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Podocitúria em gestantes hipertensas crônicas pode predizer dano renal?

Podocyturia in pregnant women with chronic hypertension may predict kidney injury?

Resumos

OBJETIVO:

Avaliar a presença de podocitúria em gestantes hipertensas crônicas no terceiro trimestre da gestação e a associação com doença renal.

MÉTODOS:

Estudo observacional descritivo em uma amostra de conveniência de 38 gestantes hipertensas crônicas. Os podócitos foram marcados com técnica de imunofluorescência indireta com antipodocina e diamidino-fenilindol (DAPI). A contagem foi feita a partir de 30 campos analisados de forma aleatória, corrigida pela creatinina urinária (podócitos/mg de creatinina). Foram assumidos dois grupos: grupo GN (função glomerular normal), com até 100 podócitos, e grupo GP (provável glomerulopatia), com mais de 100 podócitos. A dosagem de creatinina foi realizada com uso da técnica do picrato alcalino. As variáveis de análise foram o índice de massa corpórea, a idade gestacional na coleta, a pressão arterial sistólica e a pressão arterial diastólica no momento da coleta. Para a análise dos dados, foi utilizado o programa SPSS - versão 16.0. (IBM - USA). Nas análises estatísticas, foi utilizado o teste do χ2, sendo consideradas diferenças significantes valores de p<0,05.

RESULTADOS:

A contagem de podócitos no grupo GN teve mediana de 20,3 (0,0 a 98,1), e no grupo GP, de 176,9 (109,1 a 490,6). A média do índice de massa corpórea foi 30,2 kg/m2 (DP=5,6), a média da idade gestacional foi de 35,1 semanas (DP=2,5), a mediana da pressão arterial sistólica foi de 130,0 mmHg (100,0-160,0) e a mediana da pressão arterial diastólica de 80,0 mmHg (60,0-110,0). Não houve correlação significativa entre podocitúria e índice de massa corpórea (p=0,305), idade gestacional na coleta (p=0,392), pressão arterial sistólica (p=0,540) e pressão arterial diastólica (p=0,540).

CONCLUSÕES:

Não foi identificado um padrão de podocitúria compatível com a presença de glomerulopatia ativa, ainda que algumas das gestantes (15,8%) tenham exibido perda podocitária expressiva. Consideramos ser prematuro recomendar para a prática clínica rotineira a incorporação da pesquisa de podocitúria ao longo do pré-natal de gestantes hipertensas crônicas.

Podócitos; Hipertensão; Gravidez de alto risco; Pré-eclâmpsia


PURPOSE:

To evaluate the presence of podocyturia in chronic hypertensive pregnant women in the third trimester of pregnancy and its possible association with renal disease.

METHODS:

This was an observational study of a convenience sample of 38 chronic hypertensive pregnant women. The podocytes were labeled by the indirect immunofluorescence technique with anti-podocin and diamidino-phenylindole (DAPI). The count was made on 30 random fields analyzed and corrected according to urinary creatinine (podocytes/mg creatinine). The patients were assigned to two groups: NG (normal glomerular function), up to 100 podocytes, and GP (probable glomerulopathy), more than 100 podocytes. Urinary creatinine was measured by the alkaline picrate method. The variables analyzed were body mass index, gestational age, and systolic and diastolic blood pressure at the time of sample collection. Data were analyzed using the SPSS - version 16.0 (IBM - USA). Statistical analysis was performed by the χ2 test, and significant differences were considered when p<0.05.

RESULTS:

The median podocyte count was 20.3 (0.0-98.1) for group GN, and 176.9 (109.1-490.6) for GP. The mean body mass index was 30.2 kg/m2 (SD=5.6), mean gestational age was 35.1 weeks (SD=2.5), median systolic blood pressure was 130.0 mmHg (100.0-160.0) and median diastolic blood pressure was 80.0 mmHg (60.0-110.0). There was no significant correlation between podocyturia and body mass index (p=0.305), gestational age (p=0.392), systolic blood pressure (p=0.540) or diastolic blood pressure (p=0.540).

CONCLUSIONS:

In this study, there was no podocyturia pattern consistent with the presence of active renal disease, although some of the women studied (15.8%) exhibited a significant loss. We believe that it is premature to recommend the inclusion of the determination of podocyturia in routine prenatal clinical practice in chronically hypertensive pregnant women.

Podocytes; Hypertension; Pregnancy, high-risk; Pre-eclampsia


Introdução

O sucesso da gestação depende de uma série de processos adaptativos tanto anatômicos como funcionais, a fim de equilibrar as necessidades maternas e fetais, que atingem o organismo materno como um todo, destacando-se as modificações no sistema cardiovascular e renal11. Chung E, Leinwand LA. Pregnancy as a cardiac stress model. Cardiovasc Res. 2014;101(4):561-70. , 22. Odutayo A, Hladunewich M. Obstetric nephrology: renal hemodynamic and metabolic physiology in normal pregnancy. Clin J Am Soc Nephrol. 2012;7(12):2073-80.. A notável expansão da volemia e a redução da resistência periférica acarretam elevação da demanda funcional dos rins, produzindo um aumento de até 50% na taxa de filtração glomerular e queda dos níveis séricos de ureia e creatinina.

Apesar da expansão da demanda funcional fisiológica, não é possível afirmar que as modificações gravídicas per se poderiam comprometer a função renal de forma a resultar em futura falência funcional. Porém, é evidente que essa função é afetada de forma especial em gestações acometidas pelas síndromes hipertensivas da gestação, e alguns estudos têm apontado em particular a associação da pré-eclâmpsia com o desenvolvimento tardio de doença cardiovascular e renal33. Wilson BJ, Watson MS, Prescot GJ, Sunderland S, Campbell DM, Hannaford P, et al. Hypertensive diseases of pregnancy and risk of hypertension and stroke in later life: results from a cohort study. BMJ. 2003;326(7394):845. , 44. Vikse BE, Irgens LM, Bostad L, Iversen BM. Adverse perinatal outcome and later kidney biopsy in the mother. J Am Soc Nephrol. 2006;17(3):837-45.. Ainda em relação aos riscos de nefropatias, um estudo populacional norueguês que incluiu 570.433 mulheres verificou que a ocorrência de pré-eclâmpsia pode ser considerada um marcador para risco de déficit de função renal algumas décadas após o parto55. Vikse BE, Irgens LM, Leivestad T, Skjaerven R, Iversen BM. Preeclampsia and the risk of end-stage renal disease. N Engl J Med. 2008;359(8):800-9..

Nos últimos anos, a investigação relacionada à instalação e evolução de algumas nefropatias tem sido focada na perda urinária de podócitos, colocando essa célula no centro da fisiologia glomerular, da instalação de patologia e da progressão da doença. O entendimento da biologia celular dos podócitos parece ser decisivo tanto para o diagnóstico molecular de doença glomerular como para o desenvolvimento de terapias mais específicas para o futuro66. Camici M. Urinary detection of podocyte injury. Biomed Pharmacother. 2007;61(5):245-9.. A podocitúria parece ser um marcador não invasivo de doença ativa ou em evolução, e sua presença marcante na urina poderia ser um fator comum em situações que evoluem com proteinúria, como glomerulonefrites crônicas, e até mesmo um marcador da gravidade de doença preexistente77. Nakamura T, Ushiyama C, Suzuki S, Hara M, Shimada N, Ebihara I, et al. Urinary excretion of podocytes in patients with diabetic nephropathy. Nephrol Dial Transplant. 2000;15(9):1379-83. , 88. Sabino AR, Teixeira VP, Nishida SK, Sass N, Mansur JB, Kirsztajn GM. Detection of podocyturia in patients with lupus nephritis. J Bras Nefrol. 2013;35(4):252-8.. Considerando que na pré-eclâmpsia (PE) exista risco potencial para dano renal definitivo, alguns autores identificaram em mulheres com PE perda urinária significativa de podócitos, ainda que não tenha sido definido um padrão passível de ser adotado como um fator prognóstico, como um indicador de problemas imediatos ou futuros99. Garovic VD, Wagner SJ, Turner ST, Rosenthal DW, Watson WJ, Brost BC, et al. Urinary podocyte excretion as a marker for preeclampsia. Am J Obstet Gynecol. 2007;196(4):320e1-7. , 1010. Karumanchi SA, Lindheimer MD. Preeclampsia and the kidney: footprints in the urine. Am J Obstet Gynecol. 2007;196(4):287-8..

Os podócitos são células especializadas da cápsula de Bowman, que possuem um corpo celular com prolongamentos citoplasmáticos, encontrando-se abaixo destes uma delgada membrana por onde passará o filtrado glomerular. Forma assim a última barreira renal para filtração de proteínas, impermeável a macromoléculas1111. Asanuma K, Mundel P. The role of podocytes in glomerular pathobiology. Clin Exp Nephrol. 2003;7(4):255-9. , 1212. Barisoni L, Mundel P. Podocyte biology and the emerging understanding of podocyte diseases. Am J Nephrol. 2003;23(5):353-60.. O diafragma da fenda localiza-se na região basolateral do podócito. A nefrina e a podocina são proteínas cruciais para o equilíbrio desse complexo molecular e ligam-se ao citoesqueleto podocitário por uma molécula de adaptação (CD2AP). A região basal do podócito está firmemente aderida à membrana basal glomerular por proteínas ligantes, tendo em seu ápice a podocalixina, com importante papel na ultrafiltração glomerular, pela manutenção de sua carga negativa1313. Koop K, Eikmans M, Baelde HJ, Kawachi H, De Heer E, Paul LC, et al. Expression of podocyte-associated molecules in acquired human kidney diseases. J Am Soc Nephrol. 2003;14(8):2063-71..

Alguns estudos sugerem que anomalias nesse arranjo molecular do diafragma da fenda estão envolvidas no desenvolvimento de proteinúria nas glomerulopatias e na pré-eclâmpsia1414. Kawachi H, Miyauchi N, Suzuki K, Han GD, Orikasa M, Shimizu F. Role of podocyte slit diaphragm as a filtration barrier. Nephrology (Carlton). 2006;11(4):274-81.. Os processos que afetam a homeostase dos podócitos e sua eliminação contribuem para o desenvolvimento de glomeruloesclerose1515. Yu D, Petermann A, Kunter U, Rong S, Shankland SJ, Floege J. Urinary podocyte loss is more specific marker of ongoing glomerular damage than proteinuria. J Am Soc Nephrol. 2005;16(6):1773-41. decorrente da exposição da membrana basal glomerular e formação de sinéquias com a cápsula de Bowman, o que representa o estágio inicial da esclerose segmentar1616. Hara M, Yanagihara T, Kihara I, Higashi K, Fujimoto K, Kajita T. Apical cell membranes are shed into urine from injured podocytes: a novel phenomenon of podocyte injury. J Am Soc Nephrol. 2005;16(2):408-16. .

No momento, não existem informações definitivas sobre possível correlação entre um padrão de podocitúria e o impacto futuro na estrutura do glomérulo decorrentes da PE, porém, em estudo realizado por nosso grupo, observamos que uma parcela de pacientes com PE exibe perda expressiva de podócitos, implicando a necessidade de seguimento continuado em busca de eventual comprometimento da função renal1717. Facca TA, Kirsztajn GM, Sass N. Preeclampsia (marker of chronic kidney disease): from genesis to future risks. J Bras Nefrol. 2012;34(1):87-93. , 1818. Sass N, Facca T, Sato JL, Oliveira LG, Pereira AR, Teixeira VPC, et al. Podocyturia may reflect ongoing glomerular disturbance in preeclampsia. Pregnancy Hyperten. 2010;1(Suppl 1):S54-S55..

Seria razoável supor que esse risco poderia também estar presente em mulheres portadoras de doenças crônicas com potencial para comprometimento renal, como hipertensão arterial ou nefropatias preexistentes. Assim, consideramos relevante avaliar a presença de podocitúria em gestantes portadoras de hipertensão arterial crônica em vista de seus riscos intrínsecos e por constituírem um grupo de risco especial para a instalação de pré-eclâmpsia.

Métodos

Trata-se de um estudo observacional descritivo em uma amostra de conveniência constituída por 38 gestantes portadoras de hipertensão arterial crônica em seguimento pré-natal no Departamento de Obstetrícia da Escola Paulista de Medicina (Universidade Federal de São Paulo). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, Protocolo nº 1314/11, seguindo as recomendações da Declaração de Helsinque revisada em 2013.

Foram selecionadas pacientes com diagnóstico de hipertensão arterial crônica definido segundo os critérios da NHBPEP (National High Blood Pressure Education Programe)1919. Report of the National High Blood Pressure Education Program Working Group on High Blood Pressure in Pregnancy. Am J Obstet Gynecol. 2000;183(1):S1-S22., no terceiro trimestre, que foram acompanhadas até o final de gestação, sendo coletadas informações relativas à idade e paridade. As variáveis relacionadas com a podocitúria foram: índice de massa corpórea (IMC) no início do pré-natal, idade gestacional em semanas completas, pressão arterial sistólica (PAS) e diastólica (PAD) no momento da coleta. Para o IMC foram adotados os critérios da OMS20. Foram excluídas pacientes com gestação múltipla, diabetes melito, glomerulonefrite concomitante, lúpus eritematoso sistêmico, vigência de infecção urinária clínica e/ou laboratorial, presença de proteinúria ou que apresentaram pré-eclâmpsia.

A urina recentemente coletada (20-100 mL) foi armazenada em bolsa com gelo até a chegada ao laboratório de glomerulopatias e imunopatologia renal, onde foi centrifugada por 5 minutos a 2.000 r.p.m. O sobrenadante foi aspirado com bomba de vácuo, e o pellet sedimentado foi lavado uma vez em HDF (Human Diploid Fibroblast Solution - 137,0 mM NaCl, 5,0 mM KCl, 5,5 mM glicose, 4,0 mM NaHCO3, 0,2% EDTA e H2O). O novo pellet foi então suspendido em 1,0 mL de HDF. Utilizou-se 100 µL por lâmina, e estas foram citocentrifugadas por 5 minutos em 2.000 r.p.m. Em seguida, as lâminas secaram em temperatura ambiente e foram conservadas em congelador até a realização da imunofluorescência indireta.

As lâminas então foram incubadas com solução fixadora por 10 minutos. Em seguida, lavadas com PBS uma vez, cobertas com Triton 0,3% por 10 minutos, lavadas com PBS uma vez e adicionou-se solução de bloqueio (PBS contendo 0,2% BSA, 50 mM NH4Cl e 1% de soro de cabra) e a podocina na diluição 1:250 por 16 horas. Depois de lavadas com PBS duas vezes, incubou-se com anticorpo secundário anti-IgG de coelho produzido em cabra conjugado com FITC diluído 1:320 por 45 minutos. As lamínulas foram montadas com Vectashield(r) (Vector Lab. - USA) e visualizadas no microscópio de imunofluorescência (Leica DM 1000 - Alemanha) em aumento de 400 vezes. A contagem dos podócitos foi realizada por meio da positividade da marcação da podocina para células com núcleos positivos para a marcação com diamidino-fenilindol (DAPI) (Figura 1).

Figura 1 -
Pesquisa de podocitúria com técnica de imunofluorescência indireta: podócitos apresentam-se corados pelo anticorpo antipodocina (verde) com sobreposição de imagens com núcleo corado por DAPI (azul)/aumento de 400x

A podocitúria foi avaliada por meio da técnica de imunofluorescência indireta com o uso de anticorpo antipodocina específico para podócitos e anticorpo secundário conjugado a fluoresceína. A quantificação dos podócitos foi feita pela contagem em 30 campos na lâmina escolhidos de forma aleatória, sendo os valores corrigidos pelos níveis de creatinina urinária na mesma amostra. Segundo o número de podócitos na urina, foram assumidos dois grupos: grupo GN (função glomerular normal), com até 100 podócitos, e grupo GP (provável glomerulopatia), com mais de 100 podócitos. Esse ponto de corte foi baseado nos achados de estudo realizado por Sabino et al.88. Sabino AR, Teixeira VP, Nishida SK, Sass N, Mansur JB, Kirsztajn GM. Detection of podocyturia in patients with lupus nephritis. J Bras Nefrol. 2013;35(4):252-8..

A dosagem de creatinina na urina foi realizada mediante o método do picrato alcalino. Para tanto, utilizou-se um kit comercial (Olympus América, USA - Catálogo # Olympus America OSR6178), e a determinação foi feita no equipamento AU 400 (Olympus, Tóquio - Japão). Os dados foram digitados e analisados usando-se programa estatístico SPSS - versão 16.0 para Windows (IBM -USA). Foram avaliadas médias e desvios padrão (DP), medianas e respectivas variâncias. Nas análises estatísticas, foi utilizado o teste do χ2, sendo consideradas diferenças significantes valores de p<0,05.

Resultados

A amostra selecionada para o estudo foi composta de 38 gestantes hipertensas crônicas apresentando média de idade de 33,6±4,9 anos (máximo: 44; mínimo: 22), sendo 68,4% multíparas. O grupo GN (função glomerular normal) foi constituído por 32 pacientes, e o grupo GP (provável glomerulopatia) por 6 pacientes. Em relação à podocitúria, a mediana no grupo GN foi de 20,3 (variação de 0,0 a 98,1) e no grupo GP, de 176,9 (variação de 109,1 a 490,6) (Tabela 1).

Tabela 2 -
Medidas resumo de podocitúria (podócitos/mg de creatinina) marcada com antipodocina em gestantes hipertensas crônicas dos grupos com função glomerular normal e com provável glomerulopatia

Em relação às variáveis que foram relacionadas à podocitúria, a média do IMC foi 30,2 kg/m2 (DP=5,6), a média da idade gestacional foi de 35,1 semanas (DP=2,5), a mediana da PAS foi de 130,0 mmHg (variação de 100,0-160,0) e a mediana da PAD de 80,0 mmHg (variação de 60,0-110,0) (Tabela 2).

Tabela 2 -
Medidas resumo de variáveis clínicas de gestantes hipertensas crônicas (n=38)

A intensidade de proteinúria na amostra estudada (grupos GN e GP) não apresentou relação estatisticamente significativa quanto a IMC, idade gestacional no terceiro trimestre e níveis de pressão arterial sistólica e diastólica (Tabela 3).

Tabela 3 -
Correlação entre podocitúria (podócitos/mg de creatinina) em gestantes hipertensas crônicas (n=38) e índice de massa corpórea, idade gestacional, pressão arterial sistólica e diastólica no momento da coleta de urina

Discussão

As síndromes hipertensivas na gestação implicam a instalação de comprometimento orgânico universal, sendo responsáveis por enorme contingente de problemas agudos, além de danos sistêmicos irreversíveis cujas repercussões serão estabelecidas em longo prazo. A função renal parece ser especialmente comprometida, sendo este aspecto documentado em estudos epidemiológicos de longo prazo55. Vikse BE, Irgens LM, Leivestad T, Skjaerven R, Iversen BM. Preeclampsia and the risk of end-stage renal disease. N Engl J Med. 2008;359(8):800-9..

Quanto à pesquisa da podocitúria, esta vem sendo proposta nos últimos anos como marcador laboratorial em doenças glomerulares e na pré-eclâmpsia. A podocitúria pode estar presente em pessoas saudáveis em pequena quantidade e em maior quantidade nas glomerulopatias agudizadas, mas não se tem conhecimento sobre seu comportamento em grávidas com hipertensão arterial crônica, principalmente quando se encontram com pressão arterial controlada e sem a sobreposição de pré-eclâmpsia2121. Vogelmann SU, Nelson WJ, Myers BD, Lemley KV. Urinary excretion of viable podocytes in health and renal disease. Am J Renal Physiol. 2003;285(1):F40-8..

Um rim adulto contém cerca de 500 podócitos por tufo glomerular, podendo ocorrer perdas mesmo em indivíduos normais. Porém, a capacidade regenerativa dos podócitos tem limites, e perdas superiores a 40,0% implicam esclerose glomerular irreversível22. A intensidade da podocitúria parece estar relacionada com o prognóstico da doença renal, e seu aparecimento precede a proteinúria, podendo constituir um marcador precoce relacionado à atividade da glomerupatia1515. Yu D, Petermann A, Kunter U, Rong S, Shankland SJ, Floege J. Urinary podocyte loss is more specific marker of ongoing glomerular damage than proteinuria. J Am Soc Nephrol. 2005;16(6):1773-41. , 2323. Skoberne A, Konieczny A, Schiffer M. Glomerular epithelial cells in the urine: what has to be done to make them worthwhile?. Am J Physiol Renal Physiol. 2009;296(2):F230-41..

Os podócitos têm várias funções relacionadas à homeostase renal, entre elas, constituir a barreira de filtração com células endoteliais e a membrana basal. Além de essenciais para dar suporte às alças capilares, realizam reparo da membrana basal e possuem propriedades imunológicas. Seria razoável supor que condições que interferem na homeostase renal, como as modificações gestacionais, a presença de patologias preexistentes com potencial para dano renal, por exemplo, a hipertensão arterial e em especial a instalação de pré-eclâmpsia, pudessem determinar quebra desse equilíbrio e desencadear um padrão anormal de perda podocitária.

No entanto, no grupo de gestantes avaliado, não foi identificado um padrão especial. O padrão de perda podocitária foi semelhante aos registrados em gestantes normais, avaliados anteriormente pelo nosso grupo24, ainda que 15,8% da amostra tenha apresentado perda podocitária expressiva. Verificamos ainda que nenhuma variável que supostamente poderia interferir na resposta funcional renal foi associada de forma significante aos padrões de podocitária avaliados.

Um aspecto a ser ponderado é que a demanda funcional à qual os rins foram submetidos ao longo da gestação não interferiu de forma significativa na perda podocitária, permitindo inferir que o processo adaptativo ao longo do desenvolvimento e a exposição renal correspondente parece não acarretar problemas glomerulares relevantes nesse grupo de pacientes.

Da mesma forma, os níveis de pressão arterial não se correlacionaram com a perda podocitária, com a ressalva de que a maior parte do grupo estudado tenha exibido hipertensão arterial leve e moderada. Acreditamos que esse aspecto não permite estender essa interpretação para todos os grupos de hipertensas, uma vez que lesões em órgãos-alvo são proporcionais à intensidade da pressão arterial, e o desenho do estudo não permitiu controlar variáveis relevantes como a idade materna, o uso de hipotensores e o tempo de exposição ao estado hipertensivo.

No que diz respeito ao IMC, o conhecimento atual identifica essa condição como problema mundial em termos de risco para doenças metabólicas e cardiovasculares2525. Daskalopoulou SS, Athyros VG, Kolovol GD, Anagnostopoulou KK, Mikhailidis DP. Definitions of metabolic syndrome: where are we now?. Curr Vasc Pharmacol. 2006;4(3):185-97.. Além disso, quando se consideram riscos relacionados aos estados hipertensivos da gestação, o tecido gorduroso parece ter papel importante em vista da produção de adipocinas cuja ação pró-inflamatória e promotora de disfunção endotelial constituiria um território facilitador para o agravamento da pressão arterial e a instalação de pré-eclâmpsia. Nossos achados não identificaram um padrão de podocitúria proporcional ao IMC das pacientes avaliadas2626. Jarvie E, Hauguel-de-Mouzon S, Nelson SM, Sattar N, Catalano PM, Freeman DJ. Lipotoxicity in obese pregnancy and its potential role in adverse pregnancy outcome and obesity in the offspring. Clin Sci (Lond). 2010;119(3):123-9. , 27 27. Saben J, Lindsey F, Zhong Y, Thakali K, Badger TM, Andres A, et al. Maternal obesity is associated with a lipotoxic placental environment. Placenta. 2014;35(3):171-7.ainda que o maior contingente de pacientes se encontrasse nas faixas de sobrepeso e obesidade. Mesmo que essas condições sejam reconhecidas como fatores de risco para a sobreposição de pré-eclâmpsia, nas pacientes onde essa complicação não ocorreu, a estrutura renal e sua função aparentemente não foram influenciadas pela presença anormal de tecido gorduroso.

Nossos resultados também merecem alguma consideração em relação à metodologia empregada. A opção pelo marcador de imunofluorescência para podocina levou em conta que essa estrutura faz parte do diafragma da fenda e pode ser evidenciada tanto nos podócitos como nas células epiteliais parietais e, em decorrência de sua localização, é mais frequentemente associada às glomerulopatias proteinúricas. Todavia, ainda não está estabelecido se outros marcadores, como os anticorpos antinefrina, antipodocalixina, anti-sinaptopodina e antitumor de Wilms1 (WT1), poderiam resultar em outro padrão relacionado à excreção de podócitos nesse grupo de pacientes.

Como implicação para a prática clínica, nossos achados não identificaram em gestantes hipertensas crônicas no terceiro trimestre um padrão de podocitúria compatível com o desenvolvimento de glomerulopatia ativa, ainda que algumas delas (15,8%) tenham exibido perda podocitária expressiva e que foram alocadas para acompanhamento em médio e longo prazo. Mesmo assim, consideramos ser prematuro recomendar para a prática clínica rotineira a incorporação da pesquisa de podocitúria ao longo do pré-natal de gestantes hipertensas crônicas.

Como implicação para pesquisa, nossos achados encorajam a ampliação dessa linha, a fim de testar outros marcadores clínicos e laboratoriais eventualmente associados com dano renal instalado, ou que possam selecionar, de forma mais específica, mulheres com risco consistente para doença renal no futuro.

Colaboração dos autores

Todos os autores participaram do planejamento e da elaboração do projeto. Fernanda, Thaís e Jussara realizaram coleta de informações e amostras no ambulatório. Fernanda, Thaís, Amélia e Sônia processaram as amostras e leituras. Gianna e Nelson supervisionaram a execução ao longo das etapas do projeto. Todos os autores participaram da interpretação dos resultados e na redação do artigo.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao apoio financeiro de bolsa PIBIC concedida pelo CNPq, ao auxílio FAPESP, processo 2014/00213-7, bem como à Elisa Chalem pelo apoio na análise estatística.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2014
  • Aceito
    20 Mar 2015
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