Acessibilidade / Reportar erro

Relação cerebroplacentária e acidemia ao nascimento em gestações com insuficiência placentária detectada antes da 34ª semana de gestação

Cerebroplacental ratio and acidemia to the birth in placental insufficiency detected before 34th week's gestation

Resumos

OBJETIVO: avaliar a hipótese de que a relação cerebroplacentária (RCP) fetal relaciona-se com acidemia no nascimento, em gestações complicadas pela insuficiência placentária detectada antes da 34ª semana de gestação. MÉTODOS: trata-se de coorte prospectiva de 55 pacientes entre a 26ª e a 34ª semanas de gestação, com diagnóstico de insuficiência placentária caracterizada pelo Doppler de artéria umbilical alterado (índice de pulsatilidade >p95). Para cada paciente foi realizada avaliação da vitalidade fetal pela doplervelocimetria de artéria umbilical, artéria cerebral média e ducto venoso, e pelo perfil biofísico fetal. Foi calculada a RCP pela razão entre os valores do índice de pulsatilidade da artéria umbilical e da artéria cerebral média, bem como o cálculo de seu z-score (número de desvios padrão que se afasta da média para a idade gestacional). A acidemia no nascimento foi caracterizada quando pH<7,2. RESULTADOS: das 55 pacientes, 29 (52,7%) apresentaram acidemia no nascimento. O grupo com acidemia, comparado ao grupo com pH>7,2, apresentou associação significativa com os valores da RCP (mediana 0,47 versus 0,58; p=0,009), índice de pulsatilidade da artéria umbilical (mediana 2,45 versus 1,93; p=0,003), índice de pulsatilidade para veias (IPV) do ducto venoso (mediana 1,08 versus 0,85; p=0,034) e perfil biofísico fetal suspeito ou alterado (37 versus 8%; p=0,031). A análise da RCP pelo seu z-score demonstrou tendência de maior afastamento negativo da média, mas sem atingir valor significativo (p=0,08). Foi constatada correlação significativa entre o pH no nascimento e a RCP (r=0,45; p<0,01), o z-score da RCP (r=0,27; p<0,05) e o IPV do ducto venoso (r=-0,35 p<0,01). CONCLUSÃO: A RCP associa-se à presença de acidemia no nascimento nas gestações com insuficiência placentária antes da 34ª semana, e esse parâmetro pode configurar potencial fator para avaliação da gravidade do comprometimento fetal.

Insuficiência placentária; Ultrassonografia Doppler; Hipóxia fetal; Cordão umbilical; Artéria cerebral média; Artérias umbilicais


PURPOSE: to evaluate the hypothesis that the fetal cerebroplacental ratio (CPR) is related to acidemia at birth in pregnancies complicated by placental insufficiency detected before 34 weeks of gestation. METHODS: this is a prospective cohort study of 55 patients between 26 and 34 weeks of gestation with a diagnosis of placental insufficiency characterized by abnormal umbilical artery Doppler (pulsatility index>95p). Fetal assessment was performed for each patient by dopplervelocimetry of the umbilical artery, middle cerebral artery and ductus venosus, and by the fetal biophysical profile. CPR was calculated using the ratio between middle cerebral artery pulsatility index and umbilical artery pulsatility index, and the z-score was obtained (number of standard deviations of the mean value at each gestational age). Acidemia at birth was characterized when pH<7.2. RESULTS: of 55 patients, 29 (52.7%) presented acidemia at birth. In the group of fetal acidemia, when compared with the group with pH>7.2, a significant association was observed with CPR values (median 0.47 versus 0.58; p=0.009), pulsatility index of the umbilical artery (median 2.45 versus 1.93; p=0.003), ductus venosus pulsatility index for veins (PIV) (median 1.08 versus 0.85; p=0.034) and suspected or abnormal fetal biophysical profile (37 versus 8%; p=0.031). CPR analysis by z-score showed a negative tendency, but was not statistically significant (p=0.080). Significant correlations were found between pH at birth and CPR (r=0.45; p<0.01), z-score of CPR (r=0.27; p<0.05) and ductus venosus PIV (r=-0.35 p<0.01). CONCLUSION: CPR is associated with the presence of acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency detected before 34 weeks of gestation and this parameter could potentially represent a factor for assessing the severity of fetal involvement.

Placental insufficiency; Ultrasonography Doppler; Fetal hypoxia; Umbilical cord; Middle cerebral artery


ARTIGO ORIGINAL

Relação cerebroplacentária e acidemia ao nascimento em gestações com insuficiência placentária detectada antes da 34ª semana de gestação

Cerebroplacental ratio and acidemia to the birth in placental insufficiency detected before 34th week's gestation

Mariane de Fatima Yukie MaedaI; Roseli Mieko Yamamoto NomuraII; Juliana Ikeda NiigakiI; Seizo MiyadahiraII; Marcelo ZugaibIII

IMédica Residente do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

IIProfessor do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

IIIProfessor Titular do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

Correspondência Correspondência: Roseli Mieko Yamamoto Nomura Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 255, 10º andar, sala 10.037 CEP 05403-000 - São Paulo (SP), Brasil Tel.: (11) 3069-6209/Fax (11) 3069-8183 E-mail: roseli.nomura@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: avaliar a hipótese de que a relação cerebroplacentária (RCP) fetal relaciona-se com acidemia no nascimento, em gestações complicadas pela insuficiência placentária detectada antes da 34ª semana de gestação.

MÉTODOS: trata-se de coorte prospectiva de 55 pacientes entre a 26ª e a 34ª semanas de gestação, com diagnóstico de insuficiência placentária caracterizada pelo Doppler de artéria umbilical alterado (índice de pulsatilidade >p95). Para cada paciente foi realizada avaliação da vitalidade fetal pela doplervelocimetria de artéria umbilical, artéria cerebral média e ducto venoso, e pelo perfil biofísico fetal. Foi calculada a RCP pela razão entre os valores do índice de pulsatilidade da artéria umbilical e da artéria cerebral média, bem como o cálculo de seu z-score (número de desvios padrão que se afasta da média para a idade gestacional). A acidemia no nascimento foi caracterizada quando pH<7,2.

RESULTADOS: das 55 pacientes, 29 (52,7%) apresentaram acidemia no nascimento. O grupo com acidemia, comparado ao grupo com pH>7,2, apresentou associação significativa com os valores da RCP (mediana 0,47 versus 0,58; p=0,009), índice de pulsatilidade da artéria umbilical (mediana 2,45 versus 1,93; p=0,003), índice de pulsatilidade para veias (IPV) do ducto venoso (mediana 1,08 versus 0,85; p=0,034) e perfil biofísico fetal suspeito ou alterado (37 versus 8%; p=0,031). A análise da RCP pelo seu z-score demonstrou tendência de maior afastamento negativo da média, mas sem atingir valor significativo (p=0,08). Foi constatada correlação significativa entre o pH no nascimento e a RCP (r=0,45; p<0,01), o z-score da RCP (r=0,27; p<0,05) e o IPV do ducto venoso (r=-0,35 p<0,01).

CONCLUSÃO: A RCP associa-se à presença de acidemia no nascimento nas gestações com insuficiência placentária antes da 34ª semana, e esse parâmetro pode configurar potencial fator para avaliação da gravidade do comprometimento fetal.

Palavras-chave: Insuficiência placentária, Ultrassonografia, Doppler, Hipóxia fetal, Cordão umbilical, Artéria cerebral média, Artérias umbilicais

ABSTRACT

PURPOSE: to evaluate the hypothesis that the fetal cerebroplacental ratio (CPR) is related to acidemia at birth in pregnancies complicated by placental insufficiency detected before 34 weeks of gestation.

METHODS: this is a prospective cohort study of 55 patients between 26 and 34 weeks of gestation with a diagnosis of placental insufficiency characterized by abnormal umbilical artery Doppler (pulsatility index>95p). Fetal assessment was performed for each patient by dopplervelocimetry of the umbilical artery, middle cerebral artery and ductus venosus, and by the fetal biophysical profile. CPR was calculated using the ratio between middle cerebral artery pulsatility index and umbilical artery pulsatility index, and the z-score was obtained (number of standard deviations of the mean value at each gestational age). Acidemia at birth was characterized when pH<7.2.

RESULTS: of 55 patients, 29 (52.7%) presented acidemia at birth. In the group of fetal acidemia, when compared with the group with pH>7.2, a significant association was observed with CPR values (median 0.47 versus 0.58; p=0.009), pulsatility index of the umbilical artery (median 2.45 versus 1.93; p=0.003), ductus venosus pulsatility index for veins (PIV) (median 1.08 versus 0.85; p=0.034) and suspected or abnormal fetal biophysical profile (37 versus 8%; p=0.031). CPR analysis by z-score showed a negative tendency, but was not statistically significant (p=0.080). Significant correlations were found between pH at birth and CPR (r=0.45; p<0.01), z-score of CPR (r=0.27; p<0.05) and ductus venosus PIV (r=-0.35 p<0.01).

CONCLUSION: CPR is associated with the presence of acidemia at birth in pregnancies with placental insufficiency detected before 34 weeks of gestation and this parameter could potentially represent a factor for assessing the severity of fetal involvement.

Keywords: Placental insufficiency , Ultrasonography, Doppler, Fetal hypoxia, Umbilical cord, Middle cerebral artery

Introdução

A perfusão placentária adequada é crucial para o crescimento e desenvolvimento do feto. O comprometimento do fluxo sanguíneo na placenta, em diversas situações clínicas, pode promover danos importantes para a gestação, caracterizando a insuficiência placentária. Nessa situação, ocorrem compensações hemodinâmicas e metabólicas fetais, entre as quais se destaca a redistribuição do fluxo sanguíneo na circulação fetal1-3.

Em situações normais, a placenta é órgão com baixa resistência que visa permitir amplo fluxo sanguíneo no espaço interviloso. Com isso, a resistência vascular nas artérias umbilicais é baixa. Ao contrário, na circulação fetal, a resistência em artérias cerebrais é elevada, o que se reflete em baixo fluxo diastólico. Na insuficiência placentária, a hipoxemia progressiva promove estímulo dos quimiorreceptores que acarreta desvio de fluxo para órgãos nobres como cérebro, coração e adrenais, em detrimento, território esplâncnico, rins e circulação periférica4,5. Esse mecanismo de centralização da circulação fetal, conhecido como brain sparring, resulta na redistribuição do débito cardíaco, e mantém o suprimento de oxigênio ao cérebro6. Entretanto, quando a hipoxemia persiste, progredindo para a hipoxia, ocorre dano progressivo na função orgânica, levando à acidemia no nascimento.

A doplervelocimetria é método da propedêutica que permite a detecção precoce das adaptações circulatórias fetais. À medida que aumenta a resistência nas artérias umbilicais (AU), observa-se decréscimo no fluxo diastólico, e o contrário ocorre nas artérias cerebrais, com a vasodilatação desse território fetal5. A análise da combinação de parâmetros fetais e placentários parece ser forma útil de avaliar a adaptação hemodinâmica fetal à hipoxemia e hipoxia. Nesse sentido, a relação cerebroplacentária (RCP), razão entre o índice de pulsatilidade (IP) das artérias umbilicais e da artéria cerebral média (ACM) fetal, tem sido sugerida como método na predição de prognóstico neonatal em gestações de alto risco2,7-9. Demonstrou-se que a RCP permite detecção precoce das adaptações fetais frente à insuficiência placentária, apresentando melhor sensibilidade, especificidade e valor preditivo positivo do que outros métodos previamente consagrados9,10. Em estudo com pacientes com doença hipertensiva específica da gestação (DHEG), Ebrashy et al. 11 observam que a presença de RCP<1,0 é relacionada a mau prognóstico neonatal, definido pela presença de Apgar de 5º minuto abaixo de sete ou necessidade de UTI neonatal.

Na insuficiência placentária iniciada antes da 34ª semana, a interrupção da gestação pode promover complicações ligadas à prematuridade iatrogênica. Considerando-se que o risco de complicações neonatais estão relacionadas tanto às adversidades intrauterinas quanto à prematuridade, a determinação do momento mais adequado para a intervenção pode gerar melhor resultado perinatal12. A avaliação do grau de centralização fetal pela RCP pode configurar parâmetro útil na tomada de decisão pelo melhor momento da resolução da gestação. O objetivo deste trabalho foi avaliar a RCP em fetos com insuficiência placentária detectada antes da 34ª semana, avaliando sua relação com a acidemia no nascimento.

Métodos

Este trabalho foi realizado em hospital universitário, no período de maio de 2007 a abril de 2010, e incluiu gestantes de alto risco internadas na enfermaria de Obstetrícia com diagnóstico de insuficiência placentária. Foram incluídas 55 gestantes e todas as participantes consentiram em participar da pesquisa. O projeto de pesquisa e o termo de consentimento livre e esclarecido foram aprovados pela Comissão de Ética da instituição, sob o número 1359/09.

Foram utilizados os seguintes critérios de inclusão: gestação única; feto vivo; membranas íntegras; morfologia fetal normal pela ultrassonografia, ausência de sinais de anomalias cromossômicas; ausência de corioamnionite ou de outras infecções perinatais, e parto realizado na instituição. O diagnóstico de insuficiência placentária caracterizada pela alteração da doplervelocimetria da artéria umbilical (índice de pulsatilidade>percentil 95) em idade gestacional entre a 26ª e a 34ª semanas. Foram excluídos os casos em que se detectou alguma anomalia congênita no recém-nascido, e os casos em que não foi possível a realização do exame da doplervelocimetria fetal até três dias antes do nascimento.

As pacientes foram selecionadas e os dados coletados incluíram informações da última avaliação da vitalidade fetal realizada antes do nascimento, ou antes do início da corticoterapia prévia à resolução. Dados clínicos adicionais do parto e do recém-nascido foram obtidos por meio de consulta aos prontuários médicos e livros de registro de partos, arquivados na Seção de Arquivo Médico da instituição, bem como informações obtidas a partir da consulta do banco de dados informatizado do departamento.

A vitalidade fetal foi avaliada por meio da cardiotocografia anteparto, perfil biofísico fetal (PBF) e doplervelocimetria obstétrica. As pacientes foram submetidas aos exames no período em que ficaram internadas, a intervalos que variaram de um a três dias. Pela ultrassonografia foram avaliados os parâmetros do PBF (tônus, movimentos corpóreos fetais, movimentos respiratórios fetais e volume de líquido amniótico). Foi utilizado equipamento de ultrassonografia da marca Philips® modelo Envisor e aparelho de cardiotocografia tradicional da marca Hewllet Packard®. A frequência cardíaca fetal (FCF) foi avaliada pela cardiotocografia em gestações após a 28ª semana e classificou o feto como normal quando apresentou pelo menos duas acelerações transitórias de 15 bpm de amplitude em até 30 minutos de traçado, FCF basal entre 110 e 160 bpm, variabilidade acima de 5 bpm e ausência de desacelerações, suspeito na ausência de acelerações transitórias com FCF basal normal e variabilidade reduzida e alterado na presença de desacelerações ou variabilidade ausente. No PBF, para cada parâmetro foi atribuída pontuação de zero (alterado) ou dois (normal). A classificação correspondeu aos seguintes valores: normal, 8-10 pontos; suspeita 6 pontos; e alterada 4 ou menos pontos. O volume do líquido amniótico foi avaliado pelo índice de líquido amniótico (ILA). Seus valores foram classificados como normais quando superiores a 5,0 cm.

O estudo ultrassonográfico foi realizado com o aparelho da marca Philips® modelo Envisor, equipado com dispositivo de Doppler pulsado (Doppler dúplex) com mapeamento colorido de fluxo, transdutor setorial de 3,5-MHz e filtro de baixa frequência (25 Hz). O volume amostral foi adaptado ao diâmetro do vaso selecionado e o ângulo de insonação foi mantido sempre abaixo de 30º. Todos os exames foram realizados por membros do Setor de Vitalidade Fetal, com a paciente em decúbito horizontal e dorso elevado, na ausência de movimentos corpóreos ou respiratórios fetais e frequência cardíaca fetal entre 110 e 160 bpm.

Para cada paciente foram realizadas a doplervelocimetria das artérias umbilicais (AU), artéria cerebral média (ACM) e ducto venoso (DV). A doplervelocimetria das AU foi realizada a partir da insonação do vaso próximo à sua inserção na placenta. Para avaliação dos vasos cerebrais, optou-se pelo uso da ACM por ser técnica de fácil reprodução. A insonação do vaso foi realizada a 1 cm de sua emergência a partir do Polígono de Willis. A doplervelocimetria do DV foi realizada no corte transversal e oblíquo de abdome fetal. Para cada exame foram obtidos de três a cinco sonogramas uniformes e o valor médio de cada resultado foi utilizado para o cálculo dos índices de pulsatilidade (IP) das artérias e do índice de pulsatilidade de veias (IPV) do DV.

A relação cérebro-placentária (RCP) foi calculada pela razão entre o IP da AU e o IP da ACM. Para o cálculo do z-score da RCP, utilizou-se como base a curva de normalidade de Baschat et al. 13 e para seu cálculo foi utilizada a seguinte fórmula: z-score=(RCP - MIG)/DPIG, na qual RCP corresponde ao valor da relação cérebro-placentária calculada em cada caso; MIG a média da RCP na idade gestacional da avaliação, de acordo com a curva de normalidade e DPIG o desvio padrão da média para a idade gestacional de acordo com a curva padrão.

A acidemia no nascimento foi caracterizada pelo valor de pH<7,2 no sangue de artéria do cordão umbilical, coletado pela técnica do duplo clampeamento, e encaminhado de imediato para a análise no laboratório da instituição. Foram investigados ainda os seguintes resultados perinatais: idade gestacional no nascimento, peso do recém-nascido, adequação do peso do recém-nascido, sexo, índices de Apgar de 1º e 5º minutos, necessidade de intubação orotraqueal (IOT) e internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI); e as seguintes variáveis demográficas: idade materna, paridade, cor, e complicações da gestação atual.

A idade gestacional foi calculada a partir da data da última menstruação (DUM), quando compatível com a idade gestacional estimada pela ultrassonografia realizada, no máximo, até a 20ª semana de gestação. Nos casos em que não foi observada tal concordância, a idade gestacional foi calculada pelos dados da primeira ultrassonografia. O peso do recém-nascido, em gramas, foi aferido na sala de parto, e a adequação foi avaliada pela comparação com a curva de normalidade de Alexander et al. 14, de forma que foram classificados como pequenos para a idade gestacional aqueles com o peso inferior ao 10º percentil da faixa correspondente.

Foram incluídas 55 gestações que preencheram os critérios adotados; os dados referentes às características da população, de acordo com a ocorrência de acidemia no nascimento, estão apresentados na Tabela 1.

Os resultados foram analisados com o uso do programa Statistica for Windows (versão 4.3, Statsoft, Inc. , 1993). As variáveis foram analisadas descritivamente, calculando-se frequências absolutas e relativas. Para as variáveis quantitativas, essa análise foi feita pela observação dos valores mínimos, máximos, cálculo de médias e desvios padrão. Para dados quantitativos foi utilizado o teste t de Student para as variáveis de distribuição normal e o teste de Mann-Whitney U para os dados não paramétricos. Os dados categóricos e semiquantitativos foram avaliados pelo teste do qui-quadrado ou teste exato de Fisher quando indicado. Foi realizado teste de correlação de Spearman para comparação de variáveis contínuas. O nível de significância utilizado para os testes foi de p<0,05.

Resultados

A acidemia no nascimento foi detectada em 29 casos (52,7%) e o pH>7,2 em 26 casos (47,3%). Não foi constatada diferença significativa quanto à idade materna, raça, paridade e presença de comorbidades, na comparação entre os grupos com acidemia no nascimento ou não (Tabela 1). A cesárea foi a via de parto em todos os casos.

Os resultados dos exames de avaliação da vitalidade fetal encontram-se na Tabela 2. Os exames foram realizados, em média, 0,9 dias antes do parto (desvio padrão 1,1 dia). Houve associação significativa entre o PBF suspeito ou alterado com a acidemia no nascimento (p=0,03). O IP da AU apresentou valor significativamente maior no grupo com acidemia no nascimento (p=0,003). Quanto à RCP, esta apresentou valor significativamente menor nos fetos que nasceram com acidemia quando comparados ao grupo com pH normal (p=0,009). A análise da RCP pelo z-score demonstrou tendência de maior afastamento negativo da média, mas sem atingir valor significativo (p=0,080). Os demais parâmetros avaliados não apresentaram diferenças significativas.

Na análise das correlações entre as variáveis contínuas, verifica-se correlação positiva e significativa entre o valor do pH de artéria do cordão umbilical e a RCP (r=0,44, p<0,01, Figura (1A). O mesmo ocorreu na comparação entre o pH e o valor do z-score da RCP (r=0,27, p= 0,04, Figura 1B). Quanto ao DV, houve correlação negativa e significativa entre o pH e o IPV de DV (r=-0,34, p=0,009, Figura 1C).




Na Tabela 3 estão apresentados os resultados perinatais de acordo com a ocorrência ou não da acidemia no nascimento. Não foi constatada associação significativa entre os parâmetros avaliados.

Discussão

O prognóstico das gestações de alto risco tem melhorado sensivelmente em consequência de maior controle terapêutico e melhor entendimento dos métodos de avaliação do bem estar fetal. A doplervelocimetria dos vasos fetais é hoje a principal ferramenta no estudo da resposta hemodinâmica fetal frente à hipóxia15. Dentre os parâmetros mais usados, a RCP tem-se mostrado de grande valia no diagnóstico de fetos sob risco, como na presença de restrição de crescimento fetal (RCF). Isso ocorre porque a RCP permite a análise da redistribuição de fluxo sanguíneo por dois mecanismos: a "centralização forçada" causada pelo aumento da resistência placentária e a vasodilatação cerebral ocasionada pelo chamado brain sparring10. Bano et al. 16 observam melhor sensibilidade (83,3%), especificidade (100%), valor preditivo positivo (100%) e valor preditivo negativo (94,3%) da RCP comparativamente ao IP de AU e ACM isoladamente, na predição de prognóstico perinatal adverso. Da mesma forma, em um estudo com fetos com RCF, observou-se que a RCP abaixo do percentil 5 para idade gestacional apresenta sensibilidade superior à doplervelocimetria de AU e ACM isoladamente (65 versus 34 e 35%, respectivamente) para avaliação de prognóstico perinatal. No entanto, a especificidade é inferior à presença de diástole zero ou reversa nas AU (73 versus 93%)17. Em estudo publicado em 2004, observou-se melhor resultado na predição de prognóstico neonatal com a RCP do que com a avaliação do Doppler de artéria umbilical (p<0,001)18 .

Na presente casuística, observamos relação significativa entre a presença de acidemia e a RCP, indicando que esse parâmetro pode ser útil para avaliação do grau de comprometimento fetal. O agravamento da centralização pode indicar pior prognóstico, sendo que a presença de acidemia tem sido descrita como principal fator relacionado ao desenvolvimento neurológico fetal19. Esses resultados são concordantes aos da literatura no que se refere à avaliação de prognóstico neonatal, ainda que a correlação com outros parâmetros usados para fins de prognóstico não tenham apresentado resultado positivo. Não se verifica, na literatura, nenhum trabalho avaliando especificamente a RCP em fetos com insuficiência placentária antes da 34ª semana de gravidez.

A RCP já foi descrita por diversos autores e traduzida por diversos índices (relação sístole/diástole, índice de resistência - IR, IP) e interpretações7,20. Ao contrário do IR, o IP possibilita a análise das ondas de forma multivariada, podendo representar a resistência vascular com maior acurácia18. Baschat et al. 10 observam ainda que a RCP não é constante durante a gestação, e que ao contrário da doplervelocimetria das AU, sua regressão não é linear. Assim, o uso de curvas de normalidade, de acordo com a idade gestacional e população estudada, parece ser de suma importância21, bem como a análise pelos desvios da média, como realizado neste estudo com o z-score.

A idade gestacional de nascimento apresenta forte associação com as complicações neonatais22, podendo ser variável de confusão na avaliação de prognóstico. O uso do z-score minimiza esse efeito, já que se baseia em curvas de acordo com a idade gestacional. Apesar de ser amplamente usado na literatura, não encontramos nenhum outro estudo que utilize esse tipo de análise na avaliação da RCP. O tamanho da amostra pode ter prejudicado a análise desse parâmetro nesta casuística, pois se verifica correlação positiva com o pH no nascimento apesar de não ser demonstrada associação com a presença de acidemia.

Dentre os outros parâmetros estudados, observamos correlação significativa entre a presença de acidemia e o IP de AU, IPV de DV e PBF16,23. A análise da associação da diástole zero ou reversa com a acidemia demonstra que o simples diagnóstico dessa anormalidade não diferencia quais fetos apresentam o distúrbio metabólico, reforçando a necessidade do estudo aprofundado dos demais vasos da circulação fetal. As alterações no IPV do ducto venoso apresentam associação com alterações miocárdicas fetais, reflexo do estado de acidemia no sofrimento fetal24.

A possibilidade da avaliação antenatal da intensidade das adaptações circulatórias fetais frente a situações de hipoxemia e hipoxia crônica, favorece a introdução de novos parâmetros, tais como a RCP na condução de gestações com insuficiência placentária precoce, principalmente quando iniciada antes da 34ª semana. A utilização da RCP mostrou-se útil na identificação de fetos sob risco de acidemia e consequentemente, de pior prognóstico neurológico. O estudo longitudinal de alterações na RCP demonstra ser foco importante na avaliação do bem estar fetal, vislumbrando ser potencial parâmetro para redução da morbimortalidade perinatal em gestações com insuficiência placentária.

Recebido 19/8/10

Aceito com modificações 22/10/10

Disciplina de Obstetrícia do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil.

  • 1. Cruz-Martinez R, Figueras F. The role of Doppler and placental screening. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2009;23(6): 845-55.
  • 2. Villas-Bôas JM, Maestá I, Consonni M. Mecanismo de centralização: da insuficiência placentária à adaptação circulatória fetal. Rev Bras Ginecol Obstet. 2008;30(7):366-71.
  • 3. Scherjon S, Briët J, Oosting H, Kok J. The discrepancy between maturation of visual-evoked potentials and cognitive outcome at five years in very preterm infants with and without hemodynamic signs of fetal brain-sparing. Pediatrics. 2000;105(2):385-91.
  • 4. Behrman RE, Lees MH, Peterson EN, De Lannoy CW, Seeds AE. Distribution of the circulation in the normal and asphyxiated fetal primate. Am J Obstet Gynecol. 1970;108(6):956-69.
  • 5. Cheema R, Dubiel M, Gudmundsson S. Fetal brain sparring is strongly related to the degree of increased placental vascular impedance. J Perinat Med. 2006;34(4):318-22.
  • 6. Wladimiroff JW, Tonge HM, Stewart PA. Doppler ultrasound assessment of cerebral blood flow in the human fetus. Br J Obstet Gynaecol. 1986;93(5):471-5.
  • 7. Spinillo A, Montanari L, Roccio M, Zanchi S, Tzialla C, Stronati M. Prognostic significance of the interaction between abnormal umbilical and middle cerebral artery Doppler velocimetry in pregnancies complicated by fetal growth restriction. Acta Obstet Gynecol Scand. 2009;88(2):159-66.
  • 8. Piazze J, Padula F, Cerekja A, Cosmi EV, Anceschi MM. Prognostic value of umbilical-middle cerebral artery pulsatility index ratio in fetuses with growth restriction. Int J Gynaecol Obstet. 2005;91(7):233-7.
  • 9. Thiebaugeorges O, Ancel PY, Goffinet F, Bréart G; for the EPIPAGE group. A population-based study of 518 very preterm neonates from high-risk pregnancies: prognostic value of umbilical and cerebral artery Doppler velocimety for mortality before discharge and severe neurological morbidity. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2006;128(1-2):69-76.
  • 10. Baschat AA, Gembruch U, Viscardi RM, Gortner L, Harman CR. Antenatal prediction of intraventricular hemorrhage in fetal growth restriction: what is the role of Doppler? Ultrasound Obstet Gynecol. 2002;19(4):334-9.
  • 11. Ebrashy A, Azmy O, Ibrahim M, Waly M, Edris A. Middle cerebral/umbilical artery resistance index ratio as sensitive parameter for fetal well-being and neonatal outcome in patients with preeclampsia: case-control study. Croat Med J. 2005;46(5):821-5.
  • 12. Baschat AA, Cosmi E, Bilardo CM, Wolf H, Berg C, Rigano S, et al. Predictors of neonatal outcome in early-onset placental dysfunction. Obstet Gynecol. 2007;109(2 Pt 1):253-61.
  • 13. Baschat AA, Gembruch U. The cerebroplacental Doppler ratio revisited. Ultrasound Obstet Gynecol. 2003;21(2):124-7.
  • 14. Alexander GR, Himes JH, Kaufman RB, Mor J, Kogan M. A United States national reference for fetal growth. Obstet Gynecol. 1996;87(2):163-8.
  • 15. Mari G, Hanif F. Fetal Doppler: umbilical artery, middle cerebral artery, and venous system. Semin Perinatol. 2008;32(4):253-7.
  • 16. Bano S, Chaudhary V, Pande S, Mehta V, Sharma A. Color Ddoppler evaluation of cerebral-umbilical pulsatility ratio and its usefulness in the diagnosis of intrauterine growth retardation and prediction of adverse perinatal outcome. Indian J Radiol Imaging. 2010;20(1):20-5.
  • 17. Odibo AO, Riddick C, Pare E, Stamilio DM, Macones GA. Cerebroplacental Doppler ratio and adverse perinatal outcomes in intrauterine growth restriction: evaluating the impact of using gestational age-specific reference values. J Ultrasound Med. 2005;24(9):1223-8.
  • 18. Jain M, Farooq T, Shukla RC. Doppler cerebroplacental ratio for the prediction of adverse perinatal outcome. Int J Gynaecol Obstet. 2004;86(3):384-5.
  • 19. Baschat AA. Fetal growth restriction- from observation to intervention. J Perinat Med. 2010;38(3):239-46.
  • 20. Kurmanavicius J, Florio I, Wisser J, Hebisch G, Zimmermann R, Müller R, et al. Reference resistance indices of the umbilical, fetal middle cerebral and uterine arteries at 24-42 weeks of gestation. Ultrasound Obstet Gynecol. 1997;10(2):112-20.
  • 21. Ebbing C, Rasmussen S, Kiserud T. Middle cerebral artery blood flow velocities and pulsatility index and the cerebroplacental pulsatility ratio: longitudinal reference ranges and terms for serial measurements. Ultrasound Obstet Gynecol. 2007;30(3):287-96.
  • 22. Baschat AA, Gembruch U, Harman CR. The sequence of changes in Doppler and biophysical parameters as severe fetal growth restriction worsens. Ultrasound Obstet Gynecol. 2001;18(6):571-7.
  • 23. Makhseed M, Jirous J, Ahmed MA, Viswanathan DL. Middle cerebral artery to umbilical artery resistance index ratio in the prediction of neonatal outcome. Int J Gynecol Obstet. 2000;71(2):119-25.
  • 24. Nomura RM, Cabar FR, Costa VN, Miyadahira S, Zugaib M. Cardiac troponin T as a biochemical marker of cardiac dysfunction and ductus venosus Doppler velocimetry. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2009;147(1):33-6.
  • Correspondência:

    Roseli Mieko Yamamoto Nomura
    Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
    Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 255, 10º andar, sala 10.037
    CEP 05403-000 - São Paulo (SP), Brasil
    Tel.: (11) 3069-6209/Fax (11) 3069-8183
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2010

    Histórico

    • Recebido
      19 Ago 2010
    • Aceito
      22 Out 2010
    Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3421, sala 903 - Jardim Paulista, 01401-001 São Paulo SP - Brasil, Tel. (55 11) 5573-4919 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: editorial.office@febrasgo.org.br