isolados. Uma razão para essa melhora na predição dos resultados poderia ser a ação da pós-carga no padrão do fluxo venoso, melhorando a sensibilidade em identificar efeitos cardíacos.

As duas relações veno-arteriais testadas não foram ainda descritas na literatura. Baschat9 descreveu, em população de gestantes sadias, várias relações entre a resistência ao fluxo placentário (AU) e o Doppler venoso precordial (DV e VCI). De interesse são as relações IP AU/IPV DV e IP AU/IPV VCI, que se mantêm constantes ao longo da gestação. A redução na resistência placentária é paralela ao decréscimo na resistência no DV, observados com o avançar da idade gestacional. A primeira relação apresentou como limites da normalidade: valor inferior de 1 e valor superior de 3. A hipótese do autor é que, se a elevação dos índices no DV forem conseqüentes ao aumento da pulsatilidade na AU, a relação deve permanecer inalterada. Do contrário, quando os índices do DV elevam-se devido à disfunção cardíaca, a relação entre os dois índices deve resultar em decréscimo. Nossa relação Doppler pré-cordial (IPV do DV) dividido pelo IP da AU não apresenta benefício na predição da acidemia, provavelmente porque na nossa população (gestantes com insuficiência placentária) a disfunção cardíaca seja resultante do aumento da resistência umbilical-placentária.

A função diastólica direita (relacionada diretamente com valores do Doppler do DV) é um dos primeiros parâmetros intracardíacos a se alterar na presença de restrição do crescimento fetal e disfunção cardíaca hipoxêmica. Figueras et al.22, monitorizando a função cardíaca nesses fetos, encontraram como seqüência de comprometimento: IP da AU e da ACM são os primeiros parâmetros a tornarem-se anormais, seguidos dos índices diastólicos direitos (relação E/A das válvulas direitas e DV), índices sistólicos direitos e, finalmente, ambos os índices sistólicos e diastólicos esquerdos. A deterioração da função diastólica foi mais acentuada que a sistólica e mais grave à direita.

Acreditamos que a relação IPV DV/IP ACM possa refletir mais precocemente sinais de descentralização de fluxo fetal que as alterações terminais do DV (velocidade durante contração atrial zero ou reversa) e, portanto, provavelmente associada com acidemia. Acredita-se que o aumento do IPV do DV (relacionado com disfunção cardíaca) aconteça antes do aumento do IP na ACM ("falsa normalização") que se associa com acidemia fetal grave e edema cerebral. Portanto, o aumento do IPV no DV ocorreria ainda com a pulsatilidade cerebral reduzida (vasodilatação) fazendo com que a relação IPV DV/IP ACM alterasse seu valor para cima, refletindo a possibilidade de descentralização.

Decisão de interrupção da gestação, na presença do índice IPV DV/IP ACM anormal, poderia ser aventada pela inegável associação com a acidemia encontrada nesse estudo. No entanto, deve ser interpretado com cautela. Deve-se aguardar estudos com casuística maior, bem como compreensão do seu comportamento ao longo da gestação e pesquisas que verifiquem a possibilidade de sua associação com outros resultados perinatais, além da acidemia. São necessários estudos que comparem este índice com a dopplervelocimetria dos vasos arteriais e venosos, particularmente o DV. Em todo caso, nas situações de insuficiência placentária com restrição do crescimento fetal, em que atualmente conduta mais adequada seria a avaliação em conjunto dos parâmetros biofísicos fetais e de múltiplos vasos ao Doppler5,7,17,18, proposta razoável seria a introdução deste índice no seguimento dessas gestações, representando mais um fator para corroborar o momento da interrupção da gravidez. Mais pesquisas são necessárias para delinear os protocolos de acompanhamento, com os atuais e futuros conhecimentos, dessas gestações que portam um problema tão complexo como a insuficiência placentária. Concluímos que a relação venosa-arterial: IPV DV/IP ACM mostrou-se boa indicadora de acidemia no nascimento em gestações com insuficiência placentária, com melhor ponto de corte de 0,582 para esse diagnóstico.

Recebido em: 21/5/2004

Aceito com modificações em: 13/8/2004

  • 1. Bartelds B, van Bel F, Teitel DF, Rudolph AM. Carotid, non aortic chemoreceptors mediate the fetal cardiovascular response to acute hypoxaemia in lambs. Pediatr Res 1993; 34:51-5.
  • 2. Wladimiroff JW, vd Wijngaard JA, Degani S, Noordam MJ, van Eyck J, Tonge HM. Cerebral and umbilical arterial blood flow velocity waveforms in normal and growth-retarded pregnancies. Obstet Gynecol 1987; 69:705-9.
  • 3. Baschat AA, Gembruch U, Reiss I, Gortner L, Weiner CP, Harman CR. Relationship between arterial and venous Doppler and perinatal outcome in fetal growth restriction. Ultrasound Obstet Gynecol 2000; 16:407-13.
  • 4. Hecher K, Campbell S, Doyle P, Harrington K, Nicolaides K. Assessment of fetal compromise by Doppler ultrasound investigation of fetal circulation. Arterial, intracardiac, and venous blood flow velocity studies. Circulation 1995; 91:129-38.
  • 5. Romero R, Kalache KD, Kadar N. Timing the delivery of the preterm severely growth-restricted fetus: venous Doppler, cardiotocography or the biophysical profile? Ultrasound Obstet Gynecol 2002; 19:118-21.
  • 6. Kiserud T. The ductus venosus. Semin Perinatol 2001; 25:11-20.
  • 7. Harman CR, Baschat AA. Arterial and venous Dopplers in IUGR. Clin Obstet Gynecol 2003; 46:931-46.
  • 8. Tchirikov M, Rybakowski C, Hüneke B, Schoder V, Schröder HJ. Umbilical vein blood volume flow rate and umbilical artery pulsatility as 'venous-arterial index' in the prediction of neonatal compromise. Ultrasound Obstet Gynecol 2002; 20:580-5.
  • 9. Baschat AA. Relationship between placental blood flow resistance and precordial venous Doppler indices. Ultrasound Obstet Gynecol 2003; 22:561-6.
  • 10. Arduini D, Rizzo G. Normal values of pulsatility index from fetal vessels: a cross-sectional study on 1556 healthy fetuses. J Perinat Med 1990; 18:165-72.
  • 11. Gosling RG, King DH. Ultrasonic angiology. In: Harcus AW, Adamson L, editors. Arteries and Veins. 1st ed. Edinburgh: Churchill-Livingstone; 1975. p. 61-98.
  • 12. Hecher K, Campbell S, Snijders R, Nicolaides K. Reference ranges for fetal venous and atrioventricular blood flow parameters. Ultrasound Obstet Gynecol 1994; 4:381-90.
  • 13. Vintzileos AM, Egan JFX, Campbell WA, et al. Asphyxia at birth as determined by cord blood pH measurements in preterm and term gestations: correlation with neonatal outcome. J Matern Fetal Med 1992; 1:7-13.
  • 14. Neilson JP, Alfirevic Z. Doppler ultrasound for fetal assessment in high risk pregnancies. Cochrane Database Syst Rev 2000; (2):CD000073.
  • 15. Aranyosi J, Zatik J, Kerenyi TD, Major T, Toth Z. The role of uterine and umbilical artery Doppler velocimetry for the early detection of pathologic pregnancy. Orv Hetil 2001; 142:727-31.
  • 16. Pardi G, Marconi AM, Cetin I. Placental-fetal interrelationship in IUGR fetuses A review. Placenta 2002; 23 (Suppl A):S136-41.
  • 17. Ferrazzi E, Bozzo M, Rigano S, et al. Temporal sequence of abnormal Doppler changes in the peripheral and central circulatory systems of the severely growth-restricted fetus. Ultrasound Obstet Gynecol 2002; 19:140-6.
  • 18. Baschat AA. Integrated fetal testing in growth restriction: combining multivessel Doppler and biophysical parameters. Ultrasound Obstet Gynecol 2003; 21:1-8.
  • 19. Galan HL, Ferrazzi E, Hobbins JC. Intrauterine growth restriction (IUGR): biometric and Doppler assessment. Prenat Diagn 2002; 22:331-7.
  • 20. ACOG Technical Bulletin. Umbilical artery blood acid-base analysis. Number 216, November 1995. Int J Gynaecol Obstet 1996; 52:305-10.
  • 21. Goldaber KG, Gilstrap LC 3rd, Leveno KJ, Dax JS, McIntire DD. Pathologic fetal acidemia. Obstet Gynecol 1991; 78:1103-7.
  • 22. Figueras F, Puerto B, Martinez JM, Cararach V, Vanrell JA. Cardiac function monitoring of fetuses with growth restriction. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 2003; 110:159-63.
  • Endereço para correspondência
    Francisco Herlânio Costa Carvalho
    Rua Osvaldo Cruz 2582, apto. 202
    Bairro Dionísio Torres – 60125-151 – Fortaleza – CE
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Nov 2004
    • Data do Fascículo
      Set 2004

    Histórico

    • Recebido
      21 Maio 2004
    • Aceito
      13 Ago 2004
    Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3421, sala 903 - Jardim Paulista, 01401-001 São Paulo SP - Brasil, Tel. (55 11) 5573-4919 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: editorial.office@febrasgo.org.br