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Prevalência da violência praticada por parceiro masculino entre mulheres usuárias da rede primária de saúde do Estado de São Paulo

Prevalence of violence by intimate male partner among women in primary health units in São Paulo State

Resumos

OBJETIVOS: Avaliar a prevalência e fatores associados à violência praticada por parceiro íntimo (VPI), entre mulheres usuárias das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Estado de São Paulo. MÉTODOS: Foi realizado um estudo descritivo de corte transversal, a partir da análise secundária de dados de entrevista a mulheres usuárias de 75 UBS de 15 Departamentos Regionais do Estado de São Paulo, no período de Agosto/2008 a Maio/2009. Foi utilizado questionário baseado no Abuse Assessment Screen e o Conflict Tactics Scales modificado pelo Violence Against Women Study (VAW), estruturado e pré-testado. As variáveis estudadas foram os tipos de VPI (psicológica, física e sexual) e variáveis sociodemográficas (idade, escolaridade, cor da pele, trabalho remunerado, religião, estado marital e classe econômica). Foram entrevistadas 2.379 mulheres de 18 a 60 anos. RESULTADOS: A prevalência de VPI durante a vida foi de 55,7%, sendo a psicológica, física e sexual de 53,8, 32,2 e 12,4%, respectivamente. As mulheres sem companheiro, mas com casamento anterior, com escolaridade <8 anos e da classe econômica mais baixa tiveram maior risco para todos os tipos de VPI, outros fatores ainda foram associados à VIP psicológica e sexual. CONCLUSÕES: A prevalência de VPI nas UBS do Estado de São Paulo é alta. Os profissionais de saúde da atenção primária devem atentar para a detecção da VPI.

Maus-tratos conjugais; Atenção primária à saúde; Serviços básicos de saúde; Prevalência


PURPOSE: To evaluate the prevalence and factors associated with intimate partner violence (IPV) among women users of Basic Health Units (BHU) in the State of São Paulo. METHODS: This was a cross-sectional descriptive study based on secondary data analysis of women users' interviews at 75 BHU in the State of São Paulo, from August/2008 to May/2009. We used a questionnaire based on the Abuse Assessment Screen and the Conflict Tactics Scales modified by the Violence Against Women Study (VAW), structured and pre-tested. The variables studied were the types of IPV (psychological, physical and sexual) and sociodemographic variables (age, education, race, paid work, religion, marital status and economic class). We interviewed 2,379 women aged 18 to 60 years. RESULTS: The prevalence of lifetime IPV was 55.7%, and the prevalences of psychological, physical and sexual IPV were 53.8, 32.2 and 12.4%, respectively. Women without a partner but previously married, with schooling <8 years and belonging to the lower economic class had a higher risk for all types of IPV, and other factors were also associated with psychological and sexual IPV. CONCLUSIONS: The prevalence of IPV is high. Healthcare professionals in primary care should make an attempt to detect IPV.

Spouse abuse; Primary health care; Basic health services; Prevalence


ARTIGO ORIGINAL

Prevalência da violência praticada por parceiro masculino entre mulheres usuárias da rede primária de saúde do Estado de São Paulo

Prevalence of violence by intimate male partner among women in primary health units in São Paulo State

Ana Karina Rios de Araujo MathiasI; Aloisio José BedoneII; Maria José Duarte OsisIII; Arlete Maria dos Santos FernandesII

IPós-Graduação do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas (SP), Brasil

IIDepartamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas (SP), Brasil

IIICentro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas – CEMICAMP – Campinas (SP), Brasil

Correspondência Correspondência: Arlete Maria dos Santos Fernandes Rua Alexander Fleming, 101 CEP: 13083-881. Campinas (SP), Brasil

RESUMO

OBJETIVOS: Avaliar a prevalência e fatores associados à violência praticada por parceiro íntimo (VPI), entre mulheres usuárias das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Estado de São Paulo.

MÉTODOS: Foi realizado um estudo descritivo de corte transversal, a partir da análise secundária de dados de entrevista a mulheres usuárias de 75 UBS de 15 Departamentos Regionais do Estado de São Paulo, no período de Agosto/2008 a Maio/2009. Foi utilizado questionário baseado no Abuse Assessment Screen e o Conflict Tactics Scales modificado pelo Violence Against Women Study (VAW), estruturado e pré-testado. As variáveis estudadas foram os tipos de VPI (psicológica, física e sexual) e variáveis sociodemográficas (idade, escolaridade, cor da pele, trabalho remunerado, religião, estado marital e classe econômica). Foram entrevistadas 2.379 mulheres de 18 a 60 anos.

RESULTADOS: A prevalência de VPI durante a vida foi de 55,7%, sendo a psicológica, física e sexual de 53,8, 32,2 e 12,4%, respectivamente. As mulheres sem companheiro, mas com casamento anterior, com escolaridade <8 anos e da classe econômica mais baixa tiveram maior risco para todos os tipos de VPI, outros fatores ainda foram associados à VIP psicológica e sexual.

CONCLUSÕES: A prevalência de VPI nas UBS do Estado de São Paulo é alta. Os profissionais de saúde da atenção primária devem atentar para a detecção da VPI.

Palavras-chave: Maus-tratos conjugais; Atenção primária à saúde; Serviços básicos de saúde; Prevalência

ABSTRACT

PURPOSE: To evaluate the prevalence and factors associated with intimate partner violence (IPV) among women users of Basic Health Units (BHU) in the State of São Paulo.

METHODS: This was a cross-sectional descriptive study based on secondary data analysis of women users' interviews at 75 BHU in the State of São Paulo, from August/2008 to May/2009. We used a questionnaire based on the Abuse Assessment Screen and the Conflict Tactics Scales modified by the Violence Against Women Study (VAW), structured and pre-tested. The variables studied were the types of IPV (psychological, physical and sexual) and sociodemographic variables (age, education, race, paid work, religion, marital status and economic class). We interviewed 2,379 women aged 18 to 60 years.

RESULTS: The prevalence of lifetime IPV was 55.7%, and the prevalences of psychological, physical and sexual IPV were 53.8, 32.2 and 12.4%, respectively. Women without a partner but previously married, with schooling <8 years and belonging to the lower economic class had a higher risk for all types of IPV, and other factors were also associated with psychological and sexual IPV.

CONCLUSIONS: The prevalence of IPV is high. Healthcare professionals in primary care should make an attempt to detect IPV.

Keywords: Spouse abuse; Primary health care; Basic health services; Prevalence

Introdução

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência como o uso intencional da força física ou do poder, real ou sob ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento e privação1. A violência por parceiro íntimo (VPI) atenta contra os direitos humanos e é um problema global de saúde pública1.

Em estudo multicêntrico da Organização Mundial de Saúde (OMS) para medir condições de saúde e violência doméstica, foram entrevistadas mais de 24.000 mulheres em 10 países, e a prevalência de VPI física ou sexual, ou ambas, durante a vida variou de 15 a 71% segundo o país, evidenciando a frequência e abrangência do problema na saúde pública em todos os países pesquisados2. Em relação às condições de saúde das mulheres, houve associação significativa da VPI à percepção ruim ou muito ruim da própria saúde e a sintomas físicos nas quatro semanas anteriores à entrevista, além de associação significativa à referência de pensamentos e tentativas de suicídio3, mostrando inter-relação entre a VPI e sérias consequências diretas e indiretas na saúde pública.

No Brasil, no início dos anos 2000, vários estudos foram realizados sobre prevalência de VPI4-6. Em estudo de base populacional para estudar a magnitude da violência praticada por mulheres e homens em relacionamentos heterossexuais estáveis, entrevistou 6.760 mulheres de 15–69 anos em 15 capitais do Brasil e o Distrito Federal4. A prevalência de violência psicológica ocorreu em 78,3% dos casais, e a violência física classificada em "menor" e "severa" foi descrita por 21,5% e 12,9% dos casais, respectivamente4. Apesar das mulheres também serem agressoras, os escores para violência física foram sempre maiores quando o homem era o agressor4.

Entre os estudos para avaliar a VPI praticada por parceiro masculino, um deles realizado na Grande São Paulo, entrevistou 3.193 usuárias de serviços públicos e descreveu que 61% delas referiu VPI durante a vida5. Em outro estudo realizado com 940 mulheres da cidade de São Paulo e 1.188 mulheres de 15 municípios da Zona da Mata de Pernambuco, descreveu que 41,8 e 48,9% das mulheres, respectivamente nos dois sítios pesquisados, referiram que pelo menos uma vez na vida haviam sofrido VPI psicológica, 27,2 e 33,7% violência física e 10,1 e 14,3% referiram violência sexual. Avaliando-se, em estudo posterior, a busca por serviços formais para VPI por parte dessas mulheres, encontrou-se que apenas 33,8% das mulheres de São Paulo e 17,1% das mulheres da Zona da Mata Pernambucana procuraram ajuda de serviços de saúde, justiça, de assistência social ou outro dispensado pela sociedade civil, em especial aquelas cuja agressão havia sido mais severa7.

O Sistema Unificado de Saúde, SUS, em especial as Unidades Básicas de Saúde (UBS), são amplamente utilizados na assistência a mulheres em todas as fases de vida. Devido às altas taxas encontradas de VPI no início da década, optamos por avaliar dados secundários de pesquisa anterior realizada em 2008–20098 e medir a prevalência e fatores sociodemográficos associados à VPI entre mulheres que frequentam as UBS do interior do estado de São Paulo.

Métodos

Foi um estudo descritivo de corte transversal realizado no Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP e no Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva (CEMICAMP).

Este estudo foi realizado a partir de dados secundários coletados em pesquisa anterior7 sobre a detecção da violência nas usuárias de UBS/ESF e o tratamento dispensado às vítimas pelos profissionais desses serviços de saúde. O questionário utilizado para a coleta de informações foi estruturado e pré-testado e teve como base em sua confecção o Abuse Assessment Screen9 e o Conflict Tactics Scales modificado pelo Violence Against Women Study (VAW), este último realizado pela OMS em vários países, entre os quais o Brasil10. O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e todas as mulheres assinaram o termo de consentimento informado. A pesquisa foi conduzida de acordo com a Declaração de Helsinque, revisada em 200811,12.

Os dados foram coletados de mulheres usuárias das UBS dos Departamentos Regionais do Estado de São Paulo no período de Agosto/2008 a Maio/2009. Foram entrevistadas mulheres de 15 municípios-sede dos Departamentos Regionais de Saúde (DRS) da Secretaria Estadual de Saúde, sendo eles: DRS 1 – Grande São Paulo; DRS 2 – Araçatuba; DRS 3 – Araraquara; DRS 4 – Baixada Santista; DRS 7 – Campinas; DRS 8 – Franca; DRS 9 – Marília; DRS 10 – Piracicaba; DRS 11 – Presidente Prudente; DRS 12 – Registro; DRS 13 – Sertãozinho; DRS 14 – São João da Boa Vista; DRS 15 – São José do Rio Preto; DRS 16 – Sorocaba e DRS 17 – Taubaté.

O tamanho da amostra no projeto original foi de 2.379 mulheres considerando-se a prevalência estimada de 46% de algum tipo de violência durante a vida6 com diferença absoluta aceitável de 2% e erro tipo I de 5%, acrescentando-se 10% para possíveis perdas e por não resposta. Tornamos a recalcular a amostra segundo os objetivos do estudo atual. Segundo as prevalências para os diferentes tipos de violência, psicológica, física e sexual5 considerando-se o nível significância de 5% e um erro amostral de 5%, o tamanho da amostra foi calculado em 384 mulheres. Aceitou-se a amostra de 2.379 mulheres para este estudo.

Foi utilizado um banco de dados secundário composto de variáveis sociodemográficas: faixa etária (<19 anos, 20–29 anos, 30–39 anos, 40–49 anos e 50–60 anos); escolaridade (<8 anos e >8anos), cor da pele (negra ou branca); trabalho remunerado (sim ou não); religião [católica, protestante/evangélica, outras (espiritismo, umbanda, candomblé e religiões orientais) e sem religião]; estado marital (com companheiro em convívio, com companheiro sem convívio, sem companheiro com casamento anterior, sem companheiro e sem casamento anterior); e classes econômicas categorizadas segundo renda familiar em reais em: classe E<618,00; classe D 618,00 a 932,99; classe C 933,00 a 2.326,99; e classes A e B32327,0013. Também foram utilizadas as variáveis categorizadas em tipo de violência sofrida pela mulher, em violência física, sexual e psicológica. Foi considerada violência física qualquer resposta positiva às perguntas sobre se "alguma vez o atual/anterior marido/companheiro/namorado" havia cometido os seguintes atos: "estrangulado ou queimado"; "levado um chute, uma surra ou foi arrastada"; "foi machucada com soco ou objeto"; "deram-lhe um tapa, atiraram algo que poderia machucar"; "foi empurrada, deram-lhe um tranco/chacoalhão". Como violência sexual foram consideradas as respostas afirmativas às perguntas sobre se "alguma vez, pelo atual/anterior marido/companheiro/namorado": "havia sido forçada a manter prática sexual degradante/humilhante"; "submeteu-se a relação sexual por medo"; "foi forçada a manter relações sexuais". Considerou-se violência psicológica as repostas afirmativas às perguntas sobre se "alguma vez, pelo atual/anterior marido/companheiro/namorado": "foi ameaçada"; "foi assustada ou intimidada"; "foi depreciada ou humilhada"; "foi insultada e/ou sentiu-se mal a respeito de si".

A análise estatística foi realizada através do teste t de Student e do teste χ2. Posteriormente, foi realizada análise múltipla por regressão logística através do cálculo do Odds Ratio (OR) múltiplo e respectivo intervalo de confiança de 95% para determinar as características das mulheres associadas a variáveis tipo de violência. A metodologia foi descrita com detalhes em estudo anterior8.

Resultados

A Tabela 1 mostra a distribuição das mulheres que referiram VPI psicológica, física e sexual, segundo características sociodemográficas. A violência psicológica foi a mais frequente, relatada por 1261 mulheres (53,8%), seguida da física e da sexual relatadas por 755 (32,2%) e 291 (12,4%) mulheres, respectivamente. As formas de violência física e sexual foram mais frequentes entre as mulheres de maior faixa etária (p=0,002 e p<0,0001, respectivamente).

Observou-se maior percentual de mulheres com até oito anos de escolaridade que referiram ter sofrido violência psicológica, física e sexual, 57,2% (p=0,0005), 37,7% (p<0,0001) e 15,9% (p<0,0001), em comparação às taxas de 50, 26,1 e 8,5%, respectivamente, com escolaridade maior de oito anos. Um percentual maior de mulheres que referiram ter outras religiões (não católica/não protestante) referiu ter sofrido violência psicológica, e as violências física e sexual foram mais relatadas por mulheres que referiram a religião protestante. As formas de violência psicológica e sexual foram mais referidas pelas mulheres sem companheiro com casamento anterior. Por outro lado, a violência física foi mais prevalente entre as mulheres que conviviam com o companheiro (p<0,0001). Os três tipos de violência foram relatados com mais frequência pelas mulheres de classes econômicas mais baixas (p<0,0001). Não se observou diferença significativa quando se analisou a cor da mulher e o fato de exercer ou não trabalho remunerado.

A análise de regressão logística múltipla mostrou que as seguintes variáveis estiveram associadas à prevalência de violência psicológica: estar sem companheiro atual com casamento anterior (OR=3,7; IC95% 2,4–5,8), pertencer às classes econômicas E, D e C (respectivamente OR=2,0; IC95% 2,0–3,0; OR=1,6; IC95% 1,6–2,3 e OR=1,5; IC95% 1,5–2,1), ter escolaridade <8 anos (OR=1,2; IC95% 1,0–1,5), religião protestante/evangélica (OR=1,2; IC95% 1,01–1,4) e exercer trabalho remunerado (OR 1,2; IC95% 1,0–1,4) (Tabela 2).

Foram associados à violência física estar sem companheiro atual com casamento anterior (OR=3,1; IC95% 2,17–4,4), pertencer à classe econômica E (OR=2,1; IC95% 1,3–3,0) e ter escolaridade <8 anos (OR=1,5; IC95% 1,2–1,9).

A violência sexual foi associada às faixas etárias 30–39 anos, 40–49 anos e 350 anos (respectivamente OR=5,5; IC95% 1,6–18,3; OR=5,2; IC95% 1,5–17,3 e OR=5,8; IC95% 1,7–19,7), estar sem companheiro atual com casamento anterior (OR=3,6; IC95% 2,3–5,4), estar com companheiro atual sem convívio (OR=2,6; IC95% 1,7–4,0), pertencer às classes econômicas E, D e C (respectivamente OR=3,3; IC95% 1,4–7,7; OR=2,9; IC95% 1,3–6,7 e OR=2,2; IC95% 1,0–2,0), ter escolaridade <8 anos (OR=1,4; IC95% 1,0–2,0), e religião protestante/evangélica (OR=1,4; IC95% 1,1–1,9).

Discussão

Neste estudo a prevalência de mulheres com vivência de VPI foi de 55,7%, similares às descritas em estudos nacionais4-6. As prevalências de violência psicológica, física e sexual foram de 53,8, 32,2 e 12,4%. Em estudo realizado na cidade de São Paulo, Santo André, Diadema e Mogi das Cruzes e que incluiu 19 serviços de saúde, a maioria UBS e algumas delas dispensavam também serviços especializados, avaliou 3.193 usuárias de 15 a 49 anos entrevistadas sobre VPI durante a vida, taxas semelhantes foram encontradas: 52,9% de violência psicológica, 40,3% de física e 21% sexual5. A violência sexual, em geral, tem sido menos referida em todos os estudos, possivelmente porque é aquela mais reconhecida nos eventos cometidos por terceiros, geralmente desconhecidos, mas não tão referida quando exercida por parceiros íntimos. Em contrapartida, a violência psicológica foi a mais prevalente e é possível que seja mais fácil para a mulher relatar insultos, intimidações ou ameaças, do que as situações íntimas humilhantes e/ou forçadas pelo parceiro. Uma de cada três mulheres neste estudo tinha vivido alguma vez violência física provocada pelo parceiro, frequência compatível com a variação de 21,5 a 40,3% descritas em outros estudos nacionais4-6.

Estudos realizados em UBS nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil descreveram prevalências similares de VPI psicológica e física, em geral, com taxas maiores nas duas primeiras regiões em relação às demais4. Os estudos internacionais mostram variações de prevalência de VPI entre países. Em estudo multicêntrico da OMS com a participação de Bangladesh, Brasil, Etiópia, Japão Namíbia, Peru, República da Tanzânia, Samoa, Servia e Montenegro, e Tailândia, com 24.097 mulheres de 15 a 49 anos, as prevalências descritas variaram para a violência física durante a vida de 12,9% no Japão a 61% ao Peru, e para a violência sexual de 1,1% no Japão a 58,6% na Etiópia2. Em geral, as taxas mais altas foram descritas nos países em desenvolvimento2.

Resultados da pesquisa em São Paulo e Pernambuco mostraram a escolaridade até oito anos da mulher como característica associada à violência por parceiro íntimo6. Este estudo teve resultados similares com relação à escolaridade da mulher, aquelas com até oito anos de estudo apresentaram 25 a 50% maior chance de sofrer violência psicológica, física e sexual que mulheres com escolaridade maior de oito anos.

Em estudo que avaliou os dados multicêntricos de pesquisa da OMS em relação aos fatores associados à VPI, encontrou similaridade entre os países14. Entre os fatores sociodemográficos, estar em convívio com o parceiro e idade jovem da mulher foram os fatores de risco associados14. Nossos resultados foram divergentes em relação a essas duas variáveis. Entre as mulheres acima de 30 anos observou-se cinco vezes maior chance de violência sexual por parceiro íntimo, mas não houve associação entre idade e violência física e psicológica. É possível que devido à pergunta "alguma vez na vida" e não "no último ano" (pergunta feita no estudo da OMS), as mulheres de maior idade tenham estado por mais tempo expostas à VPI, especialmente a sexual, que muitas vezes iniciam a vivenciar com evento de abuso na infância e/ou adolescência e seguem vivendo com seus companheiros episódios de sexo sem consentimento.

Quanto à situação conjugal, estar sem companheiro com casamento anterior aumentou três vezes a chance de todas as formas de violência. A forma como foi categorizada a variável estado marital contribuiu para sua melhor compreensão. As mulheres sem companheiro foram categorizadas neste estudo como com e sem casamento anterior, tentando impedir o viés de que as mulheres solteiras poderiam estar mais expostas à violência. É possível que esse grupo de mulheres sem companheiro com casamento anterior, ao contrário, tenha concentrado mulheres com vivências traumáticas de seus relacionamentos anteriores, e que por isso tenham feito opção por viverem sozinhas. Inversamente, estar com companheiro sem convívio aumentou a chance para a violência sexual, mas não para a física e psicológica, ao contrário do descrito em estudo nacional que encontrou risco duas vezes maior para VPI física entre pessoas solteiras15. É possível que mulheres solteiras estejam mais expostas à violência sexual por frequentarem ambientes da vida noturna, quando é mais comum exposição a álcool e drogas, que são agentes facilitadores de atos violentos.

Poucos estudos na literatura avaliaram a religião entre fatores analisados, um deles observou que 67% das mulheres que sofreram violência, independente do tipo de agressão, referiram a prática de religião católica16. Ao contrário, este estudo mostrou que a referência à religião protestante/evangélica foi maior para a violência psicológica e sexual, mas não para a violência física. O fato de que categorizamos a religião protestante juntamente com a evangélica, grupos de característica socioeconômica e cultural diferentes, bem como por ter agrupado as religiões menos referidas (espiritismo, umbanda, candomblé e religiões orientais) em "outras religiões" podem ter levado a viés nos resultados.

Foi observada, neste estudo, maior prevalência de violência entre as mulheres de classes econômicas mais baixas, resultado similar a estudo nacional no qual 59% das mulheres de classes D e E referiram violência psicológica, enquanto 43% dessas mesmas classes referiram violência física16. Ressalte-se que não há estudos com mulheres de estratos mais elevados, porque as pesquisas normalmente são realizadas em UBS ou hospitais públicos frequentados pela população de menor renda.

Além disso, não se encontrou associação entre cor da pele da mulher e violência por parceiro íntimo, similar a estudo anterior15, o que significa que a questão da violência é possivelmente afetada por aspectos econômicos e não étnicos. Neste estudo, ter ou não trabalho remunerado não influenciou nas formas de violência física e sexual por parceiro íntimo, mas foi 20% maior a chance de mulheres sem trabalho remunerado referirem violência psicológica. É possível que mulheres dependentes sejam mais submetidas a insultos e provocações do companheiro, entretanto, este estudo foi limitado para avaliar esta questão.

Este estudo, com predomínio de municípios maiores de 100.000 habitantes do Estado de São Paulo, mostrou que a prevalência de VPI é alta. Há, todavia, aspectos importantes a serem considerados. A composição da amostra por mulheres que frequentam as UBS dos municípios certamente alterou a representatividade das classes econômicas A e B e, consequentemente, os resultados não podem ser representativos da população do Estado. Outro fator a ser considerado diz respeito à complexidade de análise da variável religião, uma característica difícil de ser medida em sua influência no comportamento dos indivíduos, e intrinsecamente ligada às demais características socioculturais e econômicas.

Apesar disso, ressaltamos que mulheres sem companheiro com casamento anterior, com menor escolaridade e da classe econômica mais baixa tiveram maior risco para todos os tipos de VPI. Há necessidade de profissionais de saúde tenham atenção ao problema da VPI, tão prevalente e ao mesmo tempo tão invisível na atenção à saúde. Os profissionais que atendem nas UBS devem ter em mente a importância de seu papel ao investigar a história de VPI, promover apoio e orientação às mulheres que buscam esses serviços.

Agradecimento

Este estudo recebeu financiamento FAPESP, processo nº 06/57096-6. Ao Prof. Dr. Aníbal Faúndes, pesquisador responsável pelo estudo original, por ceder o bando de dados para este artigo. A Sirlei Siani Moraes pelo auxílio na análise estatística dos dados.

Recebido 15/03/2013

Aceito com modificações 11/04/2013

Trabalho realizado no Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – Campinas (SP), Brasil.

Conflito de interesse: não há.

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  • Correspondência:

    Arlete Maria dos Santos Fernandes
    Rua Alexander Fleming, 101
    CEP: 13083-881. Campinas (SP), Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      15 Mar 2013
    • Aceito
      11 Abr 2013
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