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Colpocitologia de mulheres com diagnóstico de adenocarcinoma do colo do útero

Cytological smears of women diagnosed with adenocarcinoma of the uterine cervix

Resumos

OBJETIVO:

Analisar os achados citológicos de mulheres detectadas com adenocarcinoma do colo do útero, levando em conta o histórico da paciente no ano que antecedeu ao diagnóstico e a histopatologia das lesões.

MÉTODOS:

Este é um estudo comparativo, retrospectivo conduzido com dados de mulheres com adenocarcinoma ou com carcinoma escamoso do colo do útero detectados entre 2002 e 2008. Os laudos da citologia foram sintetizados de acordo com a terminologia Bethesda revisada em 2001 e foram comparados com a histopatologia de adenocarcinoma e de carcinoma escamoso. Foram verificadas as distribuições dos achados citológicos, a concordância global e corrigida pelo acaso com o uso do coeficiente Kappa de Cohen. Para isso, as alterações citológicas foram agregadas de acordo com a origem epitelial, formando os grupos de células glandulares e de células escamosas, tendo como padrão ouro os grupos de tumor histopatologicamente confirmados (adenocarcinoma versus carcinoma escamoso).

RESULTADOS:

No período, 284 casos de câncer do colo uterino foram diagnosticados. Os casos efetivamente estudados compreenderam 27 e 54 pacientes com adenocarcinoma e com carcinoma escamoso, respectivamente. O grupo de adenocarcinoma representou 9,5% do total diagnosticado, com 56% das mulheres com idade inferior a 50 anos. A coleta da citologia foi feita em média 92 dias antes do diagnóstico do câncer (variação: 19 dias a 310 dias). Em 41,6% dos casos, a citologia que precedeu o diagnóstico do adenocarcinoma foi indicativa de alterações glandulares do tipo adenocarcinoma e atipias de células glandulares. A concordância simples foi de 73,7% e o coeficiente Kappa de 48,7%, sugerindo moderada concordância.

CONCLUSÃO:

Nesta população, a citologia teve um importante papel no rastreio de mulheres com adenocarcinoma, embora algumas delas tenham sido referidas para esclarecer sintomas clínicos. A concordância entre os achados da citologia e da histopatologia foi moderada.

Adenocarcinoma/patologia; Esfregaço vaginal; Colo do útero/patologia; Biologia celular; Reprodutibilidade dos testes


PURPOSE:

To analyze the cytological findings of women with cervical adenocarcinoma, taking into account the patient's history in the year prior to diagnosis and the histopathological aspects of the lesions.

METHODS:

A retrospective comparative study was conducted using data from women with cervical adenocarcinoma or squamous carcinoma detected between 2002 and 2008. The cytological reports were synthesized according to the Bethesda System revised in 2001 and were compared to the histopathological findings of cervical adenocarcinoma and squamous carcinoma. The distributions of cytological findings were calculated, as well as the global agreement and chance-corrected agreement using the Cohen's Kappa Coefficient. For this purpose, the cytological findings were grouped according to the epithelial origin, forming the glandular cell and squamous cell groups, with the histopathologically confirmed tumor types (adenocarcinoma versus squamous carcinoma) being used as the gold standard.

RESULTS:

A total of 284 cases of cervical cancer were diagnosed during the study period. The effectively studied cases were 27 and 54 patients with adenocarcinoma and squamous carcinoma, respectively. The adenocarcinoma group represented 9.5% of the total cases diagnosed, and 56.0% of the women in this group were younger than 50 years. Cervical cytology was collected on average 92 days before the cancer diagnosis (range: 19 days to 310 days). In 41.6% of cases the cytological results were consistent with glandular alterations such as adenocarcinoma cells or atypical glandular cells. The global agreement and Cohen's Kappa Coefficient were 73.7 and 48.7%, suggesting substantial and moderate agreement, respectively.

CONCLUSIONS:

In this population, the cytological smears had an important role in screening women with adenocarcinoma, although some of them were referred to clarify the clinical symptoms. The agreement between cytological and histopathological findings was moderate.

Adenocarcinoma/pathology; Vaginal smears; Cervix uteri/pathology; Cell biology; Reproducibility of results


Introdução

No Brasil, o câncer do colo do útero permanece como um importante problema de saúde pública, esperando-se para o ano de 2014 cerca de 15.590 casos novos da doença, distribuídos em todas as regiões do país11. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva [Internet]. INCA e Ministério da Saúde apresentam estimativas de câncer para 2014. Rio de Janeiro: INCA; 2013. [citado 2013 Dez 18]. Disponível em: <http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/agencianoticias/site/home/noticias/2013/inca_ministerio_saude_apresentam_estimativas_cancer_2014>
Disponível em: <htt...
. Informações sobre mortalidade mostram que esta neoplasia encontra-se entre as cinco principais causas de morte no sexo feminino, com coeficientes em torno de 5 por 100.000, nas últimas três décadas22. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer [Internet]. Atlas de mortalidade por câncer. Rio de Janeiro: INCA; 2013. [citado 2013 Dez 18]. Disponível em: <http://mortalidade.inca.gov.br/Mortalidade/prepararModelo03.action>
Disponível em: <htt...
. Entretanto, análises conduzidas após a aplicação de fator de correção sugerem taxas de mortalidade mais elevadas no país como um todo, em algumas regiões e nos municípios do interior, comparados às capitais33. Azevedo e Silva G, Girianelli VR, Gamarra CJ, Bustamante-Teixeira MT. Cervical cancer mortality trends in Brazil, 1981-2006. Cad Saude Publica. 2010;26(12):2399-407..

A prevenção secundária do câncer do colo do útero no país baseia-se em normas que preconizam a detecção precoce pelo rastreamento com o uso do teste de Papanicolaou, o qual tem sido oferecido na Atenção Básica, com faixa etária e periodicidade bem definidas44. Brasil . Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Coordenação Geral de Ações Estratégicas. Divisão de Apoio à Rede de Atenção Oncológica . Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. Rio de Janeiro: INCA; 2011.. Neste nível de atenção, os insumos necessários ao rastreamento são disponibilizados, contando-se com dispositivos como a espátula de Ayre e a escova endocervical. O uso sistemático da escova tem proporcionado maior alcance do segmento anatômico endocervical e da profundidade das criptas glandulares, levando a um aumento da detecção de alterações do epitélio colunar55. Di Bonito L. [Semiology of cervical glandular cell abnormalities]. Ann Pathol. 2011;31(5 Suppl):S105-6. French..

Para descrever as alterações celulares detectadas no epitélio glandular, a última revisão do Sistema Bethesda66. Solomon D, Davey D, Kurman R, Moriarty A, O'Connor D, Prey M, et al. The 2001 Bethesda System: terminology for reporting results of cervical cytology. JAMA. 2002;287(16):2114-9. criou as categorias de células glandulares atípicas sem outra especificação e favorecendo neoplasia. A nomenclatura em vigência no Brasil recomenda o uso dos termos células glandulares atípicas de significado indeterminado, possivelmente não neoplásicas e células glandulares atípicas de significado indeterminado, quando não se pode excluir lesão intraepitelial de alto grau como análogos aqueles do Sistema Bethesda77. Brasil . Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Coordenação de Prevenção e Vigilância . Nomenclatura brasileira para laudos cervicais e condutas preconizadas: recomendações para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: INCA; 2006.. Independe da classificação, todos os casos de atipias glandulares necessitam de avaliação minuciosa, incluindo o exame de colposcopia e a exploração endocervical, ou mesmo endometrial88. Bourgain C. [What strategy should be adopted for the screening of uterine cervix adenocarcinoma ?]. Ann Pathol. 2008;28 Spec No 1(1):S94-5. French..

Enquanto as alterações citológicas de origem glandular encontram-se entre as menos comuns, com frequência inferior a 0,35%99. Sharpless KE, King CR, Schnatz PF. Adherence to practice guidelines for atypical glandular cells on cervical cytology. Cancer Cytopathol. 2013;121(1):47-53. , 1010. Adhya AK, Mahesha V, Srinivasan R, Nijhawan R, Rajwanshi A, Suri V, et al. Atypical glandular cells in cervical smears: histological correlation and a suggested plan of management based on age of the patient in a low-resource setting. Cytopathology. 2009;20(6):375-9. , as neoplasias glandulares invasivas histologicamente confirmadas mostram incidência em elevação em algumas partes do mundo. Por exemplo, nos Estados Unidos, a análise de dados do Surveillance, Epidemiology, and End Results (SEER) mostrou que a taxa de incidência de adenocarcinomas teve um aumento de aproximadamente 32,2%, passando de 1,09/100.000 (1973-1975) para 1,44/100.000 (2006-2007)1111. Adegoke O, Kulasingam S, Virnig B. Cervical cancer trends in the United States: a 35-year population-based analysis. J Womens Health (Larchmt). 2012;21(10):1031-7. . Tendo em vista que o adenocarcinoma constitui uma entidade que diverge, em vários aspectos, das lesões de origem malpighiana, que sua história natural ainda não está bem estabelecida1212. Gien LT, Beauchemin MC, Thomas G. Adenocarcinoma: a unique cervical cancer. Gynecol Oncol. 2010;116(1):140-6. e que as lesões in situ do epitélio glandular são encontradas com frequência muito menor do que aquelas do epitélio escamoso1313. Kalir T, Simsir A, Demopoulos HB, Demopoulos RI. Obstacles to the early detection of endocervical adenocarcinoma. Int J Gynecol Pathol. 2005;24(4):399-403., torna-se relevante o desenvolvimento do presente estudo, que teve o objetivo de analisar os achados colpocitológicos de mulheres detectadas com adenocarcinoma do colo uterino, levando em conta o histórico da paciente no período que antecedeu ao diagnóstico e a histopatologia das lesões.

Métodos

Este é um estudo comparativo, retrospectivo, conduzido com dados de pacientes atendidas em um hospital de ensino, localizado no estado do Rio de Janeiro. A unidade de saúde é referência para atendimento de mulheres, que são encaminhadas para avaliação por colposcopia e esclarecimento de alterações da cérvice uterina suspeitas de neoplasia, matriculando, em média, 400 pacientes ao ano.

As mulheres com diagnóstico de adenocarcinoma do colo do útero confirmado por exame histopatológico, registradas na unidade de saúde entre janeiro de 2002 e junho de 2008, foram candidatas à inclusão no estudo. Foram excluídas aquelas cujo diagnóstico morfológico de neoplasia glandular ocorreu de forma sincrônica à outra de origem no epitélio escamoso (três casos), bem como aquelas com diagnóstico histopatológico, obtido antes da matrícula no setor, devido à impossibilidade de se garantir a independência entre os observadores responsáveis pela citologia e pela histopatologia (um caso). O grupo de comparação foi composto tendo como base o momento do diagnóstico e a idade da paciente com adenocarcinoma. Ao se identificar um caso de adenocarcinoma, buscou-se selecionar os dois primeiros casos de carcinoma escamoso diagnosticados em data imediatamente posterior, considerando a variação de ± quatro anos em relação à idade da mulher portadora de neoplasia de origem glandular. Assim, a população de estudo foi composta por 27 casos de adenocarcinoma e 54 casos de carcinoma escamoso, totalizando 81 mulheres.

A coleta de dados foi feita por revisão de prontuários e sob a responsabilidade das duas autoras. Foram consultados os arquivos do setor de patologia do trato genital inferior e colposcopia do hospital de ensino para identificação dos casos de adenocarcinoma. A incompletude de informações a respeito da histopatologia do tumor foi solucionada consultando os arquivos do setor de anatomia patológica.

Foram obtidas algumas informações a respeito das características sociodemográficas e de estilo de vida, contemplando o estado civil (casada versus não casada); a cor da pele (não branca versus branca); o grau de escolaridade (nenhum ou Fundamental Incompleto versus Fundamental Completo ou maior); o uso de contracepção hormonal (sim/não); e o uso de tabaco (sim/não).

As variáveis de interesse no estudo foram: tipo histológico do tumor (adenocarcinoma versus escamoso); a idade no momento do diagnóstico; a situação da paciente no período que antecedeu ao diagnóstico do câncer, considerando-se as possibilidades de a detecção ter sido motivada por sintomas, por colpocitologia ou por ambos; conhecimento sobre o programa brasileiro de controle do câncer do colo uterino (sim/não); a aderência à realização de Papanicolaou, avaliada pelo histórico de intervalos relatados (nunca fez ou fazendo pela primeira vez; anualmente; de um a cinco anos; mais de cinco anos); e o resultado da última citologia coletada no período que antecedeu ao diagnóstico, estabelecendo-se como prazo de inclusão o período de um ano, contado entre a data da coleta do esfregaço cervical e a data da biópsia que confirmou a presença do tumor.

Os laudos da colpocitologia selecionada foram sintetizados tendo como referência a terminologia de Bethesda, revisada no ano de 20016, e as recomendações do INCA4, considerando-se as possibilidades dos esfregaços serem classificados como: (i) dentro dos limites da normalidade; (ii) com alterações celulares benignas; (iii) com atipias de células escamosas de significado indeterminado (possivelmente não neoplásicas - ASCUS; não podendo excluir lesão de alto grau - ASC-H); (iv) atipias de células glandulares de significado indeterminado (possivelmente não neoplásicas ou quando não se pode excluir lesão de alto grau - ACG); (v) lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LSIL); (vi) lesão intraepitelial escamosa de alto grau (HSIL) ou que não pode excluir micro-invasão ou carcinoma escamoso invasor; e (vii) adenocarcinoma in situ ou adenocarcinoma invasor.

Os laudos histopatológicos foram transcritos sucintamente, considerando-se apenas a classificação morfológica principal do tipo adenocarcinoma e carcinoma escamoso.

A análise estatística contemplou as frequências absolutas e relativas das variáveis selecionadas, a distribuição do achado citológico com o achado histopatológico e a verificação da concordância do diagnóstico das alterações citológicas indicativas de lesões glandulares (adenocarcinoma, ACG ou AGUS) e escamosas (carcinoma escamoso, ASC-H, HSIL, ASCUS) em relação ao tipo histológico do câncer (adenocarcinoma e carcinoma escamoso).

Primeiramente foi estimada a concordância simples e a seguir a concordância depois de remover o efeito do acaso. Para isso utilizou-se o Coeficiente Kappa de Cohen estimado a partir da expressão K=(po-pe)/1-(pe), sendo po a proporção global de concordância observada e pe a proporção de concordância global esperada pelo acaso. Para a interpretação das estimativas obtidas pelo Kappa de Cohen foram usados os parâmetros propostos por Landis e Koch1414. Landis JR, Koch GG. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics. 1977;33(1):159-74., que consideram a classificação: 1 (perfeita); 0,81-0,99 (quase perfeita); 0,61-0,80 (substancial); 0,41-0,60 (moderada); 0,21-0,40 (razoável); 0,00-0,20 (leve); e <0 (pobre). Quando necessário, foi usado o teste exato de Fisher para avaliar a significância estatística de variáveis categóricas, considerando o nível de significância de 5%.

O presente estudo deriva de projeto de pesquisa submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do hospital de ensino, com parecer de número 259.803 de 23/04/2013 e CAAE de número 14873313.7.0000.5254.

Resultados

No período, 284 casos de câncer com localização no colo uterino preencheram os critérios estabelecidos para o presente estudo. Foram efetivamente incluídos 27 casos de adenocarcinoma e 54 casos de carcinoma escamoso. Os primeiros representaram 9,5% de todo o conjunto. No grupo de adenocarcinoma, 56% das mulheres tinham idade inferior a 50 anos, obtendo-se a média de 49,8 anos (variação: 28 a 76 anos; desvio padrão: DP=13,5 anos). As mulheres com adenocarcinoma não diferiram significativamente daquelas com o tipo morfológico escamoso, a respeito do estado civil casada (37,0 versus 44,4%), cor da pele não branca (70,4 versus 59,3%), escolaridade até fundamental incompleto (77,8 versus 83,3%), uso de contracepção hormonal (25,9 versus 29,6%) e uso de tabaco (48,1 versus 42,6%).

A maior parte de todo o grupo referenciado (53,1%) tinha citologia prévia ao período do diagnóstico, de modo que este exame contribuiu significativamente para a detecção do adenocarcinoma quando comparado ao grupo de carcinoma escamoso (p<0,001). A coleta da citologia foi feita, em média 92,0 dias (DP=54,7 dias; variação: 19 a 310 dias) antes do diagnóstico histopatológico do câncer.

A verificação da situação da mulher no período que antecedeu o diagnóstico do câncer mostrou que a proporção de casos de adenocarcinoma que buscou atendimento, motivado por sintomas, foi quase nove vezes menor que aqueles com diagnóstico de carcinoma escamoso. Grande parte das mulheres com adenocarcinoma (77,3%) e carcinoma escamoso (73,5%) admitiu ter ouvido informações sobre o programa brasileiro de controle do câncer do colo do útero. No entanto, foi observada diferença significativa (p=0,01) em relação à aderência ao teste, com a proporção cinco vezes menor de mulheres com adenocarcinoma (7,4%) que nunca fizeram o exame, ou que estavam fazendo pela primeira vez, comparada com aquelas portadoras de carcinoma escamoso (37,0%) (Tabela 1).

Tabela 1
Características na fase pré-diagnóstico de 27 casos de adenocarcinoma e de 54 casos de carcinoma escamoso do colo uterino

A análise da distribuição das alterações citológicas mostrou que os casos confirmados morfologicamente como adenocarcinoma foram precedidos por quase todos os tipos de achados citológicos, incluindo 41,6% de laudos com alterações sugestivas de adenocarcinoma e de células glandulares atípicas (Tabela 2). Tendo como padrão ouro, o tipo histológico do tumor, a avaliação da concordância das alterações citológicas de origem glandular (5 casos de adenocarcinoma, 4 de CGA e 1 de AGUS) e escamosa (6 casos de carcinoma epidermóide, 14 de HSIL, 5 de ASC-H, e 3 de ASCUS) revelou alta concordância simples (73,7%) e coeficiente Kappa de 48,7% (IC95% 0,252-0,721), expressando uma concordância moderada, segundo Landis e Kock1414. Landis JR, Koch GG. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics. 1977;33(1):159-74..

Tabela 2
Distribuição do resultado de citologia realizada na fase pré-diagnóstica à confirmação histopatológica de 27 casos de adenocarcinoma e de 54 casos de carcinoma escamoso do colo uterino

Discussão

Este estudo teve o mérito de mostrar que entre os antecedentes colpocitológicos de mulheres com adenocarcinoma, foram encontradas, praticamente, quase todas as classes de alterações celulares. As desvantagens impostas por esta grande inespecificidade foram compensadas, em parte, pela observação de que mais de 40% dos casos confirmados de adenocarcinoma foram precedidos pela presença de alterações em células glandulares à colpocitologia, sugerindo que este achado está efetivamente contribuindo para o controle da neoplasia cervical em região periférica do Estado do Rio de Janeiro. Estes resultados tornam-se ainda mais relevantes uma vez que a detecção do tumor ocorreu, na maioria das vezes, antes mesmo do surgimento de manifestações clínicas.

Além disso, nenhuma das características socioeconômicas e demográficas e de hábitos de vida analisadas mostrou-se suficientemente importante e com capacidade de antecipar um perfil de risco para as lesões glandulares, na população estudada. Uma recente revisão de literatura pontuou que, nem o uso do tabaco, tampouco o de contraceptivos orais, se mostraram significantes quando os dois principais tipos histológicos de malignidade cervical foram comparados1212. Gien LT, Beauchemin MC, Thomas G. Adenocarcinoma: a unique cervical cancer. Gynecol Oncol. 2010;116(1):140-6. . Porém, os autores chamaram a atenção para a influência da obesidade no desenvolvimento do adenocarcinoma, fator que não foi alvo de análise no presente estudo.

É importante assinalar que a proporção de tumores glandulares vem aumentando nas últimas décadas, passando de 5 para 25% em relação ao carcinoma escamoso1313. Kalir T, Simsir A, Demopoulos HB, Demopoulos RI. Obstacles to the early detection of endocervical adenocarcinoma. Int J Gynecol Pathol. 2005;24(4):399-403.. Ainda que persistentemente sob a forma invasiva, este aumento tem sido atribuído à captação de novos casos, proporcionada pelo uso rotineiro de dispositivos mais apropriados para coleta endocervical1515. Howlett RI, Marrett LD, Innes MK, Rosen BP, McLachlin CM. Decreasing incidence of cervical adenocarcinoma in Ontario: is this related to improved endocervical Pap test sampling? Int J Cancer. 2007;120(2):362-7.. Apesar de, na região, os esfregaços serem coletados de modo padronizado, com o auxílio de espátula de Ayre e de escova endocervical, a proporção observada foi de um caso de adenocarcinoma para cada dez casos de câncer. A interrogação que permanece é se a frequência observada realmente reflete a verdadeira característica da população ou se haveria mais casos que poderiam ser captados a partir de investimentos para melhoria da qualidade da coleta e do processamento laboratorial dos exames.

O histórico de achados citológicos benignos esteve presente nos dois grupos analisados. Embora a possibilidade de tumor de intervalo, ou rapidamente progressivo, não possa ser descartada, tal entidade é difícil de comprovar, levando em conta, principalmente que o intervalo médio de tempo entre a coleta da citologia e o diagnóstico do câncer foi de apenas três meses e que nenhum caso ultrapassou os dez meses no presente estudo. Uma segunda explicação seria a localização da lesão no segmento cranial do canal cervical, fora do alcance do dispositivo usado na coleta da colpocitologia. Contudo, a reanálise conduzida na Slovenia1616. Erzen M, Mozina A, Bertole J, Syrjänen K. Factors predicting disease outcome in early stage adenocarcinoma of the uterine cervix. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2002;101(2):185-91., de 72 exames de pacientes com adenocarcinoma e testes de Papanicolaou falso-negativos, estabeleceu erro de interpretação em 23,6 e erro de coleta em 8,3% dos casos.

De acordo com Zappa et al.1717. Zappa M, Visioli CB, Ciatto S, Iossa A, Paci E, Sasieni P. Lower protection of cytological screening for adenocarcinomas and shorter protection for younger women: the results of a case-control study in Florence. Br J Cancer. 2004;90(9):1784-6., qualquer tentativa para melhorar o rastreio de neoplasia cervical deveria comportar abordagens que complementem a colpocitologia. Por exemplo, depois de analisar 108 pacientes com colpocitologia de células glandulares atípicas em um estudo conduzido no Brasil, os autores sugeriram o teste de DNA de HPV, como uma alternativa para complementar a avaliação de casos classificados como negativos pela colposcopia1818. Zeferino LC, Rabelo-Santos SH, Villa LL, Sarian LO, Costa MC, Westin MCA, et al. Value of HPV-DNA test in women with cytological diagnosis of atypical glandular cells (AGC). Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2011;159(1):160-4. .

Neste estudo, as manifestações sintomáticas estiveram presentes em um caso de adenocarcinoma para cada três casos de carcinoma escamoso. Na França1919. Lavoué V, Gautier C, Piette C, Porée P, Mesbah H, Foucher F, et al. [Cytological study of 191 women with invasive cancer of the uterine cervix in Brittany, France]. J Gynecol Obstet Biol Reprod (Paris). 2009;38(5):396-403. French., verificou-se que 89% dos 191 casos de câncer de colo diagnosticados entre 2000 e 2005, apresentavam sintomas que incluíram desde a metrorragia até sinais de insuficiência renal. Na Austrália2020. Pak SC, Martens M, Bekkers R, Crandon AJ, Land R, Nicklin JL, et al. Pap smear screening history of women with squamous cell carcinoma and adenocarcinoma of the cervix. Aust N Z J Obstet Gynaecol. 2007;47(6):504-7., um estudo que comparou 188 casos de adenocarcinoma e 188 casos de carcinoma escamoso não evidenciou diferenças a respeito das manifestações clínicas reportada por 44,1% das participantes. Frequência similar (46,9%) foi encontrada no presente estudo, cujas participantes queixaram-se principalmente de metrorragia.

Apesar dos avanços no controle do câncer de colo no Brasil, a invisibilidade das ações permanece para uma parcela das mulheres, que continuam sem acesso aos exames preventivos. Foi observado que mais de um quarto delas nunca haviam sido submetidas ao teste de Papanicolaou ou estavam realizando pela primeira vez. Mesmo em regiões cobertas por equipes de saúde da família há relatos de mulheres que buscam o exame apenas sob a motivação da presença de sintoma2121. Silva DW, Andrade SM, Soares DA, Turini B, Schneck CA, Lopes MLS. [Coverage and factors associated with Papanicolaou testing in a city of Southern Brazil]. Rev Bras Ginecol Obstet. 2006;28(1):24-31. Portuguese.. Este panorama sugere que alternativas para alcançar todas as mulheres da população alvo devem ser consideradas, pelo menos até que o impacto da prevenção primária do câncer de colo seja efetivamente comprovado.

No presente estudo, os dois métodos - citologia e histopatologia - obtiveram substancial concordância global para a classificação das pacientes com suspeita de câncer e moderada concordância pelo Kappa. Este índice tem a vantagem da simplicidade de interpretação, porém sofre a influência da prevalência do fenômeno em estudo2222. Shoukri MM. Measures of interobserver agreement. New York: Chapman & Hall/CRC; 2004., e por isso acaba por refletir características dos atores, instrumentos e cenários, não sendo adequado para comparações externas. Por outro lado, ele é muito útil quando o interesse é a verificação interna da qualidade do cuidado, pois na presença de padrão-ouro e de independência dos avaliadores permite verificar, não somente o grau de reprodutibilidade, bem como o de validade de procedimentos realizados em serviços de saúde. Tendo em mente a baixa prevalência das alterações cervicais na população, as estimativas obtidas pelo Kappa apontaram para concordância moderada entre os métodos, com amplitude de intervalo de confiança variando de razoável a substancial concordância, sugerindo que a região pode ser beneficiada com investimentos voltados para a melhoria da qualidade dos exames e assim contribuir para o alcance das metas de controle do câncer de colo no Brasil.

Cabe uma palavra a respeito da colposcopia. Cartier2323. Cartier I. [Adenocarcinoma of uterine cervix. Difficulties in the diagnosis of early forms and cyto-colpo-histological correlations] . Ann Pathol. 2011;31(5 Suppl):S107-8. French. assinala que os profissionais de saúde enfrentam pelo menos duas grandes dificuldades para esclarecer as alterações citológicas de origem glandular: a topografia das lesões, que nem sempre permite o alcance aos olhos do colposcopista, porque em geral a doença se localiza dentro do canal cervical, ocupando, muitas vezes, a profundidade das criptas glandulares, e quando as lesões são visíveis, há dificuldade para interpretar as imagens devido à falta de padrão colposcópico. No presente estudo, a preocupação dos profissionais foi classificar as lesões como recomenda as normas brasileiras e não se tentou predizer a presença de adenocarcinoma a partir das imagens colposcópicas. Assim, a avaliação da colposcopia em relação à citologia e à histopatologia de adenocarcinoma ficou impossibilitada, constituindo uma limitação do estudo.

Concluindo, nesta população, a colpocitologia exerceu um papel importante na captação de mulheres com adenocarcinoma, porém muitas delas já apresentavam manifestações clínicas. Apesar das dificuldades diagnósticas das lesões glandulares, a concordância entre a citologia e a histopatologia foi classificada como moderada.

Referências

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  • Trabalho realizado no Ambulatório de Patologia do Trato Genital Inferior e Colposcopia do Hospital Geral de Nova Iguaçu - Nova Iguaçu (RJ), Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2014

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2013
  • Aceito
    15 Jan 2014
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