Introdução
A categoria diagnóstica Células Escamosas Atípicas de Significado Indeterminado (ASCUS) pode ser definida como um resultado de caráter indeterminado, na qual os achados citológicos são insuficientes para caracterizar uma lesão intraepitelial escamosa ou carcinoma escamoso, ou mesmo condições inflamatórias ou reativas, sendo considerado um resultado de exclusão1 , 2.
O Instituto Nacional de Câncer do Brasil (INCA) recomenda que a conduta frente ao resultado citopatológico de ASCUS para gestantes não deve ser diferente da adotada para não gestantes3. Identificado o resultado de ASCUS, a conduta preconizada é repetir o exame citopatológico num intervalo de 6 meses em mulheres com 30 anos ou mais e 12 meses se a mulher tiver menos de 30. Se positivo, deve-se proceder à colposcopia. Se negativo, seguimento citológico semestral ou anual até dois exames consecutivos normais3.
Há recomendações na literatura que ainda indicam a realização do exame citopatológico na rotina de pré-natal; porém, o conhecimento mais atual dá suporte científico para realizar o rastreamento apenas nas mulheres que estiverem na data de fazê-lo ou em atraso4 - 10. A gestação é uma razão frequente para as mulheres mais jovens procurarem assistência e, para muitas, é a primeira assistência ginecológica7 - 9 .
É sabido que há variabilidade diagnóstica de ASCUS entre serviços, uma vez que a interpretação citomorfológica envolve a subjetividade do profissional que faz a leitura do exame citopatológico, sugerindo baixa reprodutibilidade11. Além disso, entre as mulheres gestantes, há dificuldade no diagnóstico citológico de ASCUS devido às alterações citomorfológicas características da gestação, tais como a presença de células inflamatórias e deciduais, que podem ter critérios semelhantes aos atribuídos ao diagnóstico citopatológico de ASCUS4 , 5 , 12.
O objetivo deste estudo foi comparar a prevalência do resultado do diagnóstico citopatológico de ASCUS em mulheres gestantes e não gestantes estratificadas por grupos etários.
Métodos
Trata-se de estudo observacional analítico que avaliou a prevalência do resultado citopatológico de ASCUS em mulheres gestantes e não gestantes com idades entre 20 e 34 anos. A amostra consistiu de resultados de exames citopatológicos do banco de dados do Laboratório de Citopatologia Dr. José Aristodemos Pinotti do Hospital da Mulher, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre janeiro de 2000 a dezembro de 2009, totalizando um período de 10 anos. Este laboratório recebe exames citopatológicos de mulheres advindas de 70 municípios da região de Campinas para fins de rastreamento do carcinoma do colo uterino. O rastreamento para prevenção do câncer ocorre de forma oportunista e, por isso, as mulheres não foram convidadas para a seleção. Nenhuma mudança na leitura do resultado do exame citopatológico, durante os dez anos do estudo, foi observada. No laboratório de citopatologia do CAISM, os profissionais responsáveis pela realização da leitura dos exames citopatológicos foram médicos citopatologistas e citotécnicos, sendo que os médicos citopatologistas foram os responsáveis pela revisão dos exames citopatológicos considerados suspeitos (positivo para lesão intraepitelial), bem como revisão de 30% dos casos negativos, configurando controle de qualidade interno. O resultado do exame citopatológico foi relatado de acordo com a classificação citopatológica que consta em Solomon et al.1, sendo utilizados os critérios diagnósticos que definem a categoria ASCUS. Como as categorias foram baseadas na classificação do início dos anos 1990, a categoria ASC-H não foi considerada.
Foram excluídas do estudo mulheres que haviam sido submetidas a coleta do exame citopatológico com intervalo inferior a um ano, aquelas que tinham histórico de carcinoma de colo do útero, resultado citopatológicos de LSIL, HSIL, carcinoma de células escamosas, atipias de células glandulares, adenocarcinoma in situ e adenocarcinoma invasivo. Também foram excluídas aquelas que foram previamente submetidas à radioterapia ou quimioterapia. Foram excluídos também os exames incorretamente identificados e os exames classificados como insatisfatórios ou que foram realizados para outros fins que não o rastreamento do carcinoma do colo do útero. Assim, de um total de 1.336.180 exames realizados no período 2000-2009 (após a aplicação dos critérios de exclusão), a amostra total foi de 37.137 exames de mulheres gestantes e 851.554 exames de mulheres não gestantes.
Os casos foram estratificadas em três grupos etários (20-24 anos, 25-29 anos e 30-34 anos de idade), conforme informação obtida da requisição do exame citopatológico. Para a associação da frequência de resultados de exames citopatológicos de ASCUS com o estado gestacional e com as faixas etárias foi utilizado o teste do χ2 e a medida da magnitude da associação foi analisada por valores estimados de Odds Ratio (OR) com IC95%. Os dados foram apresentados em valores absolutos (n) e frequências relativas (%) para avaliar a associação entre as categorias de resultado citopatológico. O nível de significância foi de 5%. O software utilizado para a análise estatística foi o Statistical Analysis System (SAS), versão 2.9. O projeto foi submetido à aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), registrado sob o número 375/2010.
Resultados
Dos dados recolhidos sobre o período entre os anos de 2000 e 2009, 447.489 exames foram excluídos com base nos critérios adotados, totalizando uma amostra final de 37.137 exames de mulheres gestantes e 851.554 exames de mulheres não gestantes. No total, somando-se exames de mulheres gestantes e não gestantes (n=888.691), o número de resultados citológicos de ASCUS foi de 10.895, o que correspondeu a uma frequência de 1,2% do total da amostra.
A frequência de ASCUS foi mais alta entre mulheres não gestantes do que entre as gestantes em todos os grupos etários. No entanto, houve diferença significante nos grupos etários entre 20-24 (OR=0,8; IC95% 0,5-0,9) e 25-29 anos (OR=0,7; IC95% 0,6-0,9) (Tabela 1).
Tabela 1. Análise da associação entre células escamosas atípicas de significado indeterminado e estado gestacional, por faixa etária
Idade (anos) | Resultado citopatológico | ||||
---|---|---|---|---|---|
ASCUS | Normal | Total | |||
n | % | n | % | ||
20–24 | |||||
Gestante | 270 | 1,2 | 20.940 | 98,7 | 21.210 |
Não gestante | 5.089 | 1,4 | 338.545 | 98,5 | 343.634 |
OR (IC95%) | 0,85 (0,75–0,97) | 1 | |||
25–29 | |||||
Gestante | 90 | 0,9 | 9.798 | 99,0 | 9.888 |
Não gestante | 2.992 | 1,1 | 255.690 | 98,8 | 258.682 |
OR (IC95%) | 0,78 (0,63–0,96) | 1 | |||
30–34 | |||||
Gestante | 45 0,7 | 5.994 | 99,2 | 6.039 | |
Não gestante | 2.409 | 0,9 | 246.829 | 99,0 | |
OR (IC95%) | 0,76 (0,57–1,03) | 1 |
Teste do χ2; Medida da magnitude da associação foi analisada por valores estimados de Odds Ratio (OR) com IC95%; ASCUS: células escamosas atípicas de significado indeterminado.
Discussão
Este estudo mostrou que nos grupos etários entre 20-24 e 25-29 anos houve maior prevalência de ASCUS em mulheres não gestantes que em gestantes. Os dados sugerem, portanto, que a gestação não está associada ao aumento na frequência do resultado citopatológico de ASCUS.
A interpretação da citologia cérvico-vaginal de gestantes não difere das não gestantes, com exceção às alterações citológicas associadas ao estado gestacional, como processo inflamatório, hiperplasia glandular, presença de células deciduais degeneradas e reativas de Arias-Stella, sendo que estas últimas podem mimetizar as alterações malignas e devem ser cuidadosamente avaliadas por citopatologista bem treinado5 , 13 , 14. É essencial que o profissional esteja informado da história clínica a fim de correlacionar as alterações citopatológicas com o estado gestacional.
A conduta preconizada pelo Ministério de Saúde frente ao diagnóstico de ASCUS tem sido repetir o exame citopatológico em seis meses, se a idade da mulher for maior que 30 anos, e em 12 meses, se menor que 30. Devemos ressaltar que tal diagnóstico pode causar impacto psicológico desnecessário à mulher neste momento de sua vida, podendo gerar ansiedade pela não apreensão do verdadeiro significado da anormalidade15. Além disso, a realização de exames desnecessários pode aumentar os custos do sistema público de saúde. Entretanto, cabe lembrar que a gestação é uma oportunidade para realização do exame citopatológico em mulheres que nunca foram submetidas a este exame, nas que não estão em acompanhamento16 , 17, ou, ainda, para seguir o que preconizam o Ministério da Saúde e o INCA, que indicam a realização do exame citopatológico a cada três anos após dois resultados negativos com intervalo de um ano entre si3 , 18.
Estudos apontam diferença tanto na prevalência de lesões precursoras como na chance de progressão para neoplasia do colo uterino quando consideramos como variável o estado gestacional. Há evidências de que em mulheres gestantes, a incidência histopatológica de neoplasia intraepitelial grau I (NIC I) dentre aquelas com resultado citopatológico de ASCUS pode ser menor quando comparado a mulheres não gestantes19, sendo que, em gestantes, ASCUS foi associado a uma incidência entre 24,8 a 50% de NIC I, enquanto que, em não gestantes ou mulheres no puerpério, ASCUS foi associado a uma incidência entre 28 a 83,3% de NIC 1. Deve-se levar em consideração a limitação da amostragem envolvida nesses estudos19 - 21.
Como limitações desse estudo, destacamos a ausência de confirmação histológica dos resultados e a possível repetição de sujeitos quando o exame foi realizado em intervalo maior que um ano. No entanto, essas limitações podem ser contrabalanceadas pelo relevante tamanho amostral (888.861 exames).
Concluindo, entendemos que a maior frequência de taxas de ASCUS para mulheres não gestantes indica que alterações relacionadas à gravidez não aumentariam as taxas de ASCUS. Deve-se realizar interpretação cautelosa desses resultados a fim de reduzir os custos assistenciais dos programas de rastreamento e o impacto psicológico desnecessário. Reforçamos, com base nos resultados deste estudo e trabalhos anteriores do grupo de pesquisa22, que a coleta do exame citopatológico não necessariamente deva ser realizada de forma compulsória na rotina do pré-natal.