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Inspeção visual do colo uterino após aplicação de ácido acético no rastreamento das neoplasias intra-epiteliais e lesões induzidas por HPV

Cervical visual inspection after application of acetic acid in screening intraepithelial neoplasia and HPV-induced lesions

Resumos

OBJETIVO: estimar a validade da inspeção visual após aplicação de ácido acético (IVA) no rastreamento das neoplasias intra-epiteliais cervicais (NIC) e lesões induzidas por HPV, comparando seu desempenho com o da colpocitologia e da colposcopia. MÉTODOS: estudo de validação de teste diagnóstico realizado em 893 mulheres de 18 a 65 anos, rastreadas simultaneamente com colpocitologia, IVA e colposcopia, em unidade de saúde pública de Recife, PE. A IVA foi realizada por embrocação do colo com ácido acético a 5% e observação a olho nu, com auxílio de foco clínico comum. Considerou-se como positividade o achado de qualquer lesão aceto-branca no colo. O padrão-ouro foi o histopatológico de biópsia cervical, realizado sempre que qualquer um dos três testes resultasse anormal. Foram estimados e comparados os indicadores de validade de cada teste, com os respectivos intervalos de confiança a 95%. A concordância entre os resultados dos testes foi avaliada pelo coeficiente kappa (k). RESULTADOS: das 303 mulheres biopsiadas, o estudo histopatológico foi anormal em 24. Deste total, a IVA foi positiva em 22, conferindo-lhe sensibilidade estimada de 91,7%, especificidade de 68,9%, valor preditivo positivo de 7,5% e valor preditivo negativo de 99,7%. Comparando-se os intervalos de confiança a 95%, a IVA mostrou maior sensibilidade que a colpocitologia, mas com menores especificidade e valor preditivo positivo. Houve fraca concordância entre os resultados da IVA e da colpocitologia (k=0,02) e excelente concordância com os da colposcopia (k=0,93). CONCLUSÃO: a IVA foi muito mais sensível que a colpocitologia no rastreamento das NIC e lesões HPV-induzidas e teve o mesmo desempenho da colposcopia. Sua baixa especificidade foi responsável por um elevado número de resultados falso-positivos.

Inspeção visual com ácido acético; Colposcopia; Colpocitologia; Colo; Rastreamento; Citologia


PURPOSE: to estimate the validity of visual inspection of cervical intraepithelial neoplasia (CIN) and HPV-induced lesion screening, after acetic acid application (VIA), and to compare its performance with that of colpocytology and colposcopy. METHODS: a diagnostic test validation study involving 893 women aged 18 to 65 years, simultaneously screened with colpocytology, VIA and colposcopy was carried out at a public health unit in Recife, PE. VIA was performed by applying 5% acetic acid onto the cervix and observing it with the help of a clinical spotlight. The finding of any aceto-white lesion on the cervix was considered positive. The gold standard was the histopathology of cervical biopsy, carried out whenever any of the three test results was abnormal. Validity indicators were estimated for each test, within 95% confidence intervals. The analysis of agreement between test results was done by the kappa coefficient. RESULTS: of 303 women submitted to biopsy, the histopathological study was abnormal in 24. Among this total, VIA was positive in 22, yielding an estimated 91.7% sensibility, 68.9% specificity, and 7.5% positive predictive value and 99.7% negative predictive value. Comparing 95% confidence intervals, VIA was more sensitive than colpocytology, despite a lower specificity and positive predictive value. There was poor agreement between VIA and colpocytology (k=0.02) and excellent agreement with colposcopy (k=0.93). CONCLUSION: VIA was much more sensitive than colpocytology in the screening of CIN and HPV-induced lesions and presented a performance similar to colposcopy. Its low specificity determined a high number of false-positive results.

Visual inspection with acetic acid; Colposcopy; Colpocytology; Cervix; Cancer; Cytology


ARTIGOS ORIGINAIS

Inspeção visual do colo uterino após aplicação de ácido acético no rastreamento das neoplasias intra-epiteliais e lesões induzidas por HPV

Cervical visual inspection after application of acetic acid in screening intraepithelial neoplasia and HPV-induced lesions

Maria Rachel Aguiar CordeiroI; Hélio de Lima F. Fernandes CostaII; Rosângela Pontes de AndradeIII; Virgínia Ribes Amorim BrandãoIV; Raquel SantanaV

Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros – CISAM

Departamento Materno Infantil da Faculdade de Ciências Médicas – Universidade de Pernambuco – UPE

IMédica Tocoginecologista do CISAM

IIProfessor Regente de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (UPE)

IIIMédica Patologista do CISAM

IVProfessora Assistente da Disciplina de Patologia da Universidade de Pernambuco – UPE

VAcadêmica de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco – UPE

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Maria Rachel Aguiar Cordeiro Rua Jonathas de Vasconcelos, 500, apt. 402 – Boa Viagem 51021-140 – Recife – PE Fones: (81) 3467-9994, 3426-2111, Fax: 3426-2111 e-mail: pmbgf@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: estimar a validade da inspeção visual após aplicação de ácido acético (IVA) no rastreamento das neoplasias intra-epiteliais cervicais (NIC) e lesões induzidas por HPV, comparando seu desempenho com o da colpocitologia e da colposcopia.

MÉTODOS: estudo de validação de teste diagnóstico realizado em 893 mulheres de 18 a 65 anos, rastreadas simultaneamente com colpocitologia, IVA e colposcopia, em unidade de saúde pública de Recife, PE. A IVA foi realizada por embrocação do colo com ácido acético a 5% e observação a olho nu, com auxílio de foco clínico comum. Considerou-se como positividade o achado de qualquer lesão aceto-branca no colo. O padrão-ouro foi o histopatológico de biópsia cervical, realizado sempre que qualquer um dos três testes resultasse anormal. Foram estimados e comparados os indicadores de validade de cada teste, com os respectivos intervalos de confiança a 95%. A concordância entre os resultados dos testes foi avaliada pelo coeficiente kappa (k).

RESULTADOS: das 303 mulheres biopsiadas, o estudo histopatológico foi anormal em 24. Deste total, a IVA foi positiva em 22, conferindo-lhe sensibilidade estimada de 91,7%, especificidade de 68,9%, valor preditivo positivo de 7,5% e valor preditivo negativo de 99,7%. Comparando-se os intervalos de confiança a 95%, a IVA mostrou maior sensibilidade que a colpocitologia, mas com menores especificidade e valor preditivo positivo. Houve fraca concordância entre os resultados da IVA e da colpocitologia (k=0,02) e excelente concordância com os da colposcopia (k=0,93).

CONCLUSÃO: a IVA foi muito mais sensível que a colpocitologia no rastreamento das NIC e lesões HPV-induzidas e teve o mesmo desempenho da colposcopia. Sua baixa especificidade foi responsável por um elevado número de resultados falso-positivos.

Palavras-chave: Inspeção visual com ácido acético; Colposcopia; Colpocitologia; Colo: lesões pré-neoplásicas; Rastreamento; Citologia

ABSTRACT

PURPOSE: to estimate the validity of visual inspection of cervical intraepithelial neoplasia (CIN) and HPV-induced lesion screening, after acetic acid application (VIA), and to compare its performance with that of colpocytology and colposcopy.

METHODS: a diagnostic test validation study involving 893 women aged 18 to 65 years, simultaneously screened with colpocytology, VIA and colposcopy was carried out at a public health unit in Recife, PE. VIA was performed by applying 5% acetic acid onto the cervix and observing it with the help of a clinical spotlight. The finding of any aceto-white lesion on the cervix was considered positive. The gold standard was the histopathology of cervical biopsy, carried out whenever any of the three test results was abnormal. Validity indicators were estimated for each test, within 95% confidence intervals. The analysis of agreement between test results was done by the kappa coefficient.

RESULTS: of 303 women submitted to biopsy, the histopathological study was abnormal in 24. Among this total, VIA was positive in 22, yielding an estimated 91.7% sensibility, 68.9% specificity, and 7.5% positive predictive value and 99.7% negative predictive value. Comparing 95% confidence intervals, VIA was more sensitive than colpocytology, despite a lower specificity and positive predictive value. There was poor agreement between VIA and colpocytology (k=0.02) and excellent agreement with colposcopy (k=0.93).

CONCLUSION: VIA was much more sensitive than colpocytology in the screening of CIN and HPV-induced lesions and presented a performance similar to colposcopy. Its low specificity determined a high number of false-positive results.

Keywords: Visual inspection with acetic acid; Colposcopy; Colpocytology; Cervix: premalignant lesions; Cancer: screening; Cytology

Introdução

O câncer do colo do útero constitui verdadeiro problema de saúde pública nos países em desenvolvimento1, onde programas organizados de rastreamento inexistem ou são esporádicos e de baixa qualidade2-4. Menos de cinco por cento da população feminina destes países consegue ser adequadamente rastreada, usualmente em clínicas privadas e em alguns centros urbanos, beneficiando geralmente as de mais baixo risco para a doença5,6. Como resultado, a grande maioria dos casos é diagnosticada em fase avançada, com custos terapêuticos elevados e baixa possibilidade de cura, gerando repercussões socioeconômicas e psicológicas importantes6. Na tentativa de superar as falhas e obstáculos inerentes ao programa de rastreamento citológico, pesquisadores em todo o mundo têm dado especial atenção ao desenvolvimento de métodos de rastreio alternativos, em especial para os locais onde a população apresenta maiores restrições econômicas e menor escolaridade7,8. A inspeção visual do colo uterino após aplicação de ácido acético (IVA) parece ser um dos mais promissores, pois pode ser realizado por pessoal de saúde não-médico, com redução dos custos com mão-de-obra especializada e ampliação da cobertura da população de alto risco pelo programa9,10. Também possui características inerentes a bom método de rastreamento: é simples, de fácil aprendizado, rápido, sensível, barato e permite a leitura imediata dos resultados, possibilitando a tomada de decisões terapêuticas na mesma visita, o que diminui as perdas de seguimento e abandono de tratamento, problemas muito comuns em locais de poucos recursos7-10.

O ácido acético tem ação mucolítica e atua causando desidratação celular e coagulação das proteínas intranucleares, diminuindo a transparência do epitélio, sendo a intensidade do aceto-branqueamento diretamente proporcional à gravidade da lesão11.

Megevand et al.12 e Denny et al.8 avaliaram o emprego da IVA em mulheres de alto risco para o câncer cervical em local onde não havia nenhum outro programa de rastreamento disponível e concluíram que o teste foi capaz de diagnosticar mais de sessenta e cinco por cento das lesões intra-epitelias escamosas (LIEC) de alto grau e carcinoma invasor. Em locais onde o rastreamento citológico já está implantado, a IVA poderia funcionar como método auxiliar à colpocitologia oncótica, aumentando a sua sensibilidade e melhorando a detecção destas lesões em um terço, sem custos adicionais13,14.

Embora a IVA já esteja sendo empregada em várias regiões, em especial na Ásia, África, Índia e América Latina4,10-15, sua efetividade no controle e prevenção das neoplasias intra-epiteliais cervicais (NIC) na realidade epidemiológica da nossa região permanece por ser definitivamente estabelecida. Os objetivos do presente estudo são: estimar a validade da IVA realizado por médico no processo de rastreamento das NIC e lesões HPV-induzidas, comparando o seu desempenho com o da colpocitologia oncótica e da colposcopia, bem como estimar a concordância entre os resultados da IVA e os resultados dos dois testes citados.

Métodos

Estudo de validação de teste diagnóstico realizado em serviço de saúde pública de nível secundário em Recife-PE. Foram incluídas no estudo mulheres que procuraram espontaneamente o serviço de prevenção do câncer do colo uterino da instituição, com idade entre 18 e 65 anos e que aceitaram participar, de maneira livre e esclarecida, da pesquisa. Foram excluídas as gestantes, as histerectomizadas, as com passado de tratamento de câncer cervical e/ou de suas lesões precursoras e as com sangramento genital em atividade.

Participaram do estudo 893 mulheres, atendidas no período compreendido entre 14 de fevereiro e 5 de junho de 2003. A média de idade das mulheres era de 32 anos. Mais de dois terços eram casadas, pertenciam às classes sociais menos favorecidas (D e E) e eram usuárias de método contraceptivo hormonal oral. Pouco mais de 60% tinham dois ou mais filhos e informaram início da atividade sexual e primeiro parto a partir dos 16 anos. 784 mulheres (87,8%) haviam realizado o último exame preventivo há menos de três anos, constituindo, portanto, população jovem, regularmente rastreada e de baixo risco para a doença.

Após serem esclarecidas verbalmente da importância da realização do exame preventivo e dos objetivos do trabalho, as mulheres que concordaram em participar do estudo assinaram termo de consentimento e responderam a questionário com dados demográficos e reprodutivos aplicado por entrevistadora. Seqüencialmente, realizaram a coleta de material para colpocitologia oncótica (com três auxiliares de enfermagem do serviço que habitualmente desempenham essa atividade), teste IVA e colposcopia, sendo os dois últimos exames realizados por médico com especialização em colposcopia.

O teste IVA consistiu de: embrocação de todo colo e vagina com um chumaço de algodão embebido em solução de ácido acético a 5%. Após um minuto e com o auxílio de foco clínico comum direcionado para a abertura do espéculo, todo o colo era inspecionado em busca de lesões acetorreativas. O teste IVA foi categorizado como positivo quando do aparecimento de qualquer lesão aceto-branca, opaca ou brilhante, plana ou sobrelevada, de aspecto verrucoso ou não, no colo. Foi considerado negativo se o colo permanecesse com sua coloração normal (rósea, lisa e uniforme) após aplicação da solução. Os esfregaços citológicos foram corados pela técnica de Papanicolaou e interpretados segundo a classificação do sistema Bethesda de 198816 (ainda vigente no serviço por ocasião da coleta dos dados). A colpocitologia oncótica foi categorizada como positiva na presença de células epiteliais escamosas atípicas de significado indeterminado (ASCUS), células epiteliais glandulares atípicas de significado indeterminado (AGUS), LIEC ou carcinoma. Foi considerada negativa na presença de achados normais, distúrbios reativos ou reparativos, inflamação e infecção não relacionadas ao HPV. Foi categorizada como insatisfatória em nove pacientes: quatro por apresentarem-se com cervicite intensa, duas com celularidade do esfregaço insuficiente para avaliação citológica, duas com esfregaços dessecados e uma com esfregaço bastante espesso e purulento. A colposcopia foi descrita em formulário padronizado do serviço e obedeceu às orientações do Comitê Internacional de Colposcopia17, tendo sido considerada positiva na presença de achados colposcópicos anormais ou sugestivos de câncer cervical invasor. Foi categorizada como negativa se presentes achados colposcópicos normais e como insatisfatória se a junção escamo-colunar (JEC) ou o colo não eram visualizados e na presença de inflamação e/ou atrofia intensas.

Caso qualquer um dos três exames resultasse positivo, a mulher era submetida à biópsia cervical dirigida pela colposcopia. O material assim obtido era enviado para estudo com médico patologista da Unidade, sendo os resultados histopatológicos descritos de acordo com a classificação histológica de Richart18. O exame histopatológico foi considerado o padrão-ouro da pesquisa, sendo categorizado como positivo na presença de infecção por HPV, NIC (com ou sem infecção por HPV associada) ou carcinoma invasor. Foi considerado negativo na presença de processo inflamatório inespecífico e na ausência de células atípicas. Também foi inferido como resultado negativo do padrão-ouro quando o exame histopatológico não foi realizado devido à negatividade de todos os testes estudados. Foi considerado insatisfatório em duas pacientes por quantidade insuficiente do material enviado para avaliação histológica.

Todos os profissionais envolvidos na pesquisa desconheciam os resultados dos exames anteriormente realizados. Estimaram-se a acurácia, sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e valor preditivo negativo de todos os testes de rastreamento do estudo. Comparou-se o desempenho de cada teste pela identificação da sobreposição, ou não, dos intervalos de confiança a 95% dos indicadores de validade de cada um deles. Procedeu-se à avaliação da concordância entre os resultados da IVA e os resultados de cada método de rastreio pelo cálculo do índice kappa.

O presente trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) antes do início da coleta dos dados.

Resultados

Do total de mulheres do estudo (n = 893), 303 foram biopsiadas, sendo o resultado do exame histopatológico considerado anormal em 24 pacientes (2,7%): 14 (1,6%) compatíveis com infecção pelo HPV e 11 (1,1%) casos de NIC, sendo 5 casos de NIC I, 3 de NIC II e 2 de NIC III (Tabela 1). Ao avaliar os resultados da colpocitologia oncótica, o exame foi considerado negativo em 878 mulheres (99,3%), sendo 269 (30,1%) esfregaços normais e 609 (68,2%) com alterações citológicas benignas (reativas ou reparativas). A colpocitologia foi positiva em 6 (0,7%) mulheres, sendo 1 (0,1%) caso de ASCUS, 4 (0,5%) casos de LIEC baixo grau e 1 (0,1%) de alto grau. O exame colpocitológico foi considerado insatisfatório para avaliação em 9 (1,0%) mulheres.

A colposcopia foi considerada anormal em 294 (32,9%) mulheres, negativa em 526 (58,9%) e insatisfatória por não visualização da JEC em 73 (8,2%).

A IVA foi positiva em 292 das 893 mulheres (32,7%) e negativa em 601 (67,3%). Os resultados dos testes de rastreamento (IVA, colpocitologia e colposcopia) foram categorizados dicotomicamente em positivos e negativos. Foi testada a associação dos resultados de cada método de rastreamento com os resultados do padrão-ouro (exame histopatológico), constatando-se uma associação estatisticamente significante (p < 0,0001) deste último com todos os métodos (Tabela 2).

Dos 24 resultados histopatológicos anormais, a IVA foi positiva em 22, conferindo-lhe sensibilidade estimada de 91,7% (IC 95% 71,5-98,5%). Dos histopatológicos negativos, o resultado da IVA foi falso-positivo em 31,1%. A colpocitologia oncótica identificou corretamente apenas 5 dos 24 histopatológicos anormais, apresentando uma sensibilidade de 20,8% (IC95% 7,9%-42,7), porém uma especificidade de quase 100%. A colposcopia identificou todos os histopatológicos anormais (S = 100,0%; IC 95% 92,8-100,0%) e apresentou resultado falso-positivo em quase 34% das mulheres sem anormalidades no histopatológico cervical (Tabela 3).

Os resultados da colpocitologia e da IVA foram concordantes em 67,6% dos casos e discordantes em 32,4%, encontrando-se índice kappa igual a 0,02. Quando a IVA foi comparada com a colposcopia, houve resultados discordantes em apenas 3,3% das mulheres e índice kappa igual a 0,93 (Tabela 3).

Discussão

Em nossa avaliação, a IVA apresentou sensibilidade superior a 90%. Nossos achados estão condizentes com o de outros pesquisadores, que descreveram em seus estudos que a sensibilidade da IVA oscilaria entre 52 e 96% e a especificidade entre 49 e 98%19,20. Para estes autores, a sensibilidade do IVA seria diretamente proporcional ao tamanho e gravidade das lesões e inversamente proporcional às alterações epiteliais decorrentes do envelhecimento fisiológico da mulher, as quais tornam a interpretação dos testes de inspeção visual bem mais difícil. A captação do iodo e a cor tornam-se menos intensos com o avançar da idade, em virtude da menor espessura do epitélio da ectocérvice (que fica restrito às suas camadas mais profundas), da tendência à diminuição da zona de transformação e à localização endocervical da JEC21. Nos estudos de Denny et al.8 e Megevand et al.12, enfermeiras treinadas realizaram o exame ginecológico, a IVA e a coleta do esfregaço citológico. Em outros14 , os mesmos exames foram realizados por citotécnicos. Em todos eles, observaram-se baixa especificidade e elevado número de falso-positivos da IVA7,8,12,14. Diferenças nos protocolos de pesquisa, nas populações analisadas, na maneira como o teste é interpretado (os estudos distinguem geralmente os resultados da IVA como positivos ou negativos, sem haver a preocupação com a graduação das lesões) e nas condutas restringem a validade externa dos resultados dos trabalhos já realizados sobre a IVA8,12,14-20. Além disso, em alguns deles, há pouca ou nenhuma informação sobre o número de horas de treinamento, número de pacientes vistos ou sobre a qualidade técnica dos instrutores7,8,12. Muitas vezes, a iluminação empregada também não é referida8 ou é apenas descrita como "adequada"14. A falta de critérios mais rígidos definindo o que realmente seria um teste IVA positivo e a subjetividade na sua avaliação (já que não existe definição universalmente aceita para seus achados) o torna metodologicamente imperfeito, sobrecarregando desnecessariamente os serviços de saúde de referência, já que as taxas de encaminhamento para colposcopia chegam a 38,7% e os casos a mais diagnosticados geralmente são de lesões de baixo grau, mais prevalentes e de menor significância clínica22.

Adotamos a conduta de encaminhar todas as mulheres para colposcopia, com a biópsia cervical sendo realizada sempre que qualquer um dos testes de rastreamento executados pelo médico resultasse positivo, a fim de minimizar a possibilidade de resultados falso-negativos no padrão-ouro. Assumimos que as mulheres que apresentassem resultado negativo em todos os testes seriam consideradas como verdadeiros negativos do estudo.

Biopsiar todas as mulheres seria antiético, impraticável, demorado e dispendioso. A sensibilidade e a especificidade dos testes estão provavelmente superestimadas, já que os possíveis casos verdadeiros positivos no padrão-ouro e negativos em todos os métodos de rastreio são desconhecidos e, portanto, computados equivocadamente no cálculo dos indicadores de validade. Também excluímos do cálculo todos os casos categorizados como insatisfatórios em cada um dos testes do estudo.

Chock et al.23 descreveram um método de cálculo da razão entre os "falso-positivos extras" e os "falso-negativos extras" para comparar a acurácia de dois métodos diagnósticos quando os indivíduos negativos em ambos os testes não se submetem ao padrão-ouro. Seu método, no entanto, pressupõe espectro de gravidade da doença semelhante em populações com diferentes prevalências, pressuposto que não se aplica à doença cervical. Optamos, então, por comparar os indicadores de validade dos métodos pelos seus intervalos de confiança, ressalvando a possível superestimação dos indicadores dada a limitação ética previamente explicitada.

A colpocitologia oncótica, embora seja o exame de rastreamento do câncer cervical mais difundido e aceito em todo o mundo, apresenta imperfeições evidentes24. U.ma de suas maiores limitações é a elevada taxa de resultados falso-negativos, com todas as implicações médicas, financeiras e legais dela decorrentes25. A maioria de suas falhas resulta de erros na obtenção do esfregaço e apenas um terço, de erros na leitura das lâminas24,26. Acreditamos que erros na coleta e o predomínio de mulheres com cervicite em atividade na amostra populacional analisada possam estar relacionados com o elevado número de exames de colpocitologia falsamente negativos que encontramos.

Em nossa pesquisa, a maioria dos resultados anormais da colpocitologia e do estudo histopatológico foi de infecções pelo vírus HPV e NIC I. Esta pode ter sido uma das razões da baixa sensibilidade estimada para a colpocitologia que, não obstante, situou-se ainda dentro da faixa de 11 a 99% descrita na literatura27. De fato, Nanda et al.26 observaram que a sensibilidade da colpocitologia seria diretamente proporcional à gravidade das lesões. A baixa prevalência de lesões pré-neoplásicas encontrada no presente estudo justifica-se pelo fato de a população estudada ser de baixo risco, tendo em vista que mais de 80% das mulheres analisadas haviam realizado exames preventivos nos últimos três anos.

Resultados de vários estudos já concluídos ou em andamento comparando a IVA e a colpocitologia em um mesmo local apontam para um consenso: o teste IVA é tão ou mais sensível que a colpocitologia oncótica, embora seja bem menos específico, com taxas de falso-positivos até cinco vezes maiores que as do exame colpocitológico28.

Nos países em desenvolvimento, onde coexistem com o problema do câncer cervical, outros de igual magnitude, como as doenças infecciosas, mortalidade infantil e explosão populacional2,6, preconiza-se reduzir o número de rastreamentos realizados ao longo da vida da mulher para que se consiga dar maior cobertura ao grupo realmente de risco para a doença. Porém, com esta conduta, a sensibilidade do teste a ser empregado no processo tem que ser elevada, o que não acontece com a colpocitologia oncótica. Uma possibilidade de melhorar a sensibilidade seria pela combinação de testes.

O fato de a IVA e a colposcopia terem sido realizadas seqüencialmente pelo mesmo pesquisador pode ter alterado as estimativas de sensibilidade dos mesmos e ser responsabilizado pela excelente concordância observada entre eles, constituindo importante fonte de viés de detecção.

A reprodutibilidade da IVA pode constituir um problema no rastreamento de rotina, em especial quando realizado por pessoas menos experientes20. A mesma limitação se aplica à interpretação dos exames colpocitológicos. Apesar de o objetivo principal de qualquer método de rastreio ser a identificação do maior número possível de casos verdadeiros da doença, é importante que haja redução dos falso-positivos dos testes a serem empregados, em especial nos locais onde o enfoque "ver e tratar" é adotado. Efeitos colaterais como hemorragia, infecção e estenose cervical, maior risco de contaminação pelo HIV e desconforto para a paciente podem resultar de tratamentos desnecessários que porventura venham a ser realizados14,25.

Concluímos que a sensibilidade da IVA para o diagnóstico de NIC e lesões induzidas por HPV foi superior à da colpocitologia, embora esta última tenha se mostrado mais específica e com menor número de resultados falso-positivos. Houve ótima concordância entre os resultados da IVA e da colposcopia fraca concordância entre os resultados da IVA e os resultados da colpocitologia.

São necessários estudos posteriores visando familiarizar os prestadores de saúde com os achados deste novo teste, bem como avaliá-lo em local com elevada prevalência da doença e de suas lesões precursoras, a fim de garantir sua reprodutibilidade. Em nossa opinião, é indispensável que seja divulgada e aplicada de maneira uniforme e universal uma padronização dos resultados do teste IVA, e que haja o adequado treinamento e capacitação de todo pessoal envolvido na sua execução, que ela seja supervisionada e com mecanismo de controle de qualidade, visando melhorar sua especificidade e reduzir suas elevadas taxas de exames falsamente positivos, que geram custos financeiros e psicológicos para as pacientes e para o Sistema de Saúde como um todo, antes que seja incorporado como método de rastreio do câncer cervical na prática clínica de nossa realidade.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Fev 2005
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