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A busca pela cura do câncer de mama: deveríamos começar tudo de novo?

The search for the breast cancer cure: shall we start all over again?

O câncer de mama é a neoplasia maligna que mais afeta a mulher nos dias atuais. Era uma doença de baixa incidência há algumas décadas. No ano de 1975, a taxa de incidência era de 105/100.000 mulheres/ano nos Estados Unidos. Essa razão foi aumentando gradativamente e, hoje, atinge uma taxa bruta de 126/100.000 mulheres/ano naquele país, um aumento de 19,5%11. National Cancer Institute [Internet]. Trends in SEER incidence and U.S. mortality. [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://seer.cancer.gov/archive/csr/1975_2010/>
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. Em todo o mundo, foram registrados 1,6 milhão de casos da doença com 522 mil mortes no ano de 2012. A proporção de mortes por casos novos é da ordem de 24,9% em países mais desenvolvidos e atinge 36,7% em países menos desenvolvidos onde, atualmente, se concentra mais da metade de todos os casos diagnosticados em todo o mundo22. Breast Cancer [Internet]. Estimated incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012. [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://globocan.iarc.fr/Pages/fact_sheets_cancer.aspx>
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. Esses dados demonstram que os esforços e gastos com o desenvolvimento de novas terapias para a doença não têm sido a melhor estratégia para redução da mortalidade pela doença.

Não só a incidência de câncer de mama, mas das neoplasias malignas em geral, está aumentando em todo o mundo. Existe uma relação direta entre o desenvolvimento socioeconômico e o aumento da incidência da doença. Nas populações rurais da África e Ásia, bem como do Brasil, a incidência da doença é drasticamente inferior à incidência em regiões altamente desenvolvidas22. Breast Cancer [Internet]. Estimated incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012. [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://globocan.iarc.fr/Pages/fact_sheets_cancer.aspx>
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. Essa observação epidemiológica é o mais forte indício de que fatores ambientais introduzidos ou criados pelo próprio homem e mudanças no estilo e hábito de vida deveriam ser os principais alvos de investigação científica e abordagem preventiva.

O congresso anual da American Society of Clinical Oncology (ASCO) é o maior evento de Oncologia do mundo. No ano de 2013, 32.200 pessoas foram registradas no evento, sendo 26.400 profissionais da saúde. Em 2012, tive a oportunidade de participar do evento e algo me chamou a atenção. A primeira sessão a que assisti tinha o título "Controversies in the adjuvant treatment of breast cancer". Estava completamente lotada. A primeira aula foi "Vexing issues in antiestrogen therapy in the adjuvant setting: choice of agents, duration of therapy, and ovarian suppression". Naquele dia, fiz algumas anotações transcritas aqui: "Dr. Stephen Johnston discutiu a terapia hormonal: escolha da melhor droga, duração do tratamento e supressão ovariana. O ponto principal da palestra foi que ainda não sabemos quais são as pacientes que realmente irão se beneficiar do tratamento. Ou seja, os fatores de predição que conhecemos são insuficientes". A terapia antiestrogênica foi introduzida como tratamento adjuvante na década de 1980. São mais de 20 anos de experiência clínica com a droga e ainda não temos certeza de quem realmente se beneficia do tratamento.

A segunda sessão tinha o título "A fresh look at ductal carcinoma in situ: basic science to clinical management". O carcinoma ductal in situ (CDIS) é uma lesão precursora do carcinoma invasor e mulheres com o diagnóstico de uma lesão como esta têm um risco muito elevado de virem a ser diagnosticadas com uma lesão invasora no futuro. O CDIS é uma lesão potencialmente tratável e a ressecção cirúrgica da lesão reduz drasticamente o risco de uma nova lesão invasora. As duas sessões ocorreram no mesmo anfiteatro. Quando a segunda sessão começou, não havia mais do que 100 pessoas assistindo. Essa observação pessoal pode ser validada pelos registros da ASCO. No ano de 2013, o levantamento realizado entre os profissionais de saúde mostrou que apenas 2% dos participantes tinham seu principal interesse na área de Prevenção do Câncer e Epidemiologia33. American Society of Clinical Oncology Annual Meeting [Internet]. 50th Annual Meeting. 2013 Attendee Demographics [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://am.asco.org/2013-attendee-demographics>
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.

Os investimentos científicos na prevenção do câncer também são pouco representativos. Para se ter uma ideia, a American Cancer Society investiu, no ano de 2012, quase 120 milhões de dólares em pesquisa do câncer. Cerca de metade do investimento foi para as áreas de biologia tumoral e tratamento. Apenas 5,9% desse valor foram destinados para pesquisa na área de prevenção44. Current Investment by Areas of Research. Extramural and intramural investment by areas of research, FY 2012. [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://www.cancer.org/research/currentlyfundedcancerresearch/investment-by-research-areas>
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. No Estado de São Paulo, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) investiu cerca de 300 milhões em pesquisa na área de saúde em 2012. Em uma busca no site http://www.bv.fapesp.br/pt/ (20 de maio de 2014) utilizando os termos "prevenção doenças" e "câncer prevenção", entre 129 auxílios à pesquisa em andamento, apenas 3 projetos estavam relacionados com a prevenção do câncer.

Com os avanços tecnológicos do final do século passado, a última década foi marcada pelo grande avanço no desenvolvimento de terapias-alvo para o câncer. O desenvolvimento desses novos medicamentos é altamente oneroso. O valor estimado para desenvolver uma droga e aprová-la na Food and Drug Agency (FDA) nos Estados Unidos é da ordem de 1 bilhão de dólares. Os Doutores Graber e Goldman, no livro Coping with Methuselah: the impact of Molecular Biology on Medicine and Society, publicado em 2004, já reportam que o rápido aumento no custo de novas intervenções médicas irá cursar com dois efeitos compensatórios: o aumento da necessidade de seguros de saúde com o aumento do custo dos seguros. Como resultado, os seguros de saúde serão restritos às pessoas mais abastadas, o que irá saturar o sistema de saúde público55. Graber AM, Goldman DP. The changing face of health care. In: Aaron HJ, Schwartz WB, editors. Coping with Methuselah: the impact of Molecular Biology on Medicine and Society. Washington (DC): The Bookings Institution; 2004. p. 105-25. . Esse cenário pode levar a problemas éticos baseados na falta de acesso aos novos tratamentos da doença. Estamos vivendo esse cenário no momento. O alto custo das terapias-alvo para o câncer inviabiliza o seu uso pela grande maioria da nossa população. O sistema público de saúde não disponibiliza de boa parte dessas novas drogas. Os cidadãos brasileiros, no seu direito à assistência integral à saúde, naturalmente têm utilizado o poder judiciário para aquisição dos novos tratamentos. A decisão judicial impõe ao governo o investimento na droga para aquele cidadão, o que gera aumento no custo da saúde pública. Estamos dentro de uma imensa "bola de neve". Nossos gestores em saúde devem tomar providências para reverter a situação. O investimento no desenvolvimento de novas drogas, certamente, não é a solução. O cenário global da "busca pela cura do câncer" vem desviando a atenção das medidas básicas de prevenção primária da doença que, dentro da conjuntura atual, seriam uma medida razoável para minimizar os efeitos futuros dos avanços tecnológicos do nosso presente.

Referências

  • 1
    National Cancer Institute [Internet]. Trends in SEER incidence and U.S. mortality. [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://seer.cancer.gov/archive/csr/1975_2010/>
    » http://seer.cancer.gov/archive/csr/1975_2010/
  • 2
    Breast Cancer [Internet]. Estimated incidence, mortality and prevalence worldwide in 2012. [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://globocan.iarc.fr/Pages/fact_sheets_cancer.aspx>
    » http://globocan.iarc.fr/Pages/fact_sheets_cancer.aspx
  • 3
    American Society of Clinical Oncology Annual Meeting [Internet]. 50th Annual Meeting. 2013 Attendee Demographics [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://am.asco.org/2013-attendee-demographics>
    » http://am.asco.org/2013-attendee-demographics
  • 4
    Current Investment by Areas of Research. Extramural and intramural investment by areas of research, FY 2012. [cited 2014 Jun 04]. Availble from: <http://www.cancer.org/research/currentlyfundedcancerresearch/investment-by-research-areas>
    » http://www.cancer.org/research/currentlyfundedcancerresearch/investment-by-research-areas
  • 5
    Graber AM, Goldman DP. The changing face of health care. In: Aaron HJ, Schwartz WB, editors. Coping with Methuselah: the impact of Molecular Biology on Medicine and Society. Washington (DC): The Bookings Institution; 2004. p. 105-25.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2014
  • Aceito
    03 Maio 2014
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